Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Sede da associação ‘espontânea’ de apoio a Gouveia e Melo fica num ‘albergue espanhol’ empresarial

    Sede da associação ‘espontânea’ de apoio a Gouveia e Melo fica num ‘albergue espanhol’ empresarial

    A novel associação cívica “espontânea” de apoio a Gouveia e Melo tem sede num centro de negócios na zona das Amoreiras, que compartilha com cerca de 170 empresas, entre as quais duas agências de comunicação, a Plataforma Comunicatorium e a Cupido. A primeira destas empresas é detida por Vera Norte, enquanto a segunda pertence a João Goulão, antigo director de marketing e vendas da SIC. Esta segunda empresa terá funcionado na sede da própria Impresa, em Paço de Arcos, mantendo ainda essa referência na rede social LinkedIn. João Goulão garante, contudo, não ter a associação Honrar Portugal como cliente. Também Vera Norte nega qualquer ligação à associação, afirmando ser uma mera “coincidência”partilharem o endereço da sede.

    De acordo com os estatutos da associação consultados pelo PÁGINA UM, constituída na passada sexta-feira num cartório de Odivelas, foi indicada como sede o centro empresarial da LEAP, situada no Espaço Amoreiras no número 24 da Rua D. João V, em Lisboa, com referência ao escritório 1.03. Ora, a LEAP Amoreiras funciona sobretudo como um centro virtual de empresas geralmente associado a colaboradores a trabalhar em coworking, sendo também usada para reuniões pontuais ou recepção de correspondência.

    Centro Amoreiras funciona como uma área empresarial, que basicamente acolhe empresas que necessitam de escritórios virtuais ou salas para microempresas ou para reuniões.

    Segundo a descrição do site deste centro empresarial, o espaço tem cerca de 2.200 metros quadrados, havendo 17 escritórios, que podem ser alugados a tempo inteiro ou de forma pontual. Além desse espaço existem a denominada LEAF Academy com três dezenas de escritórios e também salas de formação e auditório.

    Neste autêntico ‘albergue espanhol’ empresarial não é fácil saber quem se encontra lá instalado, até porque o atendimento telefónico é centralizado, mesmo quando se tenta contactar uma empresa específica, como constatou esta tarde o PÁGINA UM.

    Em todo o caso, com o mesmo endereço da associação Honrar Portugal, o PÁGINA UM apurou a existência de 171 empresas ou entidades, com as mais distintas actividades. Além das duas agências de comunicação, encontram-se registadas empresas do sector do imobiliário, da restauração, de serviços de arquitectura e design, de informática, de turismo, e até uma de ‘tuk tuks’, além de advogados.

    Apesar de ter sido apresentada como uma “associação cívica” com o intuito de dar “o conforto necessário” para o antigo líder da Marinha se candidatar ao posto de Belém, contando mesmo com o apoio de várias personalidades do PSD, nada há de espontâneo no seu surgimento. Tanto assim que já se criou um site e se divulgou uma longa notícia, com grande relevância pelos media, a partir de uma notícia, em estilo de press release, da agência Lusa. Nessa notícia, surgia mesmo o agradecimento de Gouveia e Melo ao surgimento dessa associação.

    Isaltino Morais, presidente da Câmara de Oeiras, ‘retribui’ Medalha Vasco da Gama recebida

    No site da associação, hoje divulgado, já constam notícias de arquivo, e os anúncios de eventos com a presença de Gouveia e Melo: em Arouca – amanhã, no âmbito do Dia Mundial da Água – e num almoço-debate na próxima quinta-feira no International Club of Portugal sob um tema recorrente: “Liderança e Ambição Coletiva”. Mas nada é referido sobre a localização da sede nem quaisquer contactos telefónicos.

    Uma das particularidades da associação é que tem fim marcado, o que pode indiciar, até porque Gouveia e Melo já “abençoou” a sua criação, que poderá servir como plataforma de financiamento da campanha eleitoral. De acordo com os estatutos, a associação será extinta até 31 de Dezembro de 2026, podendo a sua ‘vida’ ser prorrogada por seis meses “por deliberação da Assembleia Geral”.

    Embora seja uma associação cívica teoricamente aberta não será previsível que sejam recebidos muitos sócios, até para garantir a ausência de desvios na sua função primordial: “acções conducentes à concretização da candidatura de Henrique Gouveia e Melo a Presidente da República portuguesa, designadamente, entre outras, através da realização de encontros, acções, encontros, arrecadação de fundos, sempre no sentido e com o propósito exclusivo de concretizar a candidatura da mesma individualidade.”

    A associação “espontânea” até já ostenta uma fotografia profissional de marketing pessoal de Gouveia e Melo.

    Por esse motivo, no acto da constituição da associação ficaram desde logo definidos os órgãos sociais. A presidente da Honrar Portugal é Catarina Santos Cunha, actual vereadora da autarquia do Porto, eleita pelo Partido Socialista, mas agora independente, sendo a vice-presidência ocupada pela constitucionalista Teresa Violante, investigadora da Universidade Nova de Lisboa e ex-vereadora da Câmara de Coimbra.

    A Assembleia Geral será presidida por um antigo ‘companheiro de armas’ de Gouveia e Melo, o vice-almirante Dores Aresta. Recorde-se que Dores Aresta foi vetado em Março de 2022 por Marcelo Rebelo de Sousa para ser o número dois da Marinha, durante a liderança de Gouveia e Melo, mas acabou por ser nomeado director-geral da Autoridade Marítima, cargo que desocupou em finais do ano passado. A presença deste militar mostra também a presença indelével de Gouveia e Melo nesta suposta associação cívica, inundada de políticos no activo e na reserva, alegadamente constituída de forma “espontânea”.

    A presença de diversas individualidades próximas de Gouveia e Melo – como Dores Aresta e Isaltino Morais, a quem o antigo Chefe de Estado-Maior da Armada ‘ofereceu’ a Medalha Vasco da Gama – demonstra uma articulação com os desejos do proto-candidato a Belém, evitando assim novos passos em falso como a que ocorreu com a criação do Movimento de Apoio Almirante à Presidência,uma associação ligada à Maçonaria criada em Janeiro passado.

    Aos 82 anos, Alberto João Jardim, um dos políticos com mais anos de poder, deu o apoio a um candidato a Belém que diz não querer estar associado a políticos e a partidos.

    Para já, no site da associação Honrar Portugal, com sede no ‘albergue espanhol’ empresarial das Amoreiras, encontra-se já uma vasta lista de apoiantes, que incluem o ex-presidente do Governo Regional da Madeira Alberto João Jardim, o ex-ministro da Administração Interna Ângelo Correia, o ex-líder parlamentar social-democrata Adão Silva, os presidentes das câmaras de Cascais, Carlos Carreiras, e de Oeiras, Isaltino Morais, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros António Martins da Cruz, e ainda o antigo líder do CDS Francisco Rodrigues dos Santos, o ex-chefe do Estado-Maior da Armada Melo Gomes, o ex-presidente da Câmara de Cascais António Capucho, o conselheiro nacional do PSD André Pardal ou o ex-diretor-geral da Saúde Francisco George.

    O PÁGINA UM tentou contactar, assim sem sucesso, a associação Honrar Portugal para obter comentários e outros esclarecimentos, designadamente sobre a escolha da sede e da empresa de comunicação que acompanhará a campanha eleitoral de Gouveia e Melo.

    N.D. Notícia alterada às 20h00 de 22 de Março de 2025, com declarações de Vera Norte, da agência de comunicação Plataforma Comunicatorium. A notícia original do PÁGINA UM, baseando-se na informação pública de Vera Norte no seu perfil do LinkedIn, referia que era directora da Associação Sara Carreira. Vera Norte afirma que abandonou essas funções em Dezembro passado.

  • Fixem estes nomes: são os carrascos do jornalismo

    Fixem estes nomes: são os carrascos do jornalismo


    Fixem estes nomes: Helena Sousa, Pedro Correia Gonçalves, Telmo Gonçalves, Carla Martins e Rita Rola. Ficarão para a História como os carrascos do Jornalismo Livre e Isento em Portugal.

    É da mais elementar justiça que as responsabilidades sejam pessoais, quando as consequências dos seus actos são devastadoras. Estas cinco pessoas são membros do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) e têm nas mãos a obrigação constitucional de defender a Imprensa, como entidade fundamental da Democracia, e os princípios da ética e da transparência no jornalismo.

    Tem sido uma entidade, que pela sua natureza associada ao poder político, raramente exerce essas funções com isenção. Mas piorou nos últimos anos. Se muitas vezes critiquei, com virulência, o mandato de Sebastião Póvoas, a ERC com Helena Sousa afundou-se para um grau de indigência e de desonestidade intelectual – desculpem o eufemismo.

    Helena Sousa, Pedro Correia Gonçalves, Carla Martins, Telmo Gonçalves e Rita Rola, membros do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

    Hoje, a ERC, com estas três senhoras e estes dois senhores no seu Conselho, não apenas mostra uma inércia regulatória como, quando ‘obrigados’, mostram uma condescendência fatal, dando mostras de que preferem não ver para não ter de agir. E isso fá-los cúmplices de um sistema que permitiu a degradação da imprensa portuguesa, não por falta de meios, mas por falta de vergonha.

    A recente deliberação que sancionou o Expresso por promiscuidade entre jornalismo e publicidade é uma encenação para inglês ver – e, como todas as farsas mal encenadas, revela mais do que esconde. A coima de 2.000 euros à Impresa Publishing é uma anedota de mau gosto, quando estavam em causa valores de contratos promíscuos de elevados valor (basta olhar para as várias páginas dos indigentes ‘Projetos Expresso’, onde se mercadeja jornalismo à descarada). Não só pelo valor ridículo – um preço de saldo por violar a Lei de Imprensa –, mas porque sugere descaradamente que há um tarifário para a promiscuidade mediática.

    Uma multa tão simbólica não é punição: é um incentivo. Um convite à reincidência. Ou pior: ao alargamento de um negócio vergonhoso, legalizando o Jornalismo como mercadoria a ser oferecida a quem tiver mais dinheiro.

    A ERC transformou-se no facilitador institucional da promiscuidade entre os media e o poder político e económico. Ao demorar dois anos para sancionar um caso que remonta a 2021, e ao ignorar deliberadamente outros contratos escandalosos, este regulador revela-se um exemplo de cobardia e irresponsabilidade. E há que dizê-lo sem eufemismos: a ERC de Helena Sousa, Pedro Correia Gonçalves, Telmo Gonçalves, Carla Martins e Rita Rola normalizou a ‘prostituição informativa’.

    Estes cinco reguladores serão recordados como os comissários que abriram caminho para que a imprensa se financie à custa da mentira e do engano, vendendo aos leitores publicidade mascarada de notícia, desde que nos cadernos de encargos não conste expressamente que o adjudicatário (a empresa de media) não tem obrigação de publicar uma notícia paga, mesmo que depois seja publicada uma notícia, que somente existe por haver uma relação comercial. Na prática, a ERC deu aval para que os jornalistas se tornem agentes comerciais ao serviço de entidades públicas e privadas. E o resultado está já à vista sem esperança para os jornalistas assim pressionados pelas direcções e administrações para fazerem fretes: uma imprensa desacreditada, um público desconfiado e um jornalismo moribundo.

    A forma como a ERC se debruçou sobre este caso da Impresa Publishing antecipa o resultados de outros processos de contra-ordenação que envolvem mais seis órgãos de comunicação social:  PúblicoExpressoDiário de NotíciasJornal de NotíciasTSFVisão e SIC, no decurso de uma investigação do PÁGINA UM, publicada em Maio de 2022. Tudo era mais que confirmável, mas a ERC limita-se a aplicar uma coima simbólica, sugerindo, ainda por cima, que há um modo de escapar a futuras punições: basta não colocar a previsão explícita da publicação das “notícias” nos contratos.

    Notícia paga por uma entidade tutelada pelo Ministério do Ambiente, então liderado por Duarte Cordeiro, estava prevista ser publicada no Expresso num contrato de 19,500 euros. A ERC nem se dignou a querer ver o caderno de encargos, onde a exigência está expressa, absolvendo o jornal.

    Além disso, a ERC encontrou uma forma de fechar os olhos às promiscuidades. Embora tenha poderes legais para exigir cadernos de encargos das entidades públicas não mexeu uma palha para esclarecer outros contratos promíscuos. Limitou-se a usar a desculpa do ‘in dubio pro reo’, esquecendo-se que o seu papel não é o de um juiz indiferente, mas de regulador proactivo. Preferiu a preguiça ao rigor; a complacência à coragem. Em vez de defenderem os cidadãos e os leitores, defenderam os interesses dos poderosos. E a democracia, que necessita de uma imprensa livre, ficou mais pobre.

    A imprensa portuguesa não foi destruída pelo avanço das redes sociais, nem pelo desinteresse dos leitores. Tem sido traída por dentro, com o aval de um regulador que se recusa a regular. Enquanto jornalistas e directores venderem a sua independência, e enquanto a ERC se mantiver surda, muda e cega, o jornalismo continuará a morrer. E não há democracia que sobreviva à morte do jornalismo.

    Os membros deste Conselho Regulador da ERC não podem dizer que não sabem. E que nada do que fazem influencia o rumo qualitativo da imprensa numa época de crise financeira. Sabem e sabem muito bem. Sabem que permitem que conteúdos publicitários sejam publicados como se fossem notícias. Sabem que jornalistas foram transformados em comissários de relações públicas ao serviço de ministérios e empresas. Sabem que estas práticas corroem a credibilidade da imprensa como um ácido corrói o ferro. Sabem tudo isto, mas não se importam. Ou pior: importa-lhes manter o sistema tal como está.

    E qual foi, é e será a consequência directa deste laxismo regulatório? Também se sabe. O maior erro estratégico da imprensa portuguesa nos últimos anos tem sido acreditar que a sustentabilidade financeira se garante enganando os leitores com publicidade travestida de informação. Em vez de apostar em jornalismo isento e rigoroso para conquistar a confiança dos leitores e atrair anunciantes legítimos, optou-se pela batota. Preferiu-se vender a credibilidade por um prato de lentilhas. E hoje, temos quase todas as empresas de media de grande dimensão em colapso ou próximo disso, como são os casos da Trust in News, da Global Media e da própria Impresa, dona da SIC e da Impresa Publishing. Nem a promiscuidade é sustentável. Muito pelo contrário.

    O Conselho Regulador da ERC tem-se tornado cúmplice activo desta fraude. E, assim, a imprensa portuguesa continuará a afundar-se num pântano ético do qual dificilmente sairá enquanto Helena Sousa, Pedro Correia Gonçalves, Telmo Gonçalves, Carla Martins e Rita Rola permanecerem em funções. São eles os rostos da falência moral do jornalismo em Portugal. Fixem estes nomes, portanto, porque um dia hão-de figurar nos anais da Imprensa Portuguesa como os coveiros da informação livre e honesta.

  • Actas XXX: Conselho Superior da Magistratura expurga informação pública de forma selectiva

    Actas XXX: Conselho Superior da Magistratura expurga informação pública de forma selectiva

    XXX – omnipresente na cultura pop, e não só, a conjugação tripla da 22.ª letra do abecedário latino (ou 24.ª para quem usa o Acordo Ortográfico de 1990), começou como um simples X, rabiscado por seguranças de clubes nos anos 80 para assinalar os menores de idade que, em teoria, não podiam beber álcool. Mas como a juventude punk sempre teve um talento especial para transformar restrições em insígnias de rebeldia, alguns decidiram que aquele X não era um sinal de proibição – era um símbolo de pureza e resistência.

    Assim nasceu o straight edge, um movimento hardcore que rejeitava álcool, tabaco, drogas e, em alguns casos mais radicais, qualquer vestígio de diversão que não envolvesse moshing e gritos sobre desilusões existenciais, porque no hardcore original tudo precisa de ser elevado ao extremo. Afinal, se um X é bom, três seriam melhores.

    Mas houve quem considerasse que esse triplo X poderia bem ser, fora do universo punk, usado como símbolo de pornografia, ou seja, tudo o que os straight edge tentavam evitar. O resultado disto foi uma das ironias mais deliciosas da cultura underground: os mesmos jovens que erguiam orgulhosamente camisolas com XXX estampado no peito acabavam confundidos com entusiastas do cinema para adultos.

    Não menos irónico é que o XXX – e um pouco menos o XX e o X – são também caracteres bastante apreciados no edifício com o número 23 da Rua Duque de Palmela, em Lisboa, isto é, na sede do distinto e digníssimo Conselho Superior da Magistratura (CSM). Órgão de gestão e disciplina dos juízes em Portugal, integrando magistrados, personalidades designadas pela Assembleia da República e pelo Presidente da República, o CSM tem como principais funções nomear, avaliar, promover, colocar e exercer a acção disciplinar sobre os juízes dos tribunais judiciais

    Em sede deste órgão, existem duas estruturas fundamentais: o Conselho Plenário e o Conselho Permanente. No primeiro, delibera-se a nomeação, avaliação e disciplina de juízes conselheiros e desembargadores, aprovam-se regulamentos, apreciam-se impugnações administrativas, aplicam-se penas disciplinares, incluindo a demissão, atribuem a classificação de Medíocre, decide-se sobre o direito de regresso e sobre situações de suspensão ou perda de mandato, e decidem-se outros assuntos avocados ou propostos pelos seus membros. Já o Conselho Permanente fica com a gestão dos assuntos teoricamente menos polémicos.

    Ora, mas, na verdade, pelo menos na aparência, tudo parecerá polémico para o CSM – ou pelo menos, não deve estar ao dispor do vulgar cidadão. Por exemplo, no das actas do Plenário – que se reúne, com frequência ordinária, uma vez por mês, com excepção de Agosto –, existe uma apetência especial para o uso dos caracteres (maiúsculos) XXX, XX e X, usados para ‘eliminar’ o conhecimento público dos casos considerados mais sensíveis. Vejamos um exemplo, na lista de actas que surgem na página do próprio Conselho Plenário, com reuniões mensais.

    Na reunião de Janeiro do ano passado, de entre 29 deliberações, há cinco oitos de ‘XXX’. No ponto 12 fica-se a saber que foi deliberado por proposta do “Senhor Vogal Dr. Júlio Gantes” atribuir a classificação de “Suficiente” (aparentemente uma má nota) à “Dra XXX pelo seu desempenho no período compreendido entre 17 de dezembro de 2020 e 19 de Abril de 2023 no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Matosinhos – Juiz 1”. No ponto seguinte, a “Juíza de Direito XXX” viu ser-lhe negada a pretensão de melhorar a nota que lhe fora atribuída, não ficando sequer em acta em que juízo desempenha funções.  

    Na mesma reunião revela-se que se indeferiu o pedido do “Exmo. Sr. Juiz de Direito XXX para exercer o cargo de Presidente do Conselho de Justiça da Federação Portuguesa de Atletismo”. Não se sabe quem foi.

    Trecho da acta de Janeiro de 2024 do Plenário do CSM tornada pública com expurgo de informação.

    Mas existem também, nesta reunião, casos em que são apagados detalhes muito relevantes que deveriam ser do conhecimento das partes envolvidas em processos judiciais. Por exemplo, no ponto 28 da ordem de trabalhos diz-se que “foi deliberado por unanimidade concordar com a proposta da Exma. Sra. Juíza Desembargadora Dra. Ana de Azeredo Coelho, relativamente à prolação de decisões nos processos distribuídos ao Exmo. Senhor Desembargador Dr. XXX no Tribunal da Relação de XXX e assim: determina-se que a suspensão da distribuição se mantenha até à prolação das decisões nos dois processos não redistribuídos (NUIPC XXX e XXX) e nunca depois de 31 de janeiro, sem prejuízo do que resultar da informação a solicitar ao processo de averiguação; seja elaborada informação sumária e meramente indiciária sobre o objeto do processo de averiguação, a prestar até 31 de janeiro”.

    Este é apenas um exemplo. E nem sempre o ‘XXX’ é o escolhido para esconder de olhos curiosos os nomes ou tribunais ou processos que são debatidos nas magnas reuniões. Por exemplo, na acta do Plenário de Junho do ano passado decidiu-se esconder os ‘elementos sensíveis’ através não do ‘XXX’ mas do ‘XX’. São seis os casos. No mês seguinte, para expurgar elementos usa-se o ‘XXX’, o ‘XX’ e ainda apenas o ‘X’, embora todos com a mesma função: apagar 10 referências a juízes, tribunais ou processos.

    Há casos de absurda omissão, que pode determinar prejuízo tanto para advogados como arguidos em processos. E, claro, nada abona sobre a transparência da Justiça. Por exemplo, no ponto 16 do Plenário de Setembro do ano passado, foi confirmada a classificação de “Medíocre” de uma juíza sob proposta do desembargador Filipe Caroço, perfeitamente identificado em acta. E quem é essa juíza? A acta ‘esclarece’: é a “Senhora Juiz de Direito Dra. XXX” que exerceu no “Juízo Local Cível de XXX, Juiz X (Comarca de XXX)”, entre 7 de Abril e 31 de Agosto de 2022, e saltou depois, entre Setembro de 2022 e Abril de 2024, para o “Juízo Local Cível de XXX, Juiz X (Comarca de XXX)”.

    João Cura Mariano, presidente do Supremo Tribunal de Justiça e por inerência do Conselho Superior da Magistratura, a cumprimentar o Presidente da República

    Somente no ano de 2024, o PÁGINA UM detectou, pelo menos, rasuras em 140 partes, excluindo do conhecimento público nomes, tribunais e processos. Só mês de Novembro de 2024 tem 39 rasuras.

    Similar problema de obscurantismo têm as sessões do Conselho Permanente, com a agravante de existirem em mais actas: no ano passado houve 35 reuniões, onde tomam parte o presidente do CSM, o vice-presidente, o vogal indicado pelo Presidente da República, dois vogais eleitos pela Assembleia da República, três vigais eleitos pelos magistrados judiciais e a juíza secretária. Neste caso, em diversas actas consultadas, talvez por pudor, não se use nem ‘X’ nem ‘XXX’ para expurgar elementos identificativos; opta-se antes por tracejado.

    Também aqui há selectividade na eliminação da informação. Por exemplo, na acta de 30 de Janeiro de 2024, um escrivão que viu o seu recurso de classificação de “Bom com distinção” ser recusado, foi identificado: João Gilberto Ramos de Abreu. Porém, logo no ponto seguinte não se sabe quem é a “Exma. Sra.” que viu ser indeferido o requerimento para ser abrangida pela Lei da Amnistia. Nem se sabe pela acta a que castigo se referia ou sequer a função.

    No ponto seguinte, também não é identificada a juíza que terá pedido um incidente de recusa nem sequer o processo sobre o qual estaria a tratar, Menos transparência não poderia haver.

    Em outros casos são transcritas deliberações tomadas sobre averiguações, inquéritos ou exposições, onde são eliminados os nomes dos juízes, bem como os processos, em alguns casos com a indicações de terem ocorrido atrasos alegadamente injustificados. Curiosamente, em algumas situações surge a referência a ter saído da sala algum dos membros do Conselho Permanente, intuindo-se que terá sido por razões de proximidade.

    Trecho de uma acta do Conselho Permanente do CSM, onde não há ‘XXX’; usa-se antes o tracejado para a mesma função: ocultar.

    Este e muitos outros casos estão semeados ao longo das páginas das dezenas de actas da cúpula da Magistratura portuguesa, sem que se entendam os motivos dos expurgos ou o propósito de se esconder informação apenas quando o visado tem um desempenho sofrível que, a haver prejudicados, serão as partes dos processos.

    Por esse motivo, o PÁGINA UM requereu ao CSM o acesso integral a todas as actas sem expurgos do Plenário e do Conselho Permanente relativas aos anos de 2023 e 2024.

    Porém, o CSM recusou o acesso, alegando a protecção de dados nominativos, mesmo quando, em muitos casos, o expurgo se refere ao nome de tribunais ou a números de processos, aos quais nem sequer se aplicaria jamais o Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD). Porém, nem sequer ao nível do acesso a documentos administrativos, como são as actas, se aplica o RGPD, tanto mais que aquilo que está em causa são apenas nomes e de pessoas em exercício de funções públicas. Mas na recusa, o CSM alega que “não é o tratamento de dados pessoais no contexto profissional menos merecedor de proteção do que noutras circunstâncias”, acrescentando que “existe jurisprudência consolidada, e [que como existe] um volume significativo de dados pessoais e [que] abrange um vasto conjunto de assuntos, diferenciados”, tal “implicaria desde logo diferentes ponderações em razão da matéria tratada”.

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    A Justiça não é cega; por vezes, coloca é vendas para que não seja vista.

    No entanto, o CSM não indica qual a jurisprudência em concreto – que, na verdade, existe mas é contrária à posição desta entidade, ou seja, não há protecção de dados quando se trata do nome de alguém no exercício de funções público. Além disso, carece de sustentação esse argumento quando a rasura é selectiva – isto é, se um juiz tem uma classificação de distinção, o seu nome é revelado sem pudor; mas se tem uma classificação mediana ou sofrível, ‘beneficia’ de uma ocultação.

    Por todo esse motivo, o PÁGINA UM fez uma intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa no sentido de obrigar, mais uma vez, o CSM a revelar dados administrativos.

    Recorde-se que já este ano, depois de um longo processo, o PÁGINA UM conseguiu aceder aos relatórios do inquérito à distribuição da Operação Marquês, depois de uma longa ‘luta jurídica’, que culminou mesmo com uma ameaça de sanção pecuniária compulsória ao presidente do CSM (e também do Supremo Tribunal de Justiça), João Cura Mariano. Também nesse processo, que perdeu em toda a linha, o CSM alegava razões de protecção de dados para não disponibilizar voluntariamente documentos comprometedores.


    N.D. Este e muitos outros processos judiciais do PÁGINA UM têm sido apoiados pelos leitores através do FUNDO JURÍDICO, que, neste momento, apresenta um défice.

  • Impresa à beira do precipício e a arrastar a SIC

    Impresa à beira do precipício e a arrastar a SIC

    Foi a galinha de ovos de ouro, depois passou a ser a vaca que dava leite; agora  mostra mais ser uma cabra vampirizada até à última gota de sangue – este pode bem um possível retrato alegórico da SIC, a empresa televisiva da Impresa, e a história de uma ‘mãe’ que está a matar a ‘filha’.

    Na semana passada, na divulgação  dos resultados da Impresa, a holding controlada pela família Balsemão – embora com uma parte distribuída em bolsa – revelou que “face à evolução de determinadas actividades nos segmentos de Televisão e da Infoportugal” tinham revisto os valores dos activos, na componente do ‘goodwill’, implicando uma imparidade da ordem dos 60,7 milhões de euros. O impacte contabilístico foi brutal, adicionado a provisões de 5,3 milhões de euros: um prejuízo anual de 66,2 milhões de euros. De um ano para o outro, os capitais próprios da Impresa terão caído de valor cerca de 40%.

    Porém, mais grave do que isso, para além dos sinais para o mercado de uma holding endividada, são os reflexos desta desvalorização. Em abono da verdade, a redução do goodwill da Impresa é uma diminuição de um valor que efectivamente nunca existiu; era artificial. Isto porque o goodwill da holding Impresa – que antes desta revisão estava definido como valendo 251 milhões de euros – tinha sido ‘fabricado’.

    De facto, a origem deste goodwill registado no balanço consolidado da Impresa não resultou de aquisições externas, nem de operações de expansão que tivessem trazido valor acrescentado ao grupo. Aquilo que a holding fez, ao longo dos anos, foi reavaliar internamente as suas próprias subsidiárias, em particular a SIC, atribuindo-lhes um valor superior ao seu valor contabilístico líquido e registando essa diferença como goodwill.

    Para financiar estas operações internas de reestruturação e ‘compra’ das participadas, a Impresa recorreu a dívida bancária. Ou seja, criou-se um activo intangível assente em expectativas futuras, enquanto se aumentava o passivo financeiro com empréstimos que suportaram esta operação meramente contabilística. Agora, a imparidade de 60 milhões de euros reconhecida sobre esse goodwill revela aquilo que o mercado já pressentia: o grupo vale menos do que anunciava, e a principal fonte de valor, a SIC, está fragilizada, sem margem para sustentar por muito mais tempo uma holding que vive da sua exploração.

     Durante anos, este goodwill’ da Impresa – completamente separado do valor dos activos intangíveis da SIC, que são de apenas cerca de 17 milhões – justificava-se pela capacidade dos canais televisivos fazerem dinheiro. E fizeram muito. Considerando os resultados da empresa SIC em 2024, os seus lucros acumulados desde 2019 são bastante expressivos: cerca de 69 milhões de euros. Porém, toda esta verba tem integralmente canalizada, como dividendos para a ‘casa-mãe’ Impresa, limitando a capacidade de novos investimentos ou mesmo a redução da própria dívida da SIC. Pior: apesar deste fluxo lucrativo, em forte queda nos últimos anos (em 2024, os lucros foram apenas de cerca de 25% dos de 2021), tem-se assistido ao aumento do passivo da SIC em mais de 50 milhões de euros, porque a ‘filha’ também empresta dinheiro ‘mãe’ e até lhe serve de ‘fiadora’.

    O paradoxo é evidente. A SIC lucra, mas não capitaliza. Os lucros são integralmente drenados pela Impresa e, não restando liquidez na operadora de televisão, recorre-se à dívida bancária para manter a actividade corrente e financiar investimentos e sustentar a holding Impresa. A SIC faz dívida para pagar dividendos e ainda faz dívida para emprestar à sua própria accionista. O que deveria ser um ciclo virtuoso de criação e retenção de valor, transformou-se num círculo vicioso de endividamento crescente e dependência financeira, resultando na fragilização estrutural da SIC.

    Esta é a realidade que os números expõem de forma clara e inequívoca. Ao longo dos últimos anos, a SIC foi sucessivamente espoliada dos seus resultados operacionais positivos para garantir a sobrevivência financeira da Impresa. A holding, esvaziada de actividade produtiva própria, não tem tido qualquer capacidade de gerar fluxos de caixa que não resultem da exploração directa da sua subsidiária.

    Francisco Pinto Balsemão: a queda de um império de media está iminente.

    A SIC é o pulmão e o coração financeiro da Impresa. Sem ela, a holding não viveria, até porque as portas dos bancos se fecharam desde 2017 – a partir desse ano praticamente não se registam fluxos de caixa provenientes de empréstimos bancários directos à Impresa. E assim, como qualquer organismo parasitário, a Impresa tem vindo a alimentar-se dos recursos da SIC sem nada devolver que reforce a vitalidade da sua operadora.

    Excluindo ainda os lucros de 2024, note-se que os dividendos entregues à Impresa pela SIC – controlada pela família Balsemão – totalizam, entre 2019 e 2023, um total de 64,9 milhões de euros, uma soma considerável num sector pressionado pela quebra da publicidade televisiva tradicional e pela concorrência das plataformas de streaming. Ou seja, em vez de servir para reforçar o capital próprio da SIC, ou para amortizar a dívida bancária que, em Junho de 2024, atingiu 94,5 milhões de euros, esse valor foi integralmente entregue à ‘casa-mãe’, também controlada pela família Balsemão.

    Como se não bastasse, uma vez que a própria SIC foi ainda forçada a conceder sucessivos empréstimos à Impresa (85 milhões de euros), com maturidade de dez anos e com reembolso apenas em 2029, isto significa que, no curto e médio prazo, tem imobilizados recursos significativos em favor de uma holding cuja única estratégia parece ser sugar o que resta do activo que detém. Além disso, não existem garantias de que o empréstimo de 85 milhões de euros seja devolvido à SIC.

    Lucros da SIC (em milhões de euros), que acabaram por ser canalizados como dividendos para a Impresa, No caso dos lucros de 2024 ainda não houve decisão em Assembleia Geral. Fonte: Relatórios e contas da SIC.

    Observando as demonstrações dos fluxos de caixa dos últimos anos, observa-se que a SIC tem sido o ‘banco’ da Impresa, à medida que os verdadeiros bancos fecham a porta pelo risco de incumprimento. Em 2017, a SIC emprestou à ‘mãe’ quase 10,3 mihõoes de euros em dinheiro vivo; em 2018 foram mais 48,8 milhões; em 2019 mais 45,8 milhões; em 2021 mais 1,1 milhões; e em 2023 quase três milhões. Só uma parte foi devolvida.

    Este ciclo de extracção financeira gerou um paradoxo que salta à vista de qualquer análise, mas que parece escapar à gestão da Impresa: uma empresa que lucra, a SIC, não é já uma cadeia de televisões; serve para fazer fluir dinheiro para a holding, custe o que custar, mesmo que se endivide cada vez mais – até porque já ninguém empresta um tostão directamente à Impresa. Na verdade, observando as contas da empresa SIC, constata-se de imediato uma dependência crescente dos financiamentos externos, enquanto sustenta uma holding que nada parece fazer para aliviar a sua carga de dívidas e de custos.

    O resultado é uma fragilização estrutural da SIC, que arrisca acabar com a existência tanto da principal subsidiária da família Balsemão como da holding, já condenada. O passivo total da SIC subiu de 123,4 milhões de euros em 2018 para 170,6 milhões de euros em Junho de 2024 – a Impresa não revela ainda o balanço do final do ano da sua subsidiária. Um agravamento de mais de 47,2 milhões de euros, não obstante a geração de lucros anuais e o reconhecimento contabilístico de uma operação que, em si mesma, continua a ser rentável. Esta dicotomia revela aquilo que é hoje a essência da relação entre a Impresa e a SIC: a primeira já não é uma holding no sentido clássico, mas sim um organismo dependente que parasita o seu activo produtivo até à exaustão.

    Evolução do passivo e da dívida financeira (em milhões de euros) SIC. Valores de 2024 referentes ao primeiro semestre. Fonte: Relatórios e contas da SIC.

    Mas mesmo com a drenagem constante de recursos da SIC, nem a Impresa conseguiu travar o esvaziamento do seu património. O sinal mais visível do esgotamento do modelo parasitário reside na queda abrupta do capital próprio consolidado do grupo. De uma ‘folga patrimonial’ de 156 milhões de euros – se bem que algo ‘maquilhada’ –, a Impresa terá passado agora, com o reconhecimento da imparidade e consequentes prejuízos de 66,2 milhões de euros – para cerca de 96 milhões.

    Além da queda abrupta do valor – com sinais fortes de que o sector televisivo estará em crise –, a Impresa agravou fortemente os seus principais rácios. Embora não tenha ainda sido divulgado o passivo de 2023, a solvabilidade da Impresa anda pelas ruas da amargura. Além disso, como a maioria dos activos da Impresa são ‘artificiais’ – ou seja, são o tal ‘goodwill’ (que representava 71% do total em 2023) –, a confiança do mercado começa a aproximar-se do zero.

    Aguardando-se ainda o relatório e contas final para o ano de 2024, a autonomia financeira da Impresa deverá agora rondar os 30%, algo que, em muitos sectores, mostra sinais de exposição excessiva à dívida. No caso da Impresa, trata-se de um indicador ainda mais preocupante, porque a holding não possui activos patrimoniais robustos, não gera cash flow operacional próprio e depende quase exclusivamente da SIC para sustentar as suas contas. A composição dos activos – dominada por intangíveis como o goodwill, agora desvalorizado – agrava o risco.

    Francisco Pedro Balsemão.

    Em 2023, se se excluísse o goodwill, os activos da Impresa situavam-se em apenas em 110 milhões de euros, dos quais 22 milhões do edifício que recompraram em 2022 e que será vendido para dar liquidez. A parte restante distribui-se sobretudo por direitos de transmissão de programas 42,7 milhões de euros), créditos sobre clientes (21,8 milhões de euros) e dinheiros em caixa (13,2 milhões). Esta última parcela pode parecer imensa, mas não é: os custos operacionais em 2023 foram, em média, de quase 14,3 milhões de euros por mês, a que acresceu quase um milhão de euros de pagamentos de juros e outros custos financeiros.

    Na verdade, se observamos as contas individuais da Impresa, antes da consolidação das contas das suas subsidiárias, a holding controlada pela família Balsemão é hoje financeiramente estéril, dependendo integralmente da liquidez gerada pela SIC para pagar os seus compromissos correntes, incluindo o serviço da sua própria dívida. A Impresa vive do que a SIC lhe transfere, não gera valor, nem contribui para a resiliência do grupo. Ou seja, reiterando o que se expôs, estamos perante um modelo de exploração financeira em que a Impresa actua como um parasita, retirando tudo o que pode da SIC sem garantir o seu futuro. E o futuro está a acabar.

  • Balsemão, a queda de um anjo

    Balsemão, a queda de um anjo


    Durante muitos anos, Francisco Pinto Balsemão foi um verdadeiro símbolo da liberdade de imprensa em Portugal – o homem que mesmo antes Revolução de Abril, fundou o Expresso, ergueu um título que, durante décadas, foi sinónimo de rigor, independência e seriedade. Era visto como um guardião da palavra livre, um exemplo de como o jornalismo poderia resistir à tentação dos poderes económicos e políticos, mantendo-se firme nos princípios da ética e da verdade. Aguentou até, estoicamente, o ‘seu’ jornal a atacá-lo durante o breve o período (1980-1983) em que teve funções governativas, incluindo o cargo de primeiro-ministro entre 9 de Janeiro de 1981 e Junho de 1983, o que lhe granjeou um estatuto de elevada seriedade. A sua biografia poderia alcandorá-lo à figura de um “anjo” do quarto poder, pairando acima das pressões e influências que tantos outros não aguentariam evitar.

    Mas mesmo os anjos, diz-nos Camilo Castelo Branco, podem cair. E o que assistimos nas últimas duas décadas, e sobretudo nos últimos 10 anos, é precisamente isso: a queda de um homem e de um projecto que outrora pareciam intocáveis. Se, nos primórdios, Balsemão compreendeu a importância de criar uma imprensa livre e exigente, a sua família teve dificuldades em perceber, com o tempo, que o desafio maior não vinha de um golpe militar ou de um poder político opressor, perante a consolidação da democracia, mas de um novo inimigo silencioso: a erosão da credibilidade.

    Francisco Pinto Balsemão

    Num tempo em que as tecnologias digitais e as redes sociais impuseram uma transformação radical na comunicação, a resposta de Balsemão e da Impresa foi hesitante e, muitas vezes, errada. Em vez de reforçar o jornalismo rigoroso, isento e independente – aquele que poderia distinguir o Expresso e a SIC no ruído informativo –, optou-se por atalhos fáceis. A dependência de negócios paralelos, os alinhamentos subtis (ou nem tanto) com os poderes instalados e a complacência com agendas políticas esvaziaram de sentido aquilo que um dia foi o seu maior trunfo: a credibilidade.

    Balsemão parece não ter percebido que o seu nome, por mais prestígio que tenha acumulado no passado, não bastava para segurar o futuro. Um jornal ou um canal de televisão não vive da reputação passada, mas sim da confiança renovada todos os dias junto dos seus leitores e espectadores. Sem confrontar o poder político, sem independência em relação aos negócios e às pressões, o jornalismo torna-se apenas mais um instrumento de propaganda ou de entretenimento disfarçado.

    A Impresa, que podia ter liderado um novo paradigma de jornalismo sério e combativo em Portugal, preferiu o conforto das redacções domesticadas, das audiências fáceis e das alianças tácitas com quem manda. E nessa escolha reside a verdadeira queda do “anjo” Balsemão: não por corrupção moral ou por cedência consciente, mas por uma incapacidade de entender que sem verdade, não há jornalismo que resista.

    Francisco Pinto Balsemão, em 2023, aquando do seu doutoramento ‘honoris causa’ pela Universidade Lusófona.

    Hoje, o Expresso já não é lido como antes. A SIC já não inquieta quem governa. E a Impresa, que foi exemplo, é agora apenas mais um grupo de comunicação social, à deriva entre as dívidas, os interesses e a irrelevância crescente. Balsemão deu ao país uma grande imprensa, mas não percebeu que um império só dura enquanto for construído sobre a confiança, não sobre um nome. A crise da Impresa, que arrasta a SIC, é um, colapso iminente por erros estratégicos.

    E um anjo que cai, por mais títulos e medalhas que traga no peito, não deixa rasto de luz. Apenas um aviso: a credibilidade é tudo. E sem ela, não há futuro. E ele não merecia, aos 87 anos, este presente.

  • Pandemia: Consulte os famigerados ‘esboços embrionários’ do IST, agora postos a nu (e analisados)

    Pandemia: Consulte os famigerados ‘esboços embrionários’ do IST, agora postos a nu (e analisados)

    O PÁGINA UM publica hoje, quase 32 meses após terem sido solicitados, os 52 relatórios do Instituto Superior Técnico – elaborados em parceria com a Ordem dos Médicos a partir do relatório 37 – que supostamente deveriam ter acompanhado a evolução da pandemia da covid-19 em Portugal.

    A divulgação destes relatórios só agora se concretiza na sequência de uma longa luta judicial, que incluiu uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, um acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul e ainda um pedido de aplicação de uma sanção pecuniária compulsória. Um processo que só se justifica pela prepotência do presidente do Instituto Superior Técnico, Rogério Colaço, que lutou afincadamente para recusar a sua divulgação pública.

    Numa atitude lamentável para quem ocupa um cargo de responsabilidade científica, Rogério Colaço chegou ao ponto de argumentar, através da advogada do IST, que não tinham feito relatórios, mas apenas “esboços embrionários que consubstanciavam meros ensaios para eventuais relatórios”. Só esta afirmação, pelo seu ridículo, deveria ter justificado a sua exoneração imediata. Mais grave ainda foi a tentativa levada a cabo no Tribunal Central Administrativo do Sul de convencer os desembargadores de que, apesar de existirem um relatório 51 e um relatório 52, não havia provas da existência de relatórios anteriores.

    A demora na publicação destes 52 relatórios por parte do PÁGINA UM ficou a dever-se ao facto de o IST os ter enviado em papel, obrigando-nos a proceder à sua digitalização. Poderíamos ter recorrido novamente aos tribunais para exigir consulta presencial ou entrega em formato digital, bem como para garantir que não fossem rasuradas quaisquer partes dos documentos. Mas preferimos expor publicamente como o IST – ou, pelo menos, o seu presidente – procedeu neste processo.

    As cópias agora divulgadas pelo PÁGINA UM estão expurgadas das referências à Ordem dos Médicos – embora as rasuras estejam mal feitas, permitindo identificar as omissões –, e os nomes dos autores dos relatórios também foram ocultados. Não obstante, os autores são conhecidos: Pedro Amaral, José Rui Figueira, Henrique Oliveira e Ana Serro.

    Rogério Colaço

    Provavelmente, nada acontecerá ao presidente do IST, Rogério Colaço, nem aos quatro investigadores e professores envolvidos, porque em Portugal não se responsabilizam os protegidos da Academia. Ainda assim, a publicação integral destes relatórios – que serviram, sobretudo em 2022, para alimentar o alarme social e condicionar políticas governamentais através de ‘fugas de informação’ para a agência Lusa – pretende registar para a posteridade uma das páginas negras da Ciência portuguesa.

    Para reforçar a necessidade de um debate científico sério e transparente, o PÁGINA UM procedeu à avaliação criteriosa de cada um dos relatórios agora divulgados, com base numa grelha rigorosa. Os relatórios do Instituto Superior Técnico foram avaliados segundo quatro critérios principais: a robustez metodológica, a transparência dos dados utilizados, a qualidade científica das projeções e recomendações e a imparcialidade na comunicação dos resultados. A análise metodológica incidiu na clareza dos modelos matemáticos, na justificação dos pressupostos e na existência de cenários alternativos ou análises de sensibilidade. Quanto à transparência, avaliou-se a origem dos dados e a sua coerência interna, bem como a acessibilidade à informação fundamental para validar os resultados apresentados.

    Além disso, a qualidade científica das conclusões foi medida pela fundamentação lógica das projeções, presença de intervalos de confiança e adequação das recomendações às evidências. Por fim, foi analisado o grau de alarmismo ou neutralidade dos relatórios, verificando se a comunicação dos resultados poderia influenciar desproporcionadamente a perceção pública e as decisões políticas. As avaliações foram realizadas com recurso a Inteligência Artificial e uma grelha de pontuação de 0 a 20 valores, garantindo maior objectividade na apreciação.

    Estas avaliações não pretendem ser definitivas. Por isso, o PÁGINA UM está disponível para publicar quaisquer análises ou textos de opinião de especialistas que pretendam comentar a qualidade científica destes relatórios. Porque é isso que se exige em Ciência: debate e escrutínio. E foi precisamente o contrário que Rogério Colaço procurou evitar – numa atitude em que a prepotência se sobrepôs à inteligência, cegando até um cientista conceituado.

    Relatório Rápido nº 1 – 19 de Março de 2021 (erradamente indicado na capa com data de 19 de Maio de 2021)
    Avaliação do Relatório Rápido nº 1 – Nota: 10/20


    Relatório Rápido nº 2 – 20 de Março de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 2 – Nota: 11/20

    Relatório Rápido nº 3 – 21 de Março de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 3 – Nota: 12/20


    Relatório Rápido nº 4 – 23 de Março de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 4 – Nota: 12/20


    Relatório Rápido nº 5 – 24 de Março de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 5 – Nota: 13/20


    Relatório Rápido nº 6 – 25 de Março de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 6 – Nota: 13/20

    Relatório Rápido nº 7 – 29 de Março de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 7 – Nota: 13/20


    Relatório Rápido nº 8 – 30 de Março de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 8 – Nota: 13/20


    Relatório Rápido nº 9 – 31 de Março de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 9 – Nota: 13/20


    Relatório Rápido nº 10 – 1 de Abril de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 10 – Nota: 13/20


    Relatório Rápido nº 11 – 2 de Abril de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 11 – Nota: 13/20

    Relatório Rápido nº 12 – 6 de Abril de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 12 – Nota: 13/20


    Relatório Rápido nº 13 – 7 de Abril de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 13 – Nota: 13/20


    Relatório Rápido nº 14 – 8 de Abril de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 14 – Nota: 13/20


    Relatório Rápido nº 15 – 9 de Abril de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 15 – Nota: 13/20


    Relatório Rápido nº 16 – 11 de Abril de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 16 – Nota: 13/20


    Relatório Rápido nº 17 – 12 de Abril de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 17 – Nota: 13/20

    Relatório Rápido nº 18 – 14 de Abril de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 18 – Nota: 13/20


    Relatório Rápido nº 19 – 15 de Abril de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 19 – Nota: 13/20

    Relatório Rápido nº 20 – 17 de Abril de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 20 – Nota: 13/20

    Relatório Rápido nº 21 – 20 de Abril de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 21 – Nota: 13/20

    Relatório Rápido nº 22 – 24 de Abril de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 22 – Nota: 13/20

    Relatório Rápido nº 23 – 28 de Abril de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 23 – Nota: 13/20

    Relatório Rápido nº 24 – 5 de Maio de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 24 – Nota: 13/20

    Relatório Rápido nº 25 – 14 de Maio de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 25 – Nota: 13/20

    Relatório Rápido nº 26 – 21 de Maio de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 26 – Nota: 13/20


    Relatório Rápido nº 27 – 28 de Maio de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 27 – Nota: 13/20

    Relatório Rápido nº 28 – 4 de Junho de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 28 – Nota: 13/20

    Relatório Rápido nº 29 – 13 de Junho de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 29 – Nota: 13/20

    Relatório Rápido nº 30 – 16 de Junho de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 30 – Nota: 13/20

    Relatório Rápido nº 31 – 22 de Junho de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 31 – Nota: 13/20

    Relatório Rápido nº 32 – 25 de Junho de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 32 – Nota: 13/20

    Relatório Rápido nº 33 – 2 de Julho de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 33 – Nota: 13/20

    Relatório Rápido nº 34 – 10 de Julho de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 34 – Nota: 13/20

    Relatório Rápido nº 35 – 19 de Julho de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 35 – Nota: 13/20


    Relatório Rápido nº 36 – 25 de Julho de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 36 – Nota: 12/20

    Relatório Rápido nº 37 – 17 de Setembro de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 37 – Nota: 10/20

    Relatório Rápido nº 38 – 15 de Novembro de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 38 – Nota: 10/20

    Relatório Rápido nº 39 – 18 de Novembro de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 39 – Nota: 10/20

    Relatório Rápido nº 40 – 25 de Novembro de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 40 – Nota: 10/20

    Relatório Rápido nº 41 – 9 de Dezembro de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 41 – Nota: 10/20

    Relatório Rápido nº 42 – 22 de Dezembro de 2021
    Avaliação do Relatório Rápido nº 42 – Nota: 10/20

    Relatório Rápido nº 43 – 16 de Janeiro de 2022
    Avaliação do Relatório Rápido nº 43 – Nota: 10/20

    Relatório Rápido nº 44 – 25 de Janeiro de 2022
    Avaliação do Relatório Rápido nº 44 – Nota: 10/20


    Relatório Rápido nº 45 – 2 de Fevereiro de 2022
    Avaliação do Relatório Rápido nº 45 – Nota: 13/20

    Relatório Rápido nº 46 – 15 de Fevereiro de 2022
    Avaliação do Relatório Rápido nº 46 – Nota: 13/20

    Relatório Rápido nº 47 – 9 de Março de 2022
    Avaliação do Relatório Rápido nº 47 – Nota: 10/20

    Relatório Rápido nº 48 – 19 de Abril de 2022
    Avaliação do Relatório Rápido nº 48 – Nota: 13/20

    Relatório Rápido nº 49 – 9 de Maio de 2022
    Avaliação do Relatório Rápido nº 49 – Nota: 13/20

    Relatório Rápido nº 50 – 22 de Maio de 2022
    Avaliação do Relatório Rápido nº 50 – Nota: 9/20

    Relatório Rápido nº 51 – 5 de Junho de 2022
    Avaliação do Relatório Rápido nº 51 – Nota: 9/20

    Relatório Rápido nº 52 – 26 de Julho de 2022
    Avaliação do Relatório Rápido nº 52 – Nota: 9/20

  • Montenegro, ou a vitória dos valdevinos

    Montenegro, ou a vitória dos valdevinos


    Portugal é, há muito, um terreno fértil para o florescimento de valdevinos. Não nos enganemos com a suavidade do termo: valdevinos são, na substância, os artífices das pequenas e grandes vigarices da nossa vida pública, indivíduos que fazem da arte de iludir e beneficiar-se do erário público um modo de vida respeitável — ou, pelo menos, tolerado. Mas o caso de Luís Montenegro eleva esta triste linhagem a um novo patamar, um grau superior de desfaçatez e de desprezo pela ética republicana e democrática.

    Aquilo que agora sabemos – e já não se pode negar – é que o ainda primeiro-ministro criou, em 2020, uma empresa de consultoria, a Spinumviva, sem rosto nem corpo, sem escritório conhecido (a sede era na casa de Montenegro), sem uma página electrónica onde se pudesse ler sequer uma linha da missão ou qualquer descrição de serviços para angariação de clientes. Não há registo de empregados, nem de qualquer estrutura que mereça o nome de empresa. No entanto, esta ‘entidade-fantasma’ facturou mais de 650 mil euros em dois anos e margens operacionais absurdamente elevadas, como o PÁGINA UM revelou em primeira mão em 16 de Fevereiro, antes da outra imprensa. Continuou a facturar mesmo após Montenegro assumir a liderança do Governo. E só após semanas de hesitações, meias verdades e omissões é que se ficou a saber quem eram os seus clientes, por revelações da imprensa: entre outros, empresas como a Solverde e a Rádio Popular, cuja dimensão dispensa apresentações, mas cuja real necessidade de serviços de “consultoria” de Montenegro permanece uma incógnita para qualquer espírito minimamente exigente.

    Noutros tempos, noutras geografias políticas, este simples facto seria motivo mais do que suficiente para a demissão de um primeiro-ministro, e aquilo que deve causar admiração é ter sido necessário uma moção de confiança no meio do circo parlamentar. Não porque tivesse sido provado algum ilícito penal – embora isso possa ainda vir a acontecer -, mas porque em democracia se exige que os governantes não apenas sejam sérios, como também o pareçam.

    Um homem que, de forma obscura e opaca, com as suas responsabilidade, cria e depois mantém uma empresa familiar sem qualquer lastro, apenas para receber avenças por serviços que ninguém consegue explicar ou justificar, não pode ser primeiro-ministro de um país que se pretenda civilizado e europeu.

    A questão de fundo não é, reitere-se, se Montenegro cometeu um crime. A questão é de decência e de respeito pelas regras mínimas da ética pública. Se a Spinumvia fosse uma sociedade reconhecida no mercado, com equipa consolidada, provas dadas e resultados publicamente conhecidos, poderíamos, talvez, admitir que Montenegro estava apenas a exercer a sua actividade de consultor com dignidade. Mas não. Trata-se de uma microempresa familiar – cujos beneficiários são os seus filhos e a sua mulher – criada para canalizar rendas e avenças, funcionando como veículo de oportunidades que só o conhecimento de bastidores e a influência política permitem captar. E jamais saberíamos para o que viria a servir no futuro. Aliás, basta observar o caso Manuel Pinho.

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    Que a Solverde ou a Rádio Popular tenham sentido necessidade de contratar uma empresa sem rosto, sem currículo e sem presença no mercado para a prestação de serviços de consultoria deveria, por si só, levantar as maiores suspeitas. Que Montenegro não tenha visto neste arranjo qualquer inconveniente ético, e tenha continuado a esconder os clientes semanas a fio, revela uma preocupante falta de noção sobre o que é ser governante em democracia.

    Num país onde a democracia estivesse plenamente consolidada, a demissão de Montenegro seria um sintoma de saúde institucional. Não haveria drama, nem precipício, nem vácuo de poder: o PSD escolheria outro líder, o Governo prosseguiria com outro rosto, e os cidadãos sentir-se-iam minimamente protegidos pela exigência ética imposta aos seus representantes. Mas o que assistimos é precisamente o contrário.

    No seio do próprio PSD, não houve uma única voz de peso que se erguesse para contestar a manutenção de Montenegro na liderança. Com a única e paradoxal excepção de Ângelo Correia, ninguém se mostrou incomodado com a degradação ética a que o partido foi submetido. Mais grave ainda: nem sequer se colocou a hipótese de que Montenegro pudesse ser substituído por outro social-democrata no Governo, ou que para as eleições antecipadas de Maio fosse escolhido outro candidato. O silêncio cúmplice do partido e o amolecimento da opinião pública revelam que, no Portugal de hoje, o padrão de exigência ética dos eleitores e dos eleitos atingiu um dos seus pontos mais baixos.

    De resto, a forma como a imprensa dominante tem abordado o caso – ora relativizando, ora desviando o foco para outros temas -, e como as sondagens continuam a projectar Montenegro como potencial vencedor, deveria preocupar qualquer cidadão que se preze. Não há um sobressalto cívico. Não há uma indignação genuína. A banalização da promiscuidade entre política e negócios atingiu tal ponto que um primeiro-ministro apanhado em esquemas obscuros de avenças familiares não só se mantém em funções, como ainda é visto como vencedor provável das próximas eleições.

    Se Montenegro vencer as eleições de Maio, será uma vitória dos valdevinos. Será a consagração pública de um modelo de fazer política que permitirá aos governantes criar empresas de fachada para canalizar rendas, disfarçar negócios e beneficiar de ligações de bastidores sem qualquer escrutínio efectivo. Será um salvo-conduto para que, no futuro, qualquer político possa fazer o mesmo, escondendo os clientes, omitindo os fluxos financeiros, e depois, apanhado em flagrante, alegar que está tudo bem.

    A democracia portuguesa está a ser reduzida a uma Economia de Estado onde se alimentam empresas, empresários e políticos que se confundem entre si. O Estado, com as autarquias, continuam a ser o maior motor da Economia nacional – pelo menos para uma franja empresarial relevante –, mas quando se analisam os contratos públicos, os ajustes directos e os espectáculos efémeros de que se enche o calendário, torna-se evidente que se pratica cada vez mais um jogo de pão e circo — expressão que, segundo os manuais de História, provém da Roma decadente e corrupta dos imperadores que compravam o apoio do povo com grão e divertimentos. Por outro lado, as empresas privadas querem sempre estar de bem com o poder e os políticos, mesmo que não tenham tenham contratos públicos, porque a ‘mão do Estado’ decide na regulação, nas concessões, na fiscalização e aprovação de financiamentos.

    O problema é que, em Portugal, o pão já escasseia e o circo já nem sequer diverte. As grandes obras são inauguradas com pompa e circunstância para meia dúzia de beneficiários, os eventos culturais e festivais servem para encher os bolsos das mesmas empresas do costume, e se há concursos públicos são muitas vezes desenhados para um dos concorrentes ‘pré-seleccionado’ possa vencer. Os benefícios aos cidadãos, quando existem, são residuais. Hoje, há uma rede de cliques e clientelas que gravita em torno do poder.

    Por muito que me custe reconhecê-lo, e mesmo admitindo que as alternativas não sejam mais virtuosas, uma vitória de Luís Montenegro nas eleições de Maio seria um péssimo sinal para a democracia portuguesa. Seria a legitimação do valdevinismo como método legítimo de ascensão e manutenção no poder. E se um país aceita como normal que o seu primeiro-ministro tenha um passado e um presente de opacidade e promiscuidade, então é porque está disposto a aceitar tudo.

    Num tempo em que, com meio século de democracia, a dar sinais de doença, se exigiria cada vez mais rigor, transparência e ética na governação, Portugal arrisca-se a ser olhado como um país que não aprendeu as lições básicas. Se Montenegro permanecer no poder, não será por mérito seu, mas pelo colapso moral de uma sociedade que se habituou a tolerar tudo. E um povo que tolera tudo, arrisca-se a perder tudo – inclusive a dignidade.

  • Documentário sobre comércio de sexo em tarde de domingo vale processo contra SIC Radical

    Documentário sobre comércio de sexo em tarde de domingo vale processo contra SIC Radical

    Não foi pelo buraco da fechadura, mas sim através de um inocente zapping de uma criança de 9 anos, que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) ficou a saber que a SIC Radical transmitiu num domingo à tarde de Novembro um curioso documentário sobre pornografia com linguagem explícita. Resultado: um processo de contra-ordenação para a Impresa por não acompanhar para adultos antes das 22 horas e sem sinal de aviso (‘bolinha vermelho’), arriscando uma coima de até 150 mil euros.

    Em causa esteve a transmissão do programa ‘Podre de Rica’ (Getting Filthy Rich, no original) pelas 18:00 do dia 17 de Novembro do ano passado, um documentário de 46 minutos conduzido pela apresentadora e modelo britânica Olivia Attwood, que explora o universo do chamado “entretenimento para adultos”. O programa acompanhou o dia-a-dia de produtores e actores , revelando o impacto da nova economia digital na monetização da pornografia. Ao longo da emissão, são apresentados testemunhos sobre a vida e os rendimentos de profissionais do sector, bem como imagens e diálogos de índole sexualmente explícita, embora sem exibição directa de genitália.

    A primeira temporada desta série de documentários teve, para além daquele então transmitido pela SIC Radical, programas dedicados aos lucros associados ao OnlyFans, às Camgirls e às Sugar Babies.
    A participação na ERC foi apresentada por um espectador que denunciou o conteúdo como “desadequado ao horário de exibição”, argumentando que qualquer criança poderia ser exposta “a algo que não entende ainda”. O participante referiu expressamente o caso da filha, de 9 anos, que ao fazer zapping terá encontrado o programa sem qualquer sinalização de aviso – “a bolinha vermelha no canto” –, tornando difícil, segundo o queixoso, proteger a menor de conteúdos que considerou sensíveis.

    A defesa apresentada pela SIC Radical centrou-se na classificação etária atribuída à emissão – 12AP –, que permite a exibição de temas como a sexualidade desde que acompanhados de aconselhamento parental para menores de 12 anos. Embora admitindo que a temática do documentário era “um pouco arrojada”, o canal televisivo do universo da SIC alegou que visava mostrar se a ‘venda’ de sexo online, era “uma atividade tão fácil e lucrativa como parece.” A SIC Radical diz que o documentário baseia-se cenas de nudez que “são muito rápidas, não explícitas, pouco frequentes e contextualizadas.”

    Apesar destes argumentos, a ERC considerou que a natureza e o teor da emissão exigiriam outro tipo de enquadramento. No seu relatório, o regulador aponta que o programa abordava de forma detalhada a produção de pornografia, com descrições e imagens que, embora sem pornografia explícita, continham elementos susceptíveis de influir negativamente na formação de crianças e adolescentes.
    E escalpeliza todas as expressões usadas, traduzidas, de “linguagem forte, expondo-as na sua deliberação.

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    A linguagem, ao longo de todo o programa, é de natureza sexualmente explícita, a título de exemplos; “consegues esguichar de propósito?”; “fazemos muito sexo mas sei que é um tarado. Adora sexo”; “ainda estás duro?”; “vocês os dois vão fazer sexo oral lá atrás”; “vais comê-la por trás”; “podes vir para aqui para eu ver a penetração”; “sentem uma grande pressão porque têm de manter a ereção e depois ter um orgasmo, durante horas”; “a primeira cena anal”; “só tive de masturbá-lo”; “vou deixar os meus mamilos bem duros como uma boa galdéria”; “consegues esguichar se não estiveres excitada?”; “faço muitos trios homem-mulher-mulher”; “foi um pouco estranho estar perto de alguém com as mamas de fora”.

    Por outro lado, o documentário é também ‘didáctico’ no sentido de haver entrevistados que explicam os mecanismos de monetização da pornografia digital, com destaque para um actor que “já foi nomeado para vários prémios do mundo de entretenimento para adultos, incluindo o de melhor pénis”, e que assinou contratos para a venda de réplicas do seu órgão genital.

    Visualmente, o documentário inclui imagens de mulheres a lamber objectos fálicos, cenas de masturbação, simulações de actos sexuais entre dois homens com as nádegas expostas, e representações explícitas de nudez. As genitálias são ocultadas por distorção de imagem, mas, segundo a ERC, “as posições dos corpos, interacções sexuais, gemidos, expressões faciais, permitem depreender que se trata de sexo, mais particularmente da venda de pornografia”.

    ERC

    Face a estes elementos, o regulador entendeu que a SIC Radical violou da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido, ao não garantir a difusão permanente de um identificativo visual apropriado e ao emitir o programa fora do período legalmente permitido para este tipo de conteúdos, ou seja, entre as 22h30 e as 6h00.

    A deliberação, embora reconheça a ausência de pornografia explícita nos termos legais, sustenta que o teor do programa justificava uma classificação mais restritiva e cuidados adicionais na exibição.

  • Barcelona 1.3

    Barcelona 1.3


    Em Barcelona estou — e me confesso. Disseram-me, certo dia, que a cidade é uma festa contínua de Cultura e Futebol, e não duvidei. Tirei uns dias, como quem suspende o tempo entre trabalho e férias, com o fito de fazer Cultura — da verdadeira, a que se procura sem patrocínios nem favores — e, claro está, de ver futebol, esse último teatro das multidões.

    Agora mesmo, escrevo-vos sentado no Estadi Olímpic Lluís Companys, em Montjuïc, onde joga provisoriamente o Barça, que ficou sem Camp Nou enquanto o velho colosso se refaz, como se em Espanha até os estádios precisassem de renascimentos cíclicos. Aviso já que foi tudo pago pelo meu bolso, avião e estadia – que isso de viagens pagas para ver a bola, já sem falar em avenças, são coisas para o Montenegro.

    E foi justamente nesta bancada da imprensa, depois de ter visto a correr a ala gótica, medieval e barroca do Museu de Arte da Catalunha, entre turistas que não percebem a diferença entre um fora-de-jogo e um Lucas Cranach el Viejo, que me ocorreu uma ideia que se me afigura menos absurda do que parece à primeira vista: Portugal deve muito à Catalunha. Mais concretamente, devemos aos catalães a nossa Restauração de 1640. Se não fosse a revolta catalã que rebentou em Maio de 1640 — a dita Guerra dels Segadors, que os historiadores portugueses tão pouco lembram —, Portugal teria tido enormes dificuldades em sacudir o jugo da monarquia dual dos Filipes.

    (E começa o jogo; tive de contornar o cordão de adeptos benfiquistas, ladeados por duras colunas de guardas pretorianos da polícia de choque, e lá me enfiei estádio adentro, não sem dificuldade de encontrar o meu lugar; em todo o caso, encontrei o Lucas, o brasileiro que, no Barcelona, se dedica a escrever sobre as façanhas do Raphinha.)

    Continuemos com a História. Enquanto os exércitos castelhanos tentavam domar os rebeldes catalães, a conspiração em Lisboa aproveitou esta janela aberta. E lá se mandou um sicário às ordens dos Filipes, o Miguel de Vasconcelos, janela abaixo, e como um exército castelhano andava ocupado em manter Barcelona sob controlo, nas lusitanas terras pôde João IV ser proclamado rei e organizar a defesa.

    (Pronto! E por falar em defesa: a do Benfica já levou o primeiro, logo aos 11 minutos, pelo inevitável Raphinha, o desgraçado ex-sportinguista que, de repente, começou a meter bolas umas atrás das outras ao Trubin.)

    Enfim, sem aquela revolta catalã, os catalães estariam agora a falar catalão, uma língua que ninguém entende, a não ser eles — e eu estaria a escrever esta crónica em castelhano, que desconfio que, ao longo dos séculos, ficando o território de Portugal integrado em Espanha, o português acabaria reduzido a uma espécie de mirandês. E os brasileiros, como o Raphinha ali em baixo, em vez de ‘oi’ andariam a dizer “hola”.

    Mas a História é uma grande mestra de ironias, e não dá sem depois cobrar. A Catalunha ficou presa à Espanha, renegociou autonomias, foi castigada, renasceu, tornou-se a mais rica das regiões espanholas, depois tentou a independência e falhou, mas sempre com a altivez de quem se crê melhor do que o vizinho. Já Portugal, que fez do Atlântico o seu caminho, arrisca-se agora a não ser mais do que uma Galiza com nome próprio, ou uma Estremadura com praias. Digo-o sem despeito, mas com inquietação: há algo na comparação entre a Catalunha e Portugal que me obriga a reflectir.

    (GOLOOOOOOO! Otamendi, na marcação de um canto: renasce a esperança…)

    Este golo — e mesmo uma improvável, nesta altura, reviravolta na eliminatória — não nega uma evidência: a Catalunha, sendo uma região, perdeu a esperança de ser um país; e Portugal, sendo um país quase milenar, arrisca sempre a ser uma mera região, quase ultraperiférica numa Europa de burocratas.

    Vejam-se Lisboa e Barcelona: as infra-estruturas, os projectos económicos, a ambição industrial, a cultura, os majestosos espaços públicos, a dinâmica social — aliás, logo que cheguei, no domingo passado, o dinamismo das manifestações fez-se sentir, pela noite adentro. Mesmo sabendo-se que Barcelona é um ponto turístico de excelência e de abusos — que se há-de fazer se se tem Cultura, monumentos, gastronomia, praias, variedade de espaços, rede de transportes eficiente? —, a capital da Catalunha projecta-se como uma cidade global.

    Já Lisboa cinge-se a disputar com o Porto o título de melhor cenário para selfies e pacotes turísticos. E se os catalães olham para Madrid com desconfiança, os portugueses parecem olhar para Bruxelas com submissão, como se fosse ela a nova corte filipina, de onde se esperam verbas em vez de se afirmar soberania.

    (Olha-me esta! Golo do Barcelona, com a defesa do Benfica a deixar que o miúdo Lamine Yamal apanhe uma bola de um livre mal marcado, flicta para a esquerda e atire a contar para o cantinho do Trubin…)

    Resta-me, portanto, conformar-me com este resultado. Ou resultados: o do futebol e o de Barcelona se impor a Lisboa — que o fair play não deve existir somente na ludopédia.

    Mas vamos lá equilibrar isto, embora tenham sido os nossos antepassados a legarem-nos essa vantagem. Os catalães, coitados, têm um idioma próprio que ninguém entende, enquanto a língua portuguesa é um império cultural de 265 milhões de viventes, se bem que quase sempre alheios à origem da fala. Mas, confesso: falta-nos agora aquela pulsão de querer ser maiores do que parecemos ser, sem pedir licença a ninguém. Até no futebol sinto isso, quanto mais na vida social e política de Portugal. Aqui, por exemplo, em Montjuïc, sinto um estádio velho, como o Estádio Nacional no Jamor, remendado para servir de casa temporária ao Barcelona, mas cheio de orgulho catalão. Em Portugal, quantas vezes parece que nem casa há?

    (Mais um do Raphinha! Mas que é isto? 3-1 e nem sequer chegámos ao intervalo. Agora, nem com um milagre…)

    E todavia, não quero esquecer 1640, porque aí vencemos: eles tentaram largar Madrid, e falharam; nós largámos e ganhámos em definitivo esse direito depois da estrondosa vitória na Batalha dos Montes Claros em 1665. Foram precisos 25 anos, mas vencemos!

    (Intervalo… descansemos.)

    Portanto, a Catalunha falhou, e Portugal conseguiu, embora ache que estejamos a perder a soberania aos poucos com uma Europa de políticos oligarcas que se perpetuam em torres de marfim em Bruxelas. Mas o relógio não pára…

    E assim aqui estou com esta Da Varanda de Barcelona, especialíssima, não como quem disseca e profetiza desgraças, mas como quem regista o que vê: no relvado, os jogadores do Benfica mostram-se sobretudo resignados, como quem já só cumpre um protocolo diplomático antes da rendição. Há um corpo presente em campo, é verdade, mas falta a alma.

    Esta talvez seja a mais dolorosa metáfora para Portugal, enquanto, lendo as notícias de Lisboa, o Governo de Montenegro definha no Parlamento. Estamos, existimos, marcamos presença no concerto das nações — e na Liga dos Campeões —, fazemos discursos e chutamos umas bolas, mas, no fim, parecemos ter perdido a capacidade de ganhar ou, pelo menos, de lutar por algo mais além do aceitável ou do confortável.

    Bem se pode dizer que a Catalunha e Barcelona estão sempre a falhar, mas não desistem; e isso é, talvez, o que os faz serem vencedores no futebol. Não desistiram em 1714, quando a cidade caiu às mãos dos Bourbons; não desistiram em 1939, quando o franquismo sufocou os seus gritos de autonomia; não desistiram em 2017, quando os tribunais e a polícia impediram o seu referendo de independência. Há, aqui, uma persistência que impressiona, e que só se explica por uma auto-estima colectiva que, mesmo na derrota, os mantém de cabeça erguida.

    E nós, portugueses? A nossa auto-estima arrumou-se na gaveta dos Descobrimentos, e nem sequer se encontra num museu, porque nos envergonhamos de um passado colonialista, como se não tivéssemos nascido de povos colonizados e colonizadores. Nem o nosso passado nos vale no presente.

    (Lá em baixo, o Barça desacelerou, e o Benfica porfia, mas sem grande garra; a eliminatória está decidida.)

    Mas não se pense que esta crónica é um manifesto catalanista. É, antes, um manifesto português, escrito a partir de Montjuïc, numa bancada fria, a olhar para um jogo já perdido. Mas se há coisa que aprendemos em 1640 é que há momentos em que, mesmo sem recursos, sem apoios externos e com probabilidades mínimas, é possível mudar o rumo. Mas não será hoje… Ou melhor, não foi hoje, porque o árbitro acaba de dar a partida por terminada após dois minutos de descontos. Valeu pela visita…

    Barcelona continuará a fazer o seu caminho, com ambição e orgulho. Lisboa — e o Benfica — precisam de acordar, de uma vez por todas, para o facto de que não basta viver da memória, dos discursos ou das verbas europeias. Um país e um clube não se sustentam apenas com boas intenções e cartões-postais. E se quisermos, como em 1640, ser donos do nosso destino, talvez seja tempo de voltarmos a acreditar que o impossível não é uma sentença, mas um desafio. E trabalhar um bocadinho com mais afinco e determinação.

  • Gouveia e Melo ‘despachado’ das fileiras da Nova School of Law após protocolo com a Marinha

    Gouveia e Melo ‘despachado’ das fileiras da Nova School of Law após protocolo com a Marinha

    Sem honra nem glória, e num recato institucional pouco habitual para quem tanto celebrara em tempos a sua “contratação”, a NOVA School of Law – nome pomposo e anglicizado da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa – apagou silenciosamente o antigo Chefe do Estado-Maior da Armada, Henrique Gouveia e Melo, das suas fileiras docentes.

    Esta saída discreta – o nome do putativo candidato a Belém deixou de constar no site da instituição universitária – surge após dois anos em que o agora Almirante na reserva ocupou, de forma irregular e à margem da legalidade, a regência da cadeira de Segurança Marítima no mestrado em Direito e Economia do Mar. O nome de Gouveia e Melo chegou a constar como regente e professor ainda num documento interno da Nova School of Law ainda no final de Dezembro passado.

    Nobre de Sousa na aula inaugural da unidade curricular de Segurança Marítima na Faculdade de Direito da Universidade Nova de LIsboa. A Marinha, com um protocolo, tenta ‘apagar’ um acordo informal que transformara o anterior Chefe do Estado-Maior da Armada, Gouveia e Melo, um distinto professor universitário sem sequer dar uma aula durante dois anos lectivos. Foto: NSL

    A situação insólita de uma “contratação” sem base legal, sobretudo por ser cometida por uma instituição universitária de Direito, foi revelada em primeira mão pelo PÁGINA UM em Dezembro do ano passado. No auge da sua popularidade na liderança do Estado-Maior da Armada, em Fevereiro de 2023 anunciou, com pompa, que “uma das novidades deste ano [lectivo, de 2023/2024]” seria “a leccionação da cadeira Maritime Security a cargo da Marinha Portuguesa, sob a regência do Almirante Gouveia e Melo”. E acrescentava ser “com enorme satisfação que recebemos o ex-coordenador da Task Force do Plano de Vacinação contra a covid-19 em Portugal, que se juntou à NOVA School of Law no seguimento do nosso empenho em robustecer o nosso corpo docente com os/as melhores e mais talentosos/as profissionais, contribuindo para a excelência deste mestrado”.

    O “nosso empenho”, o da Faculdade de Direito da UNL, devia ler-se como empenho da ala do CDS nesta instituição universitária pública. Com efeito, todo o processo de convite foi conduzido pela então directora da Faculdade, Mariana França Gouveia – que actualmente preside ao Conselho Científico – e pela coordenadora do mestrado, Assunção Cristas, que também lidera a Comissão Científica do mestrado. Além das suas ligações umbilicais ao CDS, estas duas advogadas, amigas de longa data, gravitam numa das mais importantes sociedades de advogados com milionários contratos públicos: a Vieira de Almeida.

    Apesar de o mais recente processo de acreditação pela A3ES ser completamente omisso sobre a entrada de militares de carreira sem currículo académico na regência de uma cadeira e a prestar aulas, não foi cumprida qualquer das regras previstas no rigoroso Estatuto da Carreira Docente Universitária, que não permite, por razões óbvias, a contratação de qualquer pessoa mesmo sob convite e mesmo se tivesse um currículo académico invejável, o que não é o caso de Gouveia e Melo.

    Assunção Cristas (segunda a contar da direita),antiga ministra do Ambiente, do Mar e da Agricultura tratou de ‘convidar’ Gouveia e Melo em 2022 para ser professor convidado mas sem cumprir formalismos legais. A ala do CDS na Nova School of Law permitiu que o antigo líder da Armada fosse regente sem sequer colocar os pés nas aulas. Foto: NSL

    As revelações do PÁGINA UM geraram visível desconforto quer na NOVA School of Law, quer no seio da Marinha, que, nos últimos meses, trabalharam discretamente para “corrigir” um evidente atropelo às normas legais e académicas vigentes. Em todo o caso, nos horários revelados pela instituição universitária pública no dia 30 de Dezembro para as unidades curriculares do segundo semestre, Gouveia e Melo ainda continuava a ser indicado como regente, mesmo tendo abandonado a liderança da Marinha dias antes.

    A solução encontrada para mitigar um cada vez maior embaraço institucional foi a celebração de um protocolo de cooperação – que nunca antes se formalizara – e que se concretizou ontem numa “cerimónia pública” da primeira aula de Segurança Marítima, carregada de solenidade e cuidadosamente encenada, com a presença do novo Chefe do Estado-Maior da Armada, Jorge Manuel Nobre de Sousa, bem como do novo regente, Armando Valente Tinoco, que tem o posto de Comodoro, hierarquicamente abaixo de Contra-Almirante, sendo já um oficial general.

    Ao contrário de Gouveia e Melo, o regente agora indicado pela Marinha – que já surge na lista de professores da Nova School of Law, ‘destronando’ o agora desaparecido Gouveia e Melo – tem larga experiência em Segurança Marítima. Com uma carreira de quase duas décadas, foi recentemente comandante dos Fuzileiros (2023-2024) e desempenhou as funções de Force Commander da European Union Naval Force Atalanta (Comandante da Task Force 465) entre Outubro e Dezembro do ano passado. A Task Force 465 é uma operação militar da União Europeia que visa proteger os navios mercantes, em especial os do Programa Alimentar Mundial, das ameaças de pirataria ao largo da costa da Somália e no Oceano Índico, tendo também funções de vigilância das actividades marítimas naquela região.

    Margarida Lima Rego, directora da Nova School of Law, ontem na aula inaugural do presente semestre da unidade curricular de Segurança Marítima, com o novo regente, Comodoro Valente Tinoco. Do anterior regente, Gouveia e Melo, nunca foram reveladas provas de que tenha entrado numa sala de aula para ensinar Segurança Marítima. Foto: NSL

    Apesar deste formalismo – com a presença de Nobre de Sousa na aula inaugural, na presença das várias responsáveis pela anterior “contratação” de Gouveia e Melo (Assunção Cristas e Margarida Lima Rego), ‘eternizadas’ em várias das 12 fotografias do evento –, o protocolo agora firmado acaba por se converter numa confissão pública das irregularidades cometidas.

    Com efeito, sendo este protocolo inédito, significa então que, durante dois anos, a Marinha colocou os seus meios e efectivos – nomeadamente militares que, de facto, asseguraram as aulas da cadeira de Segurança Marítima nos anos lectivos de 2022/2023 e 2023/2024 – ao serviço de uma instituição de ensino superior, sem que houvesse qualquer instrumento jurídico que enquadrasse e legitimasse essa colaboração. Além disso, nunca foram revelados publicamente os documentos que deveriam ter formalizado a aceitação de Gouveia e Melo como docente convidado, acto que deveria ter sido aprovado no Conselho Científico da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

    Por outro lado, houve militares da Armada que deram aulas em nome e sob a regência formal de Gouveia e Melo, que, sem ter aparecido numa única sessão, beneficiou do estatuto de professor convidado da NOVA School of Law, numa situação que fere a legalidade e a ética académica. A Marinha, aliás, mantém-se em silêncio quanto à identidade dos militares que leccionaram estas aulas, apesar de ter sido novamente instada ontem, pelo PÁGINA UM, a esclarecer publicamente quem foram os oficiais destacados para estas funções e ao abrigo de que fundamentos legais.

    O Chefe de Estado-Maior da Armada esteve presenta na aula inaugural de Segurança Marítima acompanhado pelo novo regente, Valente Tinoco, e mais três oficiais da Marinha. Da anterior equipa da Marinha que, sob regência oficial de Gouveia e Melo, esteve a dar aulas, através de um ‘acordo de café’, não se conhece qualquer cara nem nome.

    A celebração deste protocolo procura agora dar um lustro de legalidade a um passado recente repleto de opacidade. O documento, segundo foi anunciado, assegura a continuidade da regência da cadeira de Maritime Security, no âmbito do mestrado em Direito e Economia do Mar. Segundo nota da NOVA School of Law, a nova parceria – que só existe quando formalizada, porque estas questões não são passíveis de informalidade de uma “mesa de café” ou de uma sede partidária – não se limita à componente lectiva, prevendo-se também iniciativas complementares, como visitas dos estudantes às instalações da Marinha, acesso a bibliotecas e recursos para investigação, estágios curriculares e a atribuição de prémios de excelência académica.

    Porém, a Marinha não respondeu ao pedido do PÁGINA UM para lhe enviar uma cópia do protocolo, desconhecendo-se assim se existem “matérias secretas” e pagamentos envolvidos. O acesso a um protocolo que deveria ser público, ademais depois de dois anos de irregularidades, só deverá, eventualmente, ser acedido pelo PÁGINA UM através de uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa – uma situação que começa a fazer “escola” numa Administração Pública cada vez mais opaca.