Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Da corrompida luta contra a corrupção: o caso do Prémio Tágides

    Da corrompida luta contra a corrupção: o caso do Prémio Tágides


    A corrupção é um dos maiores flagelos das sociedades. É um lugar-comum. Tal como é algo banal discutir-se a necessidade de promover normas e códigos de ética e de conduta para lutar contra a corrupção. De apoiar quem luta contra a corrupção. Para extirpá-la. Por exemplo, na Assembleia da República não há tema mais recorrente.

    Uma breve consulta dos Diários da República no período democrático descarrega 1.254 debates parlamentares em que se falou de corrupção. Desde 1974. Só este ano foram 81. E lá veio mais uma Estratégia Nacional Anti-Corrupção para o período 2020-2024, convenientemente aprovada.

    O explícito desejo de acabar com a corrupção é, diria, universal. Não conheço nenhuma Liga, Sociedade ou Clube em prol do uso deste expediente. Porém, todos sabemos que a corrupção existe, subsiste e persiste. Sob todas as formas, e sobretudo sob formas sub-reptícias, e por isso mesmo engrandece-se como uma mina invisível à superfície, mesmo quando se propala que se combate a corrupção.

    Na verdade, o termo corrupção é bastante vasto, e subentende sempre uma suposta alteração de pureza original (física, ética, mental, de valores, etc.). Embora esteja associada à entrega de uma mala de dinheiro – método clássico, mas já ultrapassado –, a corrupção está longe de se cingir à troca de uma imediata compensação monetária pela aprovação de um acto ilícito. A corrupção está também no lobby, nas alterações legislativas feitas a preceito, na introdução de excepções, nas interpretações jurídicas enviesadas em legislação propositadamente ambígua. E, hélas, até pode estar em supostos paladinos da luta contra a corrupção.

    euro banknote collection on wooden surface

    Porque, na verdade, no âmago do acto final da corrupção – a troca de bens materiais ou imateriais que prejudica indevidamente outrem ou a sociedade – está um corrompimento inicial dos valores éticos e morais.

    A corrupção é – insista-se no termo “na verdade” –, antes de mais, uma “modificação, adulteração das características originais de algo”, conforme se pode observar no Dicionário Houaiss (que se mostra sempre muito útil nestas verificações).

    Tudo isto a pretexto de um caso particular, que acidentalmente me envolve, mas que me obrigou a reflectir sobre até por onde podem chegar os meandros da corrupção, não aquela da “mala de dinheiro” mas sim da corrupção moral e de valores – que é a antecâmara para as outras formas mais graves.

    Em Outubro passado, mais precisamente, no dia 14, recebi uma mensagem que assim se iniciava: “Muitos Parabéns! Após ter sido nomeado por alguém que conhece o seu trabalho, foi selecionado para a final [d]o Prémio Tágides 2021: pessoas que nos inspiram no combate à corrupção promovida pela Associação All4Integrity e que conta com o Alto Patrocínio de Sua Excelência o Presidente da República.”

    Mais adiante, a remetente da mensagem, a vice-presidente da All4Integrity – que, pesquisei depois, é uma associação recentemente criada, e dinamizada por André Corrêa d’Almeida, um economista português da Columbia University – informava-me que houvera um período de candidaturas (feitas por terceiros) e que “após várias iterações 81 pessoas foram apuradas para a final que se realizará na semana de 9 ou 16 de dezembro de 2021, em Lisboa”. Pedia-me que lhe transmitisse a minha aceitação de nomeação para a final, além de outros dados pessoais, e que fizesse reserva da informação “até que o(a)s finalistas sejam anunciado(a)s publicamente na última semana de outubro”.

    Eu assim fiz, mas pelo menos uma das tais 81 pessoas apuradas para a final não guardou reserva. Assim, também para minha surpresa – porque não o imaginaria no lote e até me incomodaria pessoalmente me encontrar com ele numa lista de pessoas que lutam contra a corrupção – vi escarrapachado na imprensa que André Ventura era um dos designados para o Prémio Tágides. Tal como eu.

    Não será necessário discorrer sobre o desonesto aproveitamento político de André Ventura (até porque a sua candidatura poderá ter sido apresentada por pessoas próximas), nem será preciso dissertar sobre a imprudência e falta de tacto da All4Integrity em, “após várias iterações”, incluir André Ventura nos 81 finalistas, mais ainda sabendo, pelos jornais, que houvera 359 candidaturas (vd. edição de 7 de Outubro do Diário de Notícias”. Enfim, mas o “mal” a haver, estava feito. A “correcção”, a fazer-se, seria ao nível do júri, entidade soberana na escolha final dos vencedores em cada uma das cinco categorias (Projecto de Investigação, Projecto da Sociedade Civil, Iniciativa Política, Iniciativa Empresarial e Iniciativa Jovem).

    Note-se que, entre os 35 membros do júri (distribuídos pelas cinco categorias) anunciados pela All4Integrity, constavam pessoas de vários quadrantes, ideologias e sensibilidades, como Maria José Morgado, Ana Gomes, José Ribeiro e Castro, Henrique Neto, Camilo Lourenço, Poiares Maduro, Henrique Neto e Sandra Felgueiras. Por certo, julgo eu, os membros do júri tomariam as decisões correctas para atribuir os galardões às pessoas devidas.

    Porém, a All4Intgrity permitiu-se “inovar”: num prémio contra a corrupção, decidiu que seria melhor proceder a uma profunda “modificação, adulteração das características originais de algo”, sendo que o “algo” foi tão-só o regulamento do próprio prémio.

    E assim, para eliminar o incómodo da “nomeação” de André Ventura, onde se lia no regulamento inicial (que esteve em vigor durante o período de candidaturas) que “após a validação das candidaturas/nomeações, a equipa do Prémio, presidida pelo Professor Doutor André Corrêa d’Almeida, (…) procederá à divulgação pública de uma lista com o Top 25, 50 ou 100 das candidaturas/nomeações pré-selecionadas (dependendo do número de candidaturas que vierem a ser submetidas)”, o novo regulamento (uma corruptela do original, já feita muito depois do encerramento das candidaturas) deixou de fazer constar a divulgação desse “Top” de finalistas, passando a decisão de divulgar uma lista mais restrita de “três a cinco finalistas, por categoria do Prémio” para os membros do júri.

    Dessa forma ardilosa, conseguiu a All4Integrity – apenas perdendo a integridade – solucionar o problema “André Ventura”, embora expondo-se perante os outros 80 finalistas, que poderiam afinal já não ser finalistas, contrariando o que a associação lhes garantira.

    Mas, perdido por um, perdido por mil. Assim, a All4Integrity decidiu introduzir ainda mais “corrupções”. No regulamento inicial indicava-se que os 35 membros do júri “não podem ser nomeados para a categoria do Prémio de que são júris”, mas agora já consta o seguinte: “se algum elemento do júri for nomeado ser-lhe-á dado a oportunidade de escolher entre a nomeação e a função de jurado.”

    Embora ainda não seja conhecida a lista dos tais novos finalistas (ou finalistas dos finalistas afinal não anunciados), será muito curioso contabilizar quanto deles pertenciam ao júri inicial. Em todo o caso, refira-se que já “desapareceu” uma dezena de membros do júri anunciado pela All4Integrity em Agosto passado, que foram substituídas por outras.

    Por fim, terceira “inovação” da All4Integrity na mudança de regulamentos a meio do jogo: na categoria da Iniciativa Jovem, inicialmente os candidatos eram aceites se tivessem entre 18 e 30 anos. Subiu agora para os 35 anos, sendo também curioso observar quantos dos finalistas a anunciar para esta categoria terão mais de 30 anos…

    Enfim, tudo isto sei, e tudo isto escrevo porque, entretanto, recebi a informação de que, afinal, não constarei da lista dos tais (novos) finalistas. Confesso que me sinto aliviado. E por dois ponderosos motivos.

    Primeiro motivo: assim nem sequer tenho de estar a lutar internamente para saber se aceitaria uma nomeação final para um prémio contra a corrupção que, na verdade, se “corrompeu” na sua essência, alterando várias regras do jogo inicial. Isto faz-me lembrar um concurso público em que os pressupostos são alterados pela entidade adjudicante depois do encerramento do prazo da entrega das propostas.

    Não está aqui em causa sequer algo patrimonial, nem relacionado com o Estado, mas a gravidade é similar, porquanto se está perante um prémio contra a corrupção, ainda mais com o Alto Patrocínio da Presidência da República.

    A corrupção existe, porque, na verdade, existem sempre beneficiados. Poder-se-ia sempre dar o caso de eu, na hipótese de ser “um finalista afinal mesmo finalista”, esquecer estas “embrulhadas” da All4Integrity. E isso era uma corrupção. Livrei-me disso, assim. A corrupção, tendo uma raiz moral e ética, também se revela em omissões e no silêncio.

    Segundo motivo: estou também aliviado – e talvez até orgulhoso – porque, em devido tempo e antes de uma decisão final da All4Integrity, ter criticado as alterações do regulamento e do “modus operandi” do Prémio Tágides. Com efeito, há cerca de duas semanas, estranhando a não-divulgação dos finalistas e de alterações no júri, contactei a All4Integrity e reconfirmei a alteração do regulamento.

    Referi então, em mensagem dirigida à vice-presidente da All4Integrity, que “alterar um regulamento a meio é tema muito delicado, é uma medida susceptível de maior polémica, ainda mais tendo em conta a temática do prémio. Digo isto desde já, independentemente de vir a estar ou não no lote final. Qualquer que seja a situação não me sinto muito confortável.”

    E acrescentei ainda: “Sinto que alterar o regulamento, para acertar um processo de construção ‘on the job’ – e para tentar também corrigir uma situação incómoda (para mim e, por certo, para muita gente mais) que resultou numa ‘fuga de informação’ sobre um dos ‘finalistas iniciais’ (que terá sido mais um aproveitamento político) – não será porventura uma decisão pacífica para o exterior. Nunca vi um regulamento alterar-se a meio. Arriscam a apanhar com um ‘processo de vitimização’ do visado (porque, por mais agradável que nos pareça a vossa solução, só a alteração do regulamento evita que ele não seja publicamente divulgado como finalista), além de não ser muito agradável ver que uma boa parte daqueles que estariam para ser finalistas afinal não o serão. A alteração que permite um júri passar, por sua opção, a nomeado também me parece inopinada. E até eu estar, nesta fase, a opinar sobre estas matérias, atendendo que sou (agora) candidato a finalista”.

    Escrevi isto em 11 de Novembro. Ontem, poucas horas depois da All4Integrity me ter informado da minha não-inclusão na lista de finalistas, respondi a pedir-lhes que, no futuro, me excluíssem de qualquer candidatura, nomeação ou ligação ao Prémio Tágides.

    Com entidades destas a defender a luta contra a corrupção, por certo continuaremos a ter corrupção. Pelo menos, moral. Para mim, que tento lutar contra a corrupção, o Prémio Tágides morreu logo na sua primeira edição. Por corrupção moral, por onde tudo começa. E não entender isto é não entender nada. Será bom que essa corrupção não se transforme em putrefacção. Por isso, esta minha denúncia.


  • Pandemia está mais fraca do que no Verão

    Pandemia está mais fraca do que no Verão

    𝑁𝑢𝑚𝑎 𝑎𝑙𝑡𝑢𝑟𝑎 𝑒𝑚 𝑞𝑢𝑒 𝑚𝑢𝑖𝑡𝑜𝑠 𝑑𝑒𝑠𝑒𝑗𝑎𝑚 𝑖𝑚𝑝𝑜𝑟 𝑚𝑎𝑖𝑠 𝑟𝑒𝑠𝑡𝑟𝑖𝑐̧𝑜̃𝑒𝑠 𝑒 𝑑𝑖𝑠𝑐𝑟𝑖𝑚𝑖𝑛𝑎𝑟 𝑛𝑎̃𝑜-𝑣𝑎𝑐𝑖𝑛𝑎𝑑𝑜𝑠, 𝑢𝑚𝑎 𝑏𝑟𝑒𝑣𝑒 𝑎𝑛𝑎́𝑙𝑖𝑠𝑒 𝑜𝑏𝑗𝑒𝑐𝑡𝑖𝑣𝑎 𝑑𝑎 𝑒𝑣𝑜𝑙𝑢𝑐̧𝑎̃𝑜 𝑒𝑝𝑖𝑑𝑒𝑚𝑖𝑜𝑙𝑜́𝑔𝑖𝑐𝑎 𝑑𝑒 𝑃𝑜𝑟𝑡𝑢𝑔𝑎𝑙 𝑎𝑜 𝑙𝑜𝑛𝑔𝑜 𝑑𝑎 𝑝𝑎𝑛𝑑𝑒𝑚𝑖𝑎 𝑚𝑜𝑠𝑡𝑟𝑎 𝑞𝑢𝑒 𝑎 𝑎𝑐𝑡𝑢𝑎𝑙 𝑠𝑖𝑡𝑢𝑎𝑐̧𝑎̃𝑜 𝑒𝑠𝑡𝑎́ 𝑙𝑜𝑛𝑔𝑒 𝑑𝑜 𝑑𝑟𝑎𝑚𝑎𝑡𝑖𝑠𝑚𝑜 𝑟𝑒𝑣𝑒𝑙𝑎𝑑𝑎 𝑝𝑒𝑙𝑎 𝑐𝑜𝑚𝑢𝑛𝑖𝑐𝑎𝑐̧𝑎̃𝑜 𝑠𝑜𝑐𝑖𝑎𝑙 𝑚𝑎𝑖𝑛𝑠𝑡𝑟𝑒𝑎𝑚. 𝑁𝑜 𝐼𝑛𝑣𝑒𝑟𝑛𝑜 𝑝𝑎𝑠𝑠𝑎𝑑𝑜, 𝑎 𝑐𝑜𝑣𝑖𝑑-19 𝑐ℎ𝑒𝑔𝑜𝑢 𝑎 𝑠𝑒𝑟 𝑎 𝑐𝑎𝑢𝑠𝑎 𝑑𝑒 40 𝑒𝑚 𝑐𝑎𝑑𝑎 100 𝑚𝑜𝑟𝑡𝑒𝑠; 𝑎𝑔𝑜𝑟𝑎 𝑛𝑒𝑚 𝑐ℎ𝑒𝑔𝑎 𝑎𝑜𝑠 𝑡𝑟𝑒̂𝑠 𝑒𝑚 𝑐𝑎𝑑𝑎 100 𝑜́𝑏𝑖𝑡𝑜𝑠.


    O impacte da covid-19 na mortalidade total em Portugal no mês de Novembro de 2020 foi sete vezes pior do que está a ser este ano, apesar das pressões sobre o Governo para repor e mesmo intensificar medidas preventivas com vista a controlar uma suposta quinta vaga da pandemia.

    No dia em que foram retomadas as reuniões informais no INFARMED com “peritos” convidados pelo Governo e Presidente da República – mantendo-se o Conselho Nacional de Saúde Pública estranhamente inactivo há 20 meses –, Portugal apresenta uma situação claramente menos dramática do que no ano passado, mesmo considerando os casos activos, que são agora cerca de metade dos do ano passado (41 mil vs. 81 mil).

    Percentagem de óbitos por covid-19 na mortalidade por todas as idades (média móvel de 7 dias) – Fonte: DGS (dados tratados por PAV)

    Além de um menor número de casos, os indicadores associados à letalidade indicam assim que o vírus SARS-CoV-2 se está a tornar menos mortífero, o que poderá estar associado praticamente à cobertura integral da vacinação entre os mais idosos e vulneráveis. E também, certamente, ao facto de o coronavírus ter contactado muitas mais pessoas ao longo do último ano, concedendo-lhes imunidade natural.

    Recorde-se que em meados de Novembro do ano passado apenas tinham sido infectadas (ou registado teste positivo) cerca de 236 mil pessoas, sendo que actualmente esse número ultrapassa os 1,1 milhões.
    Não menos relevante será o facto de a elevadíssima mortalidade no Inverno passado, sobretudo em Janeiro e Fevereiro – com picos diários de mortalidade que superaram os 700 óbitos, quando em anos anteriores raramente ultrapassava os 500 em dias mais mortíferos –, ter “eliminado” uma parte da população mais vulnerável.

    people in white shirt holding clear drinking glasses

    De acordo com dados públicos disponibilizados pela Direcção-Geral da Saúde (sistema de vigilância epidemiológica e Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), nos primeiros 17 dias deste mês a covid-19 terá sido responsável por 126 óbitos num universo de 5.579 mortes por todas as causas, representando apenas 2,3% do total, enquanto em período homólogo do ano passado estavam já contabilizados 1.046 óbitos por covid-19 num universo de 6.471 mortes, o que significava um impacte directo da pandemia na mortalidade total da ordem dos 16,2%.

    A situação epidemiológica desta pandemia está assim, neste momento, muito longe de ser assustadora, e até aparenta uma evolução bastante favorável face ao Verão, em especial quando se considera as variações da mortalidade ao longo do ano. Recorde-se que, antes da pandemia, a mortalidade total no Verão raramente ultrapassava os 300 óbitos por dia, valor que confrontava com mais de 400 mortes diárias no Inverno, sobretudo em períodos de surtos gripais.

    Analisando os dados oficiais, tanto em termos absolutos como sobretudo relativos, a primeira quinzena de Novembro deste ano mostra uma situação bastante mais favorável do que, por exemplo, o passado mês de Agosto. Com referência ao dia 17 do presente mês, a covid-19 foi responsável por somente 2,6% dos óbitos dos sete dias anteriores, enquanto em grande parte dos dias de Agosto passado esse rácio encontrava-se acima dos 5%.

    Caso se compare Novembro deste ano com o mês homólogo de 2020, então evidencia-se ainda mais a situação altamente favorável que agora se vivencia. De facto, em Novembro do ano passado estava a iniciar-se um agravamento significativo da pandemia, revelada não apenas nas mortes por covid-19 mas sobretudo no seu peso na mortalidade total. No dia 1 de Novembro de 2020, o contributo da covid-19 na mortalidade total (média móvel de 7 dias) era já de 9,2%, mas no dia 17 subiria para os 19,7%. Significava isto que um em cada cinco óbitos era por covid-19.

    Percentagem de óbitos por covid-19 no total de todas as causas (média móvel de 7 dias) – 1 de Outubro até 17 de Novembro (2020 e 2021) – Fonte: DGS (dados tratados por PAV)

    A situação pandémica piorou muito significativamente ao longo do Inverno passado, mesmo podendo-se questionar a contabilização das mortes causadas pelo SARS-CoV-2, uma vez que, independentemente das comorbilidades associadas, as mortes eram codificadas como covid-19 se a vítima tivesse de um teste positivo ao SARS-CoV-2 no momento do óbito.

    Num período extremamente complexo de colapso absoluto do Serviço Nacional de Saúde, incapaz de dar resposta à afluência de doentes de todas as causas, os óbitos por covid-19 chegaram a ultrapassar os 40% do total entre 30 de Janeiro e 9 de Fevereiro (vd. gráfico). Esta hecatombe é cerca de 15 vezes pior do que agora.

    A repetição deste cenário no Inverno 2020-2021 parece pouco provável, pelos indicadores actuais, mostrando-se assim algo injustificável, à luz da ciência e das políticas públicas de Saúde, imporem-se normas ainda mais restritivas e, pior ainda, diferenciadoras – ou discriminatórias – entre vacinados e não-vacinados.


  • Sócrates é o primeiro antigo primeiro ministro a recorrer a entidade reguladora com 26 anos

    Sócrates é o primeiro antigo primeiro ministro a recorrer a entidade reguladora com 26 anos

    Lei para obrigar Administração Pública a ser mais transparente foi aprovada em 1993, mas perante a expectável dificuldade dos cidadãos, a Assembleia da República criou uma comissão reguladora presidida por um juiz. Mais de um quarto de século depois, e com o crescimento das queixas, a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos continua limitada na sua acção, porque os seus pareceres não são vinculativo. Mas assim continua a ser uma opção derradeiras antes do recurso aos tribunais. Sócrates aproveitou.


    O facto inédito de um antigo primeiro-ministro recorrer à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) – que acabou por lhe conceder razão – evidencia como muitas entidades públicas, onde se insere o Conselho Superior de Magistratura, ainda se mantêm relutantes em ceder informação e documentos aos cidadãos. Aliás, o PÁGINA UM já apresentou à CADA, em menos de um mês, cinco queixas sobre a recusa de acesso a documentos administrativos por parte da Direcção-Geral da Saúde (3), Ordem dos Médicos e Comissão Nacional de Eleições. E, curiosamente, para aceder ao nome do requerente do processo de José Sócrates contra o CSM, o PÁGINA UM viu-se mesmo obrigado a apresentar um requerimento ao próprio presidente da CADA, uma vez que, na primeira consulta do processo, o nome do antigo primeiro-ministro estava “anonimizado” – como se pode confirmar no próprio site daquela entidade (vd. aqui).

    Desde 1993, com a aprovação da primeira Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), os cidadãos passaram a poder requerer, sem necessidade de justificação de interesse, o acesso a documentos administrativos, excepto em casos particulares de saúde ou de matérias classificadas. Mesmo no caso de documentos nominativos, embora com algumas restrições, o acesso passou a ser possível desde que fosse evidente o interesse directo e pessoal. Por esse motivo, a LADA tem sido uma ferramenta jurídica muito usada, por exemplo, por jornalistas ou associações ambientalistas.

    Para evitar o triste fado de boas intenções legais, sem efeitos práticos, a LADA estabeleceu a criação da CADA, com funções de regulação no acesso à informação. Assim, no caso de uma entidade pública indeferir expressa ou tacitamente um requerimento ou limitar o exercício do direito de acesso, os cidadãos passaram a poder dirigir reclamações à CADA, que, depois de auscultação à entidade requerida e uma análise jurídica, emitem um parecer. De igual modo, além de outras incumbências que foram variando ao longo do tempo – uma das quais relativas à emissão de parecer obrigatório para acesso a documentos clínicos –, a CADA tem a incumbência de emitir pareceres perante dúvidas solicitadas pelas entidades requeridas.

    No entanto, constituindo uma das principais falhas da LADA – que nunca foi melhorada ao fim de mais de duas décadas –, os pareceres da CADA não são vinculativos. Ou seja, mesmo que um seu parecer conceda razão ao requerente, a entidade requerida pode manter a recusa, não havendo nenhuma responsabilização por esse acto. Nessas circunstâncias, os cidadãos apenas têm como recurso a instauração de um processo nos tribunais administrativos. Aliás, em determinadas situações, a intervenção da CADA pode até ser um empecilho burocrático, pois um cidadão terá, em qualquer circunstância de apresentar primeira uma queixa à CADA e aguardar o seu parecer. Caso não siga estes procedimentos, o Tribunal Administrativo recusará a petição.

    O primeiro parecer da CADA surgiu em 21 de Fevereiro de 1995, relativo a uma queixa de um antigo funcionário do Centro Escolar de São Bernardino, instituição na dependência da então Direcção-Geral dos Serviços Tutelares de Menores, sob alçada do Ministério da Justiça. A leitura do parecer da CADA sobre este processo – que se referia ao simples pedido de acesso desse ex-funcionário aos «Livros de Ponto dos anos de 1987 a 1991, na parte que lhe respeita[va]», bem como às «Folhas de Remuneração, que lhe respeit[ass]em» – mostra bem a forma como então a Administração Pública geria este tipo de pedidos por parte dos cidadãos: não respondia.

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    E assim, analisado o indeferimento tácito e o enquadramento legal, a CADA deu provimento à reclamação, «reconhecendo-lhe o direito de consulta e reprodução dos documentos nominativos que haviam sido requeridos». Nesse ano de 1995 seriam, no entanto, registados na CADA apenas 72 processos, sendo concluídos 51 e emitidos 38 pareceres. No ano seguinte, registou-se um ligeiro aumento nas queixas, mensurável pelo número de processos iniciados, mas duplicando a emissão de pareceres.
    A relação entre o número de pareceres e de processos iniciados, embora podendo respeitar a questões diferentes, situava-se nos 80%, o que indicia que, neste período inicial, os níveis de conflitualidade, invisíveis antes da LADA, mostravam-se elevados entre a Administração Pública e os cidadãos.

    Esses níveis manter-se-ia altos, acima dos 75% até ao ano 2000, baixando a partir daí, mas aumentariam os processos (queixas) para números anuais geralmente entre os 500 e os 800 no período de 2001 a 2013, subindo depois para valores acima dos 800 processos entre os anos de 2014 e 2018. Este aumento de queixas implicou, embora com relação pareceres/processos menor do que nos primeiros anos, também um maior número de pareceres emitidos pela CADA. Com efeito, se apenas em 1998 a CADA ultrapassou a centena de pareceres, com um total de 177, nos anos seguintes o número avolumou-se, atingindo mais de quatro centenas de pareceres (414) em 2010. Em 2018, e fruto do reforço de meios administrativos e jurídicos, foram emitidos 556 pareceres, o valor mais elevado de sempre. No ano passado, em consequência da pandemia, foram apenas emitidos 337 pareceres, enquanto este ano foram concluídos somente 330, embora faltando ainda duas reuniões plenárias até ao final do ano.

    Um dos motivos para a discrepância entre processos iniciados e pareceres emitidos deve-se, em certa medida, ao efeito dissuasor de uma queixa junto da CADA, uma vez que esta faz um contacto formal à entidade requerida, de resposta obrigatória pelo responsável, o que, em muitos casos, impele a entidade requerida a satisfazer o pedido formulado pelo cidadão. Na verdade, por regra, a CADA apenas emite um parecer se a entidade, argumentando ou não na sua resposta, mantiver a recusa no fornecimento dos documentos solicitados.

    Estes números podem ter duas leituras. Por um lado, mostram que os cidadãos se mostram mais activos e conhecedores dos seus direitos perante a Administração Pública, que inclui entidades com funções delegadas. Porém, também revela que, ao fim de quase meio século de democracia, as entidades públicas – dinamizadas e lideradas por cidadãos – ainda não demonstram, em muitos casos, a transparência e a abertura que se esperaria na cedência de informação vital para as pessoas e a vida em sociedade.


  • Conselho Superior de Magistratura ‘obrigado’ a mostrar inquérito a José Sócrates

    Conselho Superior de Magistratura ‘obrigado’ a mostrar inquérito a José Sócrates

    𝐸𝑛𝑡𝑖𝑑𝑎𝑑𝑒 𝑐𝑟𝑖a𝑑𝑎 𝑒𝑚 1993 𝑝𝑎𝑟𝑎 𝑟𝑒𝑔𝑢𝑙𝑎𝑟 𝑒 𝑎𝑝𝑜𝑖𝑎𝑟 𝑜 𝑎𝑐𝑒𝑠𝑠𝑜 𝑎𝑜𝑠 𝑑𝑜𝑐𝑢𝑚𝑒𝑛𝑡𝑜𝑠 𝑎𝑑𝑚𝑖𝑛𝑖𝑠𝑡𝑟𝑎𝑡𝑖𝑣𝑜𝑠, 𝑓𝑜𝑖 𝑢𝑠𝑎𝑑𝑎 𝑝𝑒𝑙𝑎 𝑝𝑟𝑖𝑚𝑒𝑖𝑟𝑎 𝑣𝑒𝑧 𝑝𝑜𝑟 𝑢𝑚 𝑎𝑛𝑡𝑖𝑔𝑜 𝑝𝑟𝑖𝑚𝑒𝑖𝑟𝑜-𝑚𝑖𝑛𝑖𝑠𝑡𝑟𝑜, 𝑎𝑝𝑜́𝑠 𝑢𝑚𝑎 𝑟𝑒𝑐𝑢𝑠𝑎 𝑖𝑛𝑖𝑐𝑖𝑎𝑙 𝑑𝑜 𝐶𝑜𝑛𝑠𝑒𝑙ℎ𝑜 𝑆𝑢𝑝𝑒𝑟𝑖𝑜𝑟 𝑑𝑒 𝑀𝑎𝑔𝑖𝑠𝑡𝑟𝑎𝑡𝑢𝑟𝑎 𝑒𝑚 𝑐𝑒𝑑𝑒𝑟 𝑐𝑜́𝑝𝑖𝑎 𝑑𝑒 𝑢𝑚 𝑟𝑒𝑙𝑎𝑡𝑜́𝑟𝑖𝑜 𝑖𝑛𝑠𝑝𝑒𝑐𝑡𝑖𝑣𝑜 𝑟𝑒𝑙𝑎𝑐𝑖𝑜𝑛𝑎𝑑𝑜 𝑐𝑜𝑚 𝑎 𝑒𝑠𝑐𝑜𝑙ℎ𝑎 𝑖𝑛𝑖𝑐𝑖𝑎𝑙 𝑑𝑜 𝑗𝑢𝑖𝑧 𝐶𝑎𝑟𝑙𝑜𝑠 𝐴𝑙𝑒𝑥𝑎𝑛𝑑𝑟𝑒. 𝐶𝑜𝑚 𝑜 𝑎𝑐𝑒𝑠𝑠𝑜 𝑙𝑖𝑣𝑟𝑒 𝑎𝑜 𝑟𝑒𝑙𝑎𝑡𝑜́𝑟𝑖𝑜, 𝐽𝑜𝑠𝑒́ 𝑆𝑜́𝑐𝑟𝑎𝑡𝑒𝑠 𝑎𝑏𝑟𝑖𝑟𝑎́ 𝑛𝑜𝑣𝑎 𝑓𝑟𝑒𝑛𝑡𝑒 𝑑𝑒 𝑏𝑎𝑡𝑎𝑙ℎ𝑎 𝑗𝑢𝑟𝑖́𝑑𝑖𝑐𝑎 𝑛𝑎 𝑖𝑛𝑓𝑖𝑛𝑑𝑎́𝑣𝑒𝑙 𝑂𝑝𝑒𝑟𝑎𝑐̧𝑎̃𝑜 𝑀𝑎𝑟𝑞𝑢𝑒̂𝑠.


    O Conselho Superior de Magistratura (CSM) vai conceder a José Sócrates o acesso ao relatório do inquérito à distribuição do processo da Operação Marquês em 2014, algo que já recusara por duas vezes este ano, invocando então que aqueles documentos estariam sob “segredo de justiça”, e portanto inacessíveis.

    Este volte-face vem no seguimento de um parecer solicitado em Agosto último pelo antigo primeiro-ministro socialista à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) – órgão independente, que funciona junto da Assembleia da República, e é presidida pelo juiz conselheiro Alberto Andrade de Oliveira.

    No parecer da CADA – discretamente publicado em meados de Outubro passado no respectivo site, sem identificar José Sócrates como requerente – considera-se que “um documento administrativo, ainda que possa ser utilizado em processo judicial, não perde, só por isso, a sua natureza de documento administrativo”.

    Tendo como relator Tiago Fidalgo de Freitas, docente na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, o referido parecer da CADA, aprovado por unanimidade, releva que mesmo se o inquérito conduzido pelo CSM se encontra agora nos autos da Operação Marquês, a autoridade judiciária jamais revelou “necessidade de segredo no respeitante à documentação ora solicitada” por José Sócrates, instando assim o CSM a facultar-lhe o acesso.

    Embora os pareceres da CADA não sejam vinculativos – ou seja, não obrigam entidades públicas a cumprirem as determinações –, já existe a garantia de o relatório ficar acessível, mas Sócrates ainda vai ter de aguardar mais algumas semanas, pelo menos.

    O CSM adiantou ao PÁGINA UM que no passado dia 9 de Novembro foi já decidido, em plenário, “dar cumprimento ao parecer da CADA (…), no sentido de disponibilizar a José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa um conjunto de documentos requeridos pelo mesmo”. No entanto, tal ainda não ocorreu porque, ainda segundo o CSM, “não se tratando de procedimento urgente ou de deliberação que careça de ser imediatamente executada por perder a sua utilidade prática, (…) a mencionada deliberação será objeto de cumprimento” somente na próxima sessão mensal do plenário, ou seja, no dia 7 de Dezembro.

    Saliente-se, porém, que no decurso do processo instaurado pela CADA, o CSM insistiu junto desta entidade na tese do “segredo de justiça” para defender a recusa no acesso aos documentos. Caso o parecer da CADA não fosse acatado, José Sócrates seria obrigado a recorrer ao Tribunal Administrativo, mas colocaria o CSM novamente na mira do ex-governante, que se tem sempre colocado num papel de vítima do sistema judicial.

    Além disso, causaria certamente um incómodo institucional se o CSM recusasse cumprir uma deliberação unânime da CADA, presidida por um juiz conselheiro e com membros nomeados pela Assembleia da República, Governo, Governos Regionais (Madeira e Açores), Associação Nacional de Municípios, Ordem dos Advogados e Comissão Nacional de Protecção de Dados.

    Cópia integral da primeira página do parecer da CADA

    Embora este seja apenas mais uma das muitas quezílias jurídicas da Operação Marquês, desencadeada em 2014, em causa estão, neste caso, os procedimentos aquando da distribuição inicial do processo ao juiz Carlos Alexandre, que decretou a prisão preventiva de José Sócrates, mas que se revestem de grande relevância jurídica.

    O antigo primeiro-ministro – actualmente pronunciado para ser julgado por três crimes de branqueamento de capitais e três crimes de falsificação de documentos – apontou, desde sempre, para a existência de irregularidades na escolha de Carlos Alexandre como juiz de instrução, considerando que, ao não se proceder ao sorteio do juiz de instrução em Setembro de 2014 por meios electrónicos, se violaram princípios jurídicos susceptíveis de nulidade processual.

    O incidente acabou por ser corroborado pelo juiz Ivo Rosa, em sede do debate instrutório, que ordenou a extracção de uma certidão com vista à instauração de um inquérito às eventuais anomalias na entrega manual da instrução a Carlos Alexandre. No limite, se se provarem falhas insanáveis, a Operação Marquês corre o risco de voltar à estaca zero ou “eternizar-se” até à prescrição total, porque todas as decisões anteriores de Carlos Alexandre podem vir a ser consideradas nulas ou anuláveis.

    Sócrates tem, aliás, criticado duramente a postura do CSM neste particular caso do inquérito desencadeado por Ivo Rosa, censurando os conselheiros por pactuarem com uma “situação grave para o Estado de Direito como distribuições processuais irregulares”, insistindo na tese de “manipulação”. O ex-primeiro-ministro socialista – que se desvinculou do PS em rota de colisão com António Costa, seu antigo ministro – acusou até os conselheiros do CSM de “querer[em] transformar um documento público num documento secreto”, sentenciando ainda: “Nenhuma lei da República vos dá esse poder. A vossa decisão é inaceitável”.

    Com a divulgação para breve do teor integral do relatório de inquérito inicial e de avaliação complementar às alegadas anomalias na escolha do juiz de instrução da Operação Marquês, será previsível nova “frente de batalha” numa “guerra jurídica” que já conta sete longos anos sem fim à vista. Recorde-se que este relatório – e até agora considerado inacessível pelo CSM – foi conduzido pelo inspector judiciário Paulo Fernandes da Silva, também juiz desembargador.

    Há sete meses, em plenário, o CSM deliberaria por unanimidade que não fosse instaurado “qualquer subsequente procedimento disciplinar”. Porém, conforme consta da ata daquela reunião mensal, terão sido identificadas, embora ali salientadas de forma subliminar e diplomática, diversas falhas na gestão do Citius. Se são demasiado graves, saber-se-á a curto prazo, até porque o PÁGINA UM também já solicitou formalmente o acesso ao polémico relatório junto do CSM.