Etiqueta: Editorial

  • VAR: 3 centímetros medidos por um engenheiro cartógrafo em cima de um touro mecânico

    VAR: 3 centímetros medidos por um engenheiro cartógrafo em cima de um touro mecânico


    Sou benfiquista, como se sabe — e no momento, no calor do momento, posso até ficar satisfeito com um erro de arbitragem que benefica o meu clube, mas a sensação de injustiça não me agrada depois da espuma dos dias.

    Porém, já me irrita deveras, e logo no momento, que, para se eliminar ou reduzir os erros dos árbitros de futebol. se tenha introduzido o VAR [Video Assistant Referee] para decidir foras-de-jogos de poucos centímetros.

    Pela segunda vez em poucos meses, o Sporting esteve envolvido em dois foras-dejogo por três centímetros, detectado com o rigor de um cirurgião oftalmologista a operar num sismo. Primeiro, em finais de Fevereiro, saiu beneficiado por um golo invalidado ao Gil Vicente ao minuto 88, que daria o empate numa elimimnatória da Taça de Portugal. Na passada segunda feira, saiu-lhe a fava contra o Braga, com um golo invalidado ao avançado Gyokeres por um milímetro fora de-jogo de três centímetros.

    Aquilo que um incrédulo como eu pensa, sem pestanejar — e, já agora, informa-se que o acto de pestanejar dura 100 a 400 milissegundos, ou seja, 0,1 a 0,4 segundos —, é que o universo VAR rege-se por uma física muito própria, onde a justiça se mede à régua de costureira e a verdade desportiva é desenhada a lápis óptico.

    Não sendo a arbitragem de futebol o meu forte — fui um sofrível árbitro de basquetebol algures nos finais dos anos 80 e princípios de 90, não passando da terceira divisão —, uma pergunta física se impõe: com os meios actuais, pode o VAR detectar um fora-de-jogo real de três centímetros? A resposta, para desgosto dos crentes na santidade da tecnologia, é não — a menos que se confunda precisão com ilusão. E é aqui que a ironia entra em campo.

    O sistema VAR trabalha com imagens captadas a 50 ou 60 fotogramas por segundo — o que significa que a cada 16 a 20 milissegundos temos uma nova imagem. Agora façamos um pequeno exercício de física primária (sim, aquela que não cabe na ficha técnica da Liga): um jogador a correr a 30 km/h percorre cerca de 17 centímetros entre dois frames. O Cristiano Ronaldo, no seu auge, sprintava a 34 lm/h. Ou seja, a incerteza temporal, só por si, pode ser bem superior a 15 cm. Mas eis que o VAR — como se fosse um oráculo digital com vista de falcão e paciência de relojoeiro — afirma com convicção que o jogador estava três centímetros adiantado. Exactamente três. Não dois, nem quatro. Três. Uma precisão que faz corar os fabricantes de microscópios.

    Mas o problema não é só o tempo. É também o espaço. Para desenhar a linha de fora-de-jogo, é preciso saber exactamente em que milésimo de segundo a bola foi tocada (com um frame que pode ter variância de 20 ms), identificar a parte mais avançada do corpo do jogador atacante que pode legalmente jogar a bola (ombro? joelho? cotovelo com intenção?) e alinhar isso com o penúltimo defensor, que por acaso também está a correr, a saltar, ou a escorregar. É uma coreografia de erros sistemáticos mascarada de infalibilidade digital.

    No fundo, o VAR tornou-se uma espécie de engenheiro cartógrafo em cima de um touro mecânico. Traça linhas rectas sobre jogadores curvos, determina momentos exactos em acções fluidas, e depois oferece-nos o resultado como se fosse uma epifania científica. O futebol, esse, vai aceitando. Com fé. Porque, como se sabe, três centímetros é um escândalo quando se trata de um dedo do Goykeres, mas uma irrelevância estatística quando se trata do orçamento do Benfica.

    Ironia das ironias: se a Liga (e os senhores da FIFA e UEFA) tivesse vergonha, já teria assumido que um fora-de-jogo inferior a 10 ou 15 centímetros é, na prática, uma ficção óptica com pretensões de exactidão matemática. E introduzia uma margem de erro, validando as jogadas em que essa distância (10 a 15 centímetros) se aplicasse. Mas não. Prefere-se manter o teatro da infalibilidade, como se o VAR fosse um algoritmo sacrossanto e não um operário de consola a clicar num ombro mal ampliado.

    No fim, sobra uma certeza: o VAR está para o futebol como a fita métrica está para a poesia. Não resolve, não encanta, e raramente acerta no espírito do jogo. Mas continua lá, à espera de outro golo de três centímetros para anular — e outro clube para “prejudicar” hoje e “beneficiar” amanhã. Com milimétrica imparcialidade. E eu só queria ver o Benfica campeão sem ser por causa do VAR… ou à custa de empurrar dívida, que um dia pode estoirar, com a barriga, através de sucessivas emissões de obrigações de milhões e milhões.

  • Sondagens (ou palermices) no país da manipulação de massas

    Sondagens (ou palermices) no país da manipulação de massas


    Quando se afirma que uma sondagem foi feita com “rigor científico”, geralmente associada a uma reduzida margem de erro, espera-se, no mínimo, que esse rigor não se dissolva ao primeiro olhar sobre a ficha técnica. Mas o que o Público, a RTP e a Antena 1 aceitaram publicar por estes dias — com chancela ‘científica’ da Universidade Católica, via CESOP — não é uma sondagem: é uma palermice mascarada de estatística.

    E pior: é uma palermice perigosa, porque serve para manipular a opinião pública sob o verniz da respeitabilidade académica. Com a bênção silenciosa da ERC, essa entidade reguladora que há muito perdeu a utilidade e hoje apenas funciona como um armazém de pareceres burocráticos, incapaz de defender os cidadãos contra a intoxicação informativa.

    Comecemos pelo número mais escandaloso: a taxa de resposta desta suposta sondagem (que, como todas as outras nunca são validadas externamente) foi de 29%. Isto significa, de forma crua, que sete em cada dez pessoas recusaram participar na sondagem. Foram contactadas 4.177 pessoas, mas só 1.206 aceitaram responder. E, ainda assim, esses 1.206 são tratados como se representassem fielmente os mais de nove milhões de eleitores portugueses. Há aqui dois problemas gravíssimos que deviam invalidar qualquer pretensão de fiabilidade desta sondagem:

    1. Auto-selecção dos inquiridos: quem responde não é uma amostra aleatória pura, mas sim quem quis responder. Esse grupo tende a ser mais politizado, mais disponível e, muitas vezes, mais alinhado com os meios de comunicação que encomendam a sondagem. Há uma diferença enorme entre uma amostra aleatória de 1.206 pessoas com alta taxa de resposta e uma amostra de 1.206 extraída de um universo onde 71% recusaram participar. A Universidade Católica sabe isso; os directores dos órgãos de comunicação social talvez -mas todos participam na farsa que alimentará notícias, comentários e entrevistas até à próxima fraude.

    2. Distância entre método e realidade eleitoral: por mais que os ‘produtores’ destas ‘sondagens’ se defendam com “ponderações estatísticas”, o facto é que não se pode corrigir um viés de auto-selecção se não se conhece sequer o perfil dos que não responderam. A ilusão de representatividade criada pelas chamadas ponderações é apenas isso: uma ilusão. Ou, se quisermos ser mais justos, um embuste.

    Que uma universidade alimente este tipo de práticas já seria, por si só, um motivo de vergonha académica. Que meios de comunicação social com responsabilidades públicas, como a RTP, aceitem difundir os resultados como se fossem uma fotografia fiável do país — isso, sim, é escandaloso. E que a ERC assista e abençoe esta prática de manipulação de massas num regime democrático é uma prova da sua absoluta inutilidade e de uma indigência que mina a democracia. A ERC, que devia zelar pela integridade da informação difundida, transforma-se, com a sua cumplicidade, numa aliada objectiva da pura desinformação.

    Aliás, esta não é uma falha isolada. Há muito que os chamados estudos de opinião servem mais para formar percepções do que para retratar realidades. O objectivo não é saber em quem os portugueses tencionam votar, mas sim condicionar o voto dos indecisos com o argumento da viabilidade e da “preferência nacional”, construídas em cima de amostras frágeis e enviesadas.

    Não basta publicar a margem de erro (aqui 2,8%, como se isso tivesse algum valor real com 71% de não respondentes). A verdadeira margem de erro é outra: a do bom senso que se perdeu.

    Estamos perante um caso claro de abuso da credibilidade académica e jornalística para alimentar um ritual estatístico vazio. E, assim, quando o ritual substitui o rigor, a ciência cede o lugar à propaganda.

    Se ainda há quem leve estas ‘sondagens’ a sério, só pode ser porque prefere viver numa realidade fabricada a aceitar a verdade nua: a maioria dos portugueses recusa participar nestes exercícios porque já percebe, por instinto, que são uma fraude. E essa é, por ironia, a única sondagem verdadeiramente representativa: a cada vez menor taxa de respostas em sondagens.

    Há-de surgir o dia em que ninguém atenderá um telefone de uma empresa de sondagens – mas, lamentavelmente, serão sempre apresentados ‘resultados’ com rigor. Nem que se invente. Há gente para tudo, sobretudo quando a numeracia em Portugal ainda é pior do que a literacia.

  • Contratos Públicos: quando o conluio começa a ser a regra e a decência é a excepção

    Contratos Públicos: quando o conluio começa a ser a regra e a decência é a excepção


    A Operação Pactum, conduzida pela Polícia Judiciária e que envolve suspeitas de conluio e cartelização na aquisição de material informático por várias entidades públicas, revela — mais uma vez — que a bandalheira na contratação pública em Portugal não é um acidente, é um sistema. Em causa estarão, neste processo, vícios procedimentais com um valor acumulado “não inferior a 17 milhões de euros”, mas o que realmente interessa vai muito além de uma cifra avultada: está em causa o próprio sentido da legalidade e do interesse público.

    Ao longo dos últimos anos, o PÁGINA UM tem destacado, com persistência jornalística e rigor documental, largas dezenas de contratos públicos em que o abuso, a opacidade, a promiscuidade e, por vezes, a ilegalidade são práticas aparentemente correntes, dir-se-ia corriqueiras. Não se trata de meros erros administrativos ou de desatenções burocráticas.

    gray and black laptop computer on surface

    Estamos a falar de estratégias recorrentes para contornar a lei e favorecer determinadas empresas, das pequenas aos grupos económicos — muitas vezes os mesmos, sobretudo em sectores sensíveis e de negócios apetecíveis como as tecnologias de informação, a alimentação (escolar e hospitalar), a segurança privada, a limpeza ou os transportes escolares e de doentes. E sempre com o mesmo pano de fundo: o assalto ao erário público com a conivência dos decisores políticos e administrativos, e a passividade de reguladores e fiscalizadores, com o Tribunal de Contas à cabeça.

    Vejamos alguns dos esquemas que se tornaram rotineiros e que o PÁGINA UM tem vindo a denunciar:

    a) Ajustes directos por “urgência imperiosa”, invocada a pretexto de atrasos provocados pelas próprias entidades adjudicantes, ou em prazos que de urgentes nada têm. A “urgência” é frequentemente fabricada para contornar os concursos públicos.

    b) Concursos públicos vazios ou com exclusão total dos concorrentes, seguidos de ajustes directos previamente combinados. Um clássico da concertação: quem ganha o ajuste directo raramente concorre — sabe de antemão que a concorrência será anulada.

    c) Adjudicações sucessivas à mesma empresa, por ajuste directo, sem que haja qualquer reacção da concorrência ou do mercado. Uma evidência de cartelização consentida. Em muitos casos, os ajustes directos ocorrem após terminar a vigência de um contrato após concurso público, não sendo sequer sensato que não se tenha lançado novo concurso público para evitar ajustes directos.

    d) Empresas que impugnam concursos que não venceram, mas que, enquanto aguardam decisão judicial, continuam a prestar o serviço por ajuste directo, mantendo de facto o monopólio.
    e) Consultoras e sociedades de advogados contratadas por ajuste directo, com a desculpa de que é “impossível definir critérios objectivos” para concurso, quando os serviços são perfeitamente quantificáveis. Escolhas pessoais travestidas de necessidade técnica.

    f) Contratações durante pandemia, muitas feitas sem cadernos de encargos, sem contratos escritos e muitas vezes com registo tardio no Portal Base — como no caso do Hospital de Braga, que demorou mais de dois anos a registar contratos de centenas de milhares de euros. Estou ainda aguardar que o Ministério Público fala buscas ao Hospital de Braga, cuja gestão durante a pandemia foi um verdadeiro ‘caso de polícia’, mas longe de ser o único.

    Perante este panorama, a única coisa verdadeiramente surpreendente é a escassez de buscas policiais, detenções e condenações. Os sinais de prevaricação e conluio são tantos e, por vezes, tão descarados que se justificaria, aqui sim, uma task-force permanente da Justiça só para a contratação pública. Há cerca de ano e meio, encaminhei uma participação com mais de duas dezenas de casos suspeitos para o Tribunal de Contas. Foi um teste. Não houve qualquer consequência visível. Não é só o sistema que está capturado: é também a fiscalização que parece paralisada.

    Torna-se assim imperioso adoptar uma política de mão-de-ferro na contratação pública, desde os ajustes directos de 19.999,99 euros (um ‘número mágico’ para entregar uns cobres aos ‘amigos do café’ sem concorrência) até aos contratos de milhões com cadernos de encargos a preceito ou a possibilidade de reajustes de preço. Isso significa, por exemplo:

    Transparência absoluta: contratos e cadernos de encargos publicados atempadamente, com prazos escrupulosamente cumpridos.

    Cumprimento rigoroso da lei: aplicação inflexível do Código dos Contratos Públicos e sanções reais para quem o violar.

    Responsabilização efectiva: penalizações monetárias a gestores públicos que façam adjudicações irregulares e demissões de responsáveis políticos sempre que se detetem práticas sistemáticas de atropelo à legalidade.

    Punição dissuasora de conluios e cartelizações: multas pesadas e, acima de tudo, exclusão temporária ou definitiva de empresas prevaricadoras da contratação pública.

    Mas o combate à corrupção não se faz apenas pela punição: faz-se também pela correcção das falhas de mercado. Quando sectores inteiros se viciam em práticas de cartelização e de ajustezinhos directos combinados, cabe ao Estado intervir com soluções públicas.

    Se, por exemplo, os concursos para fornecimento de alimentação escolar, de limpeza, de segurança privada ou de transportes continuam sistematicamente vazios — para depois surgir uma confortável adjudicação directa ao mesmo do costume —, talvez seja altura de o Estado ameaçar assumir directamente esses serviços, com empresas públicas dimensionadas e fiscalizadas. Não por ideologia, mas por defesa do interesse público e da concorrência verdadeira. Só o simples anúncio levaria a uma moralização de muitos sectores que vivem de esquemas em contratos públicos.

    É tempo de dizer basta. A Operação Pactum está muito longe de ser um caso isolado: é apenas a prova de que há muito tempo a excepção deixou de ser a corrupção — ela é, hoje, a norma. A decência, essa, é que se tornou rara.

  • Sondagens e a asinina indigência aritmética da ERC

    Sondagens e a asinina indigência aritmética da ERC


    Já em tempos aqui escrevi — na verdade, há cerca de uma semana, com o realismo que a democracia exige — que se impunha fixar os nomes dos membros da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC): Helena SousaPedro Correia GonçalvesTelmo GonçalvesCarla Martins e Rita Rola. Defendi essa exposição porque os actos do regulador, com especial destaque para as suas omissões e incoerências, não podem ser resguardados sob o biombo da institucionalidade abstracta, mas antes devem estar associados, com nome e sobrenome, às pessoas concretas que os praticam.

    É que, ao contrário das instituições — que, coitadas, por vezes são mal frequentadas ou representadas —, os cidadãos têm responsabilidade moral. E, quando ocupam cargos de regulação, essa responsabilidade deveria ser, como o próprio nome indica, reguladora — ou seja, ancorada num mínimo de exigência intelectual, num sentido apurado de justiça e, já agora, numa relação funcional com a realidade.

    Ora, uma nova (e sempre surpreendente, pelos mais motivos) deliberação da ERC — datada de 19 de Março — volta a exigir esse gesto de fixação nominal. Não por mera vaidade cívica, mas porque é absolutamente intolerável que, num país que se diz democrático e esclarecido, o órgão máximo de regulação dos media considere aceitável, sem motivos de crítica – uma sondagem política em que 400 inquiridos declaram em quem votarão “de certeza”, mas depois o somatório dessas respostas chega aos 1032 votos de certeza.

    Sim, leu bem: 1032 votos garantidos por apenas 400 pessoas. Uma impossibilidade não apenas democrática, mas também aritmética. Isto porque a sondagem da Pitagórica para a TVI e a CNN Portugal afinal permitia que cada pessoa pudesse ‘votar de certeza’ em mais do que um candidato. E assim, através desta sondagem cada candidato podia recolher com ‘certeza’ o voto de um inquirido que, afinal, também votara com ‘certeza’ em outros candidatos. E assim se fizeram notícias sobre as eleições presidenciais com base numa farsa, numa palhaçada, numa fraude, numa manipulação. E, no entanto, depois de uma participação bem sustentada do PÁGINA UM, em defesa do rigor, a ERC viu, analisou e — com serenidade burocrática — nada viu de mal.

    A Matemática é, para a ERC, uma ciência tão maleável como o Direito e a Política. Com erros metodológicos crassos e interpretações espúrias, aparentemente intencionais para conduzir a falsas conclusões, que levariam ao ‘chumbo’ de um qualquer aluno universitário, a ERC tratou de mitigar uma horrível manipulação da realidade e um ‘linchamento’ da semântica e da numeracia. Com a ERC ficámos a saber que “votar de certeza” em fulano é passível, em democracia, de votar também em beltrano e em sicrano, e já agora também em fulsicrano (junção de fulano e sicrano), em sicbeltrano (junção de sicrano e beltrano), fulbeltrano (junção de fulano e beltrano) e em fulsicbeltrano (junção de fulano, sicrano e beltrano). Se em democracia, tal é impossível; nos gabinetes da ERC, que regula sondagens, tudo se mostra agora possível.

    Helena Sousa, Pedro Correia Gonçalves, Carla Martins, Telmo Gonçalves e Rita Rola, membros do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

    E tudo é possível apesar de a Lei das Sondagem — e do bom senso — determinar que devem ser observadas diversas regras, entre as quais se destacam a necessidade de as perguntas serem “formuladas com objectividade, clareza e precisão, sem sugerirem directa ou indirectamente, o sentido das respostas”; e de “a interpretação dos resultados brutos deve[r] ser feita de forma a não falsear ou deturpar o resultado da sondagem”.

    Os erros e a pura aldrabice desta sondagem, promovida pela empresa Pitagórica para a TVI e CNN Portugal, e divulgada depois pela generalidade da imprensa, é, na sua essência, uma violação da lógica elementar. Não se exige sequer conhecimentos avançados de estatística para detectar a trafulhice. Basta, neste caso, saber somar. E saber que, num sufrágio, um cidadão só pode votar, de certeza, num único candidato. Mas, pelos vistos, os inquiridos da Pitagórica puderam votar com certezas múltiplas. E o regulador, qual monge beneditino da pós-verdade, aceitou com fleuma e talvez até com reverência aquilo que se poderia descrever, com precisão orwelliana, como a novilíngua da estatística deformada: a verdade é soma, e a soma é fé, não precisão.

    É aqui que devemos introduzir Roland Barthes, com o seu conceito de “grau zero da escrita”. A ERC — perdão: Helena SousaPedro Correia GonçalvesTelmo GonçalvesCarla Martins, sendo que Rita Rola faltou — encarna, na perfeição, o “grau zero da regulação”: um lugar onde, quando não se pretende incomodar certas elites mediáticas, o conteúdo desaparece, a crítica dissolve-se e o acto regulador se converte numa forma vazia de autoridade sem sentido.

    Podemos ir mais longe. Estamos também no terreno daquilo que Pierre Bourdieu designava como a reprodução simbólica do poder através da linguagem autorizada. A ERC autoriza-se a si própria como detentora de um juízo mediático, mas exerce essa função, neste caso, baseando-se numa operação matemática de uma forma tão asinina que dificilmente se admitiria numa criança de sete anos.

    Aquilo que se passou com esta sondagem — e sobretudo com esta deliberação — é, em qualquer democracia funcional, um escândalo. Um escândalo simples, evidente, quantificável, objectivo. Mas escândalos numéricos parecem não existir quando os números são tratados como fetiches e não como factos. George Orwell, que já nos avisara sobre os perigos da linguagem como instrumento de manipulação, teria provavelmente dedicado um capítulo especial a esta sondagem: a liberdade é a soma dos votos garantidos — ainda que os votantes não existam. Não se trata aqui de margens de erro ou de métodos de ponderação obscuros. Trata-se, tão-só, de somar. E de perceber que 400 pessoas não podem garantir 1032 “votos de certeza” aos diferentes candidatos.

    Nem se exigiria à ERC que discutisse fórmulas de amostragem complexas para sondagens. Exige-se apenas que saiba distinguir uma metodologia válida de um disparate aritmético. Aquilo que torna esta deliberação ainda mais inquietante é a dúvida que ela suscita: não quiseram ver ou não souberam ver? E confesso: não sei qual das hipóteses é mais grave.

    Se não quiseram ver, então temos uma ERC cúmplice da manipulação informativa. Se não souberam, então temos uma ERC composta por adultos de meia-idade que desconhecem os fundamentos do sistema eleitoral e da matemática básica, até de simples aritmética. Ambas as hipóteses são inaceitáveis, minam o Jornalismo e a Democracia, e mostram que, em sondagens, estamos no campo do vale-tudo. Ambas são motivo suficiente para exigir não só a revisão desta deliberação, mas também a renovação da própria ERC.

    TVI e CNN Portugal apresentaram, em Janeiro, resultados de uma sondagem fraudulenta como se fossem intenções de voto. Apesar de haver apenas 400 inquiridos, contabilizaram-se 1032 votos ‘de certeza’, o que significa que cada inquirido atribuiu, de forma convicta, uma média de 2,6 votos pelos proto-candidatos. Assim, uma parte dos 28% dos 400 inquiridos que garantiram que votariam ‘de certeza’ em Gouveia e Melo terão também votado ‘de certeza’ noutros proto-candidatos. A ERC achou que não houve qualquer ilegalidade. ‘Carta branca’ para o vale-tudo.

    Repito: neste caso, nem estamos perante um erro de interpretação. Estamos perante uma indigência matemática em estado puro, que faria corar de vergonha um aluno da escola primária. Bem sei que os modernos e mais humanizados métodos de pedagogia o desaconselham a crianças, mas os membros da ERC — Helena SousaPedro Correia GonçalvesTelmo GonçalvesCarla Martins, sendo que Rita Rola faltou — mereceriam um par de orelhas de burro bem pontiagudas, de cartolina resistente e uso prolongado. Que as usem com a dignidade que a ocasião exige — e com o silêncio de quem já não tem contas para apresentar.

    Não faltará quem veja neste texto uma reacção desproporcionada. Dirão que não se fazem guerras por uma mera sondagem. Mas a questão é exactamente essa: não é apenas uma sondagem política. É um instrumento de influência sobre a opinião pública sobre a qual a ERC anuncia implicitamente que vale tudo. É uma peça que integra o jogo democrático, e que, se for viciada, transforma esse jogo num simulacro.

    Quando se admite — com indiferença — que um erro deste calibre passe incólume, estamos a normalizar a fraude informativa. Estamos a declarar, com todas as letras, que a quantificação da vontade popular pode ser uma charada — desde que sirva certos propósitos.

    Diz-se muitas vezes que a democracia morre aos poucos, de forma insidiosa. Eu diria que, entre nós, ela se esvai aos números, entre gráficos mal feitos e somas impossíveis, legitimadas por entidades cuja única missão deveria ser impedir esses abusos. Mas talvez seja já tarde. Talvez estejamos mesmo num país onde reguladores não regulam, jornalistas não questionam e cidadãos já não contam. Pelo menos, não a contar. Porque, como bem se viu, os números já não são o reflexo da realidade — são o seu encobrimento.

    E por isso volto a insistir: fixem-se os nomes dos membros do Conselho Regulador da ERC: Helena SousaPedro Correia GonçalvesTelmo GonçalvesCarla Martins e Rita Rola. Que não se escondam por detrás da sigla. Que sejam lembrados, não por actos de coragem regulatória, mas pela sua indigência matemática e pela complacência com o inaceitável. O seu legado está agora cravado numa operação aritmética que nem o acaso conseguiria fabricar. Que se saiba, no futuro, quem foram estes lamentáveis rostos de uma soma impossível.

  • 10.000.000: a marca de um jornalismo sem rede mas com vértebra

    10.000.000: a marca de um jornalismo sem rede mas com vértebra


    Num tempo em que tantos projectos jornalísticos nascem com promessas e morrem com silêncios, ou agonizam em dívidas, atingir a marca dos dez milhões de visualizações — de leituras de notícias e outros conteúdos — seria, para qualquer órgão de comunicação social português, uma meta digna de registo.

    Mas para um jornal independente como o PÁGINA UM — que desde o primeiro dia recusou publicidade institucional, subsídios estatais e favores travestidos de parcerias —, nascendo e crescendo em condições agrestes, este número tem outro peso: é o sinal claro de que é possível fazer jornalismo com qualidade, coragem e independência.

    Mais relevante do que o total acumulado, que esta semana alcançámos, é o que os últimos meses revelam: nos últimos seis meses, o PÁGINA UM aproximou-se das 2,5 milhões de visualizações, o que traduz uma média mensal superior a 405 mil — um crescimento consolidado que não resulta de campanhas, virais ou algoritmos comprados, mas da força das notícias e da vasta panóplia de conteúdo e sobretudo da fidelidade dos leitores.

    Esta tendência, cada vez mais evidente, surge sem o apoio de redes mediáticas, sem ecos forçados nem favores corporativos. Pelo contrário: o PÁGINA UM não se revê — nem nunca se reverá — num espírito corporativista e, por isso, acéfalo porque proteccionista. Denunciámos, por isso, más práticas, revelámos ocultações, enfrentámos o silêncio com factos e com a razão. E talvez por isso muitas das nossas notícias não tenham eco na chamada imprensa mainstream. Mas chegam, chegam cada vez mais, por mérito próprio, aos leitores, a um número cada vez maior de leitores.

    E chegam por duas razões fundamentais: a qualidade — malgrado a persistente atitude dos reguladores, como a ERC e a CCPJ (que estoicamente compreendemos, porque também não temos sido meigos com as suas falhas)— e a coragem, que se materializa, por exemplo, nas mais de duas dezenas de intimações no Tribunal Administrativo de Lisboa para obrigar entidades públicas a cumprirem a lei e a fornecerem informação que legalmente deve ser pública.

    Evolução mensal das visualizações do PÁGINA UM desde Dezembro de 2021. Fonte: Google Analytics.

    No mercado nacional, em termos de projectos independentes, mesmo sem os recursos de financiamento que estes ostentam , o PÁGINA UM é o primus inter pares. Nenhum dos projectos independentes portugueses se equipara, embora vejamos tal como uma responsabilidade. E mesmo num plano internacional, a comparação ajuda a perceber a verdadeira relevância do que temos vindo a construir com uma redacção reduzida a dois jornalistas e um punhado de colaboradores em ‘regime cívico’.

    Com cerca de 405 mil visualizações mensais entre Outubro do ano passado e o presente mês de Março, e dirigido sobretudo para uma população de pouco mais de 10 milhões de habitantes, o PÁGINA UM regista actualmente perto de 39 mil visualizações mensais por milhão de habitantes. Esta métrica, usada para comparar proporcionalmente o alcance dos meios em diferentes países, coloca o PÁGINA UM num patamar assinalável quando confrontado com projectos de jornalismo independente internacionais bem financiados e amplamente estruturados.

    Por exemplo, o Correctiv, na Alemanha, ou o The Intercept Brasil, registam proporcionalmente pouco mais de 10 mil visualizações por milhão de habitantes. O The Tyee, no Canadá, mantém valores semelhantes. Já as duas grades referências europeias de jornalismo independente, o De Correspondent, nos Países Baixos, e o Mediapart, em França, situam-se num patamar superior (71 mil e 87 mil visualizações por milhão de habitantes, respectivamente), mas contam com equipas numerosas, financiamento estável e uma presença mediática consolidada nos seus países. O PÁGINA UM , pelo contrário, opera com recursos mínimos, sem subsídios nem publicidade, e conquista os seus leitores apenas com o que publica – e são os leitores que se disponibilizam de forma voluntária a apoiar (ou não) financeiramente este projecto. Para que possam continuar e ler e permitir que outros (com menos posses) posam também ler.

    Ou seja, o PÁGINA UM não impõe subscrições nem oferece brindes. Vive do que vale, não do que exige — e isso é, no fundo, o único willingness to pay que merece esse nome.”

    Sabemos que os 10 milhões de visualizações são apenas um número. Mas contêm dentro de si milhares de gestos de confiança, de partilha, de leitura atenta. São, acima de tudo, a prova de que há espaço — e sede — para um jornalismo diferente. Sem rede. Mas com vértebra.

    Obrigado por esta marca. Continuaremos a honrá-la com o que sabemos fazer: jornalismo.

  • Carta em defesa das entrevistas (mesmo que parvas) do José Rodrigues dos Santos

    Carta em defesa das entrevistas (mesmo que parvas) do José Rodrigues dos Santos


    Vivemos tempos em que a liberdade de expressão — tantas vezes evocada como bandeira democrática — é posta à prova não por regimes autoritários, mas pelos próprios cidadãos e instituições que, teoricamente, a deveriam defender com unhas e dentes. A recente entrevista conduzida por José Rodrigues dos Santos (JRS) ao secretário-geral do PCP, Paulo Raimundo, transmitida na RTP, reacendeu uma dessas fogueiras mediáticas em que o zelo pela liberdade rapidamente se transforma em zelo pela censura. E por isso, com plena consciência da sua impopularidade, este editorial surge como uma carta em defesa das entrevistas, mesmo que parvas — e em defesa, sim, das entrevistas conduzidas por José Rodrigues dos Santos.

    Comecemos pelo princípio: o jornalismo é uma actividade que vive da articulação entre a independência profissional dos seus actores — os jornalistas —, a orientação geral dos seus órgãos — através da direcção editorial —, e os compromissos deontológicos e éticos que os norteiam. Acresce ainda, no caso da RTP, o ónus maior do serviço público, que deveria guiar cada decisão editorial com redobrada responsabilidade e compromisso com os cidadãos. Este triângulo de forças — independência, orientação editorial e serviço público — é não só legítimo como necessário à saúde da Democracia. E é precisamente por isto que devemos rejeitar de forma veemente todas as tentativas de sanção institucional a jornalistas pelo conteúdo das suas entrevistas, por mais infelizes, enviesadas ou absurdas que possam ser.

    Numa entrevista sobre as legislativas, Paulo Raimundo (à direita), secretário-geral do PCP, não conseguiu fugir das insistentes perguntas sobre a guerra da Ucrânia por parte de José Rodrigues dos Santos.

    No caso vertente, é público e notório que a RTP decidiu, no âmbito da cobertura das eleições legislativas, realizar entrevistas aos líderes partidários. Também é claro que essa decisão editorial — legítima e até desejável num canal público — envolveu a escolha de um jornalista para esse trabalho. A escolha recaiu sobre José Rodrigues dos Santos. Independentemente da opinião que cada um tenha sobre o estilo ou o historial de JRS, esta escolha foi assumidamente editorial. Não foi improvisada. E é aqui que entra a responsabilidade da direcção de informação da RTP: se a entrevista correu mal — e há boas razões para considerar que correu —, então é à direcção editorial que se deve apontar o dedo, não à figura do jornalista como bode expiatório mediático.

    Quem viu a entrevista a Paulo Raimundo assistiu a um espectáculo insólito: a totalidade do tempo foi consumida num único tema — a guerra da Ucrânia —, tema que, embora relevante, dificilmente se justifica como o exclusivo numa entrevista a um secretário-geral partidário às portas de uma eleição. José Rodrigues dos Santos interrompeu, impôs leituras, tentou empurrar o entrevistado para armadilhas retóricas. Foi uma entrevista mal conduzida, desequilibrada, até manipuladora. Um péssimo exemplo de jornalismo — esta é a minha opinião, tão legítima quanto a de outra qualquer pessoa que possa considerar o oposto.

    Mas mesmo admitindo que a entrevista conduzida por José Rodrigues dos Santos é um péssimo exemplo de jornalismo, permanece jornalismo. E por isso deve ser julgado como tal: com critérios internos, por pares, e não com a espada de reguladores que deviam permanecer silenciosos quando se trata de decisões editoriais legítimas, mesmo quando desastradas.

    Nesta linha, é absurdo — e perigoso — recorrer à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) ou à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) para avaliar se um jornalista agiu bem ou mal numa entrevista. Aliás, basta recordar uma lamentável (e até mesmo errada) deliberação da ERC por causa de uma outra entrevista de JRS no ano passado à agora eurodeputada Marta Temido. A acção de um jornalista, mesmo quando desajustada ou provocadora, está no domínio editorial e profissional, não regulatório.

    No ano passado, Marta Temido não apreciou uma entrevista de José Rodrigues dos Santos e despediu-se com acrimónia. A ERC achou por bem emitir uma deliberação, ainda por cima com erros de transcrição.

    A missão da ERC e da CCPJ não é avaliar se uma entrevista tem qualidade ou se um jornalista foi correcto: a sua função é garantir o cumprimento de princípios estruturais, como a liberdade de imprensa e a não-discriminação, e assegurar que o exercício do jornalismo decorre dentro da legalidade. Não deve nem pode avaliar jornalistas. Avaliar perguntas, estilo ou pertinência de temas numa entrevista não é, nem nunca poderá ser, missão de qualquer regulador. É missão da crítica, dos pares e, sobretudo, do público.

    Aquilo que se impõe, portanto, é o funcionamento de mecanismos internos de crítica e responsabilização — nomeadamente o Provedor do Telespectador e o Conselho de Redacção, que na RTP existe e deve ter um papel activo — e a mobilização do cidadão como agente crítico. O cidadão atento deve exigir da RTP responsabilidade editorial, deve manifestar-se junto da direcção de informação (cujos contactos deveriam ser públicos e acessíveis) e, acima de tudo, deve usar o seu comando de televisão como instrumento de protesto. Quem não tolera o estilo inquisitório de JRS pode — e deve — mudar de canal. O zapping é uma das formas mais poderosas de regulação numa sociedade livre.

    Há, pois, uma lição a tirar desta polémica: entrevistas parvas são, antes de mais, entrevistas. Não são crimes, não são delitos de opinião, não são transgressões que exijam a intervenção de polícias do pensamento. São, quando muito, actos jornalísticos falhados. E como todos os actos falhados, devem ser corrigidos por quem os propõe, e não por quem vigia. Devem merecer crítica severa — como esta —, mas nunca punição institucional.

    Se permitirmos que reguladores ou organismos administrativos se imiscuam nas decisões editoriais e nos conteúdos de entrevistas, abrimos a porta a algo mais grave: o controle político do jornalismo. E isso é o princípio do fim do jornalismo livre. O erro de um jornalista não pode ser tratado como um delito; deve ser discutido como um erro, revisto como um erro, exposto como um erro. Mas nunca silenciado como um crime.

    Em defesa, pois, das entrevistas — mesmo que parvas. E em defesa de José Rodrigues dos Santos, não pelo que fez, mas pelo que representa: o direito de um jornalista errar sem que o Estado o puna por isso. A liberdade de imprensa vive também do direito à má imprensa. Defender a liberdade é aceitar os erros, não aniquilar os que os cometem.

  • Fixem estes nomes: são os carrascos do jornalismo

    Fixem estes nomes: são os carrascos do jornalismo


    Fixem estes nomes: Helena Sousa, Pedro Correia Gonçalves, Telmo Gonçalves, Carla Martins e Rita Rola. Ficarão para a História como os carrascos do Jornalismo Livre e Isento em Portugal.

    É da mais elementar justiça que as responsabilidades sejam pessoais, quando as consequências dos seus actos são devastadoras. Estas cinco pessoas são membros do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) e têm nas mãos a obrigação constitucional de defender a Imprensa, como entidade fundamental da Democracia, e os princípios da ética e da transparência no jornalismo.

    Tem sido uma entidade, que pela sua natureza associada ao poder político, raramente exerce essas funções com isenção. Mas piorou nos últimos anos. Se muitas vezes critiquei, com virulência, o mandato de Sebastião Póvoas, a ERC com Helena Sousa afundou-se para um grau de indigência e de desonestidade intelectual – desculpem o eufemismo.

    Helena Sousa, Pedro Correia Gonçalves, Carla Martins, Telmo Gonçalves e Rita Rola, membros do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

    Hoje, a ERC, com estas três senhoras e estes dois senhores no seu Conselho, não apenas mostra uma inércia regulatória como, quando ‘obrigados’, mostram uma condescendência fatal, dando mostras de que preferem não ver para não ter de agir. E isso fá-los cúmplices de um sistema que permitiu a degradação da imprensa portuguesa, não por falta de meios, mas por falta de vergonha.

    A recente deliberação que sancionou o Expresso por promiscuidade entre jornalismo e publicidade é uma encenação para inglês ver – e, como todas as farsas mal encenadas, revela mais do que esconde. A coima de 2.000 euros à Impresa Publishing é uma anedota de mau gosto, quando estavam em causa valores de contratos promíscuos de elevados valor (basta olhar para as várias páginas dos indigentes ‘Projetos Expresso’, onde se mercadeja jornalismo à descarada). Não só pelo valor ridículo – um preço de saldo por violar a Lei de Imprensa –, mas porque sugere descaradamente que há um tarifário para a promiscuidade mediática.

    Uma multa tão simbólica não é punição: é um incentivo. Um convite à reincidência. Ou pior: ao alargamento de um negócio vergonhoso, legalizando o Jornalismo como mercadoria a ser oferecida a quem tiver mais dinheiro.

    A ERC transformou-se no facilitador institucional da promiscuidade entre os media e o poder político e económico. Ao demorar dois anos para sancionar um caso que remonta a 2021, e ao ignorar deliberadamente outros contratos escandalosos, este regulador revela-se um exemplo de cobardia e irresponsabilidade. E há que dizê-lo sem eufemismos: a ERC de Helena Sousa, Pedro Correia Gonçalves, Telmo Gonçalves, Carla Martins e Rita Rola normalizou a ‘prostituição informativa’.

    Estes cinco reguladores serão recordados como os comissários que abriram caminho para que a imprensa se financie à custa da mentira e do engano, vendendo aos leitores publicidade mascarada de notícia, desde que nos cadernos de encargos não conste expressamente que o adjudicatário (a empresa de media) não tem obrigação de publicar uma notícia paga, mesmo que depois seja publicada uma notícia, que somente existe por haver uma relação comercial. Na prática, a ERC deu aval para que os jornalistas se tornem agentes comerciais ao serviço de entidades públicas e privadas. E o resultado está já à vista sem esperança para os jornalistas assim pressionados pelas direcções e administrações para fazerem fretes: uma imprensa desacreditada, um público desconfiado e um jornalismo moribundo.

    A forma como a ERC se debruçou sobre este caso da Impresa Publishing antecipa o resultados de outros processos de contra-ordenação que envolvem mais seis órgãos de comunicação social:  PúblicoExpressoDiário de NotíciasJornal de NotíciasTSFVisão e SIC, no decurso de uma investigação do PÁGINA UM, publicada em Maio de 2022. Tudo era mais que confirmável, mas a ERC limita-se a aplicar uma coima simbólica, sugerindo, ainda por cima, que há um modo de escapar a futuras punições: basta não colocar a previsão explícita da publicação das “notícias” nos contratos.

    Notícia paga por uma entidade tutelada pelo Ministério do Ambiente, então liderado por Duarte Cordeiro, estava prevista ser publicada no Expresso num contrato de 19,500 euros. A ERC nem se dignou a querer ver o caderno de encargos, onde a exigência está expressa, absolvendo o jornal.

    Além disso, a ERC encontrou uma forma de fechar os olhos às promiscuidades. Embora tenha poderes legais para exigir cadernos de encargos das entidades públicas não mexeu uma palha para esclarecer outros contratos promíscuos. Limitou-se a usar a desculpa do ‘in dubio pro reo’, esquecendo-se que o seu papel não é o de um juiz indiferente, mas de regulador proactivo. Preferiu a preguiça ao rigor; a complacência à coragem. Em vez de defenderem os cidadãos e os leitores, defenderam os interesses dos poderosos. E a democracia, que necessita de uma imprensa livre, ficou mais pobre.

    A imprensa portuguesa não foi destruída pelo avanço das redes sociais, nem pelo desinteresse dos leitores. Tem sido traída por dentro, com o aval de um regulador que se recusa a regular. Enquanto jornalistas e directores venderem a sua independência, e enquanto a ERC se mantiver surda, muda e cega, o jornalismo continuará a morrer. E não há democracia que sobreviva à morte do jornalismo.

    Os membros deste Conselho Regulador da ERC não podem dizer que não sabem. E que nada do que fazem influencia o rumo qualitativo da imprensa numa época de crise financeira. Sabem e sabem muito bem. Sabem que permitem que conteúdos publicitários sejam publicados como se fossem notícias. Sabem que jornalistas foram transformados em comissários de relações públicas ao serviço de ministérios e empresas. Sabem que estas práticas corroem a credibilidade da imprensa como um ácido corrói o ferro. Sabem tudo isto, mas não se importam. Ou pior: importa-lhes manter o sistema tal como está.

    E qual foi, é e será a consequência directa deste laxismo regulatório? Também se sabe. O maior erro estratégico da imprensa portuguesa nos últimos anos tem sido acreditar que a sustentabilidade financeira se garante enganando os leitores com publicidade travestida de informação. Em vez de apostar em jornalismo isento e rigoroso para conquistar a confiança dos leitores e atrair anunciantes legítimos, optou-se pela batota. Preferiu-se vender a credibilidade por um prato de lentilhas. E hoje, temos quase todas as empresas de media de grande dimensão em colapso ou próximo disso, como são os casos da Trust in News, da Global Media e da própria Impresa, dona da SIC e da Impresa Publishing. Nem a promiscuidade é sustentável. Muito pelo contrário.

    O Conselho Regulador da ERC tem-se tornado cúmplice activo desta fraude. E, assim, a imprensa portuguesa continuará a afundar-se num pântano ético do qual dificilmente sairá enquanto Helena Sousa, Pedro Correia Gonçalves, Telmo Gonçalves, Carla Martins e Rita Rola permanecerem em funções. São eles os rostos da falência moral do jornalismo em Portugal. Fixem estes nomes, portanto, porque um dia hão-de figurar nos anais da Imprensa Portuguesa como os coveiros da informação livre e honesta.

  • Balsemão, a queda de um anjo

    Balsemão, a queda de um anjo


    Durante muitos anos, Francisco Pinto Balsemão foi um verdadeiro símbolo da liberdade de imprensa em Portugal – o homem que mesmo antes Revolução de Abril, fundou o Expresso, ergueu um título que, durante décadas, foi sinónimo de rigor, independência e seriedade. Era visto como um guardião da palavra livre, um exemplo de como o jornalismo poderia resistir à tentação dos poderes económicos e políticos, mantendo-se firme nos princípios da ética e da verdade. Aguentou até, estoicamente, o ‘seu’ jornal a atacá-lo durante o breve o período (1980-1983) em que teve funções governativas, incluindo o cargo de primiero-ministro entre 9 de Janeiro de 1981 e Junho de 1983, o que lhe granjeou um estatuto de elevada seriedade. A sua biografia poderia alcandirá-lo à figura de um “anjo” do quarto poder, pairando acima das pressões e influências que tantos outros não aguentariam evitar.

    Mas mesmo os anjos, diz-nos Camilo Castelo Branco, podem cair. E o que assistimos nas últimas duas décadas, e sobretudo nos últimos 10 anos, é precisamente isso: a queda de um homem e de um projecto que outrora pareciam intocáveis. Se, nos primórdios, Balsemão compreendeu a importância de criar uma imprensa livre e exigente, a sua família teve dificuldades em perceber, com o tempo, que o desafio maior não vinha de um golpe militar ou de um poder político opressor, perante a consolidação da democracia, mas de um novo inimigo silencioso: a erosão da credibilidade.

    Francisco Pinto Balsemão

    Num tempo em que as tecnologias digitais e as redes sociais impuseram uma transformação radical na comunicação, a resposta de Balsemão e da Impresa foi hesitante e, muitas vezes, errada. Em vez de reforçar o jornalismo rigoroso, isento e independente – aquele que poderia distinguir o Expresso e a SIC no ruído informativo –, optou-se por atalhos fáceis. A dependência de negócios paralelos, os alinhamentos subtis (ou nem tanto) com os poderes instalados e a complacência com agendas políticas esvaziaram de sentido aquilo que um dia foi o seu maior trunfo: a credibilidade.

    Balsemão parece não ter percebido que o seu nome, por mais prestígio que tenha acumulado no passado, não bastava para segurar o futuro. Um jornal ou um canal de televisão não vive da reputação passada, mas sim da confiança renovada todos os dias junto dos seus leitores e espectadores. Sem confrontar o poder político, sem independência em relação aos negócios e às pressões, o jornalismo torna-se apenas mais um instrumento de propaganda ou de entretenimento disfarçado.

    A Impresa, que podia ter liderado um novo paradigma de jornalismo sério e combativo em Portugal, preferiu o conforto das redacções domesticadas, das audiências fáceis e das alianças tácitas com quem manda. E nessa escolha reside a verdadeira queda do “anjo” Balsemão: não por corrupção moral ou por cedência consciente, mas por uma incapacidade de entender que sem verdade, não há jornalismo que resista.

    Francisco Pinto Balsemão, em 2023, aquando do seu doutoramento ‘honoris causa’ pela Universidade Lusófona.

    Hoje, o Expresso já não é lido como antes. A SIC já não inquieta quem governa. E a Impresa, que foi exemplo, é agora apenas mais um grupo de comunicação social, à deriva entre as dívidas, os interesses e a irrelevância crescente. Balsemão deu ao país uma grande imprensa, mas não percebeu que um império só dura enquanto for construído sobre a confiança, não sobre um nome. A crise da Impresa, que arrasta a SIC, é um, colapso iminente por erros estratégicos.

    E um anjo que cai, por mais títulos e medalhas que traga no peito, não deixa rasto de luz. Apenas um aviso: a credibilidade é tudo. E sem ela, não há futuro. E ele não merecia, aos 87 anos, este presente.

  • Montenegro, ou a vitória dos valdevinos

    Montenegro, ou a vitória dos valdevinos


    Portugal é, há muito, um terreno fértil para o florescimento de valdevinos. Não nos enganemos com a suavidade do termo: valdevinos são, na substância, os artífices das pequenas e grandes vigarices da nossa vida pública, indivíduos que fazem da arte de iludir e beneficiar-se do erário público um modo de vida respeitável — ou, pelo menos, tolerado. Mas o caso de Luís Montenegro eleva esta triste linhagem a um novo patamar, um grau superior de desfaçatez e de desprezo pela ética republicana e democrática.

    Aquilo que agora sabemos – e já não se pode negar – é que o ainda primeiro-ministro criou, em 2020, uma empresa de consultoria, a Spinumviva, sem rosto nem corpo, sem escritório conhecido (a sede era na casa de Montenegro), sem uma página electrónica onde se pudesse ler sequer uma linha da missão ou qualquer descrição de serviços para angariação de clientes. Não há registo de empregados, nem de qualquer estrutura que mereça o nome de empresa. No entanto, esta ‘entidade-fantasma’ facturou mais de 650 mil euros em dois anos e margens operacionais absurdamente elevadas, como o PÁGINA UM revelou em primeira mão em 16 de Fevereiro, antes da outra imprensa. Continuou a facturar mesmo após Montenegro assumir a liderança do Governo. E só após semanas de hesitações, meias verdades e omissões é que se ficou a saber quem eram os seus clientes, por revelações da imprensa: entre outros, empresas como a Solverde e a Rádio Popular, cuja dimensão dispensa apresentações, mas cuja real necessidade de serviços de “consultoria” de Montenegro permanece uma incógnita para qualquer espírito minimamente exigente.

    Noutros tempos, noutras geografias políticas, este simples facto seria motivo mais do que suficiente para a demissão de um primeiro-ministro, e aquilo que deve causar admiração é ter sido necessário uma moção de confiança no meio do circo parlamentar. Não porque tivesse sido provado algum ilícito penal – embora isso possa ainda vir a acontecer -, mas porque em democracia se exige que os governantes não apenas sejam sérios, como também o pareçam.

    Um homem que, de forma obscura e opaca, com as suas responsabilidade, cria e depois mantém uma empresa familiar sem qualquer lastro, apenas para receber avenças por serviços que ninguém consegue explicar ou justificar, não pode ser primeiro-ministro de um país que se pretenda civilizado e europeu.

    A questão de fundo não é, reitere-se, se Montenegro cometeu um crime. A questão é de decência e de respeito pelas regras mínimas da ética pública. Se a Spinumvia fosse uma sociedade reconhecida no mercado, com equipa consolidada, provas dadas e resultados publicamente conhecidos, poderíamos, talvez, admitir que Montenegro estava apenas a exercer a sua actividade de consultor com dignidade. Mas não. Trata-se de uma microempresa familiar – cujos beneficiários são os seus filhos e a sua mulher – criada para canalizar rendas e avenças, funcionando como veículo de oportunidades que só o conhecimento de bastidores e a influência política permitem captar. E jamais saberíamos para o que viria a servir no futuro. Aliás, basta observar o caso Manuel Pinho.

    text

    Que a Solverde ou a Rádio Popular tenham sentido necessidade de contratar uma empresa sem rosto, sem currículo e sem presença no mercado para a prestação de serviços de consultoria deveria, por si só, levantar as maiores suspeitas. Que Montenegro não tenha visto neste arranjo qualquer inconveniente ético, e tenha continuado a esconder os clientes semanas a fio, revela uma preocupante falta de noção sobre o que é ser governante em democracia.

    Num país onde a democracia estivesse plenamente consolidada, a demissão de Montenegro seria um sintoma de saúde institucional. Não haveria drama, nem precipício, nem vácuo de poder: o PSD escolheria outro líder, o Governo prosseguiria com outro rosto, e os cidadãos sentir-se-iam minimamente protegidos pela exigência ética imposta aos seus representantes. Mas o que assistimos é precisamente o contrário.

    No seio do próprio PSD, não houve uma única voz de peso que se erguesse para contestar a manutenção de Montenegro na liderança. Com a única e paradoxal excepção de Ângelo Correia, ninguém se mostrou incomodado com a degradação ética a que o partido foi submetido. Mais grave ainda: nem sequer se colocou a hipótese de que Montenegro pudesse ser substituído por outro social-democrata no Governo, ou que para as eleições antecipadas de Maio fosse escolhido outro candidato. O silêncio cúmplice do partido e o amolecimento da opinião pública revelam que, no Portugal de hoje, o padrão de exigência ética dos eleitores e dos eleitos atingiu um dos seus pontos mais baixos.

    De resto, a forma como a imprensa dominante tem abordado o caso – ora relativizando, ora desviando o foco para outros temas -, e como as sondagens continuam a projectar Montenegro como potencial vencedor, deveria preocupar qualquer cidadão que se preze. Não há um sobressalto cívico. Não há uma indignação genuína. A banalização da promiscuidade entre política e negócios atingiu tal ponto que um primeiro-ministro apanhado em esquemas obscuros de avenças familiares não só se mantém em funções, como ainda é visto como vencedor provável das próximas eleições.

    Se Montenegro vencer as eleições de Maio, será uma vitória dos valdevinos. Será a consagração pública de um modelo de fazer política que permitirá aos governantes criar empresas de fachada para canalizar rendas, disfarçar negócios e beneficiar de ligações de bastidores sem qualquer escrutínio efectivo. Será um salvo-conduto para que, no futuro, qualquer político possa fazer o mesmo, escondendo os clientes, omitindo os fluxos financeiros, e depois, apanhado em flagrante, alegar que está tudo bem.

    A democracia portuguesa está a ser reduzida a uma Economia de Estado onde se alimentam empresas, empresários e políticos que se confundem entre si. O Estado, com as autarquias, continuam a ser o maior motor da Economia nacional – pelo menos para uma franja empresarial relevante –, mas quando se analisam os contratos públicos, os ajustes directos e os espectáculos efémeros de que se enche o calendário, torna-se evidente que se pratica cada vez mais um jogo de pão e circo — expressão que, segundo os manuais de História, provém da Roma decadente e corrupta dos imperadores que compravam o apoio do povo com grão e divertimentos. Por outro lado, as empresas privadas querem sempre estar de bem com o poder e os políticos, mesmo que não tenham tenham contratos públicos, porque a ‘mão do Estado’ decide na regulação, nas concessões, na fiscalização e aprovação de financiamentos.

    O problema é que, em Portugal, o pão já escasseia e o circo já nem sequer diverte. As grandes obras são inauguradas com pompa e circunstância para meia dúzia de beneficiários, os eventos culturais e festivais servem para encher os bolsos das mesmas empresas do costume, e se há concursos públicos são muitas vezes desenhados para um dos concorrentes ‘pré-seleccionado’ possa vencer. Os benefícios aos cidadãos, quando existem, são residuais. Hoje, há uma rede de cliques e clientelas que gravita em torno do poder.

    Por muito que me custe reconhecê-lo, e mesmo admitindo que as alternativas não sejam mais virtuosas, uma vitória de Luís Montenegro nas eleições de Maio seria um péssimo sinal para a democracia portuguesa. Seria a legitimação do valdevinismo como método legítimo de ascensão e manutenção no poder. E se um país aceita como normal que o seu primeiro-ministro tenha um passado e um presente de opacidade e promiscuidade, então é porque está disposto a aceitar tudo.

    Num tempo em que, com meio século de democracia, a dar sinais de doença, se exigiria cada vez mais rigor, transparência e ética na governação, Portugal arrisca-se a ser olhado como um país que não aprendeu as lições básicas. Se Montenegro permanecer no poder, não será por mérito seu, mas pelo colapso moral de uma sociedade que se habituou a tolerar tudo. E um povo que tolera tudo, arrisca-se a perder tudo – inclusive a dignidade.

  • O pedantismo cientifista de David Marçal, sacerdote da Verdade Absoluta

    O pedantismo cientifista de David Marçal, sacerdote da Verdade Absoluta


    Sempre que leio no Público as crónicas de David Marçal, vejo ali um cruzado da Ciência, um paladino da racionalidade contra as hordas de bárbaros negacionistas. No entanto, ao contrário do que prega, Frei Marçal não combate o obscurantismo com argumentos rigorosos nem com método científico, mas com enviesamento ideológico e um irritante pedantismo que roça a arrogância e a boçalidade, temperado com um desdém dogmático que faz lembrar os inquisidores do Santo Ofício.

    No seu texto de hoje, glosa sobre um surto de sarampo nos Estados Unidos, parafraseando, de forma acérrima, o lema trumpista. “Tornar o sarampo grande outra vez” – o título do artigo de opinião – serve de mote para David Marçal culpabilizar R.F.K. Jr. por tudo e um par de botas. De facto, encontra-se em curso um surto de sarampo em 12 jurisdições norte-americanas: Alasca, Califórnia, Flórida, Geórgia, Kentucky, Nova Jérsia, Novo México, Nova Iorque, Pensilvânia, Rhode Island, Texas e Washington. Houve já uma morte confirmada e outra em investigação. As mortes não são normais, independentemente de estatisticamente serem irrelevantes, mas estaremos perante algo incontrolável? Uma crise de saúde pública causada pelo simples facto de Trump e R.F.K. Jr. terem assumido o poder nos Estados Unidos há menos de dois meses?

    Vejamos. O Centers for Disease Control and Prevention (CDC) – que mantém a mesmíssima abordagem e acompanhamento sobre os perigos do sarampo e sobre a vacinação – aponta este ano para 222 casos desde 1 de Janeiro até ontem, dos quais 38 resultaram em hospitalizações. Podemos ver isto em duas perspectivas. Em termos relativos, estes 222 casos nos Estados Unidos corresponderiam a 7 casos em Portugal, considerando a diferença populacional. A nossa Direcção-Geral da Saúde não costuma revelar informação detalhada da monitorização de sarampo em Portugal, mas posso adiantar que, há um ano, entre 1 de Janeiro e 5 de Maio, tinham sido contabilizados 27 casos. Ajustando para a população das terras do Tio Sam, estes 27 casos nacionais equivalem a 860 casos nos Estados Unidos. Não me recordo de ter lido David Marçal a escrever sobre os surtos de sarampo em Portugal em 2024.

    Além disso, convém referir que o sarampo é, cada vez mais – e em virtude também da vacinação –, uma doença benigna em países mais modernizadas, embora ainda longe de estar erradicada. E nos Estados Unidos, onde os diversos Governos estaduais têm um papel determinante, a ocorrência de surtos depende de muitos factores, sendo evidente que os mais vulneráveis são as pessoas não vacinadas. Se olharmos para o site do CDC, essa evidência é ali exposta para o ano de 2025, com R.F.K. Jr., tal como nos tempos de Biden e no primeiro mandato de Trump.

    Aliás, é curioso reparar que o número de casos de sarampo este ano ainda é inferior aos de 2024 – e não é certo que seja ultrapassado – e muitíssimo inferior aos valores de 2014 (667 casos, no segundo mandato de Barack Obama) e de 2019 (1274 casos, no primeiro mandato de Trump). Convém referir que, tanto num período como no outro, o responsável máximo do National Institutes of Health (NIH) era Anthony Fauci. Parece-me que apenas estes simples dados desmontam, e estragam, o tão jeitoso título de David Marçal.

    Casos de sarampo por ano nos Estados Unidos desde 2000. Fonte: CDC.

    Porém, onde Marçal melhor regurgita o seu ‘ódio’ quase irracional a R.F.K. Jr. – que há duas dezenas de anos era considerado um ídolo das correntes ambientalistas pela sua tenaz luta como advogado – é na tese de ser ele “um teórico da conspiração antivacinas”. E para tal, conta Marçal um episódio de um surto de sarampo em Samoa após erros na administração de vacinas terem causado mortes. Esquecendo, ou querendo esquecer, Marçal, que a Farmacopeia não é uma história imaculada, o paladino da Ciência chega a culpar R.F.K. Jr. de ser co-responsável por 83 mortes naquele país da Polinésia, por uma doença que a OMS diz ser fatal, por ano, para mais de 100 mil pessoas. Em 2023, foram 107.550 pessoas, praticamente todas em países subdesenvolvidos.

    Mas é na forma como David Marçal resume uma carta de R.F.K. Jr., em Novembro de 2019, ao primeiro-ministro de Samoa que se mostra o tipo de cientista que é – ou, melhor, que não é. Diz David Marçal que o actual secretário de Estado da Saúde norte-americano “culpa as vacinas pelas mortes por sarampo” e que a “carta de quatro páginas é um absoluto delírio” – contudo, o delírio está do seu lado.

    Lendo a carta de R.F.K. Jr., haveria espaço para rebater factualmente alguns dos seus argumentos – algo que um verdadeiro defensor da Ciência deveria fazer. Mas isso não é coisa para David Marçal – e outros que, durante a pandemia, ‘arrotaram’ certezas insofismáveis –, que enveredou pelo caminho da deturpação e do achincalhamento, reduzindo tudo a um “absoluto delírio” e a um “chorrilho de argumentos pseudocientíficos”.

    A táctica de David Marçal é sempre a mesma: simplifica-se ao extremo a posição do ‘adversário’, amputando-lhe qualquer nuance ou legitimidade, para depois a ridicularizar como se fosse produto de uma mente lunática. “Dois dias depois, R.F.K. Jr. escreveu ao primeiro-ministro de Samoa, na sua qualidade de presidente da Children’s Health Defense, culpando as vacinas pelas mortes por sarampo no país”, escreveu Marçal. A afirmação é uma mentira objectiva. Na sua carta, Kennedy nunca culpa as vacinas pelas mortes.

    A carta não é um panfleto antivacinação, não incita ao medo irracional das vacinas, nem exorta os samoanos a rejeitarem a imunização. Aquilo que R.F.K. Jr. faz é levantar questões sobre a relação entre a vacina MMR da Merck e a crise sanitária em Samoa, propondo hipóteses que deveriam ser cientificamente avaliadas. Ele sugeriu que se investigasse a imunidade materna conferida pela vacina, que se determinasse se a vacina estava a cobrir todas as estirpes do sarampo circulantes e que se examinasse se a vacinação em massa poderia ter desencadeado infecções por estirpes vacinais.

    Estes são argumentos que podem ou não ter mérito científico – e é assim que se deve tratar a Ciência, como um debate aberto, e não como um dogma imutável –, mas em nenhum ponto R.F.K. Jr. se opõe à vacinação per se. Aquilo que ele sugere é precisamente uma abordagem científica: estudar os dados, sequenciar geneticamente os vírus, identificar as variantes em circulação, analisar a eficácia das vacinas num contexto complexo, não assumindo que sejam consideradas sacrossantas.

    David Marçal

    Se David Marçal fosse um cientista a sério – e não um propagandista travestido de divulgador –, responderia a todos os argumentos de R.F.K. Jr. com números, estudos e dados. Mas nada disso faz – às tantas, dirá que tem mais que fazer. E assim, em vez disso, opta pelo caminho mais fácil: a caricatura.

    Este modus operandi de ataque ao ‘inimigo’ é recorrente – e viu-se bem na pandemia da covid-19. David Marçal nunca debate – destrói. Nunca argumenta – desqualifica. Nunca analisa – ridiculariza. Para ele, não há espaço para dúvidas ou para a revisão de conceitos. O palco é-lhe oferecido sem contestação – e ele ergue-se convencido da vitória e da razão.

    Para Frei Marçal, a Ciência é um santuário de verdades absolutas – como eram, por exemplo, os verhonhosos relatórios epidemiológicos do Instituto Superior Técnico –, e ele, um Sumo Sacerdote que pode decretar quem é herege e quem é iluminado. O problema é que esta postura não tem nada de científica. A Ciência verdadeira não se faz com certezas dogmáticas, mas com questionamento constante, com hipóteses que devem ser testadas, refutadas ou confirmadas pela experiência e pelos dados.

    A ironia disto tudo: se há alguém realmente a praticar a pseudociência, é David Marçal. A pseudociência não é apenas acreditar em teorias da conspiração e negar evidências – é também a recusa do debate, o uso de argumentos de autoridade em vez de evidências, a manipulação retórica para eliminar opositores sem os confrontar directamente. R.F.K. até poderia estar a fazer pseudociência, mas Marçal quer impor-nos a anti-Ciência, quer transformar a Ciência em dogma. Aquilo que ele pratica não é divulgação científica – é uma propaganda científica enviesada, onde o nome da Ciência é usada, e abusada, não para esclarecer, mas para justificar dogmas e atacar dissidências.

    E o efeito deste cientificismo autoritário é exactamente o contrário daquilo que ele quer fazer passar. David Marçal acredita que, ao ridicularizar os críticos, está a proteger a Ciência do obscurantismo. Mas, na verdade, está a afastar as pessoas da Ciência.

    Quando a Ciência se apresenta como um dogma inquestionável, as pessoas começam a desconfiar dela. Quando os defensores da ciência se comportam como inquisidores, as pessoas começam a procurar alternativas. Quando o debate é substituído pela arrogância, a credibilidade científica é corroída.

    Sejamos claros: a vacinação é uma das maiores conquistas da Medicina moderna, mas a confiança na vacinação não se impõe como se o hábito fizesse o monge; não se impõe com escárnio e insultos – conquista-se com transparência, com comunicação clara e honesta, com abertura ao debate. O problema de Marçal, e de tantos outros cruzados do cientificismo, é que não percebem que a confiança na Ciência não pode ser imposta à força; deve convencer, e não vencer; as pessoas devem ser conquistadas através do rigor, da humildade e da disponibilidade dos cientistas para responderem a todas as dúvidas – mesmo as que parecem incómodas ou possam ser obtusas.

    Se R.F.K. está errado, então prove-se que está errado. Mas prová-lo exige mais do que epítetos e ridicularizações – exige Ciência a sério. E mal seria se, estando ele errado, não existissem (como acho que existem) mecanismos numa democracia para evitar que ele imponha a sua opinião errada a toda a sociedade. Marçal pensa que isso se faz com marketeers da Ciência com tiques de inquisidores. Na verdade, a Ciência não precisa de tipos como David Marçal com tiques de inquisidor; precisa apenas de cientistas, que errem por lapso e acertem por sabedoria, e que, na prudência, tenham a humildade de reconhecer que até os seus acertos podem, afinal, ser erros.