Categoria: Editorial

  • Quem tem medo da Inteligência Artificial no Jornalismo?

    Quem tem medo da Inteligência Artificial no Jornalismo?


    Houve um tempo em que os pintores eram também alquimistas, misturando substâncias raras e perigosas para criar os seus próprios pigmentos. Um azul profundo exigia a trituração minuciosa do lápis-lazúli, uma pedra semipreciosa trazida do Oriente, e um branco puro requeria chumbo submetido a um processo químico prolongado e tóxico. O pintor não era apenas um artista: era um químico improvisado, um operário da sua própria paleta, um artesão obrigado a desviar-se do que realmente importava – o acto de pintar – para assegurar que as suas cores tivessem a intensidade e a durabilidade desejadas.

    Com o tempo, essa necessidade desapareceu. A evolução dos pigmentos sintéticos permitiu que os artistas pudessem concentrar-se naquilo que realmente importava: a concepção e a execução das suas obras. E, no entanto, a arte não perdeu nada da sua profundidade nem da sua beleza. Pelo contrário, com o fardo da manufactura das cores retirado dos seus ombros, os pintores puderam explorar novas técnicas, novos estilos, novas formas de expressão. Michelangelo, Caravaggio, Rembrandt, Velázquez, Goya, van Gogh ou Cézanne não teriam sido piores artistas se tivessem tintas pré-fabricadas. Pelo contrário, poderiam ter-se dedicado ainda mais à sua arte sem os incómodos da elevada toxicidade das tintas que afectaram (e mataram) muitos pintores. Ou a dedicarem mais tempo a simplesmente contemplar a vida. O génio não reside no método, mas na visão.

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    Um paralelismo se pode fazer com todos os avanços tecnológicos – que só o são verdadeiramente quando criam rupturas, quando desconstroem paradigmas estabelecidos e impõem novas formas de pensar, produzir e interagir com o mundo. De nada serve uma inovação que apenas aprimora o que já existe sem desafiar a estrutura vigente; o verdadeiro avanço é aquele que obriga a Humanidade a reconsiderar o que tomava como certo, abrindo caminho para novas possibilidades e, inevitavelmente, novas resistências.

    A Inteligência Artificial, democratizada em aplicativos, mais do que uma inovação é uma revolução, que, em todo o caso, causa compreensivas apreensões e dilemas. Por exemplo, no caso do Jornalismo, há quem tema que as ferramentas de Inteligência Artificial transformem a informação num produto padronizado, numa sequência interminável de notícias indistintas, redigidas sem alma, sem contexto, sem aquela centelha que distingue um jornalista talentoso de um vulgar reprodutor de comunicados de imprensa.

    Mas este receio, embora natural, ignora a essência do verdadeiro Jornalismo e a perspicácia e espírito crítico dos leitores a médio e longo prazo. Porque, tal como um mau pintor não se torna um mestre por ter acesso às melhores e pré-fabricadas tintas, um mau jornalista não se tornará excelente apenas porque tem à sua disposição um assistente de inteligência artificial.

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    Obviamente, é inegável que a Inteligência Artificial levanta questões prementes sobre ética e controlo da informação. Quem programará as ferramentas que auxiliam os jornalistas? Com que critérios serão filtrados os dados e seleccionadas as fontes? Ora, sabemos que o risco de enviesamento algorítmico é real, e um jornalismo excessivamente dependente de automatismos pode tornar-se vulnerável à censura subtil e à manipulação encapotada. Mas a comodidade da tecnologia não pode ser desculpa para se abdicar do escrutínio editorial humano, sob pena de transformarmos o jornalismo numa ilusão de objectividade, quando, na verdade, apenas reflectirá os preconceitos embutidos nos sistemas que o regem.

    A Inteligência Artificial não substitui a inteligência humana – reforça-a. Potencia-a. Estimula-a. Aquilo que separa o grande jornalista do medíocre não é a ferramenta, mas a forma como a utiliza. A Inteligência Artificial pode estruturar dados, sintetizar informações dispersas, organizar fontes, até sugerir ângulos de abordagem, mas não pode compreender aquilo que torna uma história realmente relevante. Não pode substituir o faro de um repórter experiente, a intuição de quem percebe que a verdadeira notícia não está na declaração oficial, mas naquilo que não foi dito. Não pode replicar a ironia subtil de um grande cronista, nem a acutilância de um editorial bem elaborado. Pode, no entanto, libertar os jornalistas de tarefas mecânicas e repetitivas, permitindo que se concentrem naquilo que realmente importa: investigar, interpretar, analisar.

    Tal como no xadrez, o jogo não termina simplesmente quando os programadores conseguem construir um computador capaz de vencer um campeão mundial. Pelo contrário, a Inteligência Artificial cria sim, com essa vitória, um novo desafio: o de superar a própria máquina, de aprender com ela, de atingir um novo nível de jogo, antes inimaginável. O jornalismo não é diferente. Se o objectivo fosse apenas o de produzir notícias padronizadas, os algoritmos já o fariam sem qualquer necessidade de supervisão humana.

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    Mas a questão não é essa. O verdadeiro desafio não está em criar máquinas que produzam textos indistintos, mas sim em proporcionar aos jornalistas as ferramentas para que possam elevar a sua arte a um nível superior.

    O perigo do Jornalismo jamais estará na inteligência artificial, mas na mediocridade humana. O jornalismo, como qualquer forma de criação intelectual, depende da capacidade crítica, da curiosidade, do espírito analítico. O mau jornalismo não nasce da automação, mas da preguiça, da complacência, da falta de rigor e de ética. Se há algo a temer no Jornalismo, não é o uso da Inteligência Artificial, mas sim o uso passivo e acrítico que dela se possa fazer. Se os jornalistas aceitarem que a máquina pense por eles, se se limitarem a reproduzir textos gerados automaticamente sem questionar, sem interpretar, sem acrescentar valor, então não será a Inteligência Artificial a culpada pelo declínio do Jornalismo – mas sim os próprios jornalistas.

    Assim, tal como os pintores do passado souberam tirar partido dos avanços da química sem comprometer a sua identidade artística, também os jornalistas – que já contaram com o auxílio da máquina de escrever, dos gravadores, da rádio, da televisão, da Internet e de inúmeras outras ferramentas – devem encarar as novas tecnologias não como substitutos da sua essência profissional, mas como instrumentos que potenciam a acuidade da investigação, a profundidade da análise e a clareza da comunicação. Até porque não são as tecnologias que interferem com o rigor e a independência crítica que definem o verdadeiro jornalismo.

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    O grande jornalista do futuro não será aquele que rejeita a tecnologia por medo ou por atávico purismo, mas sim aquele que a domina, que a molda aos seus propósitos, que a usa para expandir os limites daquilo que é possível fazer. A Inteligência Artificial não apagará o talento, a intuição ou a visão crítica – será um estímulo para que cada jornalista vá mais longe, investigue melhor, escreva com mais profundidade e precisão.

    Por isso, o jornalismo do futuro não será feito por máquinas; continuará a ser feito pelos humanos – talvez menos, certo –, por aqueles e aquelas que souberam integrar a Inteligência Artificial no seu processo criativo, tal como os mestres da pintura aprenderam a usar os pigmentos modernos sem perder o toque de génio que distingue uma obra-prima de um exercício técnico. O Jornalismo, afinal, é uma arte. E como em qualquer arte, o que conta não é a ferramenta – é quem a utiliza.

  • O Código Deontológico e a contradição do contraditório

    O Código Deontológico e a contradição do contraditório


    O Código Deontológico do Jornalista (CDJ) contém uma incongruência flagrante que tem servido de base para interpretações enviesadas e, mais grave ainda, para a distorção da própria prática jornalística: a imposição de que “os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso”. Esta formulação, que à primeira vista pode parecer um princípio equilibrado, esconde uma armadilha lógica: a ideia de que a comprovação dos factos depende da audição das partes envolvidas, como se a verdade jornalística só pudesse emergir de um processo dialéctico entre os visados.

    Ora, os factos existem independentemente da sua comprovação pelas partes. Um documento oficial que ateste um desvio de fundos, um contrato que revele tráfico de influências ou um relatório forense que demonstre um erro médico não precisam da validação dos protagonistas da história para serem verdadeiros. A verdade não se negocia, nem precisa de um carimbo de autenticidade de quem tem um interesse directo na narrativa.

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    A exigência do contraditório como critério universal para a comprovação dos factos cria um paradoxo: por um lado, exige-se ao jornalista rigor na apresentação de provas; por outro, obriga-se o mesmo jornalista a conceder espaço à parte interessada para que esta relativize, negue ou distorça a informação documentada. Assim, um facto objectivamente comprovado pode ser transformado num “alegado facto” apenas porque uma das partes o contesta. A verdade passa a ser condicionada pela disposição dos intervenientes em confirmá-la ou negá-la, convertendo-se num jogo retórico em vez de uma questão factual.

    Além disso, a formulação do código deontológico é ambígua e contraditória. Diz-se que os factos devem ser comprovados, mas o critério subsequente (ouvir as partes) não é uma via de comprovação, mas sim um procedimento de contextualização. Factos não se tornam mais verdadeiros porque as partes os corroboram, nem mais falsos porque os negam. Esta formulação, ao misturar um princípio objectivo (a necessidade de comprovar factos) com uma prática jornalística circunstancial (a audição das partes), resulta numa incoerência conceptual.

    O verdadeiro jornalismo assenta na busca pela verdade através de métodos rigorosos: cruzamento de fontes, análise documental, investigação aprofundada. O contraditório pode ser um elemento útil nesse processo, mas não pode ser uma condição obrigatória para validar o que já está demonstrado. Quando um jornalista possui documentos sólidos que sustentam uma investigação, o contraditório não serve para “comprovar” nada – apenas para permitir que a parte visada apresente uma defesa.

    O que é um facto? A participação de André Carvalho Ramos em formações de media training? Não! Para a ERC só é um facto quando se concede um ‘direito ao contraditório’, que permitisse André Carvalho Ramos simplesmente negar…

    O problema é que a ERC e outros reguladores, ao basearem-se nesta falha estrutural do Código Deontológico, transformaram o contraditório numa regra cega, aplicável acriticamente a qualquer contexto, como mais uma vez se verifica numa recentíssima deliberação contra o PÁGINA UM por causa de ‘um jornalista promíscuo’ da CNN Portugal, André Carvalho Ramos, não ter sido ‘ouvido’. O dito jornalista aceitou ser formador de media training organizado pela empresa onde o filho de António Costa é director-geral. A confirmação desse facto, além de estar no site do curso, foi comprovada numa notícia do jornal Eco em Setembro do ano passado e, cereja em cima do bolo, reconfirmada pelo próprio André Carvalho Ramos no LinkedIn [se, entretanto, ele pensar na ‘chico-espertice’ de apagar o registo, está aqui para memória futura].

    Mas, para a ERC, apesar do nome de André Carvalho Ramos continuar a estar no site do curso (que não tem características académicas, por ausência de ECTS, logo é um simples media training, incompatível com a profissão de jornalista), existe um ‘sacrossanto’ direito ao contraditório para eliminar os factos. Na prática, isto significa que a verdade factual pode ser contestada não com provas, mas com declarações de quem tem interesse em desmenti-la. Assim, um mecanismo que deveria servir para enriquecer a investigação jornalística passou a ser um expediente para diluir a responsabilidade de quem é alvo de uma reportagem.

    [Já agora, se se quiser escrever, como já se escreveu, que André Carvalho Ramos continua a constar nos formadores do mesmo curso a iniciar em Outubro deste ano, também se deveria dar-lhe um ‘direito ao contraditório’, ou mandar-se a ERC às malvas?]

    Cartaz do curso de media training (sem ECTS, portanto sem créditos universitários), organizado pela GCI Media e Universidade Europeia. Como não tem créditos universitários nem sequer se pode assumir que exista corpo docente; apenas formadores.

    Se o jornalismo quiser recuperar a sua função essencial – a de expor factos com base na melhor evidência disponível – tem de rejeitar esta visão burocrática e estéril do contraditório. O Código Deontológico dos Jornalistas precisa de ser revisto, clarificando que a comprovação dos factos não depende da aceitação das partes interessadas, mas da força das evidências apresentadas.

    O jornalista, com a sua credibilidade e seriedade – sem ingerências de uma ERC, que não aprecia ser investigada e se ‘vinga’ do PÁGINA UM sempre que lhe dão uma oportunidade -, é o garante de um serviço público essencial, e não deve permitir que o seu trabalho seja um simples palco para relativismos factuais onde a verdade depende sempre de quem tem direito de antena.

  • Jornalismo: o contraditório vale mais do que os factos?

    Jornalismo: o contraditório vale mais do que os factos?


    O jornalismo é, antes de tudo, um exercício de rigor e de compromisso com a verdade factual. E de confiança com os leitores. O jornalismo verdadeiro e íntegro não é uma caixa de ressonância para declarações convenientes, nem uma plataforma para relativizações artificiais que, sob a capa da imparcialidade, apenas servem para diluir evidências concretas. Contudo, nos últimos tempos, tem-se tentado impor uma ideia perniciosa ao exercício do jornalismo: a obrigatoriedade de um alegado “direito ao contraditório”, como se o dever de comprovar factos fosse substituível pela necessidade de garantir espaço a quem se sente desconfortável com a sua revelação.

    A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), que teoricamente deveria defender a liberdade editorial da imprensa, volta e meia incide as suas deliberações sobre este falso problema, ao considerar que um jornal deve conceder destaque a todas as opiniões em pé de igualdade, mesmo quando os factos noticiados se sustentam em provas documentais inequívocas. Sucedeu agora, mais uma vez, com um jornalista promíscuo da TVI, André Carvalho Ramos, que teve – e tem agora de novo – o seu nome associado a uma formação (não-universitária) de media training dirigida a gestores e executivos, organizada por uma agência de comunicação dirigida pelo filho deo ex-primeiro-ministro António Costa.

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    A ERC censurou o PÁGINA UM por, apesar das evidências documentais, achar que alegado “direito ao contraditório” deveria ter sido respeitado numa investigação que envolvia três dezenas de jornalistas, alguns dos quais (14) até foram identificados pelo próprio reguador.

    A exigência do “direito ao contraditório” é particularmente absurda quando aplicada a este caso concreto: uma peça sobre promiscuidade jornalística, onde cada menção é acompanhada por documentos que sustentam as ligações de jornalistas a entidades que deveriam escrutinar.

    Ou seja, apesar de o trabalho se basear em evidências objectivas, a ERC decide insistir que deveria ter sido dado espaço a cada um dos visados para apresentar uma versão alternativa – ainda que não haja margem para interpretação de documentos e provas que atestam o que foi relatado. Os factos existem, mas podem ser negados ou esvaziados por uma simples declaração dos visados.

    Esta ideia de “direito ao contraditório” aplicado de forma absoluta ao jornalismo não encontra sequer sustentação na Lei da Imprensa nem no Código Deontológico dos Jornalistas. Aquilo que tanto a legislação como o código exigem é que os factos sejam comprovados, ouvindo as partes atendíveis – e deduz-se que essa ‘audição’ serve para confirmar os factos, e nem tal implica que se tenha que transpor todos os comentários. Aquilo que a lei e o código não dizem é que cada notícia tenha de ser um palco de encenações onde qualquer denunciado tenha a oportunidade de relativizar ou distorcer uma verdade documentalmente sustentada.

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    Nem a lei nem o código dizem, em parte alguma, ser uma obrigação de um jornalista é ouvir todos os envolvidos. Essa é uma escolha editorial, sob a qual pode pender responsabilidade – mas é uma escolha que jamais pode implicar a visão maniqueísta da ERC: há contraditório, há rigor; não há contraditório, não há rigor. Note-se o absurdo: invente-se um facto e oiça-se todas as partes, a ERC dá o OK; comprovem-se facto e decide-se se se mostra relevante ouvir todas as pessoas, e a ERC censura.

    A ERC tem de terminar com este tipo de ingerências editoriais, até porque a sua visão é enviesada, e pouco lhe importa a veracidade dos factos. Aquilo que se estabelece é que um órgão de comunicação social tem o dever de assegurar a veracidade das informações publicadas e que os factos apresentados sejam suportados por elementos objetivos – o que, num trabalho baseado em documentos, é plenamente garantido, como tem sido apanágio do PÁGINA UM.

    A imposição editorial feita pela ERC sobre esta matéria do “contraditório” não apenas representa uma interferência indevida na liberdade editorial como também pode distorcer a própria percepção do leitor. Se um jornalista revela um facto sustentado por provas documentais e é obrigado a publicar uma resposta de alguém que, sem desmontar a prova, apenas contesta ou nega o seu conteúdo, cria-se artificialmente uma dúvida onde esta não deveria existir. O jornalismo não pode ser refém de uma falsa imparcialidade, que dá o mesmo peso ao documento que prova e à declaração que desmente sem fundamento. O jornalista é um mediador e intérprete da realidade; não um mero pé de microfone.

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    Se levássemos esta lógica ao extremo, seria necessário, por exemplo, que:

    • Sempre que se noticiava uma acusação judicial, fosse obrigatória a audição do arguido por parte do jornalista, independentemente das provas nos autos.

    • Quando um sindicato denunciasse uma política ou medida do Governo, o mesmo espaço teria de ser dado ao Governo, sob pena de “falta de contraditório”.

    • Sempre que uma peça se baseasse em estatísticas criminais, se tivesse de ouvir simultaneamente polícias e ladrões para dar “as duas versões”.

    Este absurdo revela a falácia da argumentação: não é função do jornalismo criar um equilíbrio artificial entre factos e versões. A função do jornalismo é interpretar, conferir, validar e apresentar os factos da forma mais clara e rigorosa possível, assegurando que provas físicas e documentos oficiais não sejam diluídos por declarações defensivas que apenas visam confundir o público.

    Foto: PÁGINA UM

    É importante ainda notar que o contraditório não se confunde com o direito de resposta. A Lei da Imprensa salvaguarda todas as partes, prevendo expressamente este último, permitindo que qualquer visado por uma notícia possa publicar a sua posição quando se sinta injustiçado ou prejudicado.

    O PÁGINA UM – e eu, em particular – já exerceu esse direito noutros órgãos de comunicação social; já publicámos direitos de resposta (como, aliás, nesta edição). Mas isso não significa que o jornalista tenha a obrigação prévia de lhe dar espaço na construção da notícia, sobretudo quando os factos apresentados são incontroversos e se baseiam em documentação robusta.

    A exigência da ERC não é apenas errada do ponto de vista legal e jornalístico – é também profundamente perversa na forma como condiciona o trabalho dos jornalistas. O seu efeito prático é claro: criar obstáculos para que determinadas verdades sejam ditas. Se cada jornalista souber que, para noticiar um facto comprovado, terá de gastar tempo e espaço com reações que nada acrescentam ao esclarecimento do público, a tendência natural será evitar determinados temas. E este, no fundo, parece ser o objetivo – desincentivar a investigação, protegendo aqueles que prefeririam que certos factos permanecessem desconhecidos.

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    A liberdade de imprensa não pode ser condicionada por exigências formais – melhor dizendo, artificiais – que nada acrescentam ao rigor do jornalismo. O contraditório pode ser útil e desejável em muitos casos – e o PÁGINA UM usa-o, preferindo chamar-lhe comentário -, mas a sua imposição como regra cega transformará o jornalismo numa arena de relativismo, onde a verdade dos factos é apenas mais uma “opinião” entre tantas.

    No PÁGINA UM, não caímos nesse jogo, mesmo correndo o risco de sucessivis bitates da ERC sobre a forma de deliberações que nem sequer podem ser contestadas em tribunal, porque a esse nível valem como meras opiniões, mesmo se irritantes. Uma coisa é certa e garantimos aos leitores; tudo o que publicamos como notícia é sustentado por provas. Em factos. E o jornalismo são factos, interpretações e comentários; não um palco do comntraditório.

  • Sobre o infame comunicado da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista

    Sobre o infame comunicado da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista


    O PÁGINA UM repudia com veemência as afirmações proferidas pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas (CCPJ), e particularmente do seu Secretariado, presidida por Licínia Girão, que esta tarde, ao tentar justificar um claro abuso de poder e de liberdade de imprensa no caso da (não) renovação do título da jornalista Elisabete Tavares, recorreu a um comunicado recheado de sofismas, omissões e distorções legais, que claramente demonstram má-fé, dolo e ignorância dos procedimentos administrativos de uma entidade pública. Quis, mais uma vez a CCPJ, atirar lama contra o PÁGINA UM através de mais um expediente, que por não ser o primeiro nem o segundo se desconfia não ser o último, sendo enquadráveis numa atitude de falta de transparência e de idoneidade desta entidade.

    1. FALÁCIAS LEGAIS E INTERPRETAÇÕES ENVIESADAS

    A CCPJ afirma que a revalidação de uma carteira profissional deve seguir o Estatuto do Jornalista e os regulamentos internos, como se, para o caso da jornalista Elisabete Tavares, estivesse a cumprir a lei e as normas. Não está.

    No entanto, ao longo dos anos, a renovação de carteiras profissionais de jornalistas com mais de 10 anos de experiência tem sido um procedimento rotineiro e estritamente administrativo que demora poucos dias. Na verdade, administrativamente, menos tempo que a escrita de um comunicado de 29 pontos. O bloqueio arbitrário no caso de Elisabete Tavares, e a sua retirada da base de dados dos jornalistas, demonstra um desvio à prática comum, que apenas pode ser entendido como uma retaliação contra o PÁGINA UM.

    Ademais, o prazo de 60 dias alegado pela CCPJ é do envio da carteira (física) profissional, para poder ser ostentada presencialmente pelo jornalista nas condições em que tal se mostra necessário; não se refere ao prazo obrigatório para a CCPJ proceder à renovação, ainda mais no regime simplificado para profissionais com mais de 10 anos de actividade. Nestes casos, sendo feito o requerimento, basta verificar que o jornalista cumpre esse requisito para uma renovação. Houve intencionalidade da CCPJ para deixar caducar a carteira profissional da jornalista Elisabete Tavares e, com esse expediente, eliminá-la da base de dados dos jornalistas.

    1. INCOMPATIBILIDADES FABRICADAS PARA JUSTIFICAR PERSEGUIÇÃO

    Alega a CCPJ que a eventual incompatibilidade de um jornalista deveria ser considerada no momento da renovação, contrariando a lei e aquilo que sempre tem sido prática. é completamente falso, e apenas justificável numa CCPJ presidida por uma falsa ‘jurista de mérito’, que haja possibilidade de “não renovação do título enquanto subsistir a incompatibilidade e durante os prazos de impedimento”. Primeiro, porque são procedimentos autónomos – a emissão e renovação está prevista na secção I do Decreto-Lei nº 70/2008 – e a suspensão e cassação na secção II. A cassação e a suspensão são processos administrativos distintos, que devem ser instaurados com os formalismos legais, algo que jamais foi feito.

    Qualquer incompatibilidade que suscite dúvidas deve ser tratada em processo autónomo e separado do processo de renovação, com possibilidades de defesa até trânsito, podendo chegar ao Tribunal Administrativo. Essa análise de incompatibilidades jamais pode determinar uma suspensão da renovação da carteira e muito menos a eliminação do nome do jornalista da base de dados, que sendo pública constitui a forma de qualquer pessoa conferir se determinada pessoa é jornalista.

    Além disso, a alegada e espúria incompatibilidade da jornalista Elisabete Tavares desencantada agora pela CCPJ diz respeito à moderação de um debate num congresso realizado em Março de 2022, ou seja, entre essa data e a actualidade, a CCPJ já concedeu uma renovação. O requerimento para essa renovação foi então feita em 29 de Dezembro de 2022 pela jornalista Elisabete Tavares e concedida pela CCPJ, sem qualquer pergunta, em 14 de Janeiro de 2023. Existem dúvidas sobre a má-fé da actual CCPJ?

    1. DISPARIDADE DE TRATAMENTO E O DUALIDADE DE CRITÉRIOS

    A CCPJ, ao tentar justificar a sua decisão, esquece também convenientemente que outras duas jornalistas participaram no mesmo evento que agora pretende usar contra Elisabete Tavares. Nem Teresa Silveira (do jornal Público) nem Isabel Martins (da revista Mundo Rural) tiveram, entretanto, qualquer problema com a renovação das suas carteiras. Além disso, esquece convenientemente, que em anteriores mandatos, houve jornalistas que solicitaram esclarecimentos sobre se a moderação de congressos caía nas incompatibilidades do Estatuto do Jornalismo, mesmo sendo claro que não. E a resposta da CCPJ foi que não existiam incompatibilidades? O que justifica esta dualidade de critérios? Será necessário fazer a lista das centenas de jornalistas que moderaram debates em congressos? Ou estamos apenas perante uma descarada acção para só atingir o PÁGINA UM e os seus jornalistas.

    1. MENTIRAS SOBRE O ESTATUTO DOS JORNALISTAS EM SITUAÇÃO DE RENOVAÇÃO

    A CCPJ tenta desvalorizar a gravidade do impedimento administrativo de Elisabete Tavares, com base em fundamentos ilegais, afirmando que o facto de o seu nome desaparecer da base de dados é um mero efeito técnico. No entanto, sabe-se que a ausência de nome na base de dados pode ser utilizada para criar entraves legais e administrativos ao exercício da profissão, ou mesmo fazer acusações na praça pública, algo que o PÁGINA UM não pode permitir. No ponto 28 do seu comunicado, a CCPJ tem o descaramento de confessar que este ‘desaparecimento’ causa “constrangimentos”, mas pouco se importa que tal situação suceda única e exclusivamente por sua responsabilidade. E ainda se faz de ingénua quando afirma que pode emitir “um documento comprovativo de que o pedido foi efectuado dentro do prazo e está em análise”. Então, e qual a razão para não ser feito por regra? Não há dinheiro para isso, mas há 6.000 euros para pagamento de serviços jurídicos para processar o director do PÁGINA UM?

    1. PERSEGUIÇÃO RECORRENTE E O USO DE DINHEIRO PÚBLICO PARA FINALIDADES QUESTIONÁVEIS

    Não é a primeira vez que a CCPJ, sob a liderança de Licínia Girão, adopta expedientes administrativos duvidosos para atacar o PÁGINA UM, abrindo-me até processos disciplinares sobre investigações jornalísticas em curso e fazendo mesmo queixa no Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas com recurso a expedientes pidescos. Vale lembrar sempre que Licínia Girão, que preside a uma entidade que constitui o ponto focal da lei anti-SLAPP, decidiu gastar 6.000 euros em serviços jurídicos para processar-me pessoalmente, numa acção que acabou por ser abandonada devido à pressão de vários membros. Além disso, Licínia Girão até esconde a acta do Plenário da CCPJ onde tal questão foi debatida, o que me obrigou a uma intimação, em curso, no Tribunal Administrativo de Lisboa. O uso de dinheiro público para perseguição política e pessoal é inaceitável e tem de ser devidamente investigado.

    1. RESISTÊNCIA E TRANSPARÊNCIA

    O PÁGINA UM não cederá a tácticas intimidatórias e de vitimização da CCPJ, que usa de poderes públicos e administrativos para atacar um projecto jornalístico independente, que tem incomodado os poderes e, em grande parte, também as promiscuidades na imprensa e no jornalismo. Com este caso da renovação do título da jornalista Elisabete Tavares, com um passado e um presente irrepreensíveis do ponto de vista ético e deontológico, e uma vasta e reconhecida experiência profissional, a CCPJ deseja tão-só arrastar o PÁGINA UM para o chavascal que se tem tornado o jornalismo português, para que assim não possamos manter publicamente a imagem imaculada.

    Posto isto, a CCPJ pode continuar a recorrer a expedientes mesquinhos, a comunicados inqualificáveis, mas não conseguirá abalar a nossa determinação na defesa da liberdade de imprensa. E mais: agiremos judicialmente se a renovação não for diligenciada num prazo curto ou se não for enviado comprovativo para o exercício da profissão com a imediata recolação do nome da Elisabete Tavares na base de dados dos jornalistas.

    De resto, houve em tempos alguém que defendeu que, aprestando-se o fim do exercício de um cargo, se deveria permitir que o incumbente terminasse o mandato com dignidade. No caso de Licínia Girão, a haver dignidade, então recorro ao nosso ‘cronista’ Brás Cubas: deveriam aplicar, de forma metafórica, a esta senhora um estímulo locomotor à maneira espartana.

    Uma nota final: apesar da CCPJ afirmar que nenhuma sanção se aplica a um jornal por admitir ou manter ao seu serviço um jornalista que esteja a aguardar decisão para renovação, o PÁGINA UM não publicará qualquer artigo noticioso da jornalista Elisabete Tavares enquanto a CCPJ mantiver abusiva e ilegalmente a decisão de não revalidar o seu título profissional. Aceitar que a CCPJ prolongue uma decisão é estar a aceitar um acto de abuso de poder e ‘legitimar’ atentados à liberdade de imprensa. Os membros da CCPJ – que, aliás, são jornalistas de profissão – não são os donos dos jornalistas nem estes lhes têm de prestar vassalagem.

  • É a Justiça portuguesa, estúpido!

    É a Justiça portuguesa, estúpido!


    Vivemos em Portugal há quase meio século num regime democrático, que gostamos de abrilhantar com descidas pela Avenida da Liberdade, que nos prometeu liberdade e igualdade e, pensava eu, transparência. Contudo, o cravo na lapela tornou-se mais símbolo do que substância.

    O peito de muitos continua a encher-se de orgulho com discursos comemorativos e celebrações públicas, brandindo a ameaça de tempos sombrios se os partidos populistas ascenderem ao poder, mas por baixo da retórica subsiste um sistema cada vez mais corrompido, corrompendo valores e princípios, alimentado por compadrios, nepotismos e uma cultura de opacidade que mina os fundamentos da democracia. É aqui que reside a grande tragédia do nosso país: instituições que deveriam ser o pilar de uma sociedade justa tornaram-se cúmplices da perpetuação de um poder corrupto e ineficaz. E no epicentro dessa disfunção encontra-se a Justiça.

    A democracia portuguesa gosta de se apresentar como uma das mais consolidadas da Europa – e olhe-se o desdém como se olha para os Estados Unidos, o que se torna risível –, mas na prática temos uma democracia em ponto pequeno. Não por falta de votos ou alternância política, mas pela ausência de maturidade institucional que distingue as democracias verdadeiramente funcionais das pseudo-democracias que proliferam pelo Mundo.

    Em Portugal, a transparência é uma palavra oca, usada em discursos institucionais como adorno, mas raramente praticada. A Administração Pública, politizada até à medula, opera sob a égide da “lei da rolha”, protegendo os seus interesses de grupo e bloqueando, por todos os meios possíveis, o exercício de direitos fundamentais como o acesso à informação.

    Ora, sem transparência, não há democracia. E sem uma Justiça célere e imparcial que garanta esse princípio, aquilo que temos não é um Estado de Direito, mas um estado de arbítrio. O recente episódio envolvendo o Conselho Superior da Magistratura (CSM) – numa ‘guerra jurídica’ de mais de três anos – é sintomático de uma cultura de opacidade institucional que degrada a confiança dos cidadãos nos órgãos que deveriam zelar pelo bem público.

    Quando uma entidade como o CSM recusa sistematicamente o acesso a documentos administrativos, não estamos apenas perante um problema de ineficiência ou burocracia; estamos perante um atentado ao direito à informação, ainda mais perpetrado contra jornalistas. E o cúmulo da indignidade acontece quando a mesma entidade cede apenas após uma ordem judicial, não por respeito à transparência, mas porque o tribunal ameaça tocar no bolso do próprio presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Suprema indignidade ter de se chegar a esse ponto.

    Pior é que este não é um caso isolado. No PÁGINA UM, temos acumulado, ao longo dos nossos três anos de existência, um conjunto de experiências que ilustram a sistemática recusa do Estado e Administração Pública em partilhar informações de interesse público. Desde contratos de aquisição de vacinas até processos administrativos que envolvem decisões políticas, o padrão é sempre o mesmo: a Administração Pública – que até inclui, hélas, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e a Entidade Reguladora para a Comunicação Social – utiliza todas as manhas e artimanhas legais para evitar a divulgação de documentos.

    Na maioria das vezes, somos forçados a recorrer à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) ou, mais frequentemente, aos tribunais administrativos. Estes processos, que deveriam ser céleres, tornam-se numa travessia penosa. Temos casos que se arrastam por anos a fio, como o dos contratos de aquisição das vacinas, que está há mais de dois anos em análise num tribunal administrativo. Sim, um processo de intimação, que por definição deveria ser urgente, torna-se um exercício de resistência.

    Os custos desta batalha são elevados, e não apenas no plano financeiro. Até agora, gastámos mais de 20 mil euros em batalhas judiciais, um valor diminuto mesmo assim porque contamos com o apoio generoso de advogados que praticamente trabalham pro bono. Mas pagámos já milhares e milhares de euros em taxas de justiça – supremo deboche de um Estado que beneficia da sua falta de cultura democrática.

    O desgaste emocional e o tempo consumido são incalculáveis. Entre a vontade de meter mais casos nos tribunais administrativos e a convicção de que haverá uma luta titânica de meses e anos, fico sempre com a sensação que, mesmo quando ganhamos, perdemos. Na verdade, a sociedade perde sempre.

    Aliás, no recente caso contra o CSM, é certo que conseguiremos finalmente o acesso integral aos documentos, incluindo a possibilidade de os fotografar – é uma vitória, que se aplicará a outros casos. Contudo, como reagir quando, nesta luta de três anos, de prepotências dos magistrados do CSM, mesmo ganhando acabamos “condenados” a pagar custas porque, segundo o tribunal, não se provou má-fé da parte do CSM nem havia lugar a pagamento de indemnização por um processo que durava há três anos. Que lógica perversa é esta, em que o ónus da transparência recai sobre quem a exige e não sobre quem a nega?

    A pergunta que se impõe é esta: que Justiça é esta? Uma Justiça que deveria ser o garante da equidade transforma-se num instrumento de protecção do status quo do Estado e da Administração Pública. Uma Justiça que deveria punir abusos de poder torna-se cúmplice dos mesmos. Quando os cidadãos olham para o sistema judicial e veem lentidão, opacidade e decisões que parecem proteger os mais poderosos, a democracia não resistirá.

    Se esta postura institucional não mudar, a começar pelas cúpulas da Justiça, resta-me a amarga conclusão de que o estúpido, nesta história toda, sou eu, por acreditar que, neste país, a transparência é algo que se pode alcançar sem ser necessário anos de luta nos tribunais. 

    N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artifIcial.

  • Afastar Luís Delgado da Trust in News: a melhor medida para moralizar um plano de acção para a comunicação social

    Afastar Luís Delgado da Trust in News: a melhor medida para moralizar um plano de acção para a comunicação social


    Infelizmente, o Plano de Acção para a Comunicação Social, apresentado na semana passada pelo Governo Montenegro, não incluiu uma medida essencial: a moralização do sector dos media em Portugal. Quando digo moralização não é mera retórica; nem sequer significa que existe imoralidade. Antes fosse. Na verdade, os media sofrem hoje, em Portugal, de um processo de amoralidade – de uma completa ausência de moral, de uma compulsiva eliminação dos princípios éticos. A ideia de que o Jornalismo, tal como a Justiça, constitui um dos pilares da democracia foi subvertida; hoje, o Jornalismo e a Justiça tornaram-se subservientes e, em vez de funcionarem como ‘controladores’ do poder, sustentam-se agora, numa promiscuidade pornográfica, porque a troco de dinheiro ou de prebendas, no próprio poder. Mantêm-se como pilares para sustentar o Poder; de contrário, tudo cairá de podre.

    Talvez o caso mais paradigmático – e portanto, não único, mas de maior gravidade – da amoralidade e da podridão do Jornalismo, e das suas promiscuidades, será a situação da Trust in News, a empresa unipessoal do empresário (e ex-jornalista) Luís Delgado, ‘dono’ de um império de 17 revistas supostamente vendidas pelo Grupo Impresa em 2018. Com um capital social de apenas 10 mil euros, a Trust in News conseguiu um prodígio: em apenas seis anos de existência, acumulou dívidas ao Estado (Segurança Social e Autoridade Tributária e Aduaneira) de 17,1 milhões de euros, dívidas a instituições financeiras de 4,3 milhões de euros, dívidas a uma panóplia de fornecedores no valor de 11,1 milhões de euros e dívidas a trabalhadores de quase meio milhão de euros. Quem se cruzou na ‘vida’ da Trust in News ‘ganhou’ um calote.

    Miranda Sarmento, Pedro Duarte e Luís Montenegro: o Governo decidirá se comportamentos de maus administradores na imprensa, lesivos até das finanças públicas, são toleráveis.

    Não foi uma situação inesperada – desde o primeiro dia, Luís Delgado começou a não pagar ao Estado e aos fornecedores. As dívidas começaram em 2018, continuaram em 2019, subiram em 2020, aumentarem mais em 2021, incrementaram em 2022, e mantiveram o crescimento em 2023. Os alertas surgiram – e, por isso mesmo, houve processos judiciais contra os gerentes da Trust in News instaurados pelo Fisco logo em 2018 –, mas houve um ‘abafamento’ político. É necessário destacar que o PÁGINA UM foi o primeiro órgão de comunicação social a revelar as dívidas astronómicas da Trust in News, em Julho do ano passado, perante o silêncio do Governo – Fernando Medina recusou comentar por diversas vezes as nossas notícias – e da Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

    A então directora da revista Visão, Mafalda Anjos, chegou a rotular de “fantasiosos” os trabalhos de investigação jornalística do PÁGINA UM. E, durante largos meses, a imprensa mainstream, quase toda com dificuldades financeiras, foi ‘escondendo’ o elefante que se passeava pela sala. E a ERC ‘assobiava’ para o ar. Até que, na Primavera, no final de Maio passado, se iniciou um Processo Especial de Revitalização (PER) no Tribunal de Sintra para estancar uma falência imediata.

    Mais do que o absurdo rol de dívidas de Luís Delgado, aquilo que mais surpreende é a desfaçatez do plano apresentado no passado dia 10 de Outubro, no âmbito do PER, onde se começa por dizer que “tem como finalidade a satisfação de todos os credores de uma forma mais favorável que uma liquidação ao abrigo de um processo de insolvência”.

    Analisar os indicadores financeiros apresentados neste plano, considerar que Luís Delgado – que em seis anos ‘conseguiu’ dar mais de 30 milhões de euros em calotes – é um homem sério para vir a pagar aquilo que não pagou e pagar aquilo que vai ter de pagar no futuro, tudo ao mesmo tempo, é acreditar ainda no Pai Natal.

    Luís Delgado, em 2018, celebrando a compras das revistas ao Grupo Impresa. Em seis anos, investindo 10 mil euros, deu calotes de mais de 30 milhões de euros, mais de metade ao Estado. E quer agora continuar à frente da Trust in News. Para continuar o calote?

    Qualquer análise minimamente séria deste plano só pode levar ao seu ‘chumbo’ por parte do Estado, que é quem vai decidir se Luís Delgado vai ou não continuar a aumentar os calotes. Por exemplo, nem a demonstração de resultados histórica (2020-2023) da Trust in News, constante na página 56 do plano, coincide com os resultados registados na Base de Dados das Contas Anuais. Isto é de uma falta atroz de rigor e seriedade.

    Na parte dos pressupostos, constante na página, é absurda a ligeireza a forma como se identifica a rubrica “Outras contas a receber”, que constituem, de forma surpreendente, o maior valor dos activos, tendo passado de 4,8 milhões de euros em 2020 para 14,8 milhões de euros em 2023. De uma forma aligeirada, o plano da Trust in News diz apenas que essa rubrica – que “ascende a 10 milhões de euros”, quando são quase 15 milhões – corresponde às “assinaturas de publicações a receber da carteira de clientes, quer assinaturas de imprensa física quer de assinaturas digitais”. Quem conhece o mercado só pode ficar surpreendido com o volume financeiro desta rubrica, bem como com a sua variação nos últimos três anos, sobretudo por não ser acompanhada pela rubrica Clientes, onde por norma deveriam ser contabilizadas vendas ainda não pagas.

    Ora, se considerarmos que, entre 2021 e 2023, a Trust in News admite que teve vendas e prestações de serviços (que incluem assinaturas, mas também uma importante fatia de publicidade) no valor de 35,6 milhões de euros, como explicar que haja 10 milhões de euros (variação da rubrica Outras Contas a Receber) que não foram pagos? Não haverá aqui uma ‘contabilidade criativa’, com facturação inexistente ou virtual, para amenizar prejuízos em anos anteriores? Note-se ainda que esta variação de 10 milhões de euros em supostas “assinaturas de publicações a receber da carteira de clientes” entre 2021 e 2023 coincide com uma quebra de vendas de cerca de 18% entre 2020 e 2023. Não faz qualquer sentido, tanto mais que os resultados previsionais para 2024 apontam para vendas (talvez estas reais, até por não fazer aumentar a rubrica Outras Contas a Receber) de apenas 7,9 milhões de euros, menos 3 milhões de euros face aos valores indicados em 2023. Ora, com uma queda de 28% da vendas, porque a rubrica Outras Contas a Receber se mantém estável pela primeira vez, as previsões para este ano apontam para prejuízos de 1,4 milhões de euros. E eu desconfio, pelo indicadores, que foi a ‘contabilidade criativa’ que em anos anteriores evitou prejuízos desta dimensão.

    Revista Visão: em fase de PER, o administrador judicial não pode ‘vasculhar’contas.

    A impossibilidade de, em fase de PER, o administrador judicial poder ‘meter a mão na contabilidade’ das empresas, e de ter um papel determinante no esclarecimento de eventuais falcatruas que levaram à desastrosa situação da Trust in News, deve ser um motivo mais que fulcral para o categórico ‘chumbo’ do PER, e a consequente ‘passagem’ para a insolvência.

    Quando se diz insolvência, não se está a falar do fim da actividade das revistas – ou, pelo menos, de todas –, mas sim da ‘expulsão’ de Luís Delgado do sector do media, que ele conspurca. Aprovar o PER significa, na prática, que Luís Delgado se mantém à frente da Trust in News a fazer o pior que tem feito nos últimos seis anos: dar calotes. Aprovar o PER será acreditar no ‘conto do vigário’: acreditar que alguém que, em seis anos, conseguiu colocar uma empresa de media com um passivo de 30 milhões de euros, dos quais metade em dívidas fiscais e à Segurança Social, vai agora passar a pagar a tudo e a todos, passar a pagar no futuro, e tudo isto mantendo níveis de receitas com uma redução da massa salarial de jornalistas da ordem dos 40%. Luís Delgado promete fazer omeletes sem ovos e ainda promete chocar ovos sem ter galinhas poedeiras.

    Ao invés, passar a Trust in News para um processo de insolvência possibilitará, com uma gestão profissional séria – e sem Luís Delgado –, a busca de uma solução empresarial para que as revistas eventualmente se mantenham através de outro modelo de negócio (mais sério). Pode até suceder que os credores tenham, nessa hipótese, de assumir eventuais perdas, mas a outra alternativa parece-me bem pior: com medo de se perder tudo, ainda se permite que o calote ainda aumente mais.

    Votar contra o PER e avançar para uma insolvência (que pode não ser uma dissolução), servirá sobretudo para afastar Luís Delgado dos destinos da (nunca bem explicada) venda em 2018 do portefólio das revistas então detidas pelo Grupo Impresa. Permitiria saber, de forma rápida, que ilegalidades ou mesmo eventuais fraudes terão sido cometidas. Haveria responsabilização.

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    Na verdade, dar-se-iam os primeiros necessários passos para a moralização do (agora promíscuo) sector dos media. Um sinal de que não há espaço, pelo contrário, para projectos amorais, que apenas sobrevivem através de esquemas políticos e em clara deslealdade concorrencial. ‘Salvar’ a Trust in News, incluindo no ‘pacote’ Luís Delgado, é criar um precedente de jornalismo de mão estendida.

    O Governo Montenegro tem por isso, no final deste mês, uma excelente oportunidade para mostrar se quer mesmo valorizar o papel da imprensa, que não tem medo de uma imprensa rigorosa, sem ser “ofegante” nem subserviente. E isso passa por exigir que se ‘expulsem’ do sistema os maus administradores dos media, que são o principal entrave à liberdade de imprensa. Por tudo isto, mesmo não estando aí inscrito, o ‘chumbo’ do PER da Trust in News será uma das melhores medidas de um qualquer Plano de Acção para a Comunicação Social.


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  • Gouveia e Melo, um almirante das casernas com um pensamento das cavernas

    Gouveia e Melo, um almirante das casernas com um pensamento das cavernas


    Cerca de três anos após sair da coordenação da task force do processo de vacinação contra a covid-19, depois de integrar, durante alguns meses, uma equipa chefiada por um político pouco talhado para a função e uma escassez inicial de doses, Gouveia e Melo continua a ser um putativo candidato a Belém, transportado num andor sobretudo pela imprensa.

    Ajudou, claro, a sua nomeação para o cargo de Chefe do Estado-Maior da Armada, e também muito uma espécie de salvo-conduto que lhe permite não sair beliscado em contratações públicas esquisitas – sendo mesmo ‘abençoado pelo Tribunal de Contas – ou em poder botar faladura até em assuntos políticos, violando leis e decência, como se verificou na recente entrevista à RTP, onde surgiu fardado a preceito. Aliás, e não por acaso, com a imaculada brancura da farda da Marinha, e não com o ‘braçal’ camuflado dos tempos da task force.

    Para quem conhece o funcionamento da comunicação social – recordemos as palavras de Emídio Rangel, em 1997, que defendia a capacidade da SIC em vender tanto sabonetes como presidentes da República -, talvez não seja surpreendente que Gouveia e Melo se mantenha em boa posição para ocupar a cadeira de Belém, porque se continua numa lengalenga de endeusamento da sua persona.

    Em abono da verdade, Gouveia e Melo destacou-se com um bom operacional de logística, mas de menor valia do que um director dos frescos da cadeia do Pingo (porque ele tinha um só produto a escoar, já “vendido”, enquanto o homem da Jerónimo Martins tem muitos fornecedores, muitos produtos perecíveis a distribuir por muitas lojas, e sem garantias de vendas). Mas o mérito de Gouveia e Melo foi saber surfar logo a onda do populismo, quando, por exemplo, desbloqueou, sem ter competências para tal, e contra uma norma da DGS, a vacinação dos médicos não-prioritários, e nada fez quando o então bastonário da Ordem dos Médicos, o actual deputado social-democrata Miguel Guimarães, lhe comunicou que um político tinha sido vacinado sem estar na lista por “necessidade e oportunidade“. Uma imoralidade e sobretudo uma ilegalidade a que Gouveia e Melo jamais poderia fechar os olhos. Mas fechou por lhe ter sido conveniente: foi recebendo elogios e ‘prebendas’ públicas.

    O PÁGINA UM revelou muitas destas situações, depois de uma luta que envolveu o Tribunal Administrativo de Lisboa, mas o mais que se conseguiu foi o silêncio de uma imprensa cúmplice (e criadora de um herói) e um processo judicial do agora almirante por difamação.

    Gouveia e Melo, um militar submarinista de quem jamais se saberia da sua existência física por nada se conhecer de relevante e edificante em termos da sua existência mental, teve, em todo o caso, o mérito de ser, além de bom operador de logística de um só produto, um especialista em marketing – ou, pelo menos, com bons ‘assessores’, alguns dos quais se encontram na imprensa, no activo, e/ ou em agências de comunicação.

    Num país decente, com democracia amadurecida, um militar com funções civis jamais se deveria apresentar como um militar nem sequer ambicionar cargos políticos. Não por uma questão de legalidade, mas de decência. É de um servilismo ofensivo achar-se, como Gouveia e Melo acha, que um país só se endireita perante uma farda – é exactamente o contrário: a ‘desmilitarização’ das sociedades constitui um sinal de evolução civilizacional, de elevada democraticidade e de estabilidade social. Um militar decente deve perceber isso quando entra na carreira militar e, sobretudo, quando vai subindo até chegar à reforma em lugares de topo da hierarquia.

    Mas Gouveia e Melo não mostra decência porque até usou intencionalmente uma farda militar para se aformar numa tarefa civil, mas não uma farda qualquer. Quando esteve na task force, usou um camuflado, que nem é propriamente a indumentária que se associa à Marinha. Quando esteve na televisão, na entrevista à RTP, usou indumentária branca com todas as insígnias e mais algumas.

    A postura messiânica de Gouveia e Melo, auto-alimentada – e que teve o seu ‘momento Mário Soares‘ em Odivelas, numa versão soft, no decurso de uma estúpida e contraproducente manifestação contra a vacinação das crianças (não pelo sentido, mas porque assim o transformaram num mártir) – mostra-se bem patente numa entrevista em Junho de 2021 ao jornal Sol. É aqui que o agora putativo candidato a Belém melhor se dá a conhecer, e também onde consegue revelar o pior que tem, que é muito para o pouco que dá.

    Disse ele que aceitou as funções de coordenador “porque o país precisava e eu tenho ‘skills’ que podiam ser úteis”, relembrando que considerava ser “serôdio” o letreiro nos submarinos que dizia: “A Pátria honrai que a Pátria vos contempla”. E é mais do que serôdio nos tempos que correm, é patético; mas Gouveia e Melo dizia na entrevista que evoluíra, e que como era militar, se fosse “necessário defender o meu país, não posso falhar”. Os ‘civis’ devem pensar o contrário, quando têm defronte de si tarefas civis, certo?

    Aliás, no que toca à pandemia, somente um país obtuso poderia achar que questões de Epidemiologia e gestão de uma crise sanitária estava ao nível de uma guerra. Numa época em que se exigia racionalidade e Ciência sem peritos comprometidos, tivemos um vice-almirante a ditar bitates.

    Veja-se este trecho sempre na primeira pessoa, como se fosse um John Ioannidis saído de um submarino: “Estou a fazer gráficos em que vejo a taxa de vacinação por concelho e a incidência por concelho. E olhando para os dados das últimas três semanas, a média acumulada em 14 dias por cem mil habitantes e a média acumulada da semana passada estão exatamente com o mesmo comportamento relativamente à percentagem de vacinação. Ou seja, a variante propaga-se mais mas é igualmente contida pela vacinação. Pelo menos, por enquanto não estou a notar isso. O que noto, à data de hoje e com os dados que tenho, é que em termos de mortalidade as vacinas continuam a proteger a população. O que acontece é que há pessoas que estão a apanhar porque só têm uma dose e uma dose protege pouco, sobretudo com a dose da AstraZeneca, e é isso que eu estou a acelerar agora a processo. E quando digo que protege pouco, é relativo. Protege muito, deixa é escapar alguns. Se tiverem as duas doses não deixa escapar nenhum.”

    Ou este trecho, ainda: “Tenho concelhos com 70 por cento de vacinação já feita, concelhos muito pequeninos, e olhando para eles a incidência está a baixar imenso, está abaixo de 60. Quando olho para os 308 concelhos e vejo uns com maior incidência, vou  ver os dados e têm pouca vacinação. A maior incidência é nos concelhos mais populosos porque não há vacinas para avançar com o ritmo como desejávamos. De qualquer forma, estamos a 50 por cento de segundas doses. Metade da população portuguesa já recebeu uma dose. E 30 por cento, duas doses. Agora eu gostaria de poder acelerar mais. Aliás eu gostaria de ter podido acelerar mais atrás. Porque como foram adiando a entrega das vacinas, e isto foi constante, fez-me perder tempo para trás. Se me tivessem dado aquelas vacinas na altura que me estavam prometidas eu já estaria em 60 ou 65 por cento de vacinação”.

    Visto à distância, um militar submarinista sem formação neste sector falar desta forma mostra-se tristemente anedótico; e somente comparável à patetice de termos tido uma directora-geral da Saúde, Graça Freitas, que parvamente se orgulhava de não saber trabalhar com computadores, e daí com conhecimentos zero em Epidemiologia e sem arcaboiço sequer para se assumir como Autoridade Nacional de Saúde durante uma crise sanitária de três anos.

    Mas nessa entrevista, Gouveia e Melo lança mais pérolas sobre o seu pensamento, assumindo que olhava para a tarefa como se fosse “um submarino”, o que não deixa de ser uma excelente mas triste imagem da realidade, porquanto, de facto, ficámos reféns daquilo que foi dissertando, imiscuindo-se em temas que não controlava nem deveria controlar, promovendo a perseguição de quem optava por não se vacinar, não cuidando da prudência quando a AstraZeneca começou a dar problemas e até incentivando pais a vacinar filhos e a Direcção-Geral da Saúde a dar autorizações, pois o que ele queria era vacinar, vacinar, vacinar. O seu objectivo eram números.

    Mas há afirmações e ‘teses’ ainda mais graves na entrevista ao Sol, e que revelam a sua faceta verdadeira, incompatível com um Chefe de Estado, mesmo se as funções presidenciais são já quase simbólicas. Com efeito, Gouveia e Melo chega a dar uma explicação verdadeiramente marialva e até misógina sobre o seu alegado sucesso na task force: “Por exemplo: eu sou alto, visto uniforme, tenho voz de comando e sou assertivo. Só essas quatro coisas ajudam logo o processo. Depois, tenho ideias, desenvolvo-as e sou obsessivo. Faço o que tiver de fazer e sou impiedoso com os malandros. Sou super piedoso para as pessoas que fazem bem, erram, mas deram tudo.” Presume-se assim que um homem baixo e sem uniforme, não terá hipóteses de ser líder, mesmo que tenha voz de trovão e discurso assertórico. Quanto às mulheres, enfim, presume-se que não entrem no ‘clube’ de Gouveia e Melo, homem cheio de “ideias”, mesmo que não saibamos quais são, excepto quanto à peregrina ideia de reinstalar o Serviço Militar Obrigatório para enfrentar a ameaça russa e o desemprego.

    A entrevista de Gouveia e Melo ao jornal Sol em Junho de 2021 é antológica sobre quem é e o que pensa o putativo candidato a Belém.

    Porém, a ‘melhor’ parte da entrevista ao Sol para percebermos a sua mentalidade é quando Gouveia e Melo fala no “snobismo” dos ingleses, nos franceses “chauvinistas” e mostra a pouca simpatia que nutre aos alemães porque tem “família judaica”. Pergunto ao ChatGPT como classifica alguém com este discurso. Respondeu-me prontamente a ‘inteligência artificial’:

    A pessoa que fez essa declaração pode ser classificada como alguém com uma visão estereotipada e preconceituosa em relação a diferentes nacionalidades. A fala demonstra generalizações negativas e julgamentos sobre grupos inteiros com base em nacionalidade, associando características como ‘snobismo’, ‘chauvinismo’ e uma atitude punitiva contra alemães por causa de uma conexão pessoal com o passado histórico do povo judeu.

    Esse tipo de discurso reflete xenofobia, que é a aversão ou preconceito contra pessoas de outras nacionalidades, e pode também revelar traços de etnocentrismo, que é a tendência de julgar outras culturas ou nações com base em padrões e valores próprios, colocando-os como inferiores. Além disso, a menção de vingança contra alemães pela história familiar judaica pode estar relacionada ao trauma histórico, mas o uso dessa justifica[ção] para generalizar uma atitude hostil a um povo também perpetua ciclos de ódio.

    Em resumo, a fala revela um preconceito nacionalista e uma dificuldade de ver as pessoas como indivíduos, em vez de como representantes de estereótipos nacionais”.

    Não querendo dizer mais, concluo que se o putativo candidato Gouveia e Melo, metido na liderança das sondagens (que sabe Deus como são feitas), surfando o populismo montado numa ‘imprensa favorável’, vier a suceder a Marcelo Rebelo de Sousa, garantido está que teremos um ‘presidente das casernas’ com um pensamento das cavernas.


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  • Esse fogo que arde e que se vê

    Esse fogo que arde e que se vê


    Manhã quente e sombria, aquela em que se desperta para uma paisagem cinzenta, morta e quebrada. O ar é de guerra, de fumo e cinza negra que entranha no cabelo, na pele, nas narinas. Na alma.

    Perco já a conta aos Verões a ler e a escrever sobre fogos, incêndios, vidas perdidas, vidas destruídas. As notícias sobre bombeiros cercados. Os contactos com a Protecção Civil. As forças policiais. Os diferentes Ministérios. As notícias sobre o que se pode ir fazer junto das seguradoras. A ausência de seguros. Os interesses económicos que se escutam aqui e ali. Porque tudo é negócio. Até nas desgraças, há sempre quem tenha lucro.

    Se ao menos as florestas e o mato fossem petróleo, ouro ou minas de diamantes… Haveria talvez outro cuidado, outro tipo de vigilância, outra estratégia de protecção. Mas não são. São silvas, ervas, eucalipto, pinheiros. São hortas, campos cultivados. São casas onde vive gente. São galinheiros, coelheiras. São fábricas onde trabalha gente. São caminhos antigos amigos de pastores. São ovelhas, patos e porcos, gado…

    Há falta de civismo. Há falta de meios. Há falta de cuidados. Há negligência. Há falta de dinheiro para pagar a guardas e vigias. Para mais carros, aviões e helicópteros para apagar os fogos quando ainda se vai a tempo de salvar o que importa. E há crimes.

    Mas há, sobretudo, falta de amor. Falta de amor pelos campos, pelas florestas. Pelos rios e nascentes subterrâneas. Pelas gentes. Pelas cidades, vilas e aldeias. Pelas fábricas que empregam gente. Pelas escolas que ainda têm alunos, professores e auxiliares. Pelos hospitais. Pelos quartéis e pelos bombeiros. Pelos postos de GNR e os agentes. Falta de amor pelas estradas e caminhos. Pelos animais. Pela natureza.

    Porque, quando se ama, quando há amor de verdade… há carinho e há cuidado. Amamos e cuidamos. E cuidamos do que amamos. Se não, não é amor. Pode ser interesse. Pode ser dependência.

    O amor nota-se e é evidente. Vê-se exteriormente. Nas acções.

    Como se repete o inferno todos os anos? Como é que ainda se morre a combater fogos na era dos drones, dos aviões sem piloto, dos satélites, da inteligência artificial? Como?

    Como é que se deixa ainda terra ao abandono, à sua sorte e à mercê das desgraças?

    Os seguros não pagam o que se perde. Não recuperam o que se perdeu. Não se recuperam as vidas perdidas a defender casas, floresta, animais e gente. A defender o país.

    Esta é uma guerra. Mas não é só uma guerra contra o fogo, que mata e destrói. Mas uma guerra contra nós próprios. Porque dói, mas a verdade é que temos sido cúmplices destes incêndios malditos. Porquê? Porque fechamos os olhos à negligência, aos interesses. Toleramos a falta de civismo e o abandono das terras, das casas, da floresta.  Porque calamos quando se soltam criminosos e permitimos que a Justiça seja branda com o crime. Por que só nos interessamos pelo nosso quintal. Porque aceitamos que se gaste dinheiro público em merdas. Sim, em merdas. É só olhar para os milhões que se esvaem para empresas falidas, mas que pagam bons salários a gestores amigos dos partidos no poder. Para os milhões em almoços, jantares, festas e banquetes e recepções. Em carros topo de gama e carrões para autarcas e governantes passearem em contínua campanha eleitoral. Os milhões enterrados em bancos e para tapar buracos abertos por créditos a amigos do poder. É só consultar o Portal Base e perceber que há dinheiro. O que não há é amor suficiente. Pegue-se no dinheiro disponível e numas migalhas de amor e as notícias nos Verões passarão a ser diferentes.  

    Porque esta guerra não se vence só com mais canhões de água, bombeiros e aviões. Há que almejar protegermos e mantermos vivo tudo o que amamos. Prevenir, proteger, cuidar. E desejar, verdadeiramente, sem populismos e sem mais merdas, a Paz.

    Porque o amor é um ‘fogo’ que arde e que se vê. Todos os dias. Nos cuidados e no carinho que demonstramos pelo que (e quem) mais amamos.

         


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  • Unanimismos e maniqueísmos, ou o colapso das democracias

    Unanimismos e maniqueísmos, ou o colapso das democracias


    Há assuntos onde proliferam estranhos unanimismos na imprensa (inter)nacional, que se iniciaram nos tenebrosos tempos da pandemia, quando se ausentaram as divergências de opinião e os argumentos dissonantes, que servem, as mais das vezes, para consolidar ou mudar opiniões.

    Veja-se o recente caso do ‘confronto’ entre Elon Musk, dono da rede social X, e Alexandre de Moraes, juiz do Supremo Tribunal Federal do Brasil, que rapidamente redundou numa guerra ideológica maniqueísta de contornos absurdos numa democracia. Ou não assim tão absurdos, porquanto em 2020 e 2021 se viram os mais violentos atropelos da Constituição da República Portuguesa, mesmo sob a bênção do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, por triste ironia, um dos mais conceituados constitucionalistas.

    A forma enviesada como se tem vindo a debater o caso X vs. Brasil é, em todo o caso, paradigmática da cegueira e do desnorte da imprensa, que nem consegue disfarçar o ódio pela rede social de Elon Musk, que decidiu, porque pode, fazer um ‘manguito’ aos poderes do ‘quero, posso e mando’ – poderes esses muitos lestos em brandir a ‘extrema-direita’ como um vírus da democracia, quando, na verdade, têm atitudes que denotam tiques fascizantes com a censura à cabeça.

    Para ilustrar o viés da comunicação social em território nacional – que olha para o Brasil com uma simplicidade confrangedora (Bolsonaro é um diabo; Lula um santo) –, pegue-se numa peça no Público do jornalista João Ruela Ribeiro – e destaco: jornalista – sugestivamente intitulada “Suspensão do X no Brasil aprofunda debate sobre o poder das big techs”, onde salienta que “o Brasil não é o primeiro país a proibir as actividades de uma rede social, mas é a primeira grande democracia mundial a fazê-lo por incumprimento de sentenças”.

    Portanto, e sem sequer clarificar a tipologia destas sentenças (atípicas num país democrático), para este jornalista (e muitos outros), o Brasil destaca-se como o bêbedo na auto-estrada que ruma na pista errada: ele está certo e a culpa nem é dos outros, que insistem em rumar contra ele; é sim do Governo que não indicou aos outros condutores qual deve ser a via correcta. Quando só um país democrático faz o mesmo que ditaduras, basta o bom senso para se concluir não ser ele o único país democrático certo, não acham?

    Por outro lado, causa-me estranheza que, para este jornalista do Público (e muitos outros), a suspensão do X aprofunde o debate do poder das big techs, mas não a do poder incontrolado das Autoridades Políticas e Judiciais. O Público (e muitos outros) achou bem que as big techs censurassem em nome de Governos desde 2020, mesmo calando as violações da liberdade de expressão e de outros direitos fundamentais. E só agora acham que há desmesurado poder das big techs por haver uma rede social que faz agora finca-pé, porque em teoria há a possibilidade de, num país em regime democrático, fazer prevalecer direitos, liberdades e garantias. Convém dizer que fazer finca-pé perante uma ditadura é bem diferente; simplesmente se perde na ‘secretaria’, por isso uma ditadura é uma ditadura, não uma democracia.

    Alexandre de Moraes. Foto: DR

    Aliás, lendo a notícia do Público fica-se pasmado pelo facto de o jornalista (e muitos outros) achar normal que um juiz possa decretar a suspensão de contas de pessoas suspeitas de um determinado crime. Repito: suspeitas. São apenas suspeitas e já há um veredicto de um juiz para uma limitação futura de um direito fundamental como a liberdade de expressão? Acham bem só por se estar a falar de adeptos do Bolsonaro? Se assim for, vamos ter uma democracia onde os nossos antagonistas podem ser vencidos apenas calando-os, limitando-lhes os movimentos. E o que nos sucederá se um dia eles tomarem o poder? Podem usar o mesmo expediente? Podem fazer pior? Onde estará o limite se supostos democratas abrem a Caixa de Pandora? Ou afinal já estaremos numa ditadura e ninguém nos avisou?

    Chateia-me, aliás, cada vez mais no debate sobre direitos fundamentais, as associações ideológicas imediatas e acríticas com rótulos à mistura. Subjacente à questão Brasil vs. X, e seguindo a linha de muitos outros meios de comunicação social, o jornalista do Público diz que “no Brasil, a suspensão do X foi aplaudida pela generalidade da esquerda e condenada pela extrema-direita afecta a Bolsonaro, recorrendo aos mesmos argumentos usados por Musk”.

    Portanto, Musk – que até 2002 tinha concedido donativos de 574.500 dólares para os republicanos e 542.000 dólares para os democratas – passou a ser catalogado de extrema-direita [e reparem: na notícia do Público (e muitos outros) deixou de haver direita, incluindo conservadores, e já nem há centro nem liberais; é um “mundo” maniqueísta] por considerar que não cabe a um juiz decretar a suspensão do acesso a uma rede social mundial. Além disso, a notícia do Público (e de muitos outros) subliminarmente mete, sem pestanejar nem necessitar de justificação, um rótulo maléfico (anti-democrático, supõe-se) a quem, sendo ideologicamente de esquerda, questiona esta medida estapafúrdia numa democracia.

    Elon Musk. Foto: DR

    Aliás, nem sei o que é “a generalidade da esquerda”, aquela que concorda com a medida censória de Alexandre de Moraes, mas tendo eu muitos amigos brasileiros de esquerda, e não tendo feito ainda qualquer sondagem digna desse nome, rezo para que a “generalidade” não ande a bater palmas a um juiz caprichoso.

    Em suma, com este tipo de postura da imprensa, as democracias não se perdem apenas através de golpes de Estado, mas sobretudo por corrosão e corrupção moral. Achar que a liberdade do outro pode ser condicionada porque é nosso inimigo, usando para tal condicionamento do poder político, judicial e mediático, e achar que se continua a ser uma democracia é o mesmo que considerar apropriado e coerente que a Coreia do Norte se chame República Popular Democrática da Coreia.


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  • O Estado quer salvar a imprensa? Seja então mais transparente e reforce a protecção dos jornalistas

    O Estado quer salvar a imprensa? Seja então mais transparente e reforce a protecção dos jornalistas


    “Numa altura em que é vital focarmo-nos na defesa do jornalismo sério e independente como pilar estruturante da democracia, importa pensar como o Estado pode ressarcir os media dos seus erros e do viés das suas políticas públicas”. Esta é uma das frases de um artigo de opinião de Francisco Rui Cádima, investigador do ICNOVA – Instituto de Comunicação da Universidade Nova de Lisboa publicado na semana passada no jornal Público. Nem de propósito, ou muito a propósito, esta opinião surge num jornal que apresentou, no ano passado, prejuízos de 4,5 milhões de euros e o seu ‘mecenas’, o Grupo Sonae, já se cansa de encaixar resultados líquidos negativos desde 2017 da ordem dos 24 milhões de euros.

    A tónica de Francisco Rui Cádima apenas faz eco de um coro cada vez mais crescente da generalidade dos grupos de media, e mais os seus defensores, em reivindicar apoios ao Estado, ao mesmo tempo que se estabeleceu um forrobodó de práticas censuráveis. No sector privado dos media, com a excepção da Medialivre, assistimos a um absurdo de gestão financeira e de recursos, com jornalistas genericamente mal pagos, mas directores principescamente pagos, que republicam as mesmas notícias, os mesmos temas, as mesmas abordagens, numa cansativa e única perspectiva, não se destacando na mediocridade uma das outras. E no mercado, o público é soberano, e até as empresas, que de início apreciavam a promiscuidade das parcerias comerciais, olham agora com desconfiança para um ‘chão que já só dá para vinagre’.

    Sou defensor do jornalismo como um bem público, no conceito económico do termo, que, por trazer mais vantagens à sociedade do que o seu valor de mercado (concedido pelos seus clientes), merece apoio público. Mas cabe também ao Estado – e à sociedade – a capacidade de separar o trigo do joio, para que não cometa o viés de trazer vantagens às negociatas que se fazem através dos media. E, por esse motivo, sou e serei um opositor ferrenho de ‘salvar o jornalismo’ despejando dinheiro em mau jornalismo.

    A crise no sector dos media está longe de se dever ‘apenas’ à não-valorização do seu papel pelos consumidores, mas sim a uma crise de credibilidade. Quem acredita estarem a ser as redes sociais a causar a morte do jornalismo, estará a enganar-se a si próprio. A proliferação rápida de (suposta) desinformação pelas redes sociais surge porque a imprensa deixou de ser um ‘porto seguro’ de credibilidade. Se antes se podia ‘emprenhar pelos ouvidos’ num café entre amigos, mas o que se se ouvia nesses ‘mentideros’ caía numa consulta dos jornais; agora, tal deixou de ser uma garantia. Actualmente, num misto de ignorância e de notícias ideologicamente enviesadas, temos necessidade de recorrer à fonte para saber se uma determinada ‘informação’ que nos chega é verdadeira ou falsa, quer seja transmitida por um post viral ou por uma ‘notícia’ da imprensa mainstream. Este é o drama; esta é a causa da crise.

    E essa é a crise – e não se resolve despejando ‘dinheiro público’, sobretudo quando o ‘leitmotiv’ aparenta ser uma «boia de salvação’ de grupos de media em dificuldades, alguns dos quais, com a Trust in News e a Global Notícias à cabeça, deveriam até já ter desaparecido literalmente, por uma questão de sustentabilidade ética do mercado, de integridade do jornalismo e de abertura de espaço para novos players.

    Marcelo Rebelo de Sousa, no V Congresso dos Jornalistas. O evento, que foi patrocinado e ‘apoiado’ por mais de uma dúzia de entidades públicas e privadas, incluindo empresas e bancos, exigia o pagamento de entrada a jornalistas interessados apenas em cobrir o congresso, o qual teve ainda o ‘Alto Patrocínio’ da Presidência da República. Foto: D.R.

    De entre as soluções de apoios do Estado sugeridas, concordo com duas: tornar gratuito, mas apenas para os pequenos órgãos de comunicação social, o acesso ao material fotográfico da Agência Lusa; e permitir que os cidadãos possam decidir, através de uma espécie de ‘voucher imprensa’, quem, de entre os diversos órgãos de comunicação social, merece receber os apoios estatais. Só assim se corrigirão erros e vieses de um bem público como é a imprensa. Se a opção for burocrática e política, com o Governo a distribuir dinheiro e prebendas pelos ‘suspeitos do costume’, a tal correcção das ‘falhas de mercado’ será um embuste, apenas agravando o problema da qualidade e credibilidade da imprensa, até ao dia em que acordarmos com uma imprensa não lida, não ouvida e não vista, existindo somente como receptáculo de uma fonte de despejos de dinheiro chamado Estado.

    Infelizmente, na esfera da discussão dos apoios à imprensa e do papel do Estado, não tem entrado neste debate – e não será por esquecimento – o papel do Governo (e do Parlamento) num assunto fundamental para o trabalho da imprensa: a transparência da Administração Pública e o acesso à informação dos jornalistas, que são ‘instrumentos’ essenciais para a prática do (bom) jornalismo.

    Mostra-se crucial, para termos um jornalismo ao serviço da sociedade (e não da política e dos negócios), que a imprensa regresse às suas origens mais nobres, à sua função de ‘watchdog’ incisivo, e que deixe de ser o ‘pet dog’ fofinho que se anda a mostrar, agora de mão e língua estendidas. E, para isso, não é aceitável que a Administração mantenha uma postura de obscurantismo, como se tem mostrado evidente em diversos casos denunciados pelo PÁGINA UM, obrigando mesmo ao recurso aos tribunais administrativos para aceder a informação pública, demorando isso dinheiro e tempo. A Administração Pública portuguesa está cada vez mais obscura e fechada; não respondem a perguntas incómodas de jornalistas; cedem informações manipuladas a jornalistas de ‘confiança’ que lhes dêem garantias de notícias favoráveis. E isso tem de terminar. Mesmo quando surgem decisões dos tribunais favoráveis ao acesso, a Administração Pública mantém expedientes dilatórios.

    Por exemplo, corre há mais de um ano no Tribunal Administrativo de Lisboa [corre é um eufemismo, porque o juiz tem o caso parado há meses] um processo de execução de sentença contra a Administração Central do Sistema de Saúde para aceder a uma base de dados por parte do PÁGINA UM, cujo direito já foi decretado até pelo Supremo Tribunal Administrativo, depois de uma sentença e de um acórdão.

    Se o Estado (Governo e Parlamento) quer a existência de um jornalismo como pilar da democracia, então faça-se o favor de melhorar a lei do acesso aos documentos administrativos, tornando vinculativos os pareceres da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) e decretando multas (ou mesmo a demissão) aos dirigentes da Administração Pública que não os acatem integralmente.

    a microphone that is sitting on a stand

    Em complemento, é essencial, se se quer mesmo apoiar o jornalismo, garantir efectivamente a liberdade e independência dos jornalistas, sobretudo dos incómodos, consagrada na Constituição da República. Não basta bater no peito e clamar por um jornalismo independente e incómodo – dois adjectivos que deveriam ser redundantes quando falamos da imprensa – e depois ver-se que não existem, na prática, mecanismos de protecção, permitindo que fiquem submetidos a práticas abusivas.

    Seja através de sucessivas queixas na Entidade Reguladora para a Comunicação Social e na Comissão da Carteira Profissional de Jornalista – duas entidades anacrónicas, pelo facto de os seus membros não entenderem as suas funções –; seja através de ameaças mais ou menos veladas de processos judiciais se uma notícia for publicada; seja mesmo através de processos judiciais, sobretudo quando os gastos em advogados não são pagos pelos queixosos. Veja-se, aliás, que pendem sobre mim, neste momento, três processos judiciais, onde claramente o Ministério Público nem sequer se deu ao trabalho de fazer uma adequada investigação, limitando-se a acompanhar as queixas por difamação, sem se ter dado ao trabalho de apurar se aquilo que escrevi é verdade ou mentira. Deduzo que haja mais a surgir.

    Transparência da Administração Pública e reforço da protecção dos jornalistas são, por isso, para mim, aspectos tanto ou mais importantes do que o apoio financeiro às empresas de media. Redireccionemos, portanto, o debate sobre aquilo que o Estado pode fazer, sobretudo porque se existirem mecanismos para haver bom jornalismo, por certo a sociedade o valorizará. Focar a crise da imprensa na sua crise financeira é um erro; querer debater o futuro do jornalismo com o fito de somente salvar de imediato empresas de media (mal geridas) da bancarrota, para assim suportar artificialmente o sustento de 5.300 jornalistas, apenas adiará uma inevitável queda no abismo.

    Nota final: Foi ontem publicada em Diário da República uma Resolução do Conselho de Ministros que visa criar uma enigmática Estrutura de Missão para a Comunicação Social. Tremo, só ao ler o preâmbulo. Diz-se que “o Governo assumiu a opção política de contribuir para ajudar a inverter uma perigosa tendência de desvalorização social e cívica da função do jornalista e da informação rigorosa, livre, plural e credível”, acrescentando que “o crescente fenómeno de difusão massiva de notícias falsas, designadamente através de plataformas digitais, de desinformação e de manipulação dos factos, cada vez mais simples e acessível, por exemplo, através de ferramentas de inteligência artificial de fácil acesso, exige uma resposta mais eficaz tendo em vista a defesa da democracia e de liberdade”.

    Paternalmente, anuncia-se que “neste contexto, torna-se necessário e urgente que o Governo disponha de uma estrutura que, recorrendo às capacidades de recursos humanos e outras, já existentes no âmbito da atual Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros, possa ser um suporte para a execução das políticas públicas para o sector da comunicação social, designadamente no período em que o Governo executará o seu Plano de Ação para os Media”, concluindo que “um dos objetivos cometidos à estrutura de missão agora criada é a elaboração de um novo plano nacional para a literacia mediática, a aprovar pelo Conselho de Ministros”. Já se sabe no que isto vai dar: num Governo a insinuar-se para que o tratem bem em troca de uns milhões para uma imprensa ávida de se salvar, mesmo que se mate o verdadeiro jornalismo. Este Governo não quer dar mais liberdade à imprensa; quer apenas controlá-la (ainda) mais e ver os administradores dos grupos de media a agradecer-lhes os apoios financeiros.


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