A contingência da necessidade levou-me ao ofício de animador turístico. Vulgo condutor de animação turística, driver, guia ou, se for mais ousado, embaixador cultural. O romantismo ingénuo e a falta de cuidado na observação do contrato de casamento levaram-me tudo de material (até os anéis) e assim dei por mim a vender na rua. Mal que veio por bem, pois ter-me-ia passado ao lado esta grande carreira de diplomata.
Embora licenciado em Relações Internacionais, descurei a candidatura ao corpo diplomático e como Deus escreve direito e nós somos as linhas tortas, desaguei no mais próximo do ofício de honrar a pátria. O p pequeno advém do facto de não se dar um chavo por quem labuta neste serviço. É como ver um pedinte esquálido e sem dentes e só atentar na sua triste figura quando, por vezes, nele habita um génio incompreendido. Há um na Figueira, o senhor Carlos, que declama Gedeão deitado na lage onde dorme, come e sonha com dias melhores. Até escreveu um poema ao Moedas.
Carlos como eu, és tu, ó Moedas Tu dizes que fazes, e fazes Mas não são grandes merdas
A praça que elegi para montar a loja é a da Figueira. Convivo com vendilhões de várias procedências, do Magrebe a terras de Vera Cruz. Marrocos, Argélia, Paquistão, Bangladesh, Índia, Brasil, França, Espanha, Itália… há guias de todas estas procedências. A maioria são tipos esforçados e vão além do aceno do folheto no imperativo de mostrar e contar a cidade. Um ou outro é da variante abrenúncio e só vê cifrões. Pode suceder que este ou esta não mereça o chão que pisa, entre a preguiça de falsear o contado e o descaramento de ludibriar as autoridades.
Nem a razão da praça se chamar da Figueira são capazes de dizer. É como os vendilhões da Sé, criaturas bíblicas que se engasgam nas rezas. Não me espanta ser por cá que se tenha estabelecido uma actividade como esta, afinal estamos na cidade rainha do comércio. Quem inventou o negócio dos tuks foi um senhor chamado Paulo Oliveira. Um dia, a passear no Chiado no seu Piaggio Apê Calessino, reparou no interesse dos estrangeiros na sua montada e logo mandou vir uma dúzia para explorar o filão. Os outros, macacos de imitação, seguiram-lhe a peugada. Sem espanto, o negócio foi estabelecido e ninguém das autoridades económicas e do Trabalho foi verificar de que se tratava.
Foto: DR.
E quando foi já era tarde. Treze anos passados é uma actividade instalada onde aterra toda a sorte de necessitados. Não direi que se façam fortunas, mas posso garantir que só a apanha da amêijoa se equipara no banho à realidade tributária. No meu caso, enriqueci de tal forma que empreguei sem contrato o Nuno o Salazar o Garcia o Sousa e o Gomes. Somos uma empresa familiar. Tributada no altar do altíssimo que é a fonte de inspiração para a escrita de rua. O melhor lugar para se estar.
Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)
Segundo as mais recentes notícias… parece que a cidade se encontra num singular estado de efervescência filosófica.
Edgar Allan Poe
UM HOMEM NA LUA
Se alguém conhece bem as estações de metro de Lisboa, eu conheço. Durante os últimos anos em que lá vivi, nem sequer tinha carro. Agora que vivo em Estremoz e viajo muito pelo País, desculpem, mas – se alguém conhece bem o terminal rodoviário de Sete Rios, eu conheço. Ambos os conhecimentos, quando aplicados a mim, podem ter a certeza de que querem dizer uma coisa muito importante: conheço muito, muito bem as lojas da Mbooks. Tenho a biblioteca cheia de grande, preciosa literatura, novinha em folha, comprada por cinco euros, às vezes mesmo por três. E, sem esses preços de fundo de colecção, nunca teria possuído condições materiais para ir enchendo desta forma as minhas prateleiras. A pessoa pode dizer coisas horríveis sobre a Mbooks, nomeadamente que em muitos pontos de venda oferece péssimas condições de trabalho aos seus funcionários, ou que lhes paga muitíssimo mal sem lhes dar quaisquer condições de segurança. Mas aqui não é isso que está em causa. Está em causa as pessoas poderem aceder presencialmente[1] e financeiramente a livros formidáveis dentro do perímetro dos seus trajectos quotidianos, fora do espartilho pouco convidativo e pouco compreensível dos circuitos destinados à elite. E podem demorar o tempo que quiserem a fazer as suas escolhas. Os trabalhadores de serviço podem não perceber absolutamente nada de literatura[2], mas são sempre extremamente prestáveis e simpáticos. Isto vale ouro. Da maneira como espiralou hoje a ignorância[3], isto é dos melhores serviços que alguém pode prestar aos livros. Enquanto forma de arte, a literatura merece-nos o maior dos respeitos. Não há pior desrespeito do que começar a empurrá-la para fora de cena. Às armas. Alerta.
Há que ver que os meus longos encontros com o Terminal Rodoviário de Sete Rios começaram muito antes da minha mudança para Estremoz. O meu País atribuiu-me o estatuto de pária logo aos cinquenta anos, e a partir daí, desde que os meus filhos deixaram de precisar da minha presença e orientação constante[4], sempre que não estive em Amherst dei muitas voltas ao texto para evitar a agressividade guerreira das pessoas com que costumava cruzar-me em Lisboa. Olha que gaita, não gosto de sofrer. Andei numa grande ciganagem por refúgios longínquos, bonitos e tranquilos, esconderijos benevolentes e terapêuticos onde fosse fácil viver dentro do círculo daquelas amizades simples, descomprometidas e autênticas que ali existem, e esquecer tudo o resto. Era só chegar a Sete-Rios, pedir um lugar à janela como ainda hoje peço, e ficar a ver o País deslizar do outro lado do vidro: várias horas mais tarde, tudo era muito mais leve, e todos os episódios confrangedores se tornavam hilariantes.
Lembro-me de uma vez voltar com a Nídia da praia e de nos sentarmos as duas no muro a contar moedas pretas, para vermos se, entre um e dois cêntimos, conseguíamos ou não totalizar o euro inteiro de que eu precisava para voltar para casa. Conseguimos, mesmo à justa. Ainda me lembro perfeitamente dos olhos furiosos do motorista quando eu lhe despejei na mão aquele cascalho todo, a dizer “está certo, eu e a minha amiga estivemos a contar todas as moedas, dá mesmo um euro”; e a Nídia, do outro lado da porta, parada no passeio: “é verdade, contámos as duas, está absolutamente certo.” Ainda se fosse algum surfista, algum monhé, algum preto de cabelo pintado. Mas não. Francamente. Duas senhoras como nós, já a puxar para o idoso, compostas e bem vestidas e tudo. A pagar em moedinhas de um cêntimo. Está tudo maluco.
A Nídia diz que foi só o autocarro arrancar e desaparecer por trás da curva. Deixou-se cair em cima do muro e riu, riu, riu, riu, em perfeito contraciclo com o dia de Inverno de nuvens escuras encasteladas a toda a sua volta.
Chama-se a isto rir na face da desgraça. É a nossa única forma de sobrevivermos felizes, e de sairmos das nossas provações ainda boas pessoas, talvez pessoas melhores. Continuo a sentir imensas saudades do meu grupinho de amigas e dos homens interessantes com tempo para conversar que fui construindo sem ninguém ver. Tenho saudades do meu ermitério no Penedo, tenho saudades da grande família que me acolheu em Colares quando o mundo veio abaixo. Foi uma troca por troca que me fez muito bem: fiquei na miséria, mas cheia de paz. Consegui escrever livros que andavam há muitos anos para serem escritos.[5] Consegui, finalmente, preparar com pés e cabeça, e com toda a concentração deste mundo, a candidatura à bolsa da Fulbright que acabou por permitir a minha partida para os Estados Unidos para recomeçar a estudar e tornar-me co-autora de mais um livro de investigação. Recomecei, por fim, a gozar-me da liberdade de ficar na cama à noite a ouvir rádio baixinho[6] e a ler madrugada dentro se muito bem me apetecesse. Era só estar um lindo dia de sol em Abril que eu agarrava imediatamente no José de Oliveira Cosme[7] e bazava dali para a praia, para todos os seus efeitos terapêuticos, e para os ocasionais bons amigos e boas conversas que se têm na praia a título extemporâneo[8].
E fartei-me de rir. O tempo todo. O cenário pode ser duro, o caminho ainda mais, mas assiste-nos o direito de nos divertirmos com as nossas próprias desgraças.
Quando cheguei ao Sudoeste, dada a abundância de turistas por ali naquele tempo, e à minha abundância de roupa acumulada noutros tempos, ainda me ri bastante com a Ana nas nossas deslocações às feiras locais sempre que não estava a chover, para regatear furiosamente com as estrangeiras os preços das minhas roupas mais finas. E contava-lhes histórias intermináveis, no fio da navalha entre a verdade e a ficção, sobre a origem e a história de todas aquelas maravilhas exóticas, apelativas, intactas, e subitamente vendidas ao desbarato numa feira de ferro-velho qualquer. A Ana ouvia, ouvia, e pasmava com a minha capacidade de contar as mesmas histórias sempre de forma diferente de cada vez que mudávamos de poiso e vinham de lá outras estrangeiras interessadas. “É que nem sequer são as mesmas gajas” – comentava ela. “Mas eu assim divirto-me muito mais” – explicava eu. E era verdade. Era bastante melhor do que todas as alturas em que fiz psicologia pop para tentar animar as leitoras deprimidas que se aproximavam devagarinho, com os olhos muito abertos, estancavam, abriam e fechavam a boca em silêncio, e finalmente diziam, muito baixinho, de queixo caído, “mas você é a Clara Pinto Correia”, ao que eu respondia com um sorriso, “pois sou, e este filmepodia ser muito pior, aqui ao menos tenho amigas[9], e tenho roupa para vender.” Seguiam-se vários lamentos explicativos das grandes depressões delas, por vezes até com prantos demonstrativos. E eu, já que ali estava e aquelas mulheres não tinham vindo até à minha banca para comprar roupa, dava todo o meu melhor para conseguir fazê-las rir[10]. Houve só uma vez em que a Ana sibilou, enquanto estávamos a fazer marcha atrás para virmos embora: “fds que eu não sei como é que tu aguentas isto.[11]” Mas é preciso ver que, nessa feira específica, num dia inverno cheio de humidade, nem eu nem ela tínhamos conseguido vender uma única peça.
Nesta aldeia, como ao fundo de outros destinos da camioneta, a Ana e a Nídia apreciavam particularmente os livros sempre diferentes que eu trazia de Lisboa, e que procurava trazer sempre em português. Era sempre da melhor literatura que há no mundo, adquirida sempre por preços absolutamente compatíveis com o meu estado de desgraça, porque a trazia comigo sempre da mesma maneira: chegava uma hora adiantada ao terminal, e, depois de comprar o bilhete e tomar café, passava-a quase toda dentro do espaço exíguo mas sobrelotado da sua loja da Mbooks. Por acaso é uma daquelas que oferecem péssimas condições, tanto aos funcionários como aos utentes, o que é absolutamente lamentável para um ponto de venta que cobre o País inteiro. Mas tem escondidas lá dentro arcas do tesouro impressionantes. Da primeira vez que lá entrei rumo ao meu esconderijo no Sudoeste encontrei um caixote com restos da famigerada colecção Europa-América a dois euros. Com tanta sorte, entre eles estavam alguns exemplares de um dos meus eternos livros de cabeceira, o GREEN HILLS OF AFRICA do Hemingway. O título estava traduzido para português como AS VERDES COLINAS DE ÁFRICA, já se sabe que o que é bom naquela colecção não são as traduções mas antes o grau de abrangência, e a verdade é que consegui comprar um para cada uma delas, e ainda um romance da Pearl S. Buck[12] para mim – qualquer coisa que, sabe-se lá como, tinha conseguido escapar ao meu momento de devorar compulsivamente tudo o que existisse da laureada americana na Europa-América, durante um mês de férias passado em Sesimbra quando eu tinha doze anos. E ainda fui tomar outro café para saborear as primeiras páginas até chamarem para o embarque no meu expresso.
Nem me lembro de quando é que começou a tradição do terminal de Sete-Rios; mas, nessa altura, já a tinha totalmente incorporada: quando se viaja compra-se um livro. Uso pouco os comboios e os barcos que servem Lisboa; mas, se usasse, também me dava ao mesmo luxo: há uma loja da Mbooks naquele terminal enorme do Cais do Sodré. E, diga-se de passagem, está localizada e organizada de forma substancialmente mais digna do que a loja de Sete-Rios. É um desperdício as pessoas tenderem a passar todas por ali cheias de pressa. Eu, que não vivo em Lisboa, já lá parei algumas vezes nestes últimos anos, e confirma-se: tem uma grande quantidade de grandes obras a preços inacreditáveis. Claro que há sempre diferenças de uma loja para outra: no Cais do Sodré, já quase que tive de mandar um par de berros à jovem demasiado simpática que estava de serviço para que, antes de mais nada, parasse de falar comigo em inglês; e, a seguir, para que parasse de andar atrás de mim, que eu tinha tempo e preferia procurar o que me interessava sozinha. Também se nota que estão para venda muito mais obras em francês e inglês, algumas em espanhol, outras tantas em alemão.
Por mim tudo bem, gosto de ler noutras línguas e não tenho vontade nenhuma de morrer estúpida; mas estes livros tendem a ser mais caros do que as edições portuguesas, e, nesse pormenor, de certeza que afastam os leitores de salário mínimo como eu. E o primeiro-ministro pode dizer o que muito bem lhe apetecer sobre a abundância e a estabilidade portuguesas, que isso não impede que toda a gente saiba que Portugal está cheio de pessoas pagas a salário mínimo. E que se falou nisso o menos possível, mas ficou muita gente desempregada no final de 2024. Portanto é bom que os livros não fiquem mais caros. Pelo menos, para quem tiver essa prioridade e arranjar esse tempo, os livros que se descobrem no meio de todas as tretas que também se vendem na Mbooks são alimento para alma. Às vezes é um alimento tão precioso que ficamos a devorá-lo durante a noite inteira.
Enquanto estive em Lisboa, a melhor loja da Mbooks era, sem dúvida, a do metro da Alameda. Talvez agora alguém me escreva a dizer que ela já não existe e, assim, a dar-me um grande desgosto; mas na altura existia e era a mais digna e limpa de todas. Havia mesmo um balcão grande a separar a funcionária dos potenciais compradores, e do outro lado do balcão havia uma cadeira de escritório. Os conhecimentos literários da funcionária podiam não ser grande coisa, mas ao menos não nos incomodava depois de lhe dizermos que não precisávamos de ajuda: calava-se, ouvia a sua música, e sorria-nos quando vínhamos pôr as nossas escolhas em cima do balcão. Até álbuns de capa dura, daqueles que são muito bonitos para pôr na sala, mas estes com o valor acrescido de serem também extremamente interessantes e rigorosos[13], eu trouxe dessa loja. Enquanto vivi no Bairro dos Actores, usar aquela saída do metro era a bem dizer obrigatório sempre que acabava de ler um livro: tinha de passar por lá logo a seguir para trazer outro para casa. Estava de tal forma viciada que nem conseguia dormir se não estivesse antes pelo menos uma hora a ler, idealmente de janela aberta para a felicidade do Verão em Lisboa, ou então de vidros encostados contra a toada suave da chuva a cair lá fora. Foi o período em que a minha biblioteca pessoal cresceu mais[14], sem ser preciso fazer nela nenhum investimento que doesse na carteira, por pobre como tudo que eu fosse. Empilhar cada vez mais livros dentro do meu quarto dava-me uma sensação de empoderamento que não era brincadeira nenhuma. Cada maluco tem a sua.
A loja de Sete-Rios não é nem digna nem limpa, mas ao menos é costume lá estar um senhor que gosta mesmo de livros. Foi lá que comprei os meus Faulkners e os meus Fitzgeralds, além de um Chandler que eu nem sabia que existia, porque se chama (mal traduzido) O PARQUE DOS VEADOS, e é ainda mais sufocante do que OS DUROS NÃO DANÇAM. Conheço-a bem. E esta pérola de desrespeito, perigosíssima quando entramos numa segunda era Trump que todos sabemos que vai ser ainda mais inculta e mais cheia de armas em casa do que a primeira, acaba de acontecer há cerca de um mês atrás.
Vinha eu estafada, depois de dois dias extremamente cansativos de revisão de provas, a entrar no terminal exactamente uma hora antes do expresso das dezanove, o último que sai para Estremoz todos os dias. Compro o bilhete, não trago bagagem, vou mas é a correr para a loja da Mbooks. E estranho logo a situação, porque as luzes estão baixas, parece mesmo que já fecharam, mas ainda faltam uns bons três quartos de hora para o fecho oficial. Vejo o tal senhor a andar de um lado para o outro feito barata tonta, e pergunto-lhe se a loja já está fechada.
“Não. Estamos só a poupar energia, no caso de não vir ninguém. Mas entre à vontade. Eu subo a luz.”
“Mas o senhor…”
“Ah, não ligue. Eu estou só a carregar mobílias. A loja tem que perder bastante tamanho para a Rodoviária poder instalar os seus bancos novos.”
“Bancos? Quais bancos?”
“Então a senhora passou mesmo por eles e não os viu? Olhe ali.”
Eu até fiquei arrepiada. Era mesmo verdade que passei ao lado do banco para onde ele apontou. Era uma daquelas estruturas em círculo, com cerca de oito lugares a toda a volta, que depois são forradas com espuma para maior conforto, e cobertas com napa ou com qualquer outra imitação de tecido resistente para melhor efeito visual. Se iam instalar ali, num lugar já contaminado pelo grande carrinho das pipocas, vários bancos destes ao mesmo tempo, então a Mbooks tinha de encolher, e encolher bem.
Sempre gostava de saber quem é que lucra com estas jogatanas, porque os passageiros não são de certeza. Em todos estes longos anos de uso do terminal de Sete-Rios, nunca vi todos os bancos cheios. Nem os de dentro nem os de fora do terminal. Nem sequer os da esplanada coberta ao lado da descida para o metro e para os táxis, sem dúvida os mais agradáveis de todos, que podem parecer apinhados num determinado minuto, mas há um código secreto nunca escrito que nos permite sentarmo-nos nas mesas uns dos outros desde que existam lá cadeiras vazias, e além disso estão sempre a vagar mesas de pessoas que se levantam para irem apanhar o seu expresso. Não é o povo português quem vai ganhar mais lugares sentados no terminal de Sete-Rios.
O povo português vai é perder ainda mais a sua simplicidade no acesso aos bons livros, o que é um tremendo insulto à literatura e um desrespeito total pelas pessoas.
Verguenza, como diria o Papa Francisco.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1]NÃO É A MESMA COISA DO QUE COMPRAR LIVROS NA INTERNET, OU NÃO CONSIGO FAZER-ME ENTENDER? Comprar livros segurando neles, folheando, aspirando o cheiro do papel, estudando a capa – é outro tipo de experiência, e basta.
[2] “Onde é que tem as obras de ficção?” – A menina sorri, hesita, vasculha a loja com os olhos – e finalmente aponta com o dedinho rematado numa unha de gelinho perfeito para uma estante de livros com aneis de Saturno, pessoas em Marte, robôs, e assim. Como é evidente, “ficção” é a forma mais rápida de dizer “ficção científica”.
[3] “Para ler? Então, gosto de fantasia.” Por “fantasia” entenda-se aqueles livros enormes com sagas em três volumes à maneira do SENHOR DOS ANEIS, todas iguais e todas igualmente deploráveis. Os putos enchem as mochilas daquilo até mesmo ao cimo.
[4] Bem. Honestamente, é mais que atingiram os dois a maioridade e eu deixei de ter essa obrigação de mãe solteira. Claro que o Dick achava a esse respeito imensas coisas que eu não achava. Mas ele nunca tinha sido pai solteiro.
[5] Deste período, o melhor exemplo é um dos meus romances preferidos, NÃO PODEMOS VER O VENTO.
[6]Nessa altura a rádio pública passava óptimos programas nocturnos. Daquelas plantas raras e delicadas que, depois de cortadas uma vez, já não voltam a crescer. E ninguém parece preocupado com o vazio gelado que deixam atrás de si.
[7] Era o meu cachorrinho da altura, trazido com muito amor e carinho do Canil Municipal de Sintra. Parecia um cão d’água preto e branco em miniatura, e – felicidade! – quem o abandonou já o tinha ensinado a só fazer necessidades na casa de banho.
[8] Levo a Marta à Praia da Aguda, de todas a minha preferida com a sua imensidão de degraus, num fim de semana de sol esplêndido adiantadíssimo no calendário. A Marta anda triste como a noite, e aquele prazer em fins de Março, na perfeita Lua Cheia, faz-lhe bem de certeza. No grande areal do equinócio, em plena Maré Vazia, só estamos nós e um casalinho esquisito – ela é muito jovem, mas aquela boca tão torta só pode ser a marca de um AVC bastante sério, e ele anda com os pés para fora, em movimentos sincopados como os dos patos, orientado por uns olhos completamente tortos. Depois de eu lhes mostrar como é que os camarões aparecem nas poças de água que o mar deixa atrás de si nas rochas, percebemos que a lesão dela é tão grave que mal consegue falar, mas ele conta-nos tudo pelos dois. São ambos antigos heroinómanos que se amavam de paixão, e que, numa noite de Verão, foram para o terraço da casa dos avós dela no Magoito e administraram a si próprios uma overdose de mãos dadas, porque no beco onde se tinham encurralado já não existia qualquer saída. Ambos sobreviveram. Mas ambos estiveram tanto tempo em coma, e ambos perderam tantas faculdades e sentidos, que já nem conseguiam namorar: limitavam-se a dar apoio um ao outro naquela caminhada difícil pela normalidade. Sobreviviam das aguarelas psicadélicas dos acampados em todas as tribos e capelinhas das festas trance, que estavam à época no seu pico de popularidade; e das carteirinhas de filtros já prontos para enrolar e pôr nos charros que a empresa dele produzia em Vila do Conde e fazia circular nas festas por cinco euros. Mostrou-nos uma, eu disse “epá, mas que grande ideia, o filtro é sempre o pior,” e comprei-lhe logo três. A Marta estava a olhar para nós com os pezinhos estendidos para a rebentação e os olhos cheios de lágrimas. “Não é convosco,” acabei por esclarecer eu. “A Marta anda mesmo, mesmo muito triste.” O vesgo deu-lhe um abanão. “O que é isso?”, perguntou-lhe ele com um vago sotaque nortenho. “Gostas de perder o teu tempo? Mas ouve lá, tu não sabes que a vida é muito curta? Vai mas é a umas festas, mulher!” A Marta corou até à raiz dos cabelos, como uma virgenzinha que até aí foi sempre protegida mas de repente está sozinha e tem que entrar em diálogo com o taberneiro mais tinhoso ali do sítio. “Festas?” hesitou ela, com toda a franqueza. “Mas isso é o quê?”. Eu não foi por maldade, foi mesmo por carinho: desatei a rir. “Ó querida Martinha! Com toda a tua experiência da vida não sabes mesmo o que são as festas? Olha, prometo: este Verão, assim que for a primeira festa aqui nas florestas de Sintra, eu agarro no José de Oliveira Cosme, arranjo uma tenda emprestada, vou a Lisboa buscar-te e levo-te lá.” – “Uma tenda?” – “Pois, uma tenda.”
E foi assim que tudo começou.
[9] Gesto dramático de passar o braço pelo ombro da Ana, que odiava essas mariquices.
[10] Apanham-se grandes sustos com estes instintos de escuteirinho. Por exemplo: “Ai, meu Deus. Já não me ria há tantos anos. Clara, desculpe, mas agora tenho imenso medo de voltar a sair de ao pé de si.” E se nesse dia não estivesse lá a Ana, para acabar expeditivamente com o dilema a título de dona do carro? “A menos que queiras ir com a gaja, nós vamos mas é bazar, boa?” – “Pois, muito obrigada, e por mim é já.”
[11] A Ana passou grande parte da vida na Áustria, onde se licenciou em Economia. É casada com um Surfista escandinavo, tem quatro filhos, dá aulas de Português a estrangeiros, e de Maio a Outubro tem uma banca de ornamentos na calçada que contorna a praia. Não fazia a menor ideia de tudo o que eu tinha aguentado antes. E depois. Aguentar “aquilo” era, obviamente, uma pera doce.
[12] Não é uma questão de snobeira. Não me lembro mesmo da tradução portuguesa do título.
[13] Tenho na minha sala, aqui em Estremoz, um desses álbuns A4/capa dura da Mbooks. O título diz, apenas, THOMAS MORE. É uma belíssima biografia, cheia de informação sobre a Renascença e sobre a corte demente de Henrique VIII.
[14] A minha enorme biblioteca pessoal anterior foi cruelmente saqueada e destruída no armazém dos amigos a quem eu tinha pedido que a guardassem até eu conseguir assentar arraiais, e a minha colecção de CDs, tão difícil de construir, levou o mesmo caminho. Salvaram-se todos os meus livros académicos, que felizmente estavam depositados no Instituto Bento da Rocha Cabral; e também toda a minha ficção de cabeceira, que eu guardei sempre comigo para me dar força. Quando me instalei em Estremoz, achei por oferecer as cerca de cem obras da minha colecção de ficção científica à Biblioteca Municipal, uma vez que eu já não preciso dela, mas talvez outras pessoas precisem. Grande parte de tudo o resto veio da Mbooks.
Há derrotas que doem e há derrotas que humilham. E depois há ainda aqueloutras cuja única redenção entronca no olvido. Aquela do Benfica contra o Braga, em tempos hodiernos na cronologia, mas em tempos de antanho na memória, inscreve-se neste último e mui ingrato capítulo. Quem vive de paixões não deve escrever sobre uma ferida ainda aberta, dizem os médicos, tal como não se narra um naufrágio enquanto o submarino não emerge. Mas disso não entendo nada, talvez seja melhor ao Almirante Gouveia e Melo, mesmo arriscando que, estando já na reserva, se tenha esquecido de muita coisa.
Em todo o caso, no registo filosófico que me cabe nesta crónica, declaro: há momentos em que o silêncio não é apenas um acto de prudência e de sabedoria, mas uma ética de sobrevivência.
Ora, mas no que concerne – não costumo usar este termo; enfim, fica… – à escrita desta crónica, dois fenómenos se apresentam de natureza complementar – uma espécie de proverbial casamento entre a fome e a vontade de comer. Por um lado, a minha indolência em dissecar o que foi, aos olhos do mundo, aquele descalabro do Glorioso contra os homens de Bracara Augusta. Por outro, a sábia decisão do director desta “casa” – que, por feliz acaso, sou eu – que, em exercício digno de Cícero, ponderou: “É justo perpetuar na memória uma catástrofe que até o mais benfiquista dos benfiquistas prefere esquecer?” Não, caro leitor. Não é justo. Como não foi justo o passe em falso, a defesa em apneia ou… o árbitro – sempre o árbitro, porque o árbitro é, invariavelmente, parte do enredo.
É bem verdade que um silêncio jornalístico sobre uma tragédia desportiva pode parecer parcialidade. Tanto mais a notícia é o homem a morder o cão, e neste caso notícia seria o Braga vencer o Benfica. Mas já dizia Voltaire – e se não dizia, devia ter dito, porque me dá jeito meter aqui um filósofo para sustentar a minha tese – que não há imparcialidade no amor. E amar o Benfica é, afinal, o destino que se abraça com a mesma intensidade que fez um Romeu à sua Julieta, mesmo que por vezes nos esfaqueie, ou fraqueje, o coração.
Aliás, muitos leitores do PÁGINA UM me criticam por esta Da Varanda da Luz, dizendo, com razão, ser inconcebível um jornalista que se reputa de isento andar nestas andanças – com pleonasmos à mistura. Mas quem, em futebol, espera uma crónica honesta, imparcial e detalhada? Afinal, cansa ser neutro – e para se ser imparcial nas notícias mostra-se necessário um escape. E qual é o melhor escape que não a bancada de um estádio?
Aliás, voltando ao silêncio sobre o Braga: a História está repleta de exemplos de momentos em que o silêncio foi estratégico. Vasculhei por aqui, e li que Esparta, após a batalha de Leuctra, optou por não relatar a derrota aos cidadãos, temendo abalar o orgulho nacional. Li também que Roma – não Associazione Sportiva, mas a dos romanos –, quando derrotada por Aníbal Barca em Canas, fez esquecer a humilhação, varrendo a derrota da memória colectiva e focando-se somente na vingança, alcançada pouco mais de uma década depois na Terceira Guerra Púnica.
Pois bem, partilho o mesmo espírito: por que relatar, com detalhes lancinantes, aquilo que já dói sem narração? Afinal, a dor colectiva já deve ter ficado expressa por mui benfiquistas nos cafés, nas redes sociais e no silêncio constrangido nos lares. Que mais há para dizer, portanto?
Poderia, claro, aproveitar este espaço para filosofar sobre a decadência do futebol moderno, sobre o preço dos passes milionários ou sobre a fragilidade de uma equipa que se imortalizou nos anos 60, deu uns fogachos nos anos 80, e que custa a levantar voo, apesar das águias. Mas, convenhamos, tal seria um exercício cínico num momento em que a derrota já foi sentida nos ossos. Se já há o fardo da existência, deixemos o peso da derrota para os outros.
E assim fica completa a crónica que não foi. Ou antes, a justificação para a ausência de crónica que, em si, é uma manifestação de puro benfiquismo: abraça-se a glória, mas vira-se o rosto à humilhação. Não é covardia; é elegância. E nem foi, convenhamos, por falta de tema. Foi falta de ânimo, é certo – mas também uma delicada aliança entre a necessidade de não perpetuar a desgraça e a vontade de avançar para vitórias que certamente me esperam hoje.
Além disso, e como diz o povo, acumulada por sabedoria de milénios de adversidades e de vinho, muita água faz o tempo correr por baixo da ponte. E, em duas semanas, não só correu água, como, depois da tristeza, já o Benfica levantou um caneco – a Taça da Liga –, à custa do mesmo Braga e também do Sporting. E, portanto, temos hoje Benfica renascido. E, aliás, renascido, e sei isso, porque estando a alinhavar esta crónica, já estão dois encaixados nas redes do Famalicão.
Já agora: esta crónica também vai ficar diferente, porque não me dá jeito escrever sobre as incidências do jogo. Entrei mais uma vez atrasado, e quando entrei já o Benfica ganhava. Não cheguei para ver o golo inaugural, mas cheguei a tempo de testemunhar uma coisa tão rara quanto fascinante: uma bancada central cheia de lugares vagos. Não resisti à tentação, claro. Em vez de uma colina himalaica que tenho de subir até à Varanda da Luz, fiquei aqui mais por baixo, com a promessa de uma visão privilegiada do relvado e, ao que parece, um festival de palavrões que os sócios mais antigos, e seguramente mais experientes, têm na ponta da língua… e com a qual vão mimando o árbitro, apesar de estarmos a vencer.
Sentar-me na bancada central, embora impossibilite escrever confortavelmente, foi uma decisão calculada. Melhor vista? Sim. Mais palavrões? Com certeza. Menos tumulto? Nem por isso. Porque se há uma coisa que aprendi no futebol é não há papas na língua. Um destes dias ainda escrevo uma crónica só com palavrões e dichotes enquanto se assiste aos 90 minutos. Estes são os verdadeiros cronistas, mais ferozes do que qualquer jornalista, mais eloquentes do que qualquer filósofo. De cada vez que o árbitro apita contra o Benfica, lá vem um ensaio oral, misto de tragédia e comédia. Uma falta contra o Benfica, e a mãe do jogador adversário é vilipendiada.
Com o Benfica em vantagem no marcador, tenho garantida uma noite tranquila. O Famalicão, ao que parece, está disposto a facilitar a vida. Nem um chuto digno de nota. O Trubin daqui a nada adormece.
Por agora, contento-me com esta bancada central, com os seus cronistas de língua afiada e vista atenta, com a promessa de mais golos e mais emoções. Se a noite acabar em goleada, tanto melhor. Se não, bem… há sempre espaço para mais uma crónica, mais uma análise, mais uma ópera de palavrões. Afinal, na Luz, nunca há dias iguais – só noites cheias de histórias para contar.
E encerro esta crónica – e vou armar-me em espectador normal. Até vou sair do estádio como adepto normal, num lento magote até ao Colombo. Terça-feira cá estarei: o Barcelona espera-me, ou espera-nos.
Recepção ao Barcelona. Liga dos Campeões. Não é todos os dias nem para todos. Terceira-feira de dilúvio. Debaixo de chuva, os céus prometeram uma noite épica, e tudo começou com uma ilusão – palavra parecida com o castelhano ilusión, que significa mais entusiasmo ou mesmo alegria –, mas que terminou isto num aguaceiro de frustrações. Desta vez metido numa ala lateral da Varanda da Luz, uma espécie de coxia, porque houve mais jornalistas do que mães para assistir ao jogo, mas aparentemente escolhido para maximizar a irritação: não só pingava – um gotejar rítímico e implacável que, se fosse numa cela medieval, seria tortura reconhecida – como ainda me puseram junto de jornalistas vindos da Catalunha.
O Benfica, confesso, começou como um furacão, levando-me a acreditar que, finalmente, o colosso catalão seria domado. Percebi a aflição de um jornalista, a meio lado, com sotaque brasileiro. Ao intervalo, tínhamos um 3-1 vistoso e galvanizante. Mas, mas, mas… na Liga dos Campeões, o Benfica é uma espécie de Estoril na nossa Liga que está a ganhar por 3-1 ao intervalo, mas inseguro de alcançar a vitória final.
Aos 65 minutos, o Benfica esmoreceu e os golos do Barcelona começaram a cair, cada um mais doloroso que o anterior. A última machadada, aos 95 minutos e uns quantos segundos, imediatamente depois de um lance que deveria (pelo menos com o lusitano VAR) dar penálti a nosso favor, pareceu-me castigo divino, como se os céus dissessem: “De que serve sonhar tão alto se não tens guarda-chuva nem defesa sólida?”
Se a derrota já era difícil de digerir, a cereja no topo foi ter de encontrar uma dose extra de fair play para continuar a sorrir para o simpático jornalista brasileiro, radicado na Catalunha, com quem fui compartilhando as incidências do jogo e os pingos de chuva.
Não se perdeu tudo: o Lucas, assim se chama, trabalha para o site brasileiro do Barcelona. Fiquei com o contacto dele, prometendo que, numa próxima oportunidade, visitarei o Camp Nou. Assim, pelo menos, com as suas indicações, não passarei pelo que lhe aconteceu aqui em Lisboa: andou às voltas durante uma hora, perdido e irritado, à procura de uma entrada que parecia ter sido escondida de propósito.
Talvez, numa outra noite, menos molhada e menos caótica, consiga redimir esta frustração – em todo o caso, mais memorável do que a derrota com o Braga. Mas, por agora, fico apenas com a certeza de que, no jogo e na vida, há dias em que os deuses do futebol decidem deixar-nos à chuva. Literalmente.
Nunca vi a Clara Pinto Correia ao vivo e a cores. Não a entrevistei (mas gostava e quem sabe). Soube da existência desta dama das Camélias cruzada de Madame Pompadour nos meus primórdios no Jornalismo. O camarada Rui Barros, meu fornecedor de Literatura, passou-me o ‘Adeus, Princesa’. Li o romance numa noite, como pedem as grandes prosas a arder de emoção e inventiva. Daí para cá, passei a ser omnívoro das coisas da Clara, fosse onde fosse, fosse o que fosse. Gosto dos ecléticos. A Clara faz parte desta família. Quando a acusaram de plágio(s) cheirou-me a esturro. O Jornalismo é prenhe de fait-divers e histórias mal contadas. A defesa da Clara, e a sua retratação pública destemida, seriam argumentos suficientes para a poupar ao ostracismo e penúria que daí veio. A bruxa fora caçada, para gáudio dos Torquemadas.
Antes de prosseguir lembro aqui umas quantas histórias pessoais. Comecei a trabalhar no Semanário, aos 19 anos. Na altura, propus à direcção do jornal um artigo sobre um cambalacho na Quinta da Marinha que metia uns poderosos. Tinha as provas, os depoimentos, tudo afinado para atacar a prosa e desmascarar o esquema financeiro que recuava ao tempo do fogo posto nas matas à beira do Guincho. As chefias tomaram o assunto por delicado e declinaram a publicação. Aliás, recomendaram-me o silêncio. Teimoso, e sem exclusividade que me impedisse de escrever e publicar fosse onde fosse, bati o texto na Remington do meu avô Vítor Garcia e levei o artigo ao O Jornal, onde esperava melhor recepção, mais ousada.
Calhou ir à fala com o Rogério Rodrigues, figura por quem tinha apreço e tomava por imune à desonestidade intelectual. Leu a prosa à minha frente, de olhos arregalados, e perguntou se tinha sido mesmo eu a escrevê-la. Era matéria de peso. Disse-me então para lhe dar uns dias que ia pegar no assunto e dar-me-ia notícias. Insisti que se era para ser, era então, antes do assunto vir à baila e “nos” passarem a perna. O “nos” vinha de um sentido ingénuo de camaradagem. Na semana seguinte comprei O Jornal e lá estava, a minha prosa, com ligeiros retoques, assinada pelo Rogério. Fiquei estarrecido e a única coisa que me ocorreu foi ir à redacção chamar-lhe de pulha. Que dizer de uma apropriação deste calibre? Ainda no tempo dos faxes, deveria ter enviado o artigo por forma a provar a minha autoria. Mas não. Entreguei o original em mão, à confiança no camarada.
Tive outra destas com o senhor E., meu editor no Semanário, que me pediu um retrato do amigo Vasco de Castro. Lá fui, a minhas expensas, a Fontanelas. Desta feita, antes de entregar a prosa, mostrei-a de antemão ao Vasco, que me devolveu uma carta a dizer “um jovem tão verde com prosa já tão vermelha”. Ficou uma amizade para a vida. Quanto ao artigo, saiu assinado pelo senhor E. Desta vez fui atrás dele para o encher de porrada. E só não o fiz porque se raspou de véspera para Cuba. Fiz queixa em vão no Sindicato. Acabei por virar a página sem pugilato. Deixei passar vinte anos ate voltar a dar-me com a figura e, tal como nos assuntos familiares aziagos, optei por esquecer o dito.
Falo aqui destas incidências da vida porque nunca fiz tal coisa. Aliás, de mim só podem dizer que quero é que se fodam estes e outros, tomados por tibieza de carácter. Querem outra? Trabalhava então na Capital, do tio Balsemão. Digo tio porque o conheci na minha vida passada de betinho de Cascais. Betinho radical. Aliás, só não me estreei no Expresso porque o tio tinha mais do que fazer do que andar a interceder por mim. Verdade seja dita que ainda me remeteu para a directora de recursos do Expresso, uma senhora que estava sempre de baixa, e, farto de levar tampas, acabei por bater à porta do Semanário com uma carta do professor Dr. Adelino Alves, que julgava ser de recomendação para estafeta, mas afinal era para ser acolhido por estagiário.
Mas voltemos à Capital. Um dia, o senhor P. destacou-me para entrevistar uma alta patente da PSP. Fiz o serviço, entreguei as laudas e deparo-me com espanto ter sido alterada no artigo publicado a patente do homem, para uns degraus abaixo. Crime de Lesa-Majestade. Toca de receber um telefonema da bófia a descompor o reles escriba. Ora, o reles escriba, já tinha passado por umas quantas e guardara o original. Levei a prova à Exª Sra. Helena Sanches Osório que arrumou o quiproquó, evitando o meu despedimento por justa causa de ofensa à intendência do reino. Acabei por sair daquele viveiro de invertebrados da Capital pelo meu próprio pé e nem a estima pela directora me fez vacilar.
Voltemos ao Semanário dos meus 19 anos, ainda trabalhador-estudante. Chegada a hora dos exames de final de ano lectivo na Universidade, pedi uma licença sem vencimento, fruto do meu direito e do vínculo que tinha ao jornal por contrato assinado. Para minha surpresa, ao regressar dos exames, tinha sido dispensado e nem uma das minhas canetas sobrara na secretária, entretanto ocupada por outro estagiário. Resolvi levar os tratantes ingratos a Tribunal. Na barra, os senhores, meu chefe de redacção e director, mentiram com todos os dentes ao dizer que eu era um mero colaborador pontual e irregular.
Dez meses de palmadinhas nas costas, idas ao SNOB e louvores ao puto talentoso que publicava aos dois e três artigos por semana (alguns deles manchetes), redundaram num perjúrio descarado, que o meu defensor não soube contornar porque o contrato tinha desaparecido. Mais uma vez, o totó do Salazar, não guardara uma cópia. Não bastaram as provas de vencimentos pagos a termo certo, a avença, outra galga, porque se fosse colaborador pontual não receberia um vencimento nem uma avença, quanto muito uns patacos dos artigos publicados.
Foto: PÁGINA UM
[Nunca contei isto em público, e mesmo em privado, evitei ao máximo andar a remexer na trampa. O Jornalismo para mim só não feneceu porque há o PÁGINA UM. Pode ser que no rescaldo de outra revolução (ou de uma Revolução em casa alta) volte a haver desse Jornalismo em que acreditei e a quem dei três décadas da minha existência. Mas se voltar, que volte livre destes sujeitos. O mais certo é ser no dia de S. Nunca à tarde.]
Volto à Clara que terá destas e doutras para contar. É claro que a Clara, como todos os que caem em desgraça, deixou de ser fiável. É como um adúltero. Uma vez adúltero, adúltero para sempre. Ou um larápio de maior ou menor envergadura. Faz a fama e deita-te na cama. Para os conservadores do burgo, a Clara é a gaja dos plágios e dos orgasmos porventura fingidos. Build yourself a reputation. A Clara a quem os revisionistas acusam, sem ler mais do que as infâmias em sua honra, de ser uma fraude de alto abaixo e de cara a rabo. Não há período de nojo que lhe(s) valha, nem a confissão e a decorrente absolvição dos seus actos, sejam eles de facto, manietados ou inventados como na melhor ficção.
Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)
A mudança de ano condena-nos à vivência de mais um reinado Donald Trump, com a certeza de que teremos de ouvir mais chorrilhos de tolices e de que o mundo não ficará mais bonito. Falei-vos da sua declaração de campanha de que em dois minutos de briefing percebeu tudo o que havia a perceber, o que levava à promessa de que os americanos podiam ficar descansados porque ele é o pai da fertilização in vitro. E mais: vai torná-la grátis para todos os interessados. Se a primeira declaração era de uma estupidez que faz doer, a segunda é de uma demagogia que não se aguenta – termos de ouvir o homem que mais esperneia contra os cuidados de saúde acessíveis para todos os residentes prometer que vai oferecer-lhes de graça um tratamento muito caro que é procurado há décadas por milhões de casais, em clínicas que operam para proveito próprio. Tudo isto para parecer mais moderno do que os fundamentalistas do seu partido que estavam a levantar a voz porque os embriões já eram pessoas e, portanto, congelá-los era um crime. Tudo isto volta a levantar a velha pedra de toque do grande caos que vai na cabeça das pessoas sobre a diferença entre um embrião e um feto. E isso, infelizmente, não acontece só na Améria – os americanos apenas fazem mais barulho. Vale a pena aproveitar a oportunidade para tentar, outra vez, por as coisas no sítio.
Na vida real, a aventura embrionária é uma montanha-russa de um mês, regulada por três tipos de hormonas diferentes: as gonadotrofinas, que vêm do cérebro, e fazem o ovário amadurecer um dos seus ovos; os estrogénios, que vêm do ovário, e regulam a ligação desse ovo com o espermatozoide mais capacitado para a tarefa; e, finalmente, a progesterona, que participa activamente na ligação do embrião às paredes do útero. Estas tarefas devem estar todas prontas ao fim de um mês, ou, mais apropriadamente, ao fim do equivalente a um ciclo lunar[1]. Se não estiverem é porque não houve embrião, pelo que não houve fertilização. Assim sendo, ao fim de alguns dias depois deste ciclo, o cérebro envia mais gonadotrofinas para o ovário para que o ciclo comece outra vez.
Quando o ovo por fertilizar[2] cai do ovário para a Trompa do Falópio, inicia uma jornada até ao útero em que pode, ou não, encontrar-se com espermatozoides pelo caminho. Se não encontrar nada, o revestimento nutritivo que, entretanto, o útero preparou para receber o ovo fertilizado[3] torna-se inútil, e ocorre a menstruação. Mas, se o ovo se encontrar com espermatozoides na sua jornada, e se um deles o fertilizar com sucesso, cerca de cinco dias depois do acto sexual o embrião começa a formar-se, ainda dentro da trompa. Em ciclos que demoram de oito a doze horas, primeiro o ovo divide-se num embrião de duas células, e depois num embrião de quatro células. No total, entre a entrada na trompa e a implantação total no útero um embrião demora cerca de dez dias a completar o seu percurso.
É importante parar aqui, porque geralmente, nas fertilizações in vitro[4], os embriões que os médicos transferem para o útero da mulher, e todos os embriões excedentários que congelam, têm exactamente quatro células.
E, portanto, a resposta é não: estes embriões não são pessoas.
Ainda vão ter que andar muito para lá chegarem.
No fim da jornada pela trompa, o embrião que cai no útero é um círculo microscópico de células todas iguais, que inicia de imediato os seus primeiros contactos com as paredes externas da zona de implantação[5]. À medida que progridem nessa implantação, as tais células todas iguais acabam por formar dois grupos diferentes, numa estrutura que agora já mostra uma diferenciação mais marcada: por fora está uma parede de células todas iguais; e, por dentro, está um botãozinho de células arredondadas agarradas a essa parede. A parede externa vai formar a placenta, e todas as outras estruturas de suporte à gravidez; e só o botãozinho minúsculo é que dará origem ao feto propriamente dito.
Mesmo assim, não, claro que não: estes embriões ainda estão muito longe de ser pessoas.
À medida que o seu processo de implantação no útero progride, o embrião vai-se diferenciando cada vez mais, formando os precursores dos primeiros tecidos, as células precursoras do tubo neural, e, finalmente, as estruturas percursoras dos primeiros órgãos.
Esta gestação embrionária demora cerca de oito semanas. Só depois de concluída é que o embrião passa a ser considerado um feto. E, mesmo assim, é preciso suster a respiração até ao terceiro mês de gravidez, absolutamente crucial para a ligação do feto à placenta, e tipicamente o momento em que ocorrem mais abortos espontâneos. Agora reparem na diferença enorme entre um feto bem-sucedido no final do seu terceiro mês e um embrião de quatro células no seu segundo dia de existência. Se não conseguirem memorizar de outra maneira, usem esta: ninguém precisa de um microscópio para ver um feto. Um embrião, por outro lado, não pode ser visto de outra maneira.
E, evidentemente, o “pai da FIV” não é Donald Trump.
Quem primeiro conseguiu juntar o ovo da mãe com os espermatozoides do pai numa caixa de Petri, obter um embrião de quatro células, transferi-lo para o útero da senhora, e obter uma gravidez bem-sucedida a termo foi o investigador britânico Robert Edwards, trabalhando em conjunto com o ginecologista Patrick Steptoe. Depois de muitas falsas partidas, muitos enganos, muitas pistas erradas, os dois conseguiram sincronizar o ciclo hormonal de Lesley Brown, inseminá-la com um ovo fertilizado fora do corpo com sémen do marido, e fazer nascer Louise Brown, o primeiro “Bebé-Proveta[6]” do mundo, a 25 de Junho de 1978. Posteriormente, o seu trabalho conjunto no Center for Human Reproduction, em Olddham, na Inglaterra, permitiu o nascimento de mais de mil bebés, incluindo a irmã mais nova de Louise. Edwards recebeu o Nobel da Fisiologia ou Medicina em 2010, e faleceu em 2013.
À época, as FIVs permitiam evitar problemas de infertilidade devidos, por exemplo, a bloqueios nas trompas do Falópio: recolhendo o ovo directamente no ovário, fertilizando-o no laboratório, deixando-o desenvolver-se até à fase de quatro células, e injetando-o de novo no útero em sincronia com o ciclo hormonal, saltava-se por cima desse bloqueio, que é responsável por uma quantidade substancial dos casos de infertilidade feminina. Como é evidente, a técnica expandiu-se logo pelo mundo, e foi logo melhorando. Uma das primeiras melhoras foi esta transformação do “embrião” em “embriões” que tanto preocupa os fundamentalistas e ainda hoje baralha todas as pessoas que não têm qualquer obrigação de ter especializações na matéria.
Chamou-se-lhe a superovulação.
Os médicos passaram a estimular artificialmente os ovários da mulher para que, em cada ciclo, em vez de um ovo pudessem obter – facilmente – um valor entre doze e vinte. Isto permitia ter bastante mais embriões bem desenvolvidos, transferir para o útero uns três em vez de só um, para aumentar a possibilidade de pelo menos um se agarrar bem à placenta. Como todos os tratamentos para obter e recolher os ovos são bastante violentos para o organismo feminino e para a psique da mulher que quer engravidar, os embriões excedentários guardavam-se numa câmara de Azoto líquido, prontos para serem descongelados intactos, prontos a repetir a operação sem mais tratamentos se a primeira tentativa falhasse – ou se os pais felizes quisessem ter outro bebé.
Isto já se fazia nos anos 80 do século passado.
Já nessa altura gerava a maior das confusões, criava toda a espécie de controvérsias, e levantava dilemas legais nunca antes vistos.
É espantoso como ainda falta explicar tanta coisa.
E como Trump tem a lata de dizer, e repetir, e jurar aos quatro ventos, que percebeu tudo em dois minutos.
O pó que se levanta com estas grandes questões, legitimamente complexas para a inquietação humana, só assenta se nos dispusermos a um mínimo de esforço no seu estudo, por forma a compreendermos o que está mesmo em causa. Distinguir embriões de fetos, por exemplo, já é um grande passo em frente. Já agora, distinguir os fetos insipientes dos três meses das crianças potencialmente viáveis dos cinco meses também é uma grande urgência. Explica-nos porque é que fazemos algumas coisas e outras não.
O que aí vem é do pior. Por favor, que ninguém escolha manter-se ignorante.
Feliz Ano Novo.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[6] Não se sabe quem inventou o termo, que foi caindo em desuso com o tempo, à medida que se expandiu e trivializou. De qualquer maneira não era especialmente bem-sucedido, uma vez que a FIV tem lugar em caixas de Petri, e não em provetas.
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“e sentei-me, feliz, na irresponsabilidade da vitória”
Ernest Hemingway
GREEN HILLS OF AFRICA
Como é que se ganha uma campanha eleitoral num país democrático, com todas as condições para estar bem informado, quando se é um acabado imbecil e não se tem uma única ideia que beneficie as populações, dentro e fora das fronteiras? Alguns factores são bem conhecidos. Por exemplo, existir uma democracia significa, cada vez menos, que exista também qualquer espécie de meritocracia. E ter-se acesso à informação também não implica, cada vez menos, que se faça uso desse acesso – por exemplo, quando cheguei aos Estados Unidos em 2014, em pleno período Obama, já todos os Professores andavam muito preocupados porque os seus alunos iam buscar a sua informação aos late night shows, aos monólogos dos comedians, e aos posts apócrifos sempre perigosos da internet. Agora juntem à mistura um candidato que não tenha qualquer espécie de vergonha na cara e diga em público tudo o que lhe passe pela cabeça e soe bem, como faz Donald Trump. É assim que a mistura se torna explosiva, porque Trump está a servir a este povo maioritariamente ignorante fatias de bolo que podem não querer dizer nada mas sabem muito bem e são boas de cantar ao espelho enquanto se faz a barba.
Foi por via desta estratégia que, num fórum perto do fim da campanha e destinado especificamente às mulheres, para sacudir as acusações de ter apoiado o Supreme Court[1] a roubar às mulheres os seus direitos reprodutivos, Trump se saiu com a declaração bombástica,
“QUEM? EU? MAS EU QUERO QUE NASÇAM IMENSAS CRIANÇAS AMERICANAS, SEJA POR QUE VIA FOR! EU SOU O PAI DA FERTILIZAÇÃO IN VITRO!”
Os seus opositores, finos e educados, só conseguiram dizer que aquela declaração era “muito bizarra”. And the band played on[2].
Com as suas nomeações sucessivas de cristãos fundamentalistas para o Supreme Court, Trump já tinha feito estragos extremamente sérios nos direitos das mulheres sobre os seus corpos, com o regresso da proibição do aborto logo à cabeça. Esta nova proibição foi feita de forma extremamente pérfida, como se viu do Texas – foi absoluta e sem apelo nos condados interiores, aberta a casos devidamente fundamentadas aprovados em tribunal nos condados periféricos (mas era preciso a família ter fundos para pagar a um bom advogado, e isso é caro), e sem legislação nos condados em que a fronteira intersecta estados vizinhos em que o aborto é legal, sendo que, mesmo assim, é preciso guiar até à clínica mais próxima, que tem que estar a uma distância de mais de cem milhas da fonteira com o estado que tem como tabuleta distintiva DON’T MESS WITH TEXAS[3].
Ou seja.
No Texas, os pobres não têm qualquer possibilidade de fazer um aborto, embora o mesmíssimo procedimento seja muito fácil de fazer para o ricos. Lembram-se de séries como DALLAS, ou DINASTY? Em termos sociológicos, não havia ali qualquer exagero. Os ricos do Texas são incrivelmente ricos. Como tal, nada no seu quotidiano os distingue dos ricos de Bollywood. ou de Manila, ou de qualquer outro apeadeiro do Terceiro Mundo, porque todos os ricos precisam do mesmo. Precisam de um nevoeiro sempre activo de milhares pobres para que eles possam viver como ricos e ganhar como ricos. Toda a gente sabe disto. Donald Trump pode não saber muita coisa[4], mas isto sabe muito bem porque é a sua prática de uma vida inteira. A situação no Texas, que alastra perigosamente para outros estados, foi obra das suas nomeações para o Supreme Court, que agora só se revertem se morrer um dos juízes ou se algum for expulso devido a qualquer terrível escandaleira[5].
Ora acontece que, em mais um passo contra a liberdade de escolha das mulheres, mais recentemente o Supeme Court decidiu declarar que os embriões já são crianças[6]. Sendo assim, o seu processo de congelamento, destinado a permitir às mulheres que querem engravidar por Fertilização in vitro (FIV) e não têm sorte na primeira tentativa[7] possam repetir o ciclo sem voltar a passar pela colheita e sem gastarem mais dinheiro, é uma infâmia aos olhos de Deus, uma vergonha aos olhos dos homens, e portanto, sem dúvida, uma técnica que deve ser imediatamente proibida em todo o país.
Os ginecologistas com clínicas de FIV, já assustados pelo resultado potencial deste tipo de pregações, começam logo a não congelar mais embriões excedentários[8], o que faz com que as FIVs, já de si muito caras, se tornem ainda mais caras. É que, agora, se a primeira tentativa não funcionar, é preciso repetir todo o processo que vai até à formação dos embriões — estimulação dos ovários com quinze dias de duas injeções por dia, paragem do ciclo com uma injecção muito dolorosa que pode calhar às horas mais imprevisíveis da noite ou do dia, recolha dos ovos ainda não fertilizados com uma pequena cirurgia, fertilização destes ovos com os espermatozoides do parceiro, incubação conjunta de ambos por dois dias, e esperar que se formem embriões de aspecto saudável. Congelar os embriões supranumerários resultantes da primeira FIV de qualquer casal cobriria tudo até aqui, e há que ver que esta primeira fase é, de longe, a mais complexa e delicada de todas[9], sobretudo para as mulheres. Com embriões congelados só seria preciso fazer uma nova pequena cirurgia para a sua introdução no colo do útero e, durante mais quinze dias, rezar para que tudo corra bem.
Ter embriões congelados é tanto mais importante para quem faz FIVs quanto se sabe que as possibilidades de insucesso podem ser várias, até que, por fim, haja (ou não) sucesso.
De maneira que, mesmo entre os círculos cristãos mais empedernidos, a notícia de que o Supreme Court se preparava para cometer a iliteracia científica de comparar embriões a crianças para proibir o congelamento da bolinha indiferenciada de células dos primeiros, e com ele prejudicar toda a Reprodução Medicamente Assistida, estoirou como uma bomba e pôs toda a gente de braço no ar num protesto conjunto. Sobretudo as mulheres. E foi isto que levou os figurões que gerem as Relações Públicas da FOX a organizar o Forum das Mulheres, em que Donald Trump teria a oportunidade de se fazer ouvir sobre todo isto.
Mas francamente, o que é que Trump sabe sobre a FIV?
Boa pergunta.
À qual o homem tratou de responder imediatamente ele próprio, no seu próprio e colorido vocabulário.
“Antes de vir para aqui, falei com a nossa Conselheira dos Assuntos Científicos, uma mulher linda, linda, devo dizer-vos, realmente uma mulher linda. Pedi-lhe que me explicasse o que era a fertilização in vitro. Ela começou a falar, e eu não precisei de mais de dois minutos. Percebi tudo. Tudo! Claro que sou a favor da fertilização in vitro. EU SOU O PAI DA FERTILIZAÇÃO IN VITRO!”
Voaram bonés, bandeiras, t-shirts da campanha. A sala veio abaixo com aplausos. Mudava-se de canal a correr e todos estavam já a citar aquela maldita frase. Nos dias que se seguiram, Trump teve dezenas de oportunidades de repeti-la, sem que ninguém lhe perguntasse o que é que é que ele estava realmente a dizer. E, como os democratas ficaram tão desconcertados que em vez de exporem a falácia a varreram para debaixo de tapete, a águia americana voou a pique, como um grifo dourado, rumo ao País das Maravilhas onde – de facto – cada um pode dizer o que quiser.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Tribunal Supremo, que vigia as leis de todo o País.
[2] Literalmente “e a banda continuou a tocar”. Utiliza-se quando, apesar de vários protestos, as coisas ficam como estavam. O docudrama em que toda a comunidade inteligente, médica, científica, autárquica, e de grandes pesos-pesados do pensamento tenta alertar o presidente Reagan para as formas de transmissão da SIDA que seria para mim fáceis de evitar, e não recebe qualquer resposta da Casa Branca, chama-se, exatamente, AND THE BAND PLAYED ON.
[3] “Não se metam com o Texas”. As tabuletas de entrada nos outros 49 estados dizem, SEMPRE, “Bem-vindos ao South Carolina”, “Bem-vindos a New York”, e assim.
[4] Por exemplo, CLARO QUE NÃO SABE COMO É QUE VAI ACABAR COM A GUERRA NA UCRÂNIA, e deve ser o único homem em todo o Ocidente que ainda não percebeu que Putin pode estar interessado em comer-lhe muitas papas na cabeça – mas NÃO ESTÁ MINIMAMENTE INTERESSADO em ser seu amigo.
[5] Bem, mas num país onde um homem com 36 processos-crime em cima ganha as eleições…
[6] Não são, não. São uma bolinha oca de células ainda não diferenciadas. Mas lá iremos.
[7] Acontece muito mais vezes do que correr logo tudo bem.
[8] Os que sobraram da primeira inseminação. Podem ser muitos, e dar para várias tentativas. Vejam o meu caso. Tive 26 ovos, que deram 18 lindos embriões. Mas os ginecologistas só transferiam três, portanto sobraram 15. Se pudéssemos congelar embriões nessa altura, eu ficava ali com material para mais cinco FIVs…
[9] Sou boa menina. Não gosto de incomodar ninguém. Estou a poupar-vos educadamente ao termo “dolorosa”, mas claro que ele também conta. Muito. Com grande probabilidade, bastante mais do que o dinheiro.
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Já vi como são os gajos que andam por aí sozinhos a trabalhar nos ranchos,” disse George. “Não é bom. Não se divertem. Depois de algum tempo tornam-se muito maus. Tornam-se aquele género de gajo que está sempre a querer lutar.”
“Pois, tornam-se gajos maus,” concordou Slim. “Tornam-se incapazes de falar seja com quem for.”
John Seinbeck
ON MICE AND MEN (1938)
Quando eu lhes sugeri que, se toda a gente – sobretudo o patrão – estivesse de acordo, podíamos usar o piano ali do bar para fazermos, com mais instrumentos e até talvez com mais vozes, os mesmos espectáculos de fado falado que eu tinha feito em tempos em Lisboa e no Algarve, os olhos do David iluminaram-se de entusiasmo e de antecipação. Quando eu lhe respondi que não via nenhuma razão para ele não contribuir para esse espectáculo com o som do ukelele que ele já andava há mais de um ano a aprender a domesticar – muito pelo contrário, e uma vez mais desde que o patrão concordasse, era uma contribuição porreira, de um som que raramente ouvimos em espectáculos portugueses, e certamente em espectáculos de fado – o David quase que começou a levitar. Repetiu vezes e vezes sem conta que era agora, finalmente, era agora, aos trinta e sete anos: era agora que ia fazer alguma coisa radicalmente diferente das rotinas de Estremoz. Estremoz, onde tinha nascido. Estremoz, onde sempre tinha vivido. Estremoz, onde nunca acontecera nunca nada realmente mau, mas também nunca acontecera nada francamente bom.
Ah, mas isso agora ia mudar.
Aos trinta e sete anos, ele ia chegar ali com o seu ukelele e participar num espectáculo radicalmente diferente.
Diferente, diferente, diferente.
Aqui mesmo, em Estremoz.
Foi um café-bar que abriu na última Primavera numa das esquinas do Centro Histórico, um sítio grande, misterioso, cheio de pilares e de esquinas, com mesas e cadeiras todas diferentes e todas muito confortáveis, um lugar onde podiam entrar os cães, onde os empregados eram jovens e sorriam, onde tudo o que serviam era feito na hora na cozinha lá de trás e imensas receitas tinham segredos especiais – era um sítio para a pessoa se sentir mesmo bem e não ter grande vontade de sair a correr. O piano fazia parte de todo este bem-estar. Era antigo, muito bem envernizado, pousado em cima de um estrado espaçoso frente a uma banqueta de veludo a condizer. Foi só dizerem-me que sim, que estava afinado, e que tencionavam usá-lo para dar espetáculos nocturnos no Verão. Lembrei-me logo dos espectáculos de fado falado, que ficariam tão bonitos com um piano. Ainda por cima, funcionavam como uma homenagem a uma Lisboa já quase inexistente, devorada como andara a ser nos últimos anos por legiões cada vez mais cerradas de turistas. Estremoz também estava a ficar submerso em turistas. Talvez um toque nas letras tornasse a homenagem mais explícita.
Em torno do piano, com o bar ainda vazio, o entusiasmo ia subindo de tom. Eu precisava de uma voz de homem para falar os fados comigo. Era necessário ver quem seria a pessoa mais indicada, falar com ela, convencê-la a juntar-se a nós. Havendo gente, havendo espaço, um coro a entoar a música de alguns dos fados junto do piano era capaz de funcionar muito bem. E esse coro cantava como, a uma voz? Duas vozes? Estava tudo em aberto, a partir do momento em que até entrava um ukelele.
“Uma coisa que era capaz de ter graça,” continuei eu, “era se de vez em quando, mas nunca se sabia mesmo quando, houvesse na assistência um grupo disperso de pessoas que se levantasse de repente, entoasse uma passagem, e voltasse a sentar-se.”
“Ah!”, gritou o David com os olhos a brilhar. “Uma flash mob? Isso era brutal!”
Eu não sabia se seria possível organizar qualquer flash mob naquele espaço. Nem se poderíamos ter minimamente a certeza de que os seus elementos viriam disciplinadamente aos ensaios e estariam organizadamente presentes sempre que houvesse espetáculo. Aliás, não fazia ideia de como é que se coreografa e se ensaia uma flash mob. Mas, como não queria desapontar ninguém, sorri e disse “qualquer coisa assim, depois logo se vê.”
Acabámos por combinar que eu escreveria o roteiro completo do espectáculo, com indicação de intervenientes, instrumentos, letras, e por aí fora. Depois mandava por mail para eles. Depois falava com o patrão, que chegava para a semana. Depois, se toda a gente estivesse de acordo e gostasse do projeto, avançávamos.
Havia muito que fazer até ao Verão.
O David saiu comigo, e subimos juntos as escadas que levam ao Castelo. Há muito tempo que não via um homem tão feliz.
“Ah, finalmente!”, repetia ele. “Finalmente, ao fim de 37 anos, vou fazer uma coisa mesmo diferente em Estremoz! Vou fazer uma coisa que vale a pena fazer! Esperei tanto, tanto, tanto, que já tinha desistido. Agora não. Agora vou recomeçar os ensaios do ukelele já esta noite. Ah, finalmente!”
Depois eu lá consegui encontrar o ficheiro dos fados falados. Dei-lhe vários toques, emprestei-lhe mais conotações estremocenses, substituí o nome de uma casa de fados em Alfama pelo nome daquele café-bar que acabara de abrir com tão bons auspícios. Falei com o patrão, que se mostrou muito interessado e me pediu que lhe mandasse o ficheiro para ele ver.
Mandei o ficheiro para toda a gente.
Ninguém me respondeu.
E fez-se o longo silêncio que se segue às batalhas.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
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São irritações dos que nos precederam. Todas as nossas tradições e costumes são herdados dos mortos, não acha?
Yasunari Kawabata
O arco-íris
Tinha eu vinte e poucos aninhos, e, entre outras coisas, a certa altura dei comigo sentada à volta de uma mesa com outros camaradas trotskistas ou simpatizantes do modelo que estavam a formar o PSR[1] sob a jurisprudência do jovem Francisco Louçã. Depois desse dia, sempre que era preciso votar em partidos, eu votava no PSR. No mínimo, seria sempre um pouco bom voto de protesto. Depois do PSR nasceu o Bloco de Esquerda e com ele subiu muito a febre: agora o voto já não seria só de protesto, porque podíamos eleger mesmo deputados que nos representassem. A partir daí, toda a gente conhece a trajectória do Bloco – em que eu continuei sempre a votar, salvo raríssimas excepções. E votei em autarcas do Bloco, em presidentes da República do Bloco (salvo quando votei na Ana Gomes, mas aí a razão era bastante mais forte do que a paixão), em presidentes de Juntas de freguesia do Bloco. Conto-vos esta história para garantir que ninguém podia ter maior dedicação à causa da verdadeira esquerda[2] do que eu. Mas quando ouvi a forma bacoca e demagógica que Mariana Mortágua escolheu para falar do navio de bandeira portuguesa cheio de armas para Israel que estava no Porto de Lisboa até me arrepiei de irritação[3]. Apeteceu-me atirar-lhe à cara o preceito socrático fortificado nosce te ipsum capra[4] e espetar com ela na psicanálise. Então a senhora não vê que há coisas que um político de esquerda, que ainda por cima é uma mulher, que para mais afirma gostar de mulheres, não pode dizer do alto do púlpito?
Então vamos lá recuar umas semanas no tempo. Através do Bloco de Esquerda, ninguém nos diz como mas também ninguém parece muito interessado em saber, descobre-se que está ancorado no Porto de Lisboa, com a bandeira portuguesa hasteada, um navio com o porão carregado de armas tenebrosas com destino a Israel. Descobre-se porque, nessa manhã, o Ministério da Defesa confirma a presença escandalosa deste barco no nosso porto, a Judiciária apoia a confirmação, o Presidente da República declara-se apanhado de surpresa mas interessado em, antes de mais nada, tirar do barco a bandeira portuguesa, as autoridades portuárias ainda estão a investigar as condições da sua entrada mas consideram que se deve conduzir desde já o barco para águas menos abertas ao público… e ninguém manifesta grande sobressalto com a horrenda descoberta. Por incrível que pareça, tudo isto se passa numa grande tranquilidade de segunda-feira de manhã ensolarada, como se estivessem agentes da MOSSAD, de granada na mão, a guardar todas as saídas do estúdio – e, porque não, todas as saídas da RTP.
Felizmente, a pulsação política e jornalística sobe geometricamente de pulso assim que a acção passa para o Parlamento. Mariana Mortágua, dirigente do partido político que descobriu a presença entre nós daquele barco sinistro, está no uso da palavra. E ela, ela sim, finalmente – ela está francamente indignada. No seu melhor estilo Morticia Addams, toda vestida de preto, o cabelo asa de corvo escorrido pelos ombros, a pele glacial, a voz de além-túmulo, mas que se lixe: se Portugal estava a albergar sem nós sabermos um barco cheio de armas para Israel, é melhor que alguém com assento parlamentar se indigne, e se indigne a valer. E portanto até eu, que embirro francamente com esta escolha desastrosa de cabeça de cartaz, sinto um alívio enorme quando a oiço.
Mas isso dura um minuto ou dois.
Depois até a representante da esquerda para lá da cassette puxa ao choradinho desnecessário.
“… e todas aquelas armas se destinam a matar as mulheres e as crianças da Palestina…“
A pessoa até dá um salto no sofá e entorna sobre si própria o café ainda a ferver.
Ai filha, pela tua rica saúde.
“As mulheres e as crianças“?
Então e como é, os adolescentes, os homens, os velhos da Palestina – esses não têm direito a nada? Não é tão horrível serem massacrados como as mulheres e as crianças? Onde é que tu julgas que estás, quem é que tu julgas que és – talvez um cavalheiro vitoriano a abrir a porta e a dizer, com uma vénia para as visadas e um sorriso paternalista para os amigalhaços presentes, “primeiro as senhoras“? Mas não foi exactamente contra isso, contra a antiquíssima praga do gineceu[5] que escravizou as mulheres de todo o mundo durante milhares de anos, que lutaram as nossas avós, que lutaram as nossas mães, que lutámos nós a vida inteira e que as nossas filhas ainda têm de lutar? Isto, ainda por cima, é declamado pela mesma mulher de esquerda que teve a péssima ideia de tornar público que gostava de mulheres[6]. E depois, de repente, a puxar à lágrima sem qualquer vergonha, sai-se com esta enormidade como se as mulheres fossem menos capazes de resistir às intempéries do que os homens? Tudo bem, espera-se dos políticos que sejam demagógicos. Mas isto é muito para lá de demagógico: isto é absolutamente insultuoso.
Até para as crianças.
Tal como as mulheres, as crianças têm uma antiquíssima história de serem insultadas. O homem é o único animal com filhos que precisam de cuidados parentais durante tantos anos, e de uma aprendizagem tão complexa para poderem exercer profissões de qualquer espécie, e este crescimento lento e dependente sempre baralhou os estudiosos. Em consequência e antes de mais nada, embora se meta pelos olhos dentro que as crianças são espertíssimas, como a esperteza delas é diferente da nossa passaram milénios relegadas para o mesmo gineceu que as mulheres, e depois mais vários séculos a serem tratadas como atrasadas mentais. No século XVIII, o filósofo inglês John Locke, hoje considerado o fundador da psicologia, esclareceu finalmente o mistério do crescimento lento das crianças: era uma parte fundamental do plano divino para que as famílias não pudessem deixar de manter-se unidas.
Mariana, tu não te esqueças que foi preciso esperar até 20 de Novembro de 1959 para que a Assembleia Geral das Nações Unidas se lembrasse, por fim, de aprovar a Declaração dos Direitos da Criança[7], “considerando que a Humanidade deve à criança o melhor que tem para dar“. Se continuares a ler, ficas cada vez mais arrepiada. “A criança precisa de amor e compreensão para o pleno e harmonioso desenvolvimento da sua personalidade.” – “A criança tem direito à educação, que deve ser considerada gratuita e obrigatória” – bolas, e, sobretudo, pelo menos para mim, “A criança deve ter plena oportunidade para brincar.” É evidente que estamos a privar todas as crianças do mundo de todos os seus direitos[8]. Por isso mesmo, um bocadinho mais de respeito quando falas das crianças da Palestina não te ficava mal. Santo Deus, já lhes basta o que basta.
Aliás, implicar que as crianças são incapazes de combater ou de sobreviver sozinhas numa guerra, sobretudo se estivermos a falar das crianças da Palestina, volta a ser de um desdém de bradar aos Céus. Fui eu que enlouqueci ou foram precisamente as crianças da Palestina, quando Israel começou a ocupar os primeiros territórios a que não tinha direito por lei, que iniciaram as hostilidades com as famosas chuvas de pedras? Apanhados de surpresa, sem mais coisa nenhuma que servisse de resposta, não foram precisamente “as crianças” que ripostaram contra os tanques à pedrada, tal como ainda hoje ripostam? É muito triste, Mariana, pois é. Mas, da próxima vez que a demagogia te parecer indispensável, lembra-te das mulheres e das crianças e da forma como nos insultaste a todas. E escolhe melhor os teus recursos de oratória.
“MAS NÓS TEMOS FILHOS”
Há cerca de vinte anos, do lado de cá do Mar Morto, frente a Jericó, acabei por ter uma longa conversa com dois pastores palestinianos que se faziam passar por beduínos. Perguntaram-me se eu queria ir ver, e eu disse que sim. Depois de um valente esticão a pé com os borregos, metemo-nos num camião velho e demos uma data de voltas até chegarmos a uma colina junto ao vale do Jordão. A barulheira dos borregos sedentos encobriu a nossa escalada. E, lá de cima, era verdade: via-se perfeitamente. Os israelitas estavam a construir os primeiros blocos sólidos, resistentes, muito feios, de um novo kibutz em plena Palestina. Como se todo aquele chão fosse deles por direito.
Até eu senti raiva.
Depois olhei em volta e não pude deixar de questionar-me.
“Mas é por isto que vocês lutam tanto?”, perguntei-lhes. “Por meia dúzia de laranjeiras numas colinas quase desérticas à beira de um rio quase sem água?“
“Isto“, respondeu firmemente um dos pastores, sem sequer olhar para mim, “é a nossa terra. Se viessem uns estrangeiros invadir a tua terra – tu não lutavas por ela?“
Pergunta retórica.
Limitei-me a sorrir, e a dizer que sim com a cabeça.
Depois insisti.
“Mas estes gajos estão cheios de dinheiro. E estão cheios de armas. Como é que vocês alguma vez conseguirão impedi-los de fazer coisas destas?” – e apontei para a construção grosseira e arrogante com o queixo, enquanto os bulldozers judeus iam e vinham sem parar.
Eles sorriram com orgulho.
“Sabes uma coisa? Estes gajos não têm filhos. São como vocês. Um casal com dois filhos já é uma grande coisa, por muito que o governo lhes pague para terem três ou quatro. Mas nós” – já não me lembro qual deles é que falou, mas até levantou a voz de emoção – “nós temos filhos. Todos temos muitos filhos. E todos os nossos filhos aprendem muito cedo a odiar os judeus, e a atirar pedras aos tanques dos judeus. Havemos de ter tantos filhos que um dia os filhos deles nada poderão contra os nossos. E é assim que começa o colapso da Judeia.“
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[2] É um disparate chamar ao Bloco “Esquerda radical” ou “Extrema esquerda”.
[3] Também é preciso ver que Mariana Mortágua me irrita com uma frequência espantosa. Se eu fosse a sua coach política virava-a completamente do avesso. Em termos de proporcionar um mínimo de conforto aos portugueses, da forma que tanto Louçã como Catarina sabiam fazer tão bem, a Mortágua parece uma figura saída da Família Adams que dorme debaixo da cama deles e assusta as criancinhas durante a noite.
[5] A medicina grega considerava as mulheres meros homens incompletos, com os órgãos sexuais retidos no interior do corpo devido ao frio do útero materno, que impossibitara o seu desenvolvimento a termo. Estes “homens mutilados” existiam em grande número porque eram necessários para a reprodução, onde, aliás, morriam com frequência. Como tal, eram mantidos no seu enclave isolado, sem qualquer relação com a filosofia, a guerra, o debate, e tudo o que dissesse respeito à democracia. Os desenhos do homem mutilado demoraram muito tempo a desaparecer da literatura científica. Ainda faziam as suas aparições esporádicas nos livrinhos de cordel do século XIX.
[6] Antes de mais nada, o dito anúncio não era novidade para ninguém. Mas o pior foi que abriu um precedente gravíssimo. Deu carta branca a quem quisesse andar a vasculhar a vida privada dos políticos, com a Comunicação Social à cabeça, para avançar e fazer isso mesmo com vista a tornar públicas as suas descobertas mais palpitantes. Afinal de contas, era uma dirigente política que acabava de abrir as hostilidades.
[7] Eu nasci a 30 de Janeiro de 1960. Gozei-me desses direitos por um triz.
[8] Tanto estamos que não paramos de re-escrever o que já está escrito, com cada vez mais cláusulas e mais notas. A última CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA COM PROTOCOLOS FACULTATIVOS (!) foi adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a 20 de Novembro de 1989, e ratificada por Portugal a 21 de Setembro de 1990. Entretanto, há cada vez mais tráfego de crianças, mais criação de crianças-soldado, mais corpos pequeninos de crianças removidos dos escombros de mais algum edifício bombardeado em qualquer parte do mundo.
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Quando admiro os teus céus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas que ali estabeleceste, pergunto: Que é o homem para que com ele te importes? E o filho de Adão para que venhas visitá-lo? Tu o fizeste um pouco menor do que os anjos e o coroaste de glória e de honra.
Este ensaio final, a despedir-se dos leitores numa noite de chuva que desaba sobre nós já em pleno Outono, foi despoletado por um filme lindíssimo, de uma complexidade espantosa, que nos recorda uma vez mais quantos homens diferentes coexistem ainda hoje no planeta. É impossível não olhar logo para trás e recordar a quantidade riquíssima de homens diferentes que conviveram connosco no planeta há já muito tempo. É impossível não sorrir perante a evidência de quanto gosta o pessoal de trocar genes. Mas vamos com calma, que o território evolutivo é sempre um terreno minado. O Comandante Fitzroy, com quem Darwin jantou todas as noites durante os cinco anos da viagem do BEAGLE, acabou por perder completamente a cabeça. Foi visto no primeiro grande debate evolutivo de Inglaterra[1] a brandir uma Bíblia, gritando “O Livro! O Livro!”. Cinco anos mais tarde, suicidou-se com um tiro na cabeça. O próprio Darwin, por muito que tenha mantido sempre a compostura, acabou por morrer consumido por uma depressão tão penetrante que o levou a desistir de fazer a barba.
Depois não digam que não vos avisei.
Com esta idade provecta, os acasos totais das afinidades electivas ainda me comovem. Há pouco mais de um ano, ainda nem sequer conhecia o Nuno Gomes, o homem que é agora o meu editor, que é biólogo como eu, e que tem entre as suas várias teimosias grandiosas, próprias dos gajos do Porto, editar em português perfeito a obra completa de Charles Darwin. Conhecemo-nos exactamente por causa destas crónicas, que levaram o Nuno a pedir-me um prefácio para um livro francês interessantíssimo sobre as mulheres pré-históricas. Agora, graças a ele, acabo de descobrir que vivemos, realmente, numa era milagrosa[2]: depois de décadas inteiras de autêntica saudade, acabo do descobrir que basta ir ao YouTube e está feito: já posso voltar a ouvir a música do filme russo URGA, realizado por Nikita Mikhalkov e levantado do chão por uma banda sonora inacreditável do compositor Eduard Artemyev, de quem as bestas como nós[3] podem nunca ter ouvido falar mas que há de ter sido, sem sombra de dúvida, uma pessoa tocada pela graça. Este homem raro morreu há dois anos e ninguém disse nada porque ninguém consegue lidar devidamente com as coisas que são demasiado belas. A música de abertura, que é de cortar o fôlego, tem várias variações ao longo do filme. Passei hoje a tarde a ouvi-las a todas, e fenómenos destes raramente nos acontecem: não sei – mesmo – dizer qual das variações é a mais bonita.
São destes pequenos mistérios pessoais que toda a gente tem para celebrar.
Mas quer dizer…
O Nuno?
Um gajo do Porto?
Substancialmente mais novo do que eu?
Também conhece o filme e também delira com a banda sonora[4]?
Ah, carago, como eles dizem. Vamos celebrar.
Graças às explorações do universo darwiniano investidas na composição destes ensaios, sempre gostava de saber quem é que sabe que ainda não sabemos, e provavelmente nunca saberemos, por que é que o Homo sapiens foi a única variação de hominídeo que sobreviveu até aos nossos dias. Os apontamentos de Darwin logo na viagem do Beagle não podiam estar mais correctos. Uma multitude de Homos, todos eles vindos de África, precederam a nossa existência. Alguns chegaram a viver no planeta juntamente connosco. Desses, os neandertais juntaram-se tão estreitamente a nós que de 2 a 4 do nosso ADN é feito do ADN deles. O que quer dizer que nunca morreram. Ficaram a viver para sempre dentro de nós, e nisso foram-nos muito úteis.
Tudo isto começou a acontecer desde o aparecimento em África dos primeiros Australopitecos, dos segundos, dos terceiros – e depois das duas ondas consecutivas de expansão para outros continentes de espécies separadas que já pertenciam ao género Homo. Danados e curiosos desde os seus primeiros dias, os Homo andaram a migrar para cá e para lá entre a África e o mundo numa amostragem cheia de nomes esquecidos pelos manuais escolares[5]: o Homo habilis, o Homo afarensis, o misteroso Homo denisovan, e o Homo heidelbergensis (que ainda conviveu connosco mas acabou assimilado pelos neandertais). Mais tarde, algures entre apenas quarenta ou trinta mil anos atrás, ainda coexistiam no planeta três espécies humanas: o Homo neanderthalensis[6] na Europa, o Homo erectus na Ásia[7], e o Homo sapiens em expansão constante.
Ou seja, até há muito pouco tempo nós não éramos, de maneira nenhuma, os únicos homens do mundo. E, depois de toda a poeirada levantada pela turbulência criada em torno do conceito evolutivo começar a assentar[8], ainda estoira a euforia que correu a ciência em 2010, quando a literatura especializada foi sacudida pelas publicações dos primeiros resultados do projecto genoma neandertal.
Tinha de ser.
Decifrado todo o genoma humano no ano 2000, e na altura já bem conhecida a partilha de territórios e tempos históricos entre as duas espécies[9], ninguém descansava enquanto não decifrasse também o genoma neandertal e verificasse cientificamente, com todo o rigor, quem é que tinha trocado genes com quem.
Os neandertais viveram de 230000 até há 30000 anos atrás. Eram homens com uma força brutal, muito superior à nossa. O primeiro espécime foi encontrado na Alemanha, no vale do rio Neander, em 1856, por operários que trabalhavam numa fábrica perto de Dusseldorf. Daí o nome atribuído à espécie, que de entrada parece sempre bizarro.
O genoma neandertal ficou sequenciado na totalidade em 2010.
A descoberta foi publicada separadamente por diferentes grupos, em diferentes datas[10], e expôs em toda a linha os primeiros vestígios, há muito pressentidos, mas ainda nunca demonstrados, de que a nossa troca de genes com os neandertais foi constante e animada[11]. É graças à herança neandertal que ficou connosco que herdámos luxúrias como o cabelo ruivo, sempre acompanhado por uma pele muito branca. Ou então o gene que possibilita e controla a linguagem articulada. Para não falar dos conjuntos de genes destinados a proteger-nos das depressões[12]. Os neandertais ainda existiam na Península Ibérica há 27 mil anos e este deve ter sido o seu último ponto de vida. Mais especificamente, Portugal deve ter sido o seu último enclave. Não é bem que dá-se um pontapé numa pedra e salta de lá um neandertal, mas é quase: os vestígios aparecem em gruta atrás de gruta, e chegamos a albegar sítios raros, como por exemplo um local ritualizado para enterro de dezenas de homens, exclusivamente os que morreram durante a juventude.
E esta, apreciem bem esta e vejam bem o ponto a que coisa já tinha chegado:
Uma criança encontrada em Leiria tem traços conjuntos de sapiens e neanderthal.
A próxima vou pôr em grande destaque:
Um crânio humano fossilizado vem à superfície ainda com dois dentes. Os dentes têm marcas de bactérias neandertais. Isto costuma acontecer quando se troca um beijo demorado.
Desculpem, mas não resisti. É grandioso, isto – quando a Ciência confirma o Amor.
Hoje é obviamente apenas um caso singular, sem leitura geral possível, existirmos enquanto espécie única.
E, se temos em nós toda esta variedade de criação cultural tão diferente, e ao mesmo tempo tão idêntica, devemo-la sem dúvida a um passado conjunto que vivemos com outras espécies do nosso género. URGA, um filme tão bizarro e ao mesmo tempo tão comovente desde o início, é um testemunho sublime dessas outras memórias, tão alheias e tão idênticas.
Vi o filme há pouco mais de trinta anos, quando estava estacionada no Massachussets a trabalhar no projecto de clonagem da University of Massachusets. É realmente em tudo diferente dos nossos, incluindo na lentidão do ritmo, nas línguas que as pessoas falam, no que é que se entende por “uma universitária” (se calhar aquela mulher fez mesmo um curso de Economia, ou então de Matemática; mas o que nós a vemos fazer é saltar para cima do cavalo com a sua urga e, completamente sozinha, reunir sem esforço, com grande velocidade e numa pose feroz, uma manada enorme de vacas tresmalhadas), ou na visão constante, profundamente sufocante, das máscaras enormes com uma rede à frente que todas as pessoas precisam de usar sempre que estão ao ar livre, para se protegerem das moscas, dos mosquitos, das varejeiras, dos abelhões, e mais de todos os outros milhares de insectos que pululam na estepe, que dariam certamente com a pessoa em doida – e da sensação que essas máscaras nos dão, sempre que estamos a ver uma cena ao ar livre durante o dia, de assistirmos a cenas estranhas de ficção científica muito antiga.
Doida, e talvez morta. Podia perfeitamente ser alérgica à ferroada de qualquer um daqueles bichos, e onde vivem os mongóis, para lá do deserto de Gobi que é o maior deserto do mundo, não vivem muito mais pessoas. O apoio médico que existe demoraria demasiado tempo a chegar na eventualidade de um choque anafilático. Como os atacantes são milhares deles, será sempre muito difícil para os camponeses e cavaleiros identificar o inimigo específico que só não o matou porque Deus não quis. Este tipo de projecto seria interessantíssimo para doutoramentos de médicos, ou de biólogos e farmacêuticos, mas a ideia de viver na estepe durante dois anos, ou mesmo um ano – até um semestre que seja parece uma violência a todos os títulos desnecessária, em condições precárias como estas.
E não temos o direito de dizer mal destes investigadores renitentes, porque, naquela altura, sujeitos àquelas tais condições, na maior parte dos casos incapazes de falar a língua dos mongóis, nós próprios também não iríamos.
A Mongólia esteve sob domínio chinês há já muito tempo. Depois de se ter autonomizado e autoproclamado enquanto país independente, acabou por ser anexada pela URSS. A rebelião antissoviética teve início em 1989; e, em 1992, a Mongólia era finalmente um país livre, com as mesmas vicissitudes e estranhezas que tem vindo a ter até agora mas sem invasão de terceiros. Esta inserção de Wikipédia vem aqui a propósito por uma boa razão.
Dá ideia de que nessa altura a Mongólia pertencia à China, ou então de que ficou por bastante tempo sob uma marcada influência chinesa, porque é assim que começa a história: o marido e a mulher defrontam-se longamente na estepe, ambos com os cavalos imobilizados e o que parece ser uma lança extremamente longa e flexível na mão[13], até que, num momento que não saberíamos distinguir, ambos arrancam a galope na direção um do outro. E, no momento preciso em que se cruzam, como num desporto perfeitamente coreografado, a mulher dá ao marido uma estocada que o faz cair ao chão.
Na cena seguinte caiu a noite, estão ambos dentro da tenda com a mãe dele a observar, e algumas crianças brincam à luz da fogueira sem fazer barulho. Ela está a tratar-lhe da mão com todo o cuidado, ao mesmo tempo que ralha, visivelmente exasperada:
“Qual é o teu problema? Não sabes contar? UM! O Governo só nos deixa ter UM filho!”
E pronto, aqui está a crise que crucifica o pobre casal: supostamente, só deveriam ter um filho. No entanto, já vão em três – feitos ao ar livre, na estepe, com aquela tal espécie de lança comprida e flexível do marido espetada no chão. Esse estranho objecto é que é a urga, e não serve objectivos guerreiros: serve para dirigir, de cima dos cavalos, as manadas de gado para dentro dos seus redis ou para a transição rumo a novas pastagens. Naquela posição, no entanto, está ali para um outro fim, bastante mais específico e tornado inequívoco pela posição: destina-se a avisar todos os outros mongóis do que se passa ali, para que mantenham as devidas distâncias enquanto o casal é feliz[14].
Embora seja perdidamente improvável que algum burocrata atravesse o deserto de Gobi (o maior do mundo, não se esqueçam) para ir espreitar dentro das tendas cheias de mongóis reportadamente ferozes e com umas armas brancas que mais ninguém sabe manejar, a verdade é que a mulher invoca a Lei do Filho Único como pretexto para se acabar ali mesmo com o sexo, e é nessa altura que a mãe do marido lhe diz, sem procurar disfarçar nem baixar a voz: “Eu bem te avisei dos perigos de te casares com uma mulher universitária.” Mas, entretanto, o marido fez uma grande amizade com um camionista russo – e este oferece-se imediatamente para o ajudar na solução óbvia do problema. Amigo, junta algum dinheiro, nem sequer é preciso muito, vens comigo à cidade, eu levo-te às lojas onde costumo ir, compramos preservativos em barda para os tempos mais próximos, e está o problema resolvido. O meu país também é comunista, não te esqueças. Um bom comunista tem sempre um saco cheio de preservativos muito bem escondido em qualquer lugar estratégico da casa. Nunca se sabe o que é que vai acontecer a seguir, mas um gajo quer pinar à mesma. E, como o camionista está ali mesmo ao lado, pronto para dar conselhos sensatos ao marido, que aliás a mulher aprova de imediato com imenso entusiasmo (“universitária“, é o que é), apenas porque tem o seu camião avariado e estão vários mongóis, marido incluído como é obrigatório, a reparar-lhe o motor, vão os dois até à cidade procurar o progresso… os dois montados no mesmo cavalo, já que o camionista não sabe montar.
A sequência de acontecimentos a partir do momento em que chegam à cidade torna-se finalmente banal, só nessa altura é que reparamos que estas pessoas têm os mesmos sonhos, os mesmos medos, e as mesmas capacidades de decisão sob pressão que todas as outras têm – veja-se a sequência em que o marido, que está numa cidade pela primeira vez e, comprados os preservativos, já sugeriu várias vezes ao camionista que se fossem logo embora, quando percebe que o amigo está metido em sarilhos encontra prontamente o bar, onde o vê podre de bêbedo, caído no chão, a ser pontapeado e insultado pelos citadinos circundantes. Nessa altura, entra calmamente no bar, tira partido da surpresa dos citadinos ao verem entrar, depois de um russo, um camponês mongol vestido de camponês mongol dos pés à cabeça, de facalhão colossal bem preso no cinto, de urga[15]na mão e tudo. E, enquanto os clientes habituais o contemplam de boca aberta, agarra no amigo, passa-o por cima do ombro, sai, prende-o bem ao cavalo, depois do que ele próprio monta, segura as rédeas, e, agora que o russo está inconsciente e portanto ele pode fazer o que quer, esporeia o animal, solta-lhe as rédeas, cola-se-lhe ao pescoço, e arranca dali naquela velocidade assombrosa dos cavalos mongóis, que se diz desde Aristóteles serem “tão rápidos como o pensamento“.
Nesta passagem, podiam perfeitamente ser Arnold Schwarzenegger e Mel Gibson, há trinta anos atrás.
À sua espera na tenda da estepe, ambas numa pilha de nervos mas ambas arrumando tudo à sua volta para não darem parte fraca, estariam Catherine Deneuve no papel de Mãe e a Julia Roberts, aqui sem nunca sorrir mas ao menos completamente ruiva, no papel de esposa “universitária“.
O papel de filha mais velha, que conversa muito com o russo sobre o comunismo, também consegue conversar com os cavalos, e por vezes tem visões pouco claras mas com protagonistas muito nítidos, seria entregue a Christina Ricci, no tempo em que tinha as longas tranças da filha mais velha da ADAMS FAMILY[16]. É evidente que já estou a meter no filme detalhes impostos completamente a martelo, mas é que entretanto o URGA deixou de ser o original mongol e passou a ser uma megaprodução de Hollywood. Vale a pena divagar um bocadinho porque aqui ressurge um tema que perturbou os nossos egrégios avós quando tentavam compreender a origem do Homem: como é que era possível que os sentimentos das pessoas, fossem elas de que “raça” fossem[17], vivessem elas onde quer que vivessem à superfície do planeta, nunca sofressem a menor alteração em relação ao que é realmente fundamental – o gosto pelo belo, a necessidade da ordem, a resposta ao apelo da arte, a criação de leis, a existência de uma linguagem articulada que tende a poder ser posta por escrito, e sim, sim, como negá-lo? – o amor, o desejo, a ternura, o perdão, e em toda esta lista é evidente que a ordem dos factores não altera o produto. Desse ponto de vista, o filme URGA é quase um soco no estômago. Quando vemos caminhar lado a lado o camionista russo, muito louro e de olhos muito azuis, e o pastor mongol, completamente mongol dos pés à cabeça, agora sabemos que eles não saíram mesmo de uma cepa igual. O russo nem se discute: é um Homo sapiens típico. Mas, e o mongol? Não parece saído de outro planeta? Pois, porque cresceu nas estepes da Ásia. Esse era o domínio do Homo erectus. Estamos mesmo a ver a descendência de duas espécies de hominídeos completamente diferentes, que pouco partilharam de território e coincidência no tempo, e muito menos de troca de genes.
E, no entanto, não é só a questão dos preservativos. Ao longo do filme, estes dois vão ficando cada vez mais amigos. E é evidente que a filha mais velha do mongol, que toca na concertina o hino à liberdade que o russo tem tatuado nas costas[18], está cada vez mais apaixonada pelo camionista, que gosta de exibir-se só de jeans e em tronco nu, enquanto os outros Homos quase desaparecem por trás da floresta daqueles trajes tradicionais todos.
“Tira lá essa roupa!”, diz o russo à miúda. “Nem sei como é que consegues mexer os braços para tocar. De cada vez que pisas para aí uma nota toda mal pisada eu penso nessa estupidez dessa roupa. Ainda por cima o teu corpinho deve estar mesmo radioso. Aposto É da idade. E tu andas a escondê-lo, agora que devias gozar-te bem dele?”
“Olha o Pai!”, ralha a miúda numa voz líquida de ribeira da floresta.
E ri, ri, ri, toda feliz da vida.
Mais trocas de genes entre espécies em perspetiva.
Tendemos a andar para aí feitos parvos, cada vez mais esquecidos da importância do amor como bloco básico da construção humana, e desculpem: quem nunca pecou que atire a primeira pedra à mulher adúltera. A gente peca por desleixo amoroso. Mas o genoma humano ganhou os contornos que tem hoje graças ao amor.
E o Darwin, no meio disto tudo? O Darwin, ainda um jovenzinho na viagem do Beagle, escreveu nos seus apontamentos secretos qualquer coisa como isto:
Deve ter existido o arquétipo do primeiro homem, de todos o que estava ainda mais próximo dos chimpanzés e gorilas[19]. Esse primeiro homem há de ter emergido onde a vida fosse fácil, com um clima quente, próximo do mar que chama sempre pelos homens, com bons terrenos para cultivar, abundância alimentar, chusmas autênticas de mulheres lindas, com rabos muito grandes, ao agrado do eterno masculino. Ou seja, é indiscutível que o primeiro homem emergiu em África. Com o tempo, a evolução e a selecção natural foram congeminando mais espécies de homens, sabe-se lá quantas. Tudo isto só seria possível em África, vendo bem as coisas. É a única parte do mundo onde um gajo deita uma beata acesa ao chão e daí a uma semana já cresceu ali uma árvore de SG FILTRO.[20]
Dois séculos antes de vermos o nosso próprio genoma, e o genoma dos outros homens com quem trocámos mais genes, Darwin viu tudo por nós antes mesmo de conhecer a linguagem sem surpresas que agora usamos para descrever o que vimos. E é graças à visão genial de Darwin que eu, pelo menos, neste preciso momento consigo voltar atrás no tempo e perceber, por fim, o que é que realmente me fascinava tanto no cozinheiro do Miramar que dirigia a célula local do MPLA. Os almoços de luxo para onde nos arrastavam duravam horas, eles bebiam bastante e deixavam de ligar às crianças, que em princípio estariam todas a brincar lá fora. Eu tirava os sapatos para não fazer barulho e fugia lá para dentro para me esconder num cantinho e ficar num deslumbre a vê-los de roda dos fogões, mas era sempre aquele homem maior do que os outros, implicitamente chefe dos outros, que me fascinava perdidamente sem eu saber porquê. Às vezes esperamos mesmo sessenta anos para ter uma visão.
E depois, quando tem, toda a sua vida valeu a pena.
Memória de infância
A VINGANÇA DAS ESPÉCIES EXTINTAS
Uma vez, nessas minhas fugas secretas para a cozinha do Hotel Miramar, descobri a técnica dum borracho todo musculado que era o Job, e que toda a gente dizia que fazia os melhores croquetes de Angola. Era hora de almoço, estava uma caloraça indescritível, o Job já se tinha posto em tronco nu para trabalhar com mais gosto e mais depressa[21], escoriam bagas e bagas grossas de suor por aquela peitaça hercúlea abaixo, os seus braços enormes pareciam girar em torno do fogão como seis ou oito, toda a gente ria e mandava bocas, e enfim – o cheiro a catinga naquela cozinha pairava do chão até ao tecto como um equinócio que se perdeu no caminho. Ainda hoje adoro o cheiro a catinga. Para mim, cheira a chegar finalmente a casa.
Nisto alguém vem carregado com pratos sujos da sala de jantar toda elegante, com imensa pressa, vira-se para o Job e pede-lhe duas doses dos seus croquetes incomparáveis. O Job diz que sim com a cabeça, o colega que fez o pedido acrescenta que as clientes são mulatas lindas de olho verde e pestana enrolada que não param de rir e de beber, ele depois do almoço vai apresentá-lo e quem sabe, há horas de sorte. O Job encolhe os ombros e diz que prefere os rapazinhos, coisa de que, aliás, tem fama na cidade inteira.
Mas nunca ninguém viu nada.
Devido à sua posição crítica no MPLA, o Job é o único do gang que tem um apartamentozinho junto à Baía. Mas, como em tudo o resto que faz, incluindo a sua receita para aqueles croquetes divinais, usa-o com gosto e alegria – só que de forma extremamente discreta.
Entretanto, na cozinha do Miramar, Job já dispôs graciosamente a salada no prato, já tem a batata frita a escorrer dentro de um papel especial chamado CHUPÓLEO[22], e vai começar a enrolar os croquetes para fritar. É só o que lhe falta, porque a carne, muito bem temperada, marinada em aguardente de cana, e devidamente picante, está sempre ali ao lado na bancada dentro de um alguidarinho azul, com uma capulana muito bem lavada por cima, pronta a entrar em acção,
Nesse dia descobri que o Job tinha aquilo a que se chama, literalmente, um dirty secret.
Depois de servir as mulatas de olhos verdes, que mais tarde apareceram na cozinha aos gritinhos, disseram que realmente valia a pena vir de Nova Lisboa até Luanda para provar aqueles croquetes mágicos, encomendaram mais duas doses com mais uma garrafa de vinho tinto, e disseram em altas vozes que, enquanto esperavam, iam levar para a mesa duas girafas com um prato de camarões picantes, dos maiores, porque, Santo Deus, aqueles croquetes eram tão bons que davam vontade de comer, comer, comer sem parar –enfim. Quando as fotos da PLAYBOY desampararam finalmente a loja ele fez uma rodada especial para nós e realmente era tudo verdade, eram os melhores croquetes do mundo, diferentes de todos os outros.
Da casa de jantar começaram a chegar subitamente mais e mais pedidos de croquete com batata-frita e vinho tinto do melhor, sem dúvida estimulados pela excitação das misteriosas bonitonas de olhos verdes e corpos de estátua, que mais tarde fiquei a saber terem chegado e partido num descapotável prateado enorme, lindo, rápido e nervoso nas manobras como um terrível leopardo das neves[23].
O que seria que aquelas estátuas nascidas sem pai nem mãe de dentro de uma buganvília quereriam realmente caçar? O cinema Miramar, com o seu anfiteatro de relva ao ar livre, ficava ali mesmo à frente. Se tivéssemos ido parar inadvertidamente a um filme de 007[24], duas miúdas com aquele corpão, aquelas mamas de aço à solta debaixo do decote, o umbigo de fora e as pernas de dois metros prolongadas pelos saltos altos dos botins, e ainda por cima aqueles shorts que lhes deixavam metade das nádegas de fora – e que nádegas, Nossa Senhora! – seriam certamente mercenárias ao serviço da Coreia do Norte. Agora ali em Luanda, sem James Bond à vista a menos que o Job tivesse uma dupla vida em que ninguém estava disposto a acreditar[25]… Tudo bem que estávamos num hotel de super-luxo, mas elas vinham numa de se atirarem ao Job e o Job vivia num secretismo feroz no andar de cima de um dos prédios do Bairro Social da Baía, deixando todos os outros à guarda da avó do Zé que era o boy lá de minha casa, no musseque da Cuca, que era animado mas que não haja equívocos, era à mesma um filho da puta dum mus-se-que. Nem eu valia grande coisa. Para já, era só uma menina branca a quem toda a gente me chamava Pretinha, e eles faziam de conta que não me viam mas todo o mundo sabia que estava ali sem licença. E depois, em termos de bens materiais, aquilo era mesmo uma cena a meia haste. A minha mãe trabalhava e tudo. Se calhar era por falta de dinheiro. Está bem que a casa dos meus pais estava na cara que era casa de branco, branco com bom gosto, branco interessado em arte de preto, branco com criada branca para as meninas que eram muitas e andavam todas no Colégio, mas nada disto era assim uma de ooooh meu mano, foda-se, morde-me só aquele branco tão rico.
Estava a cozinha toda a discutir o que quereriam as boazonas de olho verde, e ao mesmo tempo o Job, sempre em tronco nu, sempre encharcado em suor e a cheirar a catinga, ia enrolando os croquetes. Só eu olhei. Fazia perfeito sentido, perfeito sentido. Claro que assim ficavam muito mais gostosos. Mas aquilo era um nojo, foda-se. E ainda por cima o gajo estava sempre a suar.
Calma aí, sua estúpida. Quanto mais ele suar mais gostoso fica o croquete.
O Job piscou-me o olho e rimos os dois.
O grandessíssimo vira-lata enrolava os croquetes com a agilidade assombrosa daqueles seus braços enormes contra os pelos do peito, pelo meio das ondas contínuas de suor e do cheiro invencível da catinga,
Está bem que temperava muito bem a carne e a punha muito macia.
Ah, gente, mas aquele toque final é mesmo tão diferente dos conhecimentos dos nossos palatos que surte em nós um efeito quase hipnótico.
Criatividade,
Em certas pequeninas e subtis notas de rodapé, o homem é mesmo o único animal que.
E de repente, agora, vejo outra vez o Job. Vejo-lhe a testa abaulada quase inexistente, a maçã-de-Adão enorme, os braços muito mais compridos que os nossos, aqueles pelos todos no peito colossal, aquela força bruta – sim, vejo o Homo habilis intocado pelas mutações externas de todas as espécies que vieram depois, volto a piscar-lhe o olho, e presto-lhe homenagem.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
P.S. Agora vamos ver quem é que ficou mesmo culto neste verão, pelo menos no que respeita a todas as histórias mal contadas que rodeavam o grande Charles Darwin, alterador radical do nosso pensamento.
Então é assim: faço-vos sobre esta matéria um teste de 20 perguntas com quatro opções de escolha múltipla, como contributo para o vosso entretenimento na noite da passagem do ano. Cada pergunta vale 1 ponto, portanto, quem fizer sempre a escolha certa tem 20 valores e qualifica-se para curtir o jogo de pista bestial criado por mim aqui em Estremoz. Para responderem ao exame, podem reler os ensaios “Fique Culto Neste Verão”. Não posso impedir-vos de irem pedir socorro à Internet, mas aviso já que vai ser uma péssima ideia. O que aqui vos contei ainda não estava contado em lado nenhum. E têm até 31 de Dezembro para o Darwin, então.
Para a semana, regressa A Deriva dos Continentes, com uma grande cacetada na Mariana Mortágua, dada por mim, que sou apoiante e eleitora do Bloco de Esquerda – e, antes de haver o Bloco, votava sempre no PSR, um grupelho abertamente trotskista que ajudei o Louçã a formar.
Depois, há uma história nova para a História Natural, mas se vos contasse isto, perdia toda a graça.
E instala-se a rotina, antiquíssima praga do trabalho científico, um trabalho tão criativo como qualquer outra arte.
[1] O famoso Encontro da British Association de 1860, em que Thomas Huxley, também conhecido por “Darwin’s Bulldog”, arasou o bispo “Soapy Sam” Wilberforce.
[2] Cheia de defeitos, eu sei. Mas todas as eras anteriores também estavam cheias de defeitos. A Idade do Ouro nunca existiu, como todos sabemos. Mas desta vez, ao menos, existe o lado solar da internet. E isso, essa velocidade com que encontramos tesouros desde que saibamos o que é que andamos a procurar – isso é absolutamente inédito.
[3] Grupo em que eu tenho andado incluída, evidentemente.
[5] Que tenhamos identificado até hoje, claro. Provavelmente, existiram ainda mais espécies humanas que estão por descobrir.
[6] Nome científico do famoso Homem do Neandertal, que supostamente teremos sido nós a exterminar, quando invadimos a Europa durante a Idade do Gelo e do qual teremos possivelmente herdado a sequência de genes para o cabelo ruivo. Note-se que, a avaliar pelo que a genética molecular nos ajudou a compreender melhor hoje em dia, a herança do cabelo ruivo é um cenário mais provável do que o cenário do rápido extermínio causado pelo aparecimento do Homo sapiens na Europa durante a Idade do Gelo.
[7] Convivemos menos com estes: ainda não tínhamos chegado à Ásia por essa altura.
[8] Nos anos 90, o consenso geral ainda era que o Homo sapiens tinha aparecido há setenta ou sessenta mil anos, e neste ponto exterminara, muito rapidamente, as amostras ainda sobreviventes do Homem do Neandertal.
[9] Melhor conhecida ainda, escusado será dizer, é a tesão instintiva do pessoal por tudo o que é novidade.
[11] Só não foi com o Homo erectus porque não chegámos à Ásia a tempo de uma mistura em massa.
[12] Ou seja, nós temos a defesa natural contra o problema. Já imaginaram a brutalidade com que andamos a esticar a corda?
[13] A tal urga, que tanto serve como instrumento de trabalho como pode servir, se necessário, enquanto arma de defesa ou agressão.
[14] No filme, na sequência em que finalmente em que se percebia este detalhe fundamental, não consegui deixar de pensar como é que alguém consegue entregar-se às delícias da copula num sítio onde a abundância de insectos voadores (e pressupõe-se que outros tantos rastejantes) obriga as pessoas a usarem máscaras de rede na cara e luvas de cabedal nas mãos.
[15] Note-se, as urgas são imponentes. E o mais provável é que os citadinos nunca tivessem visto nenhuma.
[16] “But what will you do if a man really loves you?” – “I’ll pity him.” Sempre adorei esta deixa.
[17] A sequenciação do genoma humana demonstrou que, em termos de genética molecular, não existe a mínima diferente entre as chamadas “raças” humanas – aquelas a que Darwin teria preferido chamar “subespécies” porque sempre era mais digno (uma subespécie é apenas uma variação geográfica, causada pelo ambiente, dentro da mesma espécie), mas acrescentou logo já saber ser esta empresa impossível, tão habituados estavam já os povos a usar o termo “raça”, à época de forma francamente derrogatória: os brancos são uma raça perfeita, mas os negros são uma raça de crianças rebeldes e voluptuosas que nunca crescem e só pensam em sexo, os mongóis são atrasados mentais (daí o termo “mongoloide” para os portadores da trissomia 21, também eles brutalmente excluídos da sociedade), os chineses cheiram mal e só sabem fazer contas mas nunca escreveriam um poema (!), os habitantes da Oceania habitam-na exclusivamente para o prazer dos olhos dos Europeus, que levam rapidamente a outros prazeres – e não servem para radicalmente mais nada. As raparigas tendem a morrer muito jovens durante os partos porque é o primeiro esforço que fazem na vida.
[18] Memória de uma guerra qualquer em que a China queria invadir a Mongólia e os russos ajudaram os mongóis a expulsar os chineses. Estas partes, confesso, não percebo mesmo: quem é que quer invadir o maior deserto do mundo, onde vivem cavalos que só se reproduzem entre si, e vacas pastoreadas por uns fantásticos Homo erectus em estado puro? Aquilo tem é que ser declarado reserva mundial inviolável, gaita.
[19] Os orangotangos, que vivem pendurados nas árvores da cintura de floresta equatorial que dantes rodeava toda a Terra, com quatro mãos e nenhuns pés para se pendurarem melhor, saltarem melhor de árvore em árvore, e fazerem viagens mais espetaculares de liana em liana, para não falar daqueles filhotes de olhos enormes que as fêmeas pareciam fazer questão de trazer sempre às costas, foram afastados sem necessidade e explicações; pura e simplesmente, eram um Grande Primata demasiado louco para qualificar enquanto parente próximo do homem. Por outro lado, no tempo de Darwin ainda ninguém conhecia os bonobos, o mais pequeno dos Grandes Primatas e o único que forma sociedades justas e pacíficas, o que talvez tenha a ver com o facto dos seus dirigentes máximos serem sempre grupos de fêmeas. São Grandes Primatas que dão um grande crédito ao amor como rotina fundamental das suas sociedades, e, para grande surpresa de todos os Primatologistas que chegaram primeiro… isto, de facto, não costuma ser visto nem nos animais nem nos descendentes do Homo erectus… estes sacanas entregam-se aos prazeres do sexo… deitados num tereno macio e virados um para o outro, aos beijos e mais beijos e mais beijos!
[20] Era daquelas gracinhas que os colonos diziam aos berros enquanto bebiam girafas e se enchiam de camarão picante no relvado do Miramar. Eu não lhes achava graça nenhuma porque falavam dos “pretos” como quem fala de bichos, comportavam-se como se a escravatura ainda existisse, e deixavam-se estar para ali a fazer negócios, contar lucros, e encomendar bebidas e comidas cada vez mais caras e ornamentadas, que eu sabia que davam imenso trabalho porque adorava esgueirar-me para dentro da despensa, passar para um cantinho da cozinha já sem sapatos para não fazer mesmo barulho nenhum, e ficar ali fascinada a aprender com eles todas aquelas alquimias., até muito depois da hora de fecho, quando aqueles pretos obrigados a andar de roda deles como rodas de colibris já deviam ter ganho o direito de ir para casa.
Estes brancos eram aquele género de gente que desobedecia com gosto e exibicionismo a qualquer polícia sinaleiro preto que os mandasse parar, ou tomar o sentido obrigatório à esquerda. UM PRETO que lhes dava ordens? Faziam chiar os pneus e estoirar o motor e desobedeciam de propósito, e de caminho ainda mandavam um grande caralhete ao sinaleiro quando passavam por ele.
[21] Enfim, nessa idade eu era ingénua. Com aquele físico impressionante, o Job punha-se em tronco nu sempre que podia. Senão, qual era a graça?
[22] Alguém sabe o que é feito do CHUPÓLEO? Os que vieram de África trouxeram-no aos montões para a Metrópole. Ainda me lembro de o comprar nos supermercados portugueses. Mas, quando voltei da América, tinha desaparecido por completo. É uma dor d’alma. Nunca vi papel de secar óleo tão espantosamente eficaz. E só aquele nome tão másculo, CHUPÓLEO… Lembra qualquer coisa que se faz na cama, é ou não é, confessem?
[23] Como é evidente, em Luanda nunca ninguém, nem negro nem branco, tinha visto um leopardo das neves. Isso dava ao animal uma dimensão de perigo redobrado, uma criatura enorme, de garras retrácteis todas pausadas a que ninguém escapava, olhos cruéis, patas como molas de aço – camuflado pelos montes de neve, pronto a saltar ao caminho do primeiro ingénuo que usasse o trilho onde esse monte de neve estava. Quando saltava ao caminho da pessoa com as fauces furiosas escancaradas e um rugido infindo que retumbava no eco, já nem valia a pena tentar resistir-lhe.
[24] Quem é que não quer? Negro pode ser guerrilheiro, mas não deixa de sonhar por causa disso. “Mas sem ser o protector da meu Boss… eu vou fazer o quê para o MPLA?”, pergunta o bebé.
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Charles Darwin
Está na altura de ficarmos a conhecer o primeiro de todos os trabalhos do século XIX que, ainda antes de Darwin, receberam o epíteto de “Livro do Macaco”. É verdade que o dito epíteto foi cuspido a título insultuoso por parte dos leitores irados que não podiam discordar mais do seu conteúdo. Também é verdade que em certas passagens esta obra científica quase parecia uma obra de ficção científica, tais eram os seus erros biológicos e técnicos. Mas teve no seu tempo específico uma importância fundamental. Foi este “Livro do Macaco” que começou a preparar uma Europa ainda refém do texto literal da Bíblia enquanto o maior, melhor, e mais definitivo de todos os manuais científicos, para a alternativa de que talvez as espécies de certa forma evoluíssem a partir umas das outras, em vez de todas elas serem criadas separadamente por Deus. No epicentro deste episódio vulcânico está um escocês chamado Robert Chambers, que de formação não é zoólogo nem botânico nem geólogo, nem sequer particularmente versado em ciências naturais. Até aqui, o que fez na vida[1], em colaboração com o irmão, foi mais escrever grandes Enciclopédias e Dicionários temáticos sobre os mais variados assuntos, sempre com grandes tiragens e iguais procuras. Também editou, desde muito cedo, uma revista de cultura geral onde nunca deixou de incluir material científico acessível a professores primários e a donas de casa. No entretanto, participou em expedições para aumentar o seu conhecimento geológico, e fez dissecações para conhecer melhor o mundo vivo. Finalmente, em 1841, refugiou-se nas Highlands[2], onde começou a escrever, no maior dos segredos, o estranho livro VESTÍGIOS DA CRIAÇÃO[3].
Por esta altura, e por muito que a contagem do tempo segundo a Bíblia pudesse parecer cada vez menos inteligível[4], ainda muitos grandes estudiosos defendiam a necessidade de grandes catástrofes, como o Dilúvio de Noé, para explicar o aparecimento de fósseis no alto das montanhas. Conhecidos como catastrofistas, estes homens confiavam que um Deus capaz de criar o Dilúvio também seria capaz, e por várias vezes, de criar todas as espécies uma por uma[5]. Um dos mais distintos destes homens era Adam Sedgwick, antigo professor de geologia de Darwin, e, incidentemente, à época ainda muito orgulhoso do seu pupilo por todo o trabalho que desenvolvera a bordo do BEAGLE, arriscando-se frequentemente a apanhar doenças desconhecidas em locais onde não teria acesso a qualquer espécie de tratamento médico. “Está a fazer um trabalho admirável na América do Sul, e já enviou para Inglaterra uma colecção inestimável,” escreveu na altura a um amigo. “Havia algum risco de se tornar indolente, mas agora o seu carácter definiu-se, e, se Deus poupar a sua vida, alcançará uma grande reputação entre os naturalistas da Europa.”
Por outro lado, eram cada vez mais os estudiosos, nomeadamente entre os geólogos, que, observando a disposição dos fósseis entre os estratos rochosos, e tendo em conta a datação cada vez mais precisa destes estratos, já não viam no Dilúvio mais do que uma mera cheia do rio Jordão, e consideravam a passagem do tempo uniforme, sem um ponto de início nem um ponto de fim, apenas com alterações topográficas constantes que iam arrastando os fósseis consigo. Conhecidos como uniformitaristas, estes homens não viam necessidade de criações constantes por parte de Deus para que as diferentes espécies se formassem em diferentes períodos geológicos. Um dos mais distintos representantes deste grupo contestatário era o advogado Charles Lyell, autor do fundamental PRINCIPLES OF GEOLOGY publicado em Julho de 1830, e o homem considerado por muitos o fundador da geologia moderna[6].
Secretamente, o que Chambers fez foi responder à questão que Sedgwick lançara a Lyell, a título de desafio de resposta impossível, destinado a demonstrar que Deus tem por força que intervir constantemente no progresso da vida: como explicar a progressão das formas orgânicas à luz da uniformidade que pressupunha uma lei natural invariável?
Sedgwick, que colocara a pergunta que estava mesmo a pedir esta resposta, nunca poderia ter imaginado que as coisas alguma vez chegassem ao ponto a que chegaram no VESTIGES, que foi publicado anonimamente em 1844. Ficou horrorizado:
“O mundo não pode tolerar ser virado do avesso; e estamos prontos a reentrar numa guerra sem quartel contra qualquer violação dos nossos princípios modestos e das nossas boas-maneiras sociais. As coisas devem manter-se nos seus lugares apropriados se se destinam a trabalhar em conjunto para qualquer finalidade positiva. As nossas gloriosas donzelas e matronas não podem envenenar as nascentes do pensamento feliz e do comportamento modesto escutando as seduções deste autor; que se lhes apresenta com os anéis da serpente e uma vez mais lhes pede que colham o fruto proibido de uma falsa filosofia – que lhes diz que a sua Bíblia é falsa quando lhes ensina que foram feitas à imagem de Deus – que são filhas de macacos e engendradoras de monstros – que anulou todas as distinções entre o físico e o moral – e que todos os fenómenos do universo são como o desenvolvimento e o progresso de um materialismo degradante e sem tréguas.”
Ha! Pelos vistos, e finalmente, aqui está o legítimo, e sem dúvida o primeiro, “Livro do Macaco”.
Não havia Darwin de ter lido todas estas invectivas, como escreveu a um amigo ainda a bordo do BEAGLE, “cheio de medo e a tremer” – por essa altura, como é evidente, já tinha começado a esboçar A ORIGEM DAS ESPÉCIES, cuja primeira edição veio a lume em 1859. E os gritos de protesto, mais ou menos apaixonados do que os do seu antigo professor, multiplicavam-se por toda a ilha à sua volta. Em 1850, o VESTIGES continuava a ser repudiado quase unanimemente por todos os cientistas e intelectuais de relevo em Inglaterra, incluindo homens que vieram a ser grandes apoiantes, da selecção natural, como Huxley e Lyell. Além de ninguém estar disposto a aceitar as suas ideias no que respeita às ciências naturais, muitas das críticas ferozes ao VESTIGES expressam com toda a clareza um grande medo de que os seus conteúdos pudessem corromper a moral vitoriana – nomeadamente o medo de que seduzissem os trabalhadores a passarem de um estado resignado de graça para um estado conturbado de infidelidade social.
O que não quer dizer que o VESTIGES não fosse conquistando também cada vez mais leitores leigos interessados naquela heresia, já que as edições do livro do autor desconhecido se sucediam umas às outras com grande rapidez – e, segundo Darwin, com melhoras notáveis ao longo do tempo. Entretanto, ia-se tornando cada vez mais popular nos jantares da alta roda discutir quem teria sido o verdadeiro autor do “Livro do Macaco,” contando-se entre os suspeitos figuras tão inesperadas como Lady Lovelace[7] e o próprio Príncipe Alberto.
O que é que Chambers fez para enraivecer a fina flor dos seus leitores a este ponto?
Bem, basicamente testou as águas – e substituiu Deus por um fenómeno que ainda não era a evolução, mas já era uma ideia parecida, e que se chamava “desenvolvimento”.
“É interessante observar em que pequeno campo se conforma o total dos mistérios da natureza. O mundo inorgânico tem uma lei compreensiva final, a GRAVITAÇÃO. O mundo orgânico, o outro grande departamento das coisas universais, repousa da mesma forma sobre uma única lei, isto é – o DESENVOLVIMENTO.”
Porque, pensando bem, é quase herético assumirmos que o Criador, que certamente criou o mundo, precisou de executar várias criações:
“Como podemos supor um exercício do Seu poder criativo criando numa época zoófitos, noutra época juntando-lhes alguns moluscos marinhos, noutra época introduzindo um ou dois crustáceos, depois produzindo peixes crustáceos, depois peixes perfeitos, e assim por diante até ao fim? Esta seria certamente uma ideia muito pouco respeitadora do Poder Criativo – reduzi-Lo a uma capacidade idêntica à capacidade criativa a que consegue chegar a humanidade.”
É bastante mais lógico – e respeitoso – assumirmos antes que
“o Ser Eterno organizou tudo antecipadamente, e incumbiu todas as operações da lei de executarem o Seu plano, estando Ele próprio sempre presente em todas as coisas.”
A partir daqui o Desenvolvimento está sempre em movimento porque
“a vida orgânica empurra-se a si própria sempre que há espaço ou encorajamento para tanto, sendo as formas sempre adequadas às circunstâncias, e em certa relação com elas.[8]”
Muitos dos exemplos oferecidos por Chambers a este respeito eram mesmo pequenos quadros de ficção-científica para o seu tempo. Há que ver que estes são os dias em que Júlio Verne encheu a Europa de livros espantosos de ciência inventada que ainda hoje nos fazem sonhar[9]. Mas as invenções de Chambers não faziam sonhar ninguém, por demasiado extravagantes ou por total carência de fundamento.[10] A verdade, no entanto, é que todo este quadro tecia, pela primeira vez e por incipiente que fosse, o esboço de um processo evolutivo. E assim, vestígio a vestígio, esta estranha forma de evolução acaba por chegar ao homem – cujo lugar neste sistema constituiu, sem sombra de dúvida, a proposta mais chocante do livro.
“O Homem, portanto, considerado zoologicamente, e não considerando o lugar distinto que lhe foi reservado pela teologia, toma simplesmente o lugar como o tipo de todos os tipos no reino animal.”
Irão então existir, quando as condições evoluírem,
“espécies superiores a nós em organização, mais puras nos sentimentos, mais poderosas em meios e actos, e que governarão sobre nós?”
Muito provavelmente, embora seja inegável que
“a raça presente, por rude e impulsiva que possa ser, é talvez aquela que se encontra melhor adaptada ao presente estado de coisas no mundo.[11]”
Finalmente[12], uma vez que hoje em dia podemos lidar com todos os problemas que conhecemos de forma estatística, os assuntos humanos não podem ser separados dos assuntos materiais.
“Esta regularidade estatística nos assuntos morais[13] estabelece plenamente a sua posição sob a presidência da lei. O Homem parece agora um enigma se for considerado apenas enquanto indivíduo: em massa, é apenas um problema matemático. A acção mental, sendo provado que está coberta pela lei, passa imediatamente à categoria das coisas naturais. O seu velho caracter metafísico desaparece num instante, e a distinção que se faz habitualmente entre o moral e o físico fica anulada.”
Gostando o ser humano como gosta dos seus duches ocasionais de adrenalina, é possível que muitos leitores vitorianos tenham comprado o livro só pela aventura de o possuírem – e, certamente, de alguém lá em casa conseguir ler toda esta última parte. Não há razões para duvidar que algumas sequências chegassem a saber-se de cor. Ainda antes da publicação da primeira edição da ORIGEM DAS ESPÉCIES, já a história dilacerante do Livro do Macaco, com todo o debate que lhe vinha associado, estava a disseminar-se pela Europa e a pavimentar o caminho para o materialismo[14]. Talvez Chambers só quisesse ver o que é que acontecia se alguém explicasse o que é que os fósseis estavam a fazer no cimo de montanhas que afinal não tinham só seis mil anos de vida conforme a vida da Terra segundo a Bíblia usando a alternativa óbvia do sentido prático que permite explicar tudo sem qualquer problema: pura e simplesmente, tira-se Deus da equação. Mas a sua curiosidade abriu a Caixa de Pandora.
Pouco depois, Darwin parou de esperar e publicou mesmo a ORIGEM, já pronta há bastante tempo, mas à espera que a tempestade de Chambers passasse. Os mais ardentes materialistas do século XIX, Marx e Engels, reconheceram logo o que Darwin tinha conseguido, e exploraram de imediato o seu conteúdo radical. Marx chegou a oferecer-se para dedicar a Darwin o Segundo Volume do DAS KAPITAL, mas Darwin declinou gentilmente, declarando não querer sugerir que dava a sua aprovação a uma obra que não lera. Pelo contrário, e exactamente para evitar passagens que, como a de Chambers, fossem consideradas implicações filosóficas a favor do materialismo[15], preferiu escrever a Karl Marx, em 1880:
“Parece-me que a liberdade de pensamento será mais bem promovida pelo gradual esclarecimento do entendimento humano, que acompanha o progresso da ciência. Por isso tenho sempre evitado escrever sobre religião, e tenho-me confinado à ciência.”
Este era o mesmo Darwin que viera de uma família Unitariana inconformista e se juntara à fé Anglicana, de tal forma que foi estudar para a Universidade de Cambridge com o intuito de vir a ser clérigo numa pequena cidade de província – o seu sonho desde o final da infância. No entanto, teve que prescindir de Deus como causa imediata quando juntou todos os pontos da sua viagem e chegou à selecção natural. Afastou esse Deus com a mesma tristeza com que, dois séculos antes, Johannes Kepler afastara órbitas dos planetas do desenho em círculo para desenhar antes órbitas elípticas que eram finalmente compatíveis com as observações planetárias feitas durante mais de um milénio no céu nocturno. O círculo simboliza a perfeição e a elipse simboliza o caos: é a tristeza do grande cientista perante os seus próprios dados, que não lhe agradam mas representam a verdade à luz da ciência e têm que ser respeitados enquanto tal. Kepler assumiu as órbitas elípticas dos planetas baseadas nas suas observações. E Darwin assumiu a evolução baseada na selecção natural:
“Não posso continuar a argumentar que, por exemplo, a mola tão bela de uma concha bivalve deve ter sido feita por um ser inteligente, tal como o homem constrói a mola de uma porta. Não me parece que haja mais desígnio na variabilidade dosseres orgânicos, e na acção da selecção natural, do que no quadrante de onde sopra o vento.”
Talvez Darwin não esperasse a raiva e a cólera com que as várias igrejas lhe caíram em cima. Mas toda aquela tareia, mais a perda de Deus como causa primeira, vibraram golpes duros na sua fé. Não quer dizer que se tenha tornado ateu. Mas tornou-se – a tal palavra cunhada pelo seu bulldog Thomas J. Huxley – tornou-se agnóstico. Por vezes, como escreveu a um dos seus primos:
“Nas minhas flutuações mais extremas nunca fui um ateu no sentido de negar a existência de Deus. Creio que geralmente (& cada vez mais à medida que envelheço), mas nem sempre, a melhor descrição do meu estado de espírito seria a de um agnóstico.”
Mas é evidente que ainda teríamos – e teremos – que assistir a muitas batalhas na longa História desta guerra. Segundo o lugar-comum geralmente atribuído ao físico alemão Ernst Mach, também ele do século XIX, as novas teorias só triunfam completamente quando a velha guarda desaparece. O que é pouco mais do que um sonho agradável, uma vez que que a velha guarda nunca desaparece.
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HISTÓRIA VERDADEIRA
O espírito experimental do senhor que acreditava na capacidade de aprendizagem dos diferentes animais
Na esquina de um tranquilo bairro lisboeta, o proprietário de uma pequena loja de animais está a dar pedacinhos mínimos de ração aos seus três coelhos anões[16]. Nisto, entra um senhor que quer comprar um papagaio, para poder ensiná-lo a falar.
“Está com azar, ó amigo,” diz o proprietário. “Vendi ontem o meu último papagaio. Agora só devo receber mais para o ano.”
“Então não tem aí nenhum pássaro bonito que eu possa levar?”, pergunta o senhor.
“Por acaso tenho. E olhe que elas nem são nada fáceis de encontrar nestas lojas. Tenho ali aquela coruja linda, toda branca, está a ver?”
A coruja em questão é uma Tyto alba, a chamada coruja-das-torres porque se diz que entra pelas frestas das torres das igrejas para ir beber o azeite às sacristias. É grande, majestática, com o corpo branco e manchas acastanhadas nas asas, os olhos enormes, redondos, dourados, já fixos nos dois homens que falam sobre ela.
“Ah, sim!”, diz o senhor. “É linda. Vou já levá-la, antes que venha outro cliente.”
“Ó amigo, mas olhe lá, ela bonita é, isso sem dúvida, e ainda por cima é muito raro alguém ter alguma em casa. Além disso, come-lhe os ratos todos que lá tiver. Não há melhor pesticida que uma boa coruja. Mas não tem nada a ver com o papagaio que o amigo queria. A minha ética profissional obriga-me a avisá-lo que as corujas não falam.”
“Ah!” responde logo o senhor. “Vai ver. Sou um homem muito paciente. Eu seja cão se não ensino esta coruja a falar.”
Três semanas mais tarde, o senhor volta à lojinha da esquina para comprar comida para a coruja. Parece muito feliz. O proprietário fica a estoirar de curiosidade.
“Estão diga lá, ó amigo. A sua coruja já fala?”
“Bem… Ela falar ainda não fala… Mas já ouve tudo com muita atenção!”
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Também enquanto autodidacta, note-se. A falta de uma formação específica não tinha necessariamente de ser um entrave para qualquer britânico curioso, bem informado, que tivesse boas ideias e escrevesse bem.
[2] As montanhas mais altas e menos acessíveis da Escócia.
[3]VESTIGES OF CREATION, no original; frequentemente encurtado para VESTIGES.
[5] Isto explicaria os fósseis de dinossauros, e de vários outros animais claramente antecedentes ao homem, tanto marinhos como terrestres. Alguns naturalistas consideravam toda esta fauna pré-humana ensaios que Deus andara a fazer até chegar até ao ecossistema perfeito do Jardim do Paraíso, pronto para oferecer ao Homem. O termo “ecossistema” é usado aqui de forma anacrónica, evidentemente.
[6] Isto é, uma Geologia em que Deus nunca aparece como o princípio activo nem como o motivo explicativo, e em que o tempo passa de forma tão longa que se torna humanamente impossível de contar. Tirando isso, Lyell cometeu erros de raciocínio que podem parecer-nos fascinantes (o tempo futuro do regresso dos dinossauros, por exemplo) mas não deixam por isso de ser erros – de palmatória.
[7] Augusta Ada Byron, a única filha legítima do poeta Lord Byron, casou-se como Ada King, Condessa de Lovelace. Foi uma matemática especialmente respeitada na Inglaterra Vitoriana, que ficou reconhecida por ter escrito o primeiro algoritmo para ser processado por uma máquina.
[8] É verdade, isto está tudo muito mal escrito, o que é particularmente chocante quando contrastado com a fina prosa de Darwin, que navega o inglês vitoriano com a mestria de Dickens. Mas lembrem-se, Chambers costumava escrever enciclopédias para professores primários e donas de casa. Não estava habituado a grandes exigências em conhecimento científico, isso já vimos. Mas também é preciso ver que ninguém nas suas audiências habituais o acusaria de não escrever bem. Conseguia escrever, o que já era uma grande coisa.
[9] Entre a produção copiosa do escritor francês que ofereceu ao século XIX um estilo absolutamente novo, recorde-se CINCO SEMANAS DE BALÃO em 1863, VIAGEM AO CENTRO DA TERRA em 1864, VINTE MIL LÉGUAS SUBMARINAS em 1870, A VOLTA A AUNDO EM OITENTA DIAS em 1872, e assim por diante. O homem tinha uma imaginação absolutamente brilhante.
[10] Evidentemente, Chambers não era nenhum Júlio Verne.
[11] Note-se o cúmulo do insulto consubstanciado naquele “talvez”.
[13] Chambers estava a dar como exemplo a previsibilidade estatística dos índices criminais numa determinada região.
[14] Em 1869, Marx escreveu a Engels, acerca deA ORIGEM DAS ESPÉCIES: “Embora desenvolvido no rude estilo inglês, este é o livro que contém a base de História Natural para o nosso ponto de vista.”.
[15] Embora a viagem do BEAGLE tenha tornado Darwin um homem profundamente materialista.
[16] Como se depreende dos “pedacinhos mínimos”, os coelhos anões são uma treta. Não existem. Mantêm-se anões fazendo-os passar fome. Sobretudo, nunca os empanturrem com couves e cenouras. Vão ver como num mês eles rebentam com a gaiola. Based on a true story.
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