Categoria: Crónica

  • Os encarniçados

    Os encarniçados


    O Sol é para todos, mas não o tapemos com uma peneira. O privilégio de estar aqui (a banhos), de charuto na mão esquerda, enquanto o indicador direito vos escreve, é, em boa parte, fruto do meu trabalho. Não os recebo, aos puros, dos meus amigos castristas. Volta e meia recebo um charuto de amigos que sabem ser este o meu prazer mais excelso, a par de celebrar o Amor carnal e espiritual.

    Devo aos genes, a uma avó professora, ao acaso feliz, a amizades do Caminho, a conjugação de valorizar o empenho como forma de obter o justo retorno do que quer que seja e me apaixone. Não nasci em berço de ouro, mas nos verdes anos nunca faltou nada, a não ser a presença afectiva dos meus imberbes pais. Talvez essa carência prematura dite a minha busca de prazeres, como deve haver outra razão qualquer para padecer de uma curiosidade insaciável.

    Tudo me interessa, da vida dos santos ao mais ínfimo detalhe da tola de bandidos. Faço um exercício diário de reflexão ao espelho e escrevo coisas assim:

    ORDEM E PROGRESSO I A demanda e a debanda de brasileiros que se instalam em Portugal afina quase sempre pelo mesmo diapasão: escapar da violência e da corrupção. Os nossos patrícios de língua preferem a Pátria de Cabral à terra amaldiçoada do pau brasil. Juca Chaves determinou que o Brasil não ia para a frente por terem cortado o pau do índio. Os euros também contam na decisão, perante a fraqueza do real. Há brasileiros e brasileiros nesta demanda. Mas a maioria não traz doutoramento, a não ser na universidade da vida. Os crânios do Brasil mais depressa se instalam nos EUA ou na Austrália. Dá pena, um país tão sobredotado pela mãe Natureza ter pais tão medíocres. Não foi por impulso que D. Pedro escolheu o Brasil. Eu, se fosse parido lá, não o trocava. Fazia de Paraty ou da chapada dos Veadeiros a minha eterna morada. Deixava crescer a barba. Lia e escutava Machado de Assis, Clarice, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, Vinícius, Jobim, Chico, João Gilberto, Betânia, Drummond de Andrade, Veríssimo, Amado… amava a minha pátria e agradecia ao Cabral.

    SANTOS I O meu santo padroeiro é o Fernando de Bulhões, arrebanhado pelos italianos de Pádua e santificado como António. Devo-lhe a recuperação de todas as coisas perdidas. Oro com fé e nunca me falha. Só não lhe devo a felicidade conjugal perpétua com uma das três nubentes do meu currículo porque não me deu para lhe pedir o quesito. A felicidade, porém, depende do que faço por ela. Os santos ajudam na curva descendente. Tenho um lema: todos os dias arrancar um sorriso ou gargalhada da consorte. O humor não chegou para lavar e durar noutros enlaces porque não tinha que ser mais do que foi. Santo é quem abdica das suas paixões e dá a vida por uma causa ou causas. Sem lixar o próximo. O santo é por natureza um milagreiro. É um milagre ainda haver santos.

    BANDIDOS I Eu gosto de bandidos que são bandidos porque há bandidos eleitos e venerados. Esses bandidos que são bandidos à margem das leis feitas por bandidos não aceitam que os tomem por lacaios e por parvos. Dillinger, Pancho Vila, Ernesto Guevara, Zapata, Makhno. Alguns a quem chamam de bandidos e assassinos são guerrilheiros imbuídos de ideais elevados que busca(ram) um mundo melhor, livre de bandidos como Nixon, Fulgêncio, Trump ou assim. Pinto da Costa foi um bandido e se eu fosse do FCP admirava-o. Teria um altar no WC. Faria parte da milícia pretoriana. Estou a exagerar. Mas gostaria dele. Há, houve e haverá bandidos em todos os lados, clubes, religiões, seitas, empresas. À solta, odiados e venerados. Para algumas mulheres eu sou um bandido arranca-corações. Onde é que isso já vai… Mas se calhar é por dizer estas coisas.

    PROFECIAS I Os açorianos riem-se da cagufa dos alfacinhas quando a terra treme. Habituados a viver debaixo de provações e abalos, um sismo moderado, um vinho entornado, não é nada. Ontem, estava eu no mictório, quando se deu a sacudidela de 4.7 ou 4.2. para bater certo com a falsa notícia de que pela última vez o pintinho assustava os mouros de Lisboa. Não precisei de sacudir as miudezas. Foi divertido. Mais tarde ouvi o Moedas e o noticiário da quase catástrofe. Tal como o analista sismólogo a classificar o fenómeno de “interessante” e estabelecer um paralelo curioso com outros paradeiros sacudidos como Santorini fruto de partilharmos o globo terrestre. De facto, na partilha é que está o ganho. Se deixassem de haver competições e troféus na esfera terrestre como seria? Um tédio, certamente, para quem aprecia a agitação.

    Estas pequenas coisas levam-me a pensar que sou um privilegiado. Nada me é dado de bandeja. Nem estas crónicas são feitas em troca de pilim. Recebo em géneros. É o meu género. Os encarniçados, descontentes, que só espumam e lamuriam, entediam-me.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

    N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • Barcelona 0.1

    Barcelona 0.1


    Cheguei atrasado à Varanda da Luz – só se justifica ficar aqui escrito por ser uma crónica, e não uma notícia, porque só o raro é notícia. Nem vi a águia a voar e perdi todo o ritual que marca o início das grandes noites europeias. Que seja: promete chuva, mas nada como aquele dilúvio do inglório 4-5 de há um mês e meio. Interessa, sim, dizer que estou confiante. Hoje, há qualquer coisa no ar. Talvez seja por causa do Bruno Lage estar de volta, e o futebol ter sempre um fraco por histórias de redenção.

    (estranhamente, o estádio não está cheio, não sei se pelo preço dos bilhetes ou pela semana do Carnaval ter esvaziado Lisboa)

    Ou talvez seja, para criar hipóteses absurdas para justificar o meu optimismo, por ter avistado há pouco um adepto, atrasado como eu, com uma camisola do Poborsky, o que só pode ser um sinal de que esta noite terá algo de mágico. Ou ainda por ter ouvido um senhor hoje no café dizer que, em vésperas de jogos grandes, quando sonha com um golo de calcanhar do Benfica, a vitória está garantida. Ou, vá-se a ver, por ter esta tarde visto um tipo engasgar-se a beber um fino quando assistia à antevisão do jogo na CMTV, e dito, quando recuperou: “Isso foi um presságio. Mas não sei é se bom ou mau”.

    Enfim, sinais não faltam. Se resultam em golos, logo se verá.

    Em todo o caso, temos aqui um problema: é que o meu atraso custou-me caro. Esgotou-se o farnel. Nem a pão e água estou. Pensando bem, nem é de todo mau – há semanas que ando a adiar uma dieta, e talvez esta seja a deixa que precisava.

    No relvado, tudo calmo por agora. O Barcelona pode não ser o colosso de outros tempos, mas continua a ser adversário de muito respeito. Troca a bola com aquela paciência estudada, como quem acredita que mais cedo ou mais tarde vai encontrar um buraco para ferir. Mas hoje não quero sofrer. Basta o que eu vou sofrer na próxima semana – e mais não digo por agora…

    (boaaaaaa… cartão vermelho para o Pau Cubarsí, que rasteirou um afoito e isolado Pavlidis; e quase que dava o bónus de penálti)

    Mais confiança. Está no ar, digo eu, uma oportunidade de ouro. Vão ser quase 70 minutos em superioridade numérica. Sei que ainda há muito jogo pela frente, mas a minha intuição não me engana: hoje pode ser uma daquelas noites em que a Luz se transforma num inferno para quem vem de fora.

    Agora é não facilitar – daqui é fácil de dizer. O Benfica tem de fazer valer o homem a mais, e nada melhor do que marcar já, ou daqui a cinco minutos, ou a dez, ou quando calhar: tem é de marcar, que isto não acontece todos os dias.

    Porém, estranhamente, enquanto denoto a incapacidade de o Benfica sufocar o Barcelona – as equipas portuguesas jogam contra o Barcelona ou o Real Madrid sempre com mais medo do que o Leganés ou o Osasuna –, começo a fraquejar no entusiasmo. Conheço este filme: tantas vezes já vi equipas reduzidas a dez crescerem dentro do jogo, das tripas fazerem coração, enquanto a equipa em vantagem numérica hesita, falha passes, exibe demasiadas cortesias no momento do remate, e contenta-se em trocar bolas como se houvesse um prémio para posse de bola estéril. E os adeptos querem é golo, nem que seja aos baldões.

    (para estragar a festa, e o Benfica apanhar uma valente e justificada multa da UEFA, os tontos dos No Name Boys, ou quem sejam eles, lançam tochas e outros artefactos; nunca compreendo a razão de as direcções dos clubes permitirem estas diatribes)

    Lá em baixo, não estou a ver grandes melhorias – e, na verdade, o jogo está equilibrado, com o Barcelona a ganhar até cantos e a fazer alguns remates. Vou ter de me concentrar uns minutos a assistir ao jogo para ‘meter’ energias nesta malta para que cheguem ao intervalo em dupla vantagem numérica: jogadores e golos.

    (pois bem, ou mal, termina o primeiro tempo, e só há vantagem em jogadores, e não em golos…)

    E recomeça o jogo. Entretanto, a fome aperta. Já parece que me cheira a bifanas. E começo a convencer-me de que, se o Benfica não marcar nos próximos cinco minutos, terei de reavaliar a minha relação com a dieta. Tento distrair-me com o jogo, mas a combinação de estômago vazio e nervos em alta não está a ajudar. O Barcelona, mesmo com dez, começa a ter mais bola, e eu começo a ver fantasmas. Isto de ser benfiquista é viver, em constância, entre o aconchego do sonho e o medo do trauma.

    Não sei se os jogadores são muito dados a palestras, nem se o Bruno Lage tem queda para prelecções entusiásticas. Mas, às tantas, devia ter pedido ao ChatGPT para lhe compor um discurso onde se clamasse que a História pode ser escrita também com os pés. E que esta noite o Benfica não joga somente para ultrapassar o Barcelona, mas para dar a um país cansado um vislumbre de grandeza, um motivo para acreditar que ainda há feitos que engrandecem, para além daqueles que envergonham.

    Portanto, quando tudo à volta parece um pântano, onde se afundam valores e esperanças, eles e o futebol são a tábua de salvação. Eu sei que é filosofia barata, mas com falinhas e bolinhos se enganam os tolinhos.

    (mas que lindo serviço nos fez o António Silva: falha um passe e o ex-sportinguista Raphinha marca; isto só visto)

    Lá se vai o ‘meu discurso’ para emplogar jogadores. Aquele paleio de que devem consciencializar-se para jogarem não pelo salário ou pelo prémio de jogo, ou pela progressão na carreira ou por estatísticas pessoais – que devem jogam, sim, para resgatar um orgulho que se tem esbatido entre manchetes de escândalos e o cansaço de um país que já nem se surpreende com nada. Jogam porque, entre o golfe do Montenegro, as avenças e o teatro habitual dos poderosos, o povo precisa de alguma coisa que seja só emoção e verdade – e o futebol, no seu estado puro, ainda pode ser isso.

    Agora, está a ir esfumar-se uma noite glorisa..

    Vamos lá! A História exige coragem. E a questão, como sempre, é se há coragem suficiente para não se deixar adormecer pelo medo, para não se contentar com a mediocridade, para não hesitar quando for preciso arriscar. Porque o medo de falhar muitas vezes pesa mais do que a vontade de vencer – e já vimos demasiadas equipas portuguesas a jogar contra colossos com um respeito que roça a subserviência. A História não se faz com medo.

    E eu a encher já chouriços…

    Agora, o pior não é perder. Perder, todos perdem alguma vez na vida. O pior é perder sem ter dado tudo, sem ter lutado, sem perceber a grandeza da ocasião. E temo que seja isso que me arrisco a assistir esta noite, aqui na Luz: contra um Barcelona reduzido a dez durante 70 minutos e sem o Benfica capaz de assumir o jogo, sem a ambição crua e visceral que transforma uma equipa boa numa equipa histórica. E o futebol não perdoa àqueles que hesitam, e a História muito menos.

    (lá em baixo, ninguém com um rasgo de talento; e o guarda-redes polaco, cujo nome não sei escrever e muito menos pronunciar vai dando conta do recado)

    Caminha o jogo para o fim – e, pela segunda vez, o raio do Raphinha fez das suas. Mais um murro no estômago, mais um lembrete cruel de que quem não quer ganhar acaba sempre por perder.

    E pronto: apito final. Saio daqui da Varanda da Luz com fome e com azia. Tudo mau. E esta crónica tornou-se simplesmente um repositório de filosofia barata e de frustração. Para a semana, lá estarei em Barcelona – mas acho que só lá vou para fazer turismo…

  • Haing S. Ngor: o não-actor acidental

    Haing S. Ngor: o não-actor acidental

    1. TERRA SANGRENTA

    Em temporada de Óscares, quero escrever sobre um “actor” que levou para casa uma dessas estatuetas douradas. E, justamente no dia em que esta crónica é publicada, assinalam-se 29 anos desde que Haing S. Ngor ‘deixou’ Hollywood. Mais precisamente, a 25 de fevereiro.

    Mas para bom entendedor, meia notícia basta.

    E então comecemos pelo filme Killing Fields, que em português tem o titulo de Terra Sangrenta.  Foi produzido em 1984 e é pelo qual o protagonista deste texto é conhecido. A obra venceu vários Óscares e recebeu muitos elogios da crítica.

    Vejamos a sinopse:

    Sydney Schanberg (Sam Waterston), repórter do The New York Times, vai cobrir a guerra civil do Camboja. Lá torna-se grande amigo de Dith Pran (Haing S. Ngor), tradutor e também jornalista.

    Juntos testemunham atrocidades, tragédia, loucura e esperança.

    Schanberg volta para casa e ganha um importante prémio de jornalismo pela cobertura que ambos fizeram, enquanto o seu amigo Dith Pran encara um triste destino no país agora comandado pelos Khmer vermelhos: torna-se prisioneiro dos campos de morte, após não ter ido com a equipa para os Estados Unidos. Mas Shanberg faz tudo para voltar a vê-lo…

    Este filme era aparentemente difícil de vender e de filmar, não sendo óbvio os estúdios aceitarem a priori.

    Mas havia algo de inevitável nele. Um argumento realista, uma história na qual o horror não era fabricado, mas sim reflectido num espelho sujo de sangue.

    Bruce Robinson, o argumentista entregou-o ao produtor David Puttnam, que percebeu imediatamente que tinha algo valioso nas mãos, mas não seria fácil encontrar um realizador adequado para o filme.

    Vários foram equacionados, entre eles Costa-Gavras, mestre e veterano do thriller político, que parecia a escolha óbvia.

    Dizem que Stanley Kubrick mostrou interesse na história, mas depois desistiu. Não porque fosse impossível, mas porque a brutalidade dos factos dispensava qualquer artifício cinematográfico para o autor.

    Era preciso alguém que compreendesse que esta não era apenas uma história sobre guerra, mas também sobre amizade e sobrevivência no inferno dos campos de trabalho, já que tinha os ingredientes principais para a culinária de que é feito o cinema americano.

    E então apareceu Roland Joffé, realizador pouco conhecido na altura, que vinha do mundo da televisão.

    Joffé não queria apenas fazer um filme de guerra, com uma denúncia política. Seria, acima de tudo, um retrato da amizade entre dois homens de dois mundos distintos, ligados pela paixão à verdade, indo assim ao encontro das ideias do argumentista.

    Mas Hollywood queria nomes sonantes.

    Roy Scheider, Alan Arkin e Dustin Hoffman mostraram interesse, mas constava que Puttnam e Joffé já tinham Sam Waterson em mente.

    Os estúdios ainda pressionaram, desconfiados da escolha, mas o produtor e o realizador responderam deixando um aviso de que as filmagens seriam perigosas e não seriam para qualquer um.

    Se Waterston já era uma aposta arriscada, Haing S. Ngor seria uma loucura arrojada, no entanto os estúdios aceitaram.

    A Tailândia serviu de cenário para o filme, já que tem muitas semelhanças territoriais. O peso da história ainda se fazia sentir ali, e as autoridades tailandesas compreenderam a importância de se fazer um filme como aquele.

    Viram essa acção como um testemunho, uma forma de garantir que o mundo não esquecia aquela guerrilha.

    Coisas da política.

    Foi um filme caro. A cena da evacuação de Phnom Penh, por exemplo, precisou de 3.000 pessoas que não eram apenas figurantes. Muitos deles, eram sobreviventes da tragédia.

    A película ainda ardia por aquelas bandas.

    Puttnam, que produziu The Killing Fields, nunca teve dúvidas. Considera-o o seu melhor filme.

    O público e a crítica concordaram, tendo gerado uma receita assinalável.

    O final é inesquecível.

    The Killing Fields distingue-se ainda pelo seu uso consciente de técnicas cinematográficas que amplificam o realismo e o impacto emocional. A fotografia de Chris Menges, vencedor do Óscar, utilizou luz natural e cores terrosas, criando uma atmosfera densa, parecendo até um pouco televisiva para os padrões da altura, quase documental.

    Mas Joffé vinha da televisão, para o bem e para o mal. 

    Na cena em que os jornalistas esperam ajuda americana, os longos planos-sequência permitem que o espectador experimente uma certa ansiedade inabitual, sentindo o peso dos momentos sem cortes artificiais. Essa adrenalina também se faz sentir nas cenas em que Dith Pran tenta sobreviver aos campos de trabalho, não sucumbindo — como muitas vezes acontece em filmes deste género — ao lado mais espectacular do entretenimento.

    O som desempenha um papel crucial, com a banda sonora minimalista de Mike Oldfield a contrastar com o som diegético intenso — explosões, tiros, gritos — sublinhando a tensão constante. Foi uma escolha inesperada.

    Em suma, o filme evita ritmos frenéticos, optando a edição  por cortes lentos que reforçam o impacto emocional, especialmente nas cenas de separação e sofrimento, privilegiando enquadramentos que isolam os personagens, simbolizando a solidão e o desespero, e planos austeros que evidenciam a desolação dos campos cambojanos.

    A ausência de artifícios estilísticos confere autenticidade, equilibrando entre uma estética algo fria e uma narrativa profundamente humana, tornando-se um marco do cinema político e humanitário.

    Nem parece um filme de Hollywood.

    Fade.

    2. O JORNALISMO

    Agora baralhemos o jogo para ter mais piada.

    Houve um tempo em que a palavra ‘genocídio’ era um corte — uma fissura no discurso que exigia pausas para respirar. Hoje, tornou-se um fragmento descartável, um artefacto linguístico que circula incessantemente, sem jamais se fixar. Uma palavra que fica bem e que, pelos vistos, não se percebe bem o que traduz. 

    The Killing Fields retrata o horror dos Khmer vermelhos, mas a sua ressonância ultrapassa o tempo e o território: poderia ser qualquer fronteira, qualquer conflito ou arquivo digital em que o sofrimento é armazenado, etiquetado, diluído e, sobretudo, desrespeitado. 

    A brutalidade de Pol Pot — que não aparece directamente mencionado, mas que está omnipresente no filme — não é uma relíquia: é o espelho deformado de uma contemporaneidade que, ao rejeitar aparentemente os extremos, os reproduz com uma nova sofisticação.

    Aparentemente, a brutalidade hoje é mais descomprometida, mas só na aparência. Uma guerra é uma guerra.

    Os Khmer vermelhos aboliram o indivíduo pelo excesso de controlo; hoje, e para fazer uma analogia, elimina-se pela saturação.

    O conhecimento já não é extinto pela força, mas pela redundância.

    No Camboja, bastava ostentar-se um par de óculos para se ser condenado à morte; hoje, basta um desvio do discurso predominante para se ser apagado, sobretudo quando a doença aperta.

    Não por censura explícita, mas por dispersão — um desaparecimento elegante entre fluxos intermináveis de dados cada vez menos de tabuleiro, inseridos num xadrez cada vez mais complexo.

    A terra que pertencia ao povo tornou-se, agora, o espaço simbólico que pertence à cloud, na qual o indivíduo é fragmentado, redistribuído e finalmente… Esquecido.

    The Killing Fields é menos um retrato histórico do que um ensaio fílmico sobre a vulnerabilidade da memória. O jornalismo que Schanberg e Pran representam não é apenas um acto de coragem, mas de resistência ontológica, enfrentando o esquecimento como destino inevitável.

    O filme recorda-nos que a verdade não desaparece apenas sob regimes totalitários; desaparece quando a sua velocidade de circulação a impede de ser compreendida. A informação, muitas vezes não rima com o humano. 

    Hoje, o jornalista de um órgão mainstream já não desafia o poder; depende dele. Dorme na mesma cama cujos lençóis parecem estar à vista, onde os cobertores já não protegem a audiência, aquecendo-a.

    O jornalista deixou de ser o observador incómodo para se tornar, muitas vezes, o marketeer cúmplice do poder, ou vítima da saturação de dados.

    A narrativa jornalística deixou de ser uma construção lenta e dolorosa para se tornar um reflexo instantâneo, tão rápido que se desfaz no mesmo momento em que surge.

    Não quer dizer que aquele mundo fosse melhor e que o jornalismo salvasse fosse o que fosse, mas a ética ganhava mais Óscares. É fundamental não se perder de vista a História, incluindo a do Cinema. Mesmo que tenha sido feita, como é normal, pelos vencedores e que até haja muitas Histórias para confrontar.

    Um bom filme é sempre intemporal. E pode ultrapassar todas as condicionantes. Nunca se sabe.

    Nos anos 70, para muitos profissionais, o jornalismo era uma arte lenta e meticulosa, movida pela obsessão com a verdade factual.

    Repórteres como Schanberg, retratado em The Killing Fields, arriscavam a vida para documentar realidades que o poder preferia ocultar, sobretudo o estado-unidense que também aqui é posto em causa, mostrando uma realidade vulnerável e mentirosa.

    A informação era escassa, preciosa, e a construção de uma notícia envolvia tempo, investigação rigorosa e confrontos com a censura e o silêncio.

    Hoje, talvez o jornalismo seja mais um reflexo instantâneo, moldado pela velocidade e pelo volume. As redes sociais ditam a agenda, e o que outrora exigia dias de apuramento, agora dissolve-se em segundos, num ciclo contínuo de headlines efémeras.

    Mas, paradoxalmente, e de acordo com o Comité para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), 2023 foi um dos anos mais mortíferos para jornalistas, com 99 profissionais mortos. É o número mais alto desde 2015. Em contraste, nos anos 70, o número de jornalistas mortos era significativamente menor, ainda que os dados dessa época sejam mais escassos e menos sistematizados.

    Nunca nada é só uma coisa e a percepção engana.

    Fade.

    3. A REALIDADE

    Haing S. Ngor não era um actor. Pelo menos, não no início. Nunca quis ser estrela de cinema. Nunca sonhou com Hollywood. Mas o destino colocou-o lá. E ele fez história.

    Nasceu no Camboja, em 1940. Cresceu num país aparentemente tranquilo. Tornou-se obstetra. Salvava vidas e acreditava no futuro.

    Em 1975, o regime de Pol Pot tomou o poder.

    Quando os soldados dos Khmer vermelhos chegaram, Haing S. Ngor escondeu a sua historia. Se descobrissem que era médico, seria morto. Rasgou os diplomas e enterrou os instrumentos cirúrgicos. ‘Deixou’ então de ser médico e tornou-se prisioneiro do regime.

    Foi enviado para os campos de trabalho. Lá viu o horror, a fome e a tortura. Perdeu a mulher que estava grávida e que morreu porque ele não podia ajudá-la; caso o fizesse, descobririam que sabia de medicina.

    Morreu nos braços dele.

    Ngor sobreviveu contra todas as probabilidades. Passou quatro anos no inferno, mas conseguiu fugir em 1979 para a Tailândia e depois para os Estados Unidos.

    Tentou reconstruir a vida em Los Angeles.

    Trabalhou como tradutor, mecânico, tudo o que aparecesse, até que foi parar a um casting de um filme sobre o seu país.

    Roland Joffé, o realizador queria um sobrevivente. Alguém que conhecesse essa realidade e que não tivesse de fingir.

    Haing S. Ngor fez o casting impressionando toda a gente e ganhou o papel de Dith Pran. A experiência do médico, não era muito diferente da do jornalista que iria encarnar, tendo até muitas coincidências.

    A realidade é sempre o melhor actor da realidade.

    Foi a primeira vez que ‘representou na vida’, mas a performance foi arrebatadora e quando o filme estreou, o mundo ficou em choque com a realidade anunciada e a credibilidade da obra. Sobretudo Ngor: fascinava pelos silêncios nada comuns para Hollywood.

    Ganhou o Óscar de Melhor Actor Secundário em 1985 e foi o primeiro asiático a vencer nessa categoria. O segundo na história dos Óscares.

    Mas o prémio não era só dele. Frisou-o bem. Subiu ao palco e dedicou a vitória à mulher e à filha que morreu antes de nascer.

    Haing S. Ngor usou a fama repentinamente adquirida para denunciar o regime de Pol Pot que ainda se mantinha nesse período, embora  em guerrilhas com o Vietnam no seu próprio território.

    Continuou sempre a falar sobre o massacre e escreveu um livro.

    Hoje, essa tragédia é considerada a maior em número da História conhecida e documentada, tendo esse regime chacinado 25% da população.

    Ngor criou várias fundações para ajudar refugiados e nunca deixou de se sentir um sobrevivente.

    Ainda fez outros filmes pouco relevantes, mas nunca quis ser apenas actor.

    Foi a voz dos seus compatriotas anónimos.  

    O seu percurso — de obstetra a prisioneiro, de sobrevivente a estrela acidental — é a narrativa que o cinema contemporâneo raramente consegue recriar, uma que não precisa de artifícios para ser devastadora.

    Talvez conheçamos melhor Dith Pran papel que ele ‘representa’ que o próprio Ngor.

    O jornalista cambojano, como aparece numa nota no fim do filme, tornou-se fotógrafo do The New York Times. Uma recompensa armadilhada, se pensarmos na metamorfose que o jornalismo que Ngor acreditava veio a sofrer.

    Fade.

    4. THE END

    Em 1996, a tragédia voltou à casa do médico.

     

    Três homens aproximaram-se do seu carro e disseram que era um assalto, mas ele recusou-se a dar o fio de ouro que tinha ao pescoço, no qual guardava a imagem da mulher.

    Deram-lhe um tiro na cabeça e morreu.

    A polícia disse que foi um crime banal como muitos outros naquela época.

    Mas muitos duvidaram.

    Ngor tinha inimigos, continuava a denunciar os Khmer vermelhos. Sabia demasiado, tal como no Camboja, e isso podia ser fatal em qualquer circunstância. Algum tempo depois, os assassinos foram apanhados e presos sem mais detalhe.

    Fim da história.

    A sua morte, tão banal quanto suspeita, é o último plano de um filme que nunca chegou a ser rodado: a verdade, afinal, não é derrotada apenas pelo totalitarismo, mas também pela indiferença de uma outra que se multiplica tão depressa que já não consegue olhar para si mesma.

    No entanto, algumas histórias não foram ‘feitas’ para caber num ecrã e muito menos num artigo de jornal. A realidade, ainda assim pode ser mágica, ainda mais que o cinema.

    Arrisco eu, refém que sou dela.

    Haing S. Ngor tinha 55 anos. Sobreviveu aos Khmer vermelhos, mas não sobreviveu à América.

    Ironia.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações: Ruy Otero


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • Maria Teresa Horta

    Maria Teresa Horta


    Eu tinha vinte anos e os gajos lá do JORNAL riam-se com uma maldade muito fininha quando falavam nela, e sussurravam “e depois ela disse, pois então eu escrevo com o útero!”. Muito tempo mais tarde, fiquei a saber que aquilo era mentira – o que a Maria Teresa Horta escrevera[1] era que escrevia com o corpo. E o fenómeno de escrever com o corpo é que fenómeno quase sagrado que marca o trabalho de todos os escritores. Não sabemos de onde vêm as ideias, não sabemos de onde vêm todas aquelas frases com todas aquelas palavras, não sabemos como é que o nosso corpo faz andar os nossos braços sobre o teclado e carregar com os dedos nas teclas até que, de repente, acabámos por formar um parágrafo em que nunca tínhamos pensado. Esse milagre fantástico da escrita, um milagre empolgante e incompreensível que nos acontece a todos, é o milagre que sai diretamente do nosso corpo para o monitor, como dantes saía de dentro de nós diretamente para o papel, usando-nos apenas como intermediários. Nenhum de nós fala muito disso, porque nenhum de nós gosta de parecer meio aluado perante os seus leitores. Mas a Maria Teresa Horta, que era uma mulher corajosa, disse-o com todas as letras: escrevo com o meu corpo. O machismo dominante dos anos 80 podia sentir logo um grande frémito de gozo só de ouvir uma mulher pronunciar a palavra corpo, mas essa mesma mulher não estava a pronunciar a palavra útero. Nessa altura os homens do JORNAL divertiam-se a fazer dela o pior que podiam, mas ela recusou-se a descer ao seu nível e comentar as suas parvoíces, sempre de queixo erguido. Demoraram todos muito tempo a perceber que estavam perante uma grande senhora – e uma grande, grande escritora.


    Maria Teresa Horta não deve ter sentido qualquer razão para gostar de mim quando eu comecei a aparecer na Comunicação Social. Vinda de uma geração já completamente diferente da dela, eu não sentia qualquer necessidade de um movimento organizado de mulheres que me protegesse dos machistas. Se algum deles tentasse chegar a vias de facto comigo, espetava-lhe um bom par de murros, ou um boa joelhada nos tomates, e não pensava mais nisso. A contragosto com as sobreviventes do salazarismo, eu ria muito, com uma alegria que não era minimamente fingida. Além disso usava muitos palavrões na minha linguagem, e todas as histórias assustadoras e verdadeiras que contava[2] não pareciam ter-me deixado qualquer espécie de trauma. Insistia sempre que nunca me sentira prejudicada no meu trabalho por ser mulher, porque se dissesse o contrário estaria a mentir. Da maneira como me vestia, nunca teria sido preciso queimar sutiãs. E, no Verão, quando entrava na redacção de top e shortinhos e umbigo de fora, completamente torrada da praia, devia parecer-lhe ponto por ponto a imagem acabada daquilo a que então se chamava, no tom mais derrogatório possível, uma “mulher-objecto[3]”.

    Maria Teresa Horta quando jovem.

                O pecado mais grave que eu cometi aos seus olhos por essa altura foi um artigo chamado ORFÃOS DE FILHOS: OS PAIS DE DOMINGO, com entrevistas a vários homens que fiz por ocasião do Dia do Pai. Nenhum deles quis que eu revelasse o seu nome com medo de retaliações das ex-mulheres, ou com vergonha da situação em que se tinham encontrado a viver depois do divórcio. Mas todos falavam dos mesmos dramas – só verem os filhos de quinze em quinze dias, não terem um espaço condigno para estar com eles, terem vivido muito mal até começarem a namorar uma nova mulher bastante mais rica, as gritarias ao telefone porque os meninos chegavam a casa sujos ou molhados, e sempre, sempre, sempre, o pesadelo das pensões alimentares. A Maria Teresa Horta, indignada, escreveu para a revista MULHERES uma crítica impiedosa ao meu trabalho, intitulada A JORNALISTA MAIS MACHISTA.

                Mas a Maria Teresa Horta era uma senhora. Três anos mais tarde, quando saiu o meu primeiro romance, AGRIÃO!, a mesma revista MULHERES atribuiu-lhe o seu prémio de literatura. O texto que apresentava o livro também vinha assinado por ela, saudando a descrição da dureza da vida das mulheres que viviam numa terreola chamada Pintado, e mencionando o meu nome como se eu nunca tivesse sido a jornalista mais machista.

                Alguns anos mais tarde fui para Buffalo, e estes dares e tomares da vida lisboeta esbateram-se no fundo das minhas memórias. Publiquei muitos livros, uns mais queridos e outros mais difíceis. De entre os mais difíceis, lá para os meus trinta e muitos anos, publiquei um romance fragmentado em que todas as pessoas se desencontravam, com todas as possibilidades sempre em aberto, chamado MAIS MARÉS QUE MARINHEIROS. Quando cheguei a Lisboa, o meu editor telefonou-me a dizer que a Maria Teresa Horta queria entrevistar-me para o Diário de Notícias.

                Mais ninguém me tinha pedido uma entrevista, nem ninguém tinha escrito nada sobre aquele romance.

    Maria Teresa Horta

                Eu nem sabia o que é que havia de pensar.

                Cheguei à sala onde tínhamos marcado encontro, falámo-nos de beijinho, sentámo-nos uma diante da outra, ela fez-me um sorriso enigmático, e começou por dizer:

                – Sabe… Fiquei mesmo surpreendida. Não fazia a menor ideia de que você era assim tão cruel.

                – Pois – disse eu, retribuindo o sorriso – A maior parte das pessoas não sabe. Aliás, a maior parte das vezes nem eu sei.

                Aquela mulher não me conhecia de lado nenhum. Apaixonou-se por um dos meus livros mais difíceis de ler. Descobriu imediatamente em mim um traço de personalidade que eu própria tendo a esquecer-me de que transporto comigo. Depois fez-me uma entrevista interessantíssima, passou-a para o papel com imenso encanto, e escreveu duas ou três coisas sobre a forma como eu mexia as mãos ou fixava os meus olhos nos seus enquanto falava de quem esteve a prestar uma atenção de ave de rapina a toda a conversa.

                A Maria Teresa Horta fez-nos bem, e agora vai fazer-nos falta.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] e não propriamente que dissera, sendo que são duas actividades muito diferentes.

    [2] Contratempos com camionistas quando fazia sozinha longas viagens à boleia, por exemplo.

    [3] Mas seria preciso uma grande dose de má vontade. Uma mulher-objecto penteia-se, maquilha-se, e arranja as unhas. Pelo menos. Nada disto se aplicava a mim.

  • Hollywood burns (I)

    Hollywood burns (I)

    O título deste modesto texto poderia ser, sem dúvida, o título de um hipotético filme de John Carpenter, em que, assim como no Escape From L.A., há um mundo que chega ao fim. E todos os finais são trágicos, como nos mostra a literatura universal e o bom cinema.

    Não querendo dizer que alguns não possam ser finais libertadores e até desejáveis.

    Quantas vezes não vi The End escrito na parte final dos filmes, mesmo antes do genérico aparecer…

    Sobretudo quando jovem, havia filmes em que desejava que a legenda final nunca chegasse ao ecrã, tal era o prazer de ver cinema e de estar refastelado numa sala, com os condimentos necessários para que sonhássemos à grande e à… Americana.

    Nesses cinematográficos anos 80, não havia Internet e a RTP (tanto a 1 como a 2) encerrava a emissão por volta da meia-noite. Quem quisesse sentir mais um bocadinho da energia dos raios catódicos ainda tinha a chance de ficar a olhar para a mira técnica — e era uma sorte, porque, ainda assim, havia população que nem sequer um televisor em casa tinha e via o Passeio dos Alegres no café ou na colectividade.

    Aos sábados, as emissões prolongavam-se um pouco mais, chegando a ter as fantásticas noites de terror com filmes de Cronenberg, John Landis ou mesmo de Tobe Hooper. Uma série B que dava baile a muito cinema mainstream, carregado de moralismo americano e patriótico.

    Para mim, os anos 80 foram de grande respeito pela indústria de entretenimento, quando me começo a lembrar de Indiana Jones e dos Goonies, por exemplo, dos Gremlins, passando pelo Cotton Club de Coppola e por Richard Gere a fazer de músico, ou mesmo Mad Max, com o católico e “garganta funda” Mel Gibson a dar cabo de toda a chungaria que lhe aparecesse à frente no deserto.

    Vivia-se num mundo cognitivo que tinha o lema de “com a verdade me enganas” a assumir o comando e o controlo das operações, já que, inevitavelmente, iremos parar, como se está a ver, ao incrível mundo das conspirações, senão mesmo das auto-conspirações, para ser freudiano.

    O que pensávamos existir por trás dos filmes era, sem dúvida, um mundo longínquo, inalcançável e de sonho, certamente. A Internet e as redes sociais ainda estavam a anos-luz, por isso o mundo parecia mais com aquilo que o Expresso ou o Diário de Notícias escreviam.

    Mas um fim é sempre um fim. E há o fim da história, com inevitáveis happy ends, e o fim que quer dizer que o filme acabou.

    Os happy ends tendem a ser desagradáveis e moralistas, e a chavalada dos anos oitenta já tinha mergulhado num cinismo new age através da música e do Spectrum ZX, e já não se alimentava de happy ends desoladores.

    Era, para Portugal, o início de uma pós-modernidade que chegava tarde, mas a boas horas.

    O actor português Joaquim de Almeida fazia inveja a muita gente porque conseguia uns papéis de mafioso latino em Hollywood, contracenando com estrelas dessa indústria. Tanto que a alcunha muito portuguesa desse actor no meio audiovisual lusitano era Quim Hollywood. Boa alcunha, diga-se.

    Hoje, tudo é diferente. Podes ser facilmente amigo do Richard Gere no Facebook e até ter pena dele no Instagram. E o Joaquim de Almeida ainda vai tendo trabalho no outro continente, mas é também a voz do Alerta CM da CMTV.

    Como se vê, o glamour do actor latino vai ficando nas ruas da fábrica da amarguinha e não nas do Château Pétrus.

    É assim a vida. Ouvi dizer.

    Aqui, na nossa realidade, que também cada vez mais se assemelha a um filme de série B, parece que estamos a chegar ao fim de um mundo que nos acompanhou, para o bem e para o mal, durante tanto tempo, chamado Hollywood, e a pista para lá chegarmos é, entre outros mafiosos, Diddy Combs.

    Jeffrey Epstein já tinha aberto o apetite para o mergulho na torrente de lascívia do mundo oculto, trazendo para a esfera alguns nomes sonantes de alguma elite, tanto política como artística, embora, para a maior parte das pessoas, Hollywood ainda esteja mais viva do que nunca e seja consumível até ao volante de um Uber, com um passageiro lá dentro, sendo até os filmes descarregados para telemóveis e tablets, continuando a destilar glamour pelas revistas.

    Os actores principais são até cada vez melhores pessoas e lutam permanentemente pela igualdade, até a dormir (cheios de soníferos).

    Muita gente consome até as novelas que o Moniz amassou.
    É assim. Consomem tudo e não deixam nada.

    Para muitos, os actores e actrizes continuam lindos, elegantes e cheios de saúde.
    Normalmente, a sua apreciada benevolência chega tanto a África como às vítimas de violência doméstica, apostando, para isso, no activismo e na filantropia, passando pelo Tibete e pelo Dalai Lama, que até parece ser guia espiritual de alguns, já para não falar da pertença à Igreja da Cientologia, que deixa sempre as suas marcas por onde quer que meta o bedelho.

    Mas esse tema fica para outra crónica dos bons malandros.

    Quanto ao eventual charme de Hollywood… Nada de mais errado.

    Hollywood arde e as estrelas aparecem cada vez mais chamuscadas aos olhos de uns quantos que não acreditam nas conspirações oficiais, que normalmente rivalizam com as não-oficiais.

    Nem mesmo muitos Canadairs apagariam as chamas que já ardem há umas temporadas (para ser fiel às séries) pelos lados das florestas californianas e que já chegam a chamuscar com fumo negro Nova Iorque (não a suja da era pré-Giuliani, mas a clean pós-11 de Setembro).

    As estrelas são a carne de que é feito o canhão do cinema, parecendo mesmo que têm andado carregadas de pólvora e de sangue ultimamente, tendo mesmo literalmente visto as chamas reais e a queimar a chegar às suas mansões apetecíveis, o que até faz parecer um argumento de um filme.

    Um filme dentro de um filme, embora aqui a legenda final antes do genérico não seja tão importante quanto o próprio genérico.
    Pelo menos para o FBI.

    Nomes. Vá!

    O mundo quer nomes e eles só vão saindo ao passo de uma cadeira de rodas.

    Já no caso Epstein, que inclui o Lolita Express e a Ghislaine Maxwell (que foi condenada, estando hoje presa), os nomes são de difícil aceitação e divulgação para os media mainstream em geral, parecendo que ainda é uma mera teoria da conspiração, mesmo com o julgamento da angariadora e cúmplice Ghislaine Maxwell terminado há algum tempo e tendo ficado condenada a prisão efectiva.

    Hollywood é cool, humano, humanista e, pelos vistos… Pedófilo.

    Mas é cool, sobretudo.

    Os seus actores e estrelas ainda são exemplos a seguir, mesmo que as revistas em geral também mostrem, aqui e ali, o mundo sombrio em que essa gente deambula.
    Mas, claro, paradoxalmente, o mundo sombrio vende bem, porque nos faz pensar, alimentando-nos da ideia de que não somos ricos, mas, pelo menos, somos melhores pessoas que esses taradões. E que talvez até a riqueza seja má companheira e pouco progressista.

    Todo um paradoxo existencialista.

    Vivemos, sem dúvida, num estranho planeta-terror que nos vai atarantando a cognição desde que nascemos, e talvez por isso já não possamos passar sem este mundo feito de cinzas.

    Mas a verdade é que, no universo champanhe hollywoodesco, a passadeira vermelha vai ficando cada vez menos colorida, e mesmo a qualidade do champanhe começa a deixar dúvidas.
    No planeta conspirativo, cool quer dizer satânico para muitos.

    E assim chegamos a Diddy.

    [CONTINUA]

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações: THE SWIMMING POOL PROJECT


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • Praça da Figueira

    Praça da Figueira


    A contingência da necessidade levou-me ao ofício de animador turístico. Vulgo condutor de animação turística, driver, guia ou, se for mais ousado, embaixador cultural. O romantismo ingénuo e a falta de cuidado na observação do contrato de casamento levaram-me tudo de material (até os anéis) e assim dei por mim a vender na rua. Mal que veio por bem, pois ter-me-ia passado ao lado esta grande carreira de diplomata.

    Embora licenciado em Relações Internacionais, descurei a candidatura ao corpo diplomático e como Deus escreve direito e nós somos as linhas tortas, desaguei no mais próximo do ofício de honrar a pátria. O p pequeno advém do facto de não se dar um chavo por quem labuta neste serviço. É como ver um pedinte esquálido e sem dentes e só atentar na sua triste figura quando, por vezes, nele habita um génio incompreendido. Há um na Figueira, o senhor Carlos, que declama Gedeão deitado na lage onde dorme, come e sonha com dias melhores. Até escreveu um poema ao Moedas.

    a small orange truck parked in front of a building

    Carlos como eu, és tu, ó Moedas
    Tu dizes que fazes, e fazes
    Mas não são grandes merdas

    A praça que elegi para montar a loja é a da Figueira. Convivo com vendilhões de várias procedências, do Magrebe a terras de Vera Cruz. Marrocos, Argélia, Paquistão, Bangladesh, Índia, Brasil, França, Espanha, Itália… há guias de todas estas procedências. A maioria são tipos esforçados e vão além do aceno do folheto no imperativo de mostrar e contar a cidade. Um ou outro é da variante abrenúncio e só vê cifrões. Pode suceder que este ou esta não mereça o chão que pisa, entre a preguiça de falsear o contado e o descaramento de ludibriar as autoridades.

    Nem a razão da praça se chamar da Figueira são capazes de dizer. É como os vendilhões da Sé, criaturas bíblicas que se engasgam nas rezas. Não me espanta ser por cá que se tenha estabelecido uma actividade como esta, afinal estamos na cidade rainha do comércio. Quem inventou o negócio dos tuks foi um senhor chamado Paulo Oliveira. Um dia, a passear no Chiado no seu Piaggio Apê Calessino, reparou no interesse dos estrangeiros na sua montada e logo mandou vir uma dúzia para explorar o filão. Os outros, macacos de imitação, seguiram-lhe a peugada. Sem espanto, o negócio foi estabelecido e ninguém das autoridades económicas e do Trabalho foi verificar de que se tratava.

    Foto: DR.

    E quando foi já era tarde. Treze anos passados é uma actividade instalada onde aterra toda a sorte de necessitados. Não direi que se façam fortunas, mas posso garantir que só a apanha da amêijoa se equipara no banho à realidade tributária. No meu caso, enriqueci de tal forma que empreguei sem contrato o Nuno o Salazar o Garcia o Sousa e o Gomes. Somos uma empresa familiar. Tributada no altar do altíssimo que é a fonte de inspiração para a escrita de rua. O melhor lugar para se estar.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

  • Desrespeito

    Desrespeito

    Segundo as mais recentes notícias… parece que a cidade se encontra num singular estado de efervescência filosófica.

    Edgar Allan Poe

    UM HOMEM NA LUA


    Se alguém conhece bem as estações de metro de Lisboa, eu conheço. Durante os últimos anos em que lá vivi, nem sequer tinha carro. Agora que vivo em Estremoz e viajo muito pelo País, desculpem, mas – se alguém conhece bem o terminal rodoviário de Sete Rios, eu conheço. Ambos os conhecimentos, quando aplicados a mim, podem ter a certeza de que querem dizer uma coisa muito importante: conheço muito, muito bem as lojas da Mbooks. Tenho a biblioteca cheia de grande, preciosa literatura, novinha em folha, comprada por cinco euros, às vezes mesmo por três. E, sem esses preços de fundo de colecção, nunca teria possuído condições materiais para ir enchendo desta forma as minhas prateleiras. A pessoa pode dizer coisas horríveis sobre a Mbooks, nomeadamente que em muitos pontos de venda oferece péssimas condições de trabalho aos seus funcionários, ou que lhes paga muitíssimo mal sem lhes dar quaisquer condições de segurança. Mas aqui não é isso que está em causa. Está em causa as pessoas poderem aceder presencialmente[1] e financeiramente a livros formidáveis dentro do perímetro dos seus trajectos quotidianos, fora do espartilho pouco convidativo e pouco compreensível dos circuitos destinados à elite. E podem demorar o tempo que quiserem a fazer as suas escolhas. Os trabalhadores de serviço podem não perceber absolutamente nada de literatura[2], mas são sempre extremamente prestáveis e simpáticos. Isto vale ouro. Da maneira como espiralou hoje a ignorância[3], isto é dos melhores serviços que alguém pode prestar aos livros. Enquanto forma de arte, a literatura merece-nos o maior dos respeitos. Não há pior desrespeito do que começar a empurrá-la para fora de cena. Às armas. Alerta.


    Há que ver que os meus longos encontros com o Terminal Rodoviário de Sete Rios começaram muito antes da minha mudança para Estremoz. O meu País atribuiu-me o estatuto de pária logo aos cinquenta anos, e a partir daí, desde que os meus filhos deixaram de precisar da minha presença e orientação constante[4], sempre que não estive em Amherst dei muitas voltas ao texto para evitar a agressividade guerreira das pessoas com que costumava cruzar-me em Lisboa. Olha que gaita, não gosto de sofrer. Andei numa grande ciganagem por refúgios longínquos, bonitos e tranquilos, esconderijos benevolentes e terapêuticos onde fosse fácil viver dentro do círculo daquelas amizades simples, descomprometidas e autênticas que ali existem, e esquecer tudo o resto. Era só chegar a Sete-Rios, pedir um lugar à janela como ainda hoje peço, e ficar a ver o País deslizar do outro lado do vidro: várias horas mais tarde, tudo era muito mais leve, e todos os episódios confrangedores se tornavam hilariantes.

    Lembro-me de uma vez voltar com a Nídia da praia e de nos sentarmos as duas no muro a contar moedas pretas, para vermos se, entre um e dois cêntimos, conseguíamos ou não totalizar o euro inteiro de que eu precisava para voltar para casa. Conseguimos, mesmo à justa. Ainda me lembro perfeitamente dos olhos furiosos do motorista quando eu lhe despejei na mão aquele cascalho todo, a dizer “está certo, eu e a minha amiga estivemos a contar todas as moedas, dá mesmo um euro”; e a Nídia, do outro lado da porta, parada no passeio: “é verdade, contámos as duas, está absolutamente certo.” Ainda se fosse algum surfista, algum monhé, algum preto de cabelo pintado. Mas não. Francamente. Duas senhoras como nós, já a puxar para o idoso, compostas e bem vestidas e tudo. A pagar em moedinhas de um cêntimo. Está tudo maluco.

    A Nídia diz que foi só o autocarro arrancar e desaparecer por trás da curva. Deixou-se cair em cima do muro e riu, riu, riu, riu, em perfeito contraciclo com o dia de Inverno de nuvens escuras encasteladas a toda a sua volta.

    Chama-se a isto rir na face da desgraça. É a nossa única forma de sobrevivermos felizes, e de sairmos das nossas provações ainda boas pessoas, talvez pessoas melhores. Continuo a sentir imensas saudades do meu grupinho de amigas e dos homens interessantes com tempo para conversar que fui construindo sem ninguém ver. Tenho saudades do meu ermitério no Penedo, tenho saudades da grande família que me acolheu em Colares quando o mundo veio abaixo. Foi uma troca por troca que me fez muito bem: fiquei na miséria, mas cheia de paz. Consegui escrever livros que andavam há muitos anos para serem escritos.[5] Consegui, finalmente, preparar com pés e cabeça, e com toda a concentração deste mundo, a candidatura à bolsa da Fulbright que acabou por permitir a minha partida para os Estados Unidos para recomeçar a estudar e tornar-me co-autora de mais um livro de investigação. Recomecei, por fim, a gozar-me da liberdade de ficar na cama à noite a ouvir rádio baixinho[6] e a ler madrugada dentro se muito bem me apetecesse. Era só estar um lindo dia de sol em Abril que eu agarrava imediatamente no José de Oliveira Cosme[7] e bazava dali para a praia, para todos os seus efeitos terapêuticos, e para os ocasionais bons amigos e boas conversas que se têm na praia a título extemporâneo[8].

    E fartei-me de rir. O tempo todo. O cenário pode ser duro, o caminho ainda mais, mas assiste-nos o direito de nos divertirmos com as nossas próprias desgraças.

    Quando cheguei ao Sudoeste, dada a abundância de turistas por ali naquele tempo, e à minha abundância de roupa acumulada noutros tempos, ainda me ri bastante com a Ana nas nossas deslocações às feiras locais sempre que não estava a chover, para regatear furiosamente com as estrangeiras os preços das minhas roupas mais finas. E contava-lhes histórias intermináveis, no fio da navalha entre a verdade e a ficção, sobre a origem e a história de todas aquelas maravilhas exóticas, apelativas, intactas, e subitamente vendidas ao desbarato numa feira de ferro-velho qualquer. A Ana ouvia, ouvia, e pasmava com a minha capacidade de contar as mesmas histórias sempre de forma diferente de cada vez que mudávamos de poiso e vinham de lá outras estrangeiras interessadas. “É que nem sequer são as mesmas gajas” – comentava ela. “Mas eu assim divirto-me muito mais” – explicava eu. E era verdade. Era bastante melhor do que todas as alturas em que fiz psicologia pop para tentar animar as leitoras deprimidas que se aproximavam devagarinho, com os olhos muito abertos, estancavam, abriam e fechavam a boca em silêncio, e finalmente diziam, muito baixinho, de queixo caído, “mas você é a Clara Pinto Correia”, ao que eu respondia com um sorriso, “pois sou, e este filme podia ser muito pior, aqui ao menos tenho amigas[9], e tenho roupa para vender.” Seguiam-se vários lamentos explicativos das grandes depressões delas, por vezes até com prantos demonstrativos. E eu, já que ali estava e aquelas mulheres não tinham vindo até à minha banca para comprar roupa, dava todo o meu melhor para conseguir fazê-las rir[10]. Houve só uma vez em que a Ana sibilou, enquanto estávamos a fazer marcha atrás para virmos embora: “fds que eu não sei como é que tu aguentas isto.[11]” Mas é preciso ver que, nessa feira específica, num dia inverno cheio de humidade, nem eu nem ela tínhamos conseguido vender uma única peça.

    Nesta aldeia, como ao fundo de outros destinos da camioneta, a Ana e a Nídia apreciavam particularmente os livros sempre diferentes que eu trazia de Lisboa, e que procurava trazer sempre em português. Era sempre da melhor literatura que há no mundo, adquirida sempre por preços absolutamente compatíveis com o meu estado de desgraça, porque a trazia comigo sempre da mesma maneira: chegava uma hora adiantada ao terminal, e, depois de comprar o bilhete e tomar café, passava-a quase toda dentro do espaço exíguo mas sobrelotado da sua loja da Mbooks. Por acaso é uma daquelas que oferecem péssimas condições, tanto aos funcionários como aos utentes, o que é absolutamente lamentável para um ponto de venta que cobre o País inteiro. Mas tem escondidas lá dentro arcas do tesouro impressionantes. Da primeira vez que lá entrei rumo ao meu esconderijo no Sudoeste encontrei um caixote com restos da famigerada colecção Europa-América a dois euros. Com tanta sorte, entre eles estavam alguns exemplares de um dos meus eternos livros de cabeceira, o GREEN HILLS OF AFRICA do Hemingway. O título estava traduzido para português como AS VERDES COLINAS DE ÁFRICA, já se sabe que o que é bom naquela colecção não são as traduções mas antes o grau de abrangência, e a verdade é que consegui comprar um para cada uma delas, e ainda um romance da Pearl S. Buck[12] para mim – qualquer coisa que, sabe-se lá como, tinha conseguido escapar ao meu momento de devorar compulsivamente tudo o que existisse da laureada americana na Europa-América, durante um mês de férias passado em Sesimbra quando eu tinha doze anos. E ainda fui tomar outro café para saborear as primeiras páginas até chamarem para o embarque no meu expresso.

    Nem me lembro de quando é que começou a tradição do terminal de Sete-Rios; mas, nessa altura, já a tinha totalmente incorporada: quando se viaja compra-se um livro. Uso pouco os comboios e os barcos que servem Lisboa; mas, se usasse, também me dava ao mesmo luxo: há uma loja da Mbooks naquele terminal enorme do Cais do Sodré. E, diga-se de passagem, está localizada e organizada de forma substancialmente mais digna do que a loja de Sete-Rios. É um desperdício as pessoas tenderem a passar todas por ali cheias de pressa. Eu, que não vivo em Lisboa, já lá parei algumas vezes nestes últimos anos, e confirma-se: tem uma grande quantidade de grandes obras a preços inacreditáveis. Claro que há sempre diferenças de uma loja para outra: no Cais do Sodré, já quase que tive de mandar um par de berros à jovem demasiado simpática que estava de serviço para que, antes de mais nada, parasse de falar comigo em inglês; e, a seguir, para que parasse de andar atrás de mim, que eu tinha tempo e preferia procurar o que me interessava sozinha. Também se nota que estão para venda muito mais obras em francês e inglês, algumas em espanhol, outras tantas em alemão.

    Por mim tudo bem, gosto de ler noutras línguas e não tenho vontade nenhuma de morrer estúpida; mas estes livros tendem a ser mais caros do que as edições portuguesas, e, nesse pormenor, de certeza que afastam os leitores de salário mínimo como eu. E o primeiro-ministro pode dizer o que muito bem lhe apetecer sobre a abundância e a estabilidade portuguesas, que isso não impede que toda a gente saiba que Portugal está cheio de pessoas pagas a salário mínimo. E que se falou nisso o menos possível, mas ficou muita gente desempregada no final de 2024. Portanto é bom que os livros não fiquem mais caros. Pelo menos, para quem tiver essa prioridade e arranjar esse tempo, os livros que se descobrem no meio de todas as tretas que também se vendem na Mbooks são alimento para alma. Às vezes é um alimento tão precioso que ficamos a devorá-lo durante a noite inteira.

    Enquanto estive em Lisboa, a melhor loja da Mbooks era, sem dúvida, a do metro da Alameda. Talvez agora alguém me escreva a dizer que ela já não existe e, assim, a dar-me um grande desgosto; mas na altura existia e era a mais digna e limpa de todas. Havia mesmo um balcão grande a separar a funcionária dos potenciais compradores, e do outro lado do balcão havia uma cadeira de escritório. Os conhecimentos literários da funcionária podiam não ser grande coisa, mas ao menos não nos incomodava depois de lhe dizermos que não precisávamos de ajuda: calava-se, ouvia a sua música, e sorria-nos quando vínhamos pôr as nossas escolhas em cima do balcão. Até álbuns de capa dura, daqueles que são muito bonitos para pôr na sala, mas estes com o valor acrescido de serem também extremamente interessantes e rigorosos[13], eu trouxe dessa loja. Enquanto vivi no Bairro dos Actores, usar aquela saída do metro era a bem dizer obrigatório sempre que acabava de ler um livro: tinha de passar por lá logo a seguir para trazer outro para casa. Estava de tal forma viciada que nem conseguia dormir se não estivesse antes pelo menos uma hora a ler, idealmente de janela aberta para a felicidade do Verão em Lisboa, ou então de vidros encostados contra a toada suave da chuva a cair lá fora. Foi o período em que a minha biblioteca pessoal cresceu mais[14], sem ser preciso fazer nela nenhum investimento que doesse na carteira, por pobre como tudo que eu fosse. Empilhar cada vez mais livros dentro do meu quarto dava-me uma sensação de empoderamento que não era brincadeira nenhuma. Cada maluco tem a sua.

    A loja de Sete-Rios não é nem digna nem limpa, mas ao menos é costume lá estar um senhor que gosta mesmo de livros. Foi lá que comprei os meus Faulkners e os meus Fitzgeralds, além de um Chandler que eu nem sabia que existia, porque se chama (mal traduzido) O PARQUE DOS VEADOS, e é ainda mais sufocante do que OS DUROS NÃO DANÇAM. Conheço-a bem. E esta pérola de desrespeito, perigosíssima quando entramos numa segunda era Trump que todos sabemos que vai ser ainda mais inculta e mais cheia de armas em casa do que a primeira, acaba de acontecer há cerca de um mês atrás.

    Vinha eu estafada, depois de dois dias extremamente cansativos de revisão de provas, a entrar no terminal exactamente uma hora antes do expresso das dezanove, o último que sai para Estremoz todos os dias. Compro o bilhete, não trago bagagem, vou mas é a correr para a loja da Mbooks. E estranho logo a situação, porque as luzes estão baixas, parece mesmo que já fecharam, mas ainda faltam uns bons três quartos de hora para o fecho oficial. Vejo o tal senhor a andar de um lado para o outro feito barata tonta, e pergunto-lhe se a loja já está fechada.

    Não. Estamos só a poupar energia, no caso de não vir ninguém. Mas entre à vontade. Eu subo a luz.

    Mas o senhor…

    Ah, não ligue. Eu estou só a carregar mobílias. A loja tem que perder bastante tamanho para a Rodoviária poder instalar os seus bancos novos.

    Bancos? Quais bancos?

    Então a senhora passou mesmo por eles e não os viu? Olhe ali.

    Eu até fiquei arrepiada. Era mesmo verdade que passei ao lado do banco para onde ele apontou. Era uma daquelas estruturas em círculo, com cerca de oito lugares a toda a volta, que depois são forradas com espuma para maior conforto, e cobertas com napa ou com qualquer outra imitação de tecido resistente para melhor efeito visual. Se iam instalar ali, num lugar já contaminado pelo grande carrinho das pipocas, vários bancos destes ao mesmo tempo, então a Mbooks tinha de encolher, e encolher bem.

    Sempre gostava de saber quem é que lucra com estas jogatanas, porque os passageiros não são de certeza. Em todos estes longos anos de uso do terminal de Sete-Rios, nunca vi todos os bancos cheios. Nem os de dentro nem os de fora do terminal. Nem sequer os da esplanada coberta ao lado da descida para o metro e para os táxis, sem dúvida os mais agradáveis de todos, que podem parecer apinhados num determinado minuto, mas há um código secreto nunca escrito que nos permite sentarmo-nos nas mesas uns dos outros desde que existam lá cadeiras vazias, e além disso estão sempre a vagar mesas de pessoas que se levantam para irem apanhar o seu expresso. Não é o povo português quem vai ganhar mais lugares sentados no terminal de Sete-Rios.

    O povo português vai é perder ainda mais a sua simplicidade no acesso aos bons livros, o que é um tremendo insulto à literatura e um desrespeito total pelas pessoas.

    Verguenza, como diria o Papa Francisco.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] NÃO É A MESMA COISA DO QUE COMPRAR LIVROS NA INTERNET, OU NÃO CONSIGO FAZER-ME ENTENDER? Comprar livros segurando neles, folheando, aspirando o cheiro do papel, estudando a capa – é outro tipo de experiência, e basta.

    [2] “Onde é que tem as obras de ficção?” – A menina sorri, hesita, vasculha a loja com os olhos – e finalmente aponta com o dedinho rematado numa unha de gelinho perfeito para uma estante de livros com aneis de Saturno, pessoas em Marte, robôs, e assim. Como é evidente, “ficção” é a forma mais rápida de dizer “ficção científica”.

    [3] “Para ler? Então, gosto de fantasia.” Por “fantasia” entenda-se aqueles livros enormes com sagas em três volumes à maneira do SENHOR DOS ANEIS, todas iguais e todas igualmente deploráveis. Os putos enchem as mochilas daquilo até mesmo ao cimo.

    [4] Bem. Honestamente, é mais que atingiram os dois a maioridade e eu deixei de ter essa obrigação de mãe solteira. Claro que o Dick achava a esse respeito imensas coisas que eu não achava. Mas ele nunca tinha sido pai solteiro.

    [5] Deste período, o melhor exemplo é um dos meus romances preferidos, NÃO PODEMOS VER O VENTO.

    [6]Nessa altura a rádio pública passava óptimos programas nocturnos. Daquelas plantas raras e delicadas que, depois de cortadas uma vez, já não voltam a crescer. E ninguém parece preocupado com o vazio gelado que deixam atrás de si.

    [7] Era o meu cachorrinho da altura, trazido com muito amor e carinho do Canil Municipal de Sintra. Parecia um cão d’água preto e branco em miniatura, e – felicidade! – quem o abandonou já o tinha ensinado a só fazer necessidades na casa de banho.

    [8] Levo a Marta à Praia da Aguda, de todas a minha preferida com a sua imensidão de degraus, num fim de semana de sol esplêndido adiantadíssimo no calendário. A Marta anda triste como a noite, e aquele prazer em fins de Março, na perfeita Lua Cheia, faz-lhe bem de certeza. No grande areal do equinócio, em plena Maré Vazia, só estamos nós e um casalinho esquisito – ela é muito jovem, mas aquela boca tão torta só pode ser a marca de um AVC bastante sério, e ele anda com os pés para fora, em movimentos sincopados como os dos patos, orientado por uns olhos completamente tortos. Depois de eu lhes mostrar como é que os camarões aparecem nas poças de água que o mar deixa atrás de si nas rochas, percebemos que a lesão dela é tão grave que mal consegue falar, mas ele conta-nos tudo pelos dois. São ambos antigos heroinómanos que se amavam de paixão, e que, numa noite de Verão, foram para o terraço da casa dos avós dela no Magoito e administraram a si próprios uma overdose de mãos dadas, porque no beco onde se tinham encurralado já não existia qualquer saída. Ambos sobreviveram. Mas ambos estiveram tanto tempo em coma, e ambos perderam tantas faculdades e sentidos, que já nem conseguiam namorar: limitavam-se a dar apoio um ao outro naquela caminhada difícil pela normalidade. Sobreviviam das aguarelas psicadélicas dos acampados em todas as tribos e capelinhas das festas trance, que estavam à época no seu pico de popularidade; e das carteirinhas de filtros já prontos para enrolar e pôr nos charros que a empresa dele produzia em Vila do Conde e fazia circular nas festas por cinco euros. Mostrou-nos uma, eu disse “epá, mas que grande ideia, o filtro é sempre o pior,” e comprei-lhe logo três. A Marta estava a olhar para nós com os pezinhos estendidos para a rebentação e os olhos cheios de lágrimas. “Não é convosco,” acabei por esclarecer eu. “A Marta anda mesmo, mesmo muito triste.” O vesgo deu-lhe um abanão. “O que é isso?”, perguntou-lhe ele com um vago sotaque nortenho. “Gostas de perder o teu tempo? Mas ouve lá, tu não sabes que a vida é muito curta? Vai mas é a umas festas, mulher!” A Marta corou até à raiz dos cabelos, como uma virgenzinha que até aí foi sempre protegida mas de repente está sozinha e tem que entrar em diálogo com o taberneiro mais tinhoso ali do sítio. “Festas?” hesitou ela, com toda a franqueza. “Mas isso é o quê?”. Eu não foi por maldade, foi mesmo por carinho: desatei a rir. “Ó querida Martinha! Com toda a tua experiência da vida não sabes mesmo o que são as festas? Olha, prometo: este Verão, assim que for a primeira festa aqui nas florestas de Sintra, eu agarro no José de Oliveira Cosme, arranjo uma tenda emprestada, vou a Lisboa buscar-te e levo-te lá.” – “Uma tenda?” – “Pois, uma tenda.”

    E foi assim que tudo começou.

    [9] Gesto dramático de passar o braço pelo ombro da Ana, que odiava essas mariquices.

    [10] Apanham-se grandes sustos com estes instintos de escuteirinho. Por exemplo: “Ai, meu Deus. Já não me ria há tantos anos. Clara, desculpe, mas agora tenho imenso medo de voltar a sair de ao pé de si.” E se nesse dia não estivesse lá a Ana, para acabar expeditivamente com o dilema a título de dona do carro? “A menos que queiras ir com a gaja, nós vamos mas é bazar, boa?” – “Pois, muito obrigada, e por mim é já.”

    [11] A Ana passou grande parte da vida na Áustria, onde se licenciou em Economia. É casada com um Surfista escandinavo, tem quatro filhos, dá aulas de Português a estrangeiros, e de Maio a Outubro tem uma banca de ornamentos na calçada que contorna a praia. Não fazia a menor ideia de tudo o que eu tinha aguentado antes. E depois. Aguentar “aquilo” era, obviamente, uma pera doce.

    [12] Não é uma questão de snobeira. Não me lembro mesmo da tradução portuguesa do título.

    [13] Tenho na minha sala, aqui em Estremoz, um desses álbuns A4/capa dura da Mbooks. O título diz, apenas, THOMAS MORE. É uma belíssima biografia, cheia de informação sobre a Renascença e sobre a corte demente de Henrique VIII.

    [14] A minha enorme biblioteca pessoal anterior foi cruelmente saqueada e destruída no armazém dos amigos a quem eu tinha pedido que a guardassem até eu conseguir assentar arraiais, e a minha colecção de CDs, tão difícil de construir, levou o mesmo caminho. Salvaram-se todos os meus livros académicos, que felizmente estavam depositados no Instituto Bento da Rocha Cabral; e também toda a minha ficção de cabeceira, que eu guardei sempre comigo para me dar força. Quando me instalei em Estremoz, achei por oferecer as cerca de cem obras da minha colecção de ficção científica à Biblioteca Municipal, uma vez que eu já não preciso dela, mas talvez outras pessoas precisem. Grande parte de tudo o resto veio da Mbooks.

  • Famalicão 4.0 (seguido de Barcelona 4.5)

    Famalicão 4.0 (seguido de Barcelona 4.5)


    Há derrotas que doem e há derrotas que humilham. E depois há ainda aqueloutras cuja única redenção entronca no olvido. Aquela do Benfica contra o Braga, em tempos hodiernos na cronologia, mas em tempos de antanho na memória, inscreve-se neste último e mui ingrato capítulo. Quem vive de paixões não deve escrever sobre uma ferida ainda aberta, dizem os médicos, tal como não se narra um naufrágio enquanto o submarino não emerge. Mas disso não entendo nada, talvez seja melhor ao Almirante Gouveia e Melo, mesmo arriscando que, estando já na reserva, se tenha esquecido de muita coisa.

    Em todo o caso, no registo filosófico que me cabe nesta crónica, declaro: há momentos em que o silêncio não é apenas um acto de prudência e de sabedoria, mas uma ética de sobrevivência.

    Ora, mas no que concerne – não costumo usar este termo; enfim, fica… – à escrita desta crónica, dois fenómenos se apresentam de natureza complementar – uma espécie de proverbial casamento entre a fome e a vontade de comer. Por um lado, a minha indolência em dissecar o que foi, aos olhos do mundo, aquele descalabro do Glorioso contra os homens de Bracara Augusta. Por outro, a sábia decisão do director desta “casa” – que, por feliz acaso, sou eu – que, em exercício digno de Cícero, ponderou: “É justo perpetuar na memória uma catástrofe que até o mais benfiquista dos benfiquistas prefere esquecer?” Não, caro leitor. Não é justo. Como não foi justo o passe em falso, a defesa em apneia ou… o árbitro – sempre o árbitro, porque o árbitro é, invariavelmente, parte do enredo.

    É bem verdade que um silêncio jornalístico sobre uma tragédia desportiva pode parecer parcialidade. Tanto mais a notícia é o homem a morder o cão, e neste caso notícia seria o Braga vencer o Benfica. Mas já dizia Voltaire – e se não dizia, devia ter dito, porque me dá jeito meter aqui um filósofo para sustentar a minha tese – que não há imparcialidade no amor. E amar o Benfica é, afinal, o destino que se abraça com a mesma intensidade que fez um Romeu à sua Julieta, mesmo que por vezes nos esfaqueie, ou fraqueje, o coração.

    Aliás, muitos leitores do PÁGINA UM me criticam por esta Da Varanda da Luz, dizendo, com razão, ser inconcebível um jornalista que se reputa de isento andar nestas andanças – com pleonasmos à mistura. Mas quem, em futebol, espera uma crónica honesta, imparcial e detalhada? Afinal, cansa ser neutro – e para se ser imparcial nas notícias mostra-se necessário um escape. E qual é o melhor escape que não a bancada de um estádio?

    Aliás, voltando ao silêncio sobre o Braga: a História está repleta de exemplos de momentos em que o silêncio foi estratégico. Vasculhei por aqui, e li que Esparta, após a batalha de Leuctra, optou por não relatar a derrota aos cidadãos, temendo abalar o orgulho nacional. Li também que Roma – não Associazione Sportiva, mas a dos romanos –, quando derrotada por Aníbal Barca em Canas, fez esquecer a humilhação, varrendo a derrota da memória colectiva e focando-se somente na vingança, alcançada pouco mais de uma década depois na Terceira Guerra Púnica.

    Pois bem, partilho o mesmo espírito: por que relatar, com detalhes lancinantes, aquilo que já dói sem narração? Afinal, a dor colectiva já deve ter ficado expressa por mui benfiquistas nos cafés, nas redes sociais e no silêncio constrangido nos lares. Que mais há para dizer, portanto?

    Poderia, claro, aproveitar este espaço para filosofar sobre a decadência do futebol moderno, sobre o preço dos passes milionários ou sobre a fragilidade de uma equipa que se imortalizou nos anos 60, deu uns fogachos nos anos 80, e que custa a levantar voo, apesar das águias. Mas, convenhamos, tal seria um exercício cínico num momento em que a derrota já foi sentida nos ossos. Se já há o fardo da existência, deixemos o peso da derrota para os outros.

    E assim fica completa a crónica que não foi. Ou antes, a justificação para a ausência de crónica que, em si, é uma manifestação de puro benfiquismo: abraça-se a glória, mas vira-se o rosto à humilhação. Não é covardia; é elegância. E nem foi, convenhamos, por falta de tema. Foi falta de ânimo, é certo – mas também uma delicada aliança entre a necessidade de não perpetuar a desgraça e a vontade de avançar para vitórias que certamente me esperam hoje.

    Além disso, e como diz o povo, acumulada por sabedoria de milénios de adversidades e de vinho, muita água faz o tempo correr por baixo da ponte. E, em duas semanas, não só correu água, como, depois da tristeza, já o Benfica levantou um caneco – a Taça da Liga –, à custa do mesmo Braga e também do Sporting. E, portanto, temos hoje Benfica renascido. E, aliás, renascido, e sei isso, porque estando a alinhavar esta crónica, já estão dois encaixados nas redes do Famalicão.

    Já agora: esta crónica também vai ficar diferente, porque não me dá jeito escrever sobre as incidências do jogo. Entrei mais uma vez atrasado, e quando entrei já o Benfica ganhava. Não cheguei para ver o golo inaugural, mas cheguei a tempo de testemunhar uma coisa tão rara quanto fascinante: uma bancada central cheia de lugares vagos. Não resisti à tentação, claro. Em vez de uma colina himalaica que tenho de subir até à Varanda da Luz, fiquei aqui mais por baixo, com a promessa de uma visão privilegiada do relvado e, ao que parece, um festival de palavrões que os sócios mais antigos, e seguramente mais experientes, têm na ponta da língua… e com a qual vão mimando o árbitro, apesar de estarmos a vencer.

    Sentar-me na bancada central, embora impossibilite escrever confortavelmente, foi uma decisão calculada. Melhor vista? Sim. Mais palavrões? Com certeza. Menos tumulto? Nem por isso. Porque se há uma coisa que aprendi no futebol é não há papas na língua. Um destes dias ainda escrevo uma crónica só com palavrões e dichotes enquanto se assiste aos 90 minutos. Estes são os verdadeiros cronistas, mais ferozes do que qualquer jornalista, mais eloquentes do que qualquer filósofo. De cada vez que o árbitro apita contra o Benfica, lá vem um ensaio oral, misto de tragédia e comédia. Uma falta contra o Benfica, e a mãe do jogador adversário é vilipendiada.

    Com o Benfica em vantagem no marcador, tenho garantida uma noite tranquila. O Famalicão, ao que parece, está disposto a facilitar a vida. Nem um chuto digno de nota. O Trubin daqui a nada adormece.

    Por agora, contento-me com esta bancada central, com os seus cronistas de língua afiada e vista atenta, com a promessa de mais golos e mais emoções. Se a noite acabar em goleada, tanto melhor. Se não, bem… há sempre espaço para mais uma crónica, mais uma análise, mais uma ópera de palavrões. Afinal, na Luz, nunca há dias iguais – só noites cheias de histórias para contar.

    E encerro esta crónica – e vou armar-me em espectador normal. Até vou sair do estádio como adepto normal, num lento magote até ao Colombo. Terça-feira cá estarei: o Barcelona espera-me, ou espera-nos.


    Recepção ao Barcelona. Liga dos Campeões. Não é todos os dias nem para todos. Terceira-feira de dilúvio. Debaixo de chuva, os céus prometeram uma noite épica, e tudo começou com uma ilusão – palavra parecida com o castelhano ilusión, que significa mais entusiasmo ou mesmo alegria –, mas que terminou isto num aguaceiro de frustrações. Desta vez metido numa ala lateral da Varanda da Luz, uma espécie de coxia, porque houve mais jornalistas do que mães para assistir ao jogo, mas aparentemente escolhido para maximizar a irritação: não só pingava – um gotejar rítímico e implacável que, se fosse numa cela medieval, seria tortura reconhecida – como ainda me puseram junto de jornalistas vindos da Catalunha.

    O Benfica, confesso, começou como um furacão, levando-me a acreditar que, finalmente, o colosso catalão seria domado. Percebi a aflição de um jornalista, a meio lado, com sotaque brasileiro. Ao intervalo, tínhamos um 3-1 vistoso e galvanizante. Mas, mas, mas… na Liga dos Campeões, o Benfica é uma espécie de Estoril na nossa Liga que está a ganhar por 3-1 ao intervalo, mas inseguro de alcançar a vitória final.

    Aos 65 minutos, o Benfica esmoreceu e os golos do Barcelona começaram a cair, cada um mais doloroso que o anterior. A última machadada, aos 95 minutos e uns quantos segundos, imediatamente depois de um lance que deveria (pelo menos com o lusitano VAR) dar penálti a nosso favor, pareceu-me castigo divino, como se os céus dissessem: “De que serve sonhar tão alto se não tens guarda-chuva nem defesa sólida?”

    Se a derrota já era difícil de digerir, a cereja no topo foi ter de encontrar uma dose extra de fair play para continuar a sorrir para o simpático jornalista brasileiro, radicado na Catalunha, com quem fui compartilhando as incidências do jogo e os pingos de chuva.

    Não se perdeu tudo: o Lucas, assim se chama, trabalha para o site brasileiro do Barcelona. Fiquei com o contacto dele, prometendo que, numa próxima oportunidade, visitarei o Camp Nou. Assim, pelo menos, com as suas indicações, não passarei pelo que lhe aconteceu aqui em Lisboa: andou às voltas durante uma hora, perdido e irritado, à procura de uma entrada que parecia ter sido escondida de propósito.

    Talvez, numa outra noite, menos molhada e menos caótica, consiga redimir esta frustração – em todo o caso, mais memorável do que a derrota com o Braga. Mas, por agora, fico apenas com a certeza de que, no jogo e na vida, há dias em que os deuses do futebol decidem deixar-nos à chuva. Literalmente.

  • A princesa Clara

    A princesa Clara


    Nunca vi a Clara Pinto Correia ao vivo e a cores. Não a entrevistei (mas gostava e quem sabe). Soube da existência desta dama das Camélias cruzada de Madame Pompadour nos meus primórdios no Jornalismo. O camarada Rui Barros, meu fornecedor de Literatura, passou-me o ‘Adeus, Princesa’. Li o romance numa noite, como pedem as grandes prosas a arder de emoção e inventiva. Daí para cá, passei a ser omnívoro das coisas da Clara, fosse onde fosse, fosse o que fosse. Gosto dos ecléticos. A Clara faz parte desta família. Quando a acusaram de plágio(s) cheirou-me a esturro. O Jornalismo é prenhe de fait-divers e histórias mal contadas. A defesa da Clara, e a sua retratação pública destemida, seriam argumentos suficientes para a poupar ao ostracismo e penúria que daí veio. A bruxa fora caçada, para gáudio dos Torquemadas.

    Antes de prosseguir lembro aqui umas quantas histórias pessoais. Comecei a trabalhar no Semanário, aos 19 anos. Na altura, propus à direcção do jornal um artigo sobre um cambalacho na Quinta da Marinha que metia uns poderosos. Tinha as provas, os depoimentos, tudo afinado para atacar a prosa e desmascarar o esquema financeiro que recuava ao tempo do fogo posto nas matas à beira do Guincho. As chefias tomaram o assunto por delicado e declinaram a publicação. Aliás, recomendaram-me o silêncio. Teimoso, e sem exclusividade que me impedisse de escrever e publicar fosse onde fosse, bati o texto na Remington do meu avô Vítor Garcia e levei o artigo ao O Jornal, onde esperava melhor recepção, mais ousada.

    Calhou ir à fala com o Rogério Rodrigues, figura por quem tinha apreço e tomava por imune à desonestidade intelectual. Leu a prosa à minha frente, de olhos arregalados, e perguntou se tinha sido mesmo eu a escrevê-la. Era matéria de peso. Disse-me então para lhe dar uns dias que ia pegar no assunto e dar-me-ia notícias. Insisti que se era para ser, era então, antes do assunto vir à baila e “nos” passarem a perna. O “nos” vinha de um sentido ingénuo de camaradagem. Na semana seguinte comprei O Jornal e lá estava, a minha prosa, com ligeiros retoques, assinada pelo Rogério. Fiquei estarrecido e a única coisa que me ocorreu foi ir à redacção chamar-lhe de pulha. Que dizer de uma apropriação deste calibre? Ainda no tempo dos faxes, deveria ter enviado o artigo por forma a provar a minha autoria. Mas não. Entreguei o original em mão, à confiança no camarada.

    Tive outra destas com o senhor E., meu editor no Semanário, que me pediu um retrato do amigo Vasco de Castro. Lá fui, a minhas expensas, a Fontanelas. Desta feita, antes de entregar a prosa, mostrei-a de antemão ao Vasco, que me devolveu uma carta a dizer “um jovem tão verde com prosa já tão vermelha”. Ficou uma amizade para a vida. Quanto ao artigo, saiu assinado pelo senhor E. Desta vez fui atrás dele para o encher de porrada. E só não o fiz porque se raspou de véspera para Cuba. Fiz queixa em vão no Sindicato. Acabei por virar a página sem pugilato. Deixei passar vinte anos ate voltar a dar-me com a figura e, tal como nos assuntos familiares aziagos, optei por esquecer o dito.

    Falo aqui destas incidências da vida porque nunca fiz tal coisa. Aliás, de mim só podem dizer que quero é que se fodam estes e outros, tomados por tibieza de carácter. Querem outra? Trabalhava então na Capital, do tio Balsemão. Digo tio porque o conheci na minha vida passada de betinho de Cascais. Betinho radical. Aliás, só não me estreei no Expresso porque o tio tinha mais do que fazer do que andar a interceder por mim. Verdade seja dita que ainda me remeteu para a directora de recursos do Expresso, uma senhora que estava sempre de baixa, e, farto de levar tampas, acabei por bater à porta do Semanário com uma carta do professor Dr. Adelino Alves, que julgava ser de recomendação para estafeta, mas afinal era para ser acolhido por estagiário.

    Mas voltemos à Capital. Um dia, o senhor P. destacou-me para entrevistar uma alta patente da PSP. Fiz o serviço, entreguei as laudas e deparo-me com espanto ter sido alterada no artigo publicado a patente do homem, para uns degraus abaixo. Crime de Lesa-Majestade. Toca de receber um telefonema da bófia a descompor o reles escriba. Ora, o reles escriba, já tinha passado por umas quantas e guardara o original. Levei a prova à Exª Sra. Helena Sanches Osório que arrumou o quiproquó, evitando o meu despedimento por justa causa de ofensa à intendência do reino. Acabei por sair daquele viveiro de invertebrados da Capital pelo meu próprio pé e nem a estima pela directora me fez vacilar.

    Voltemos ao Semanário dos meus 19 anos, ainda trabalhador-estudante. Chegada a hora dos exames de final de ano lectivo na Universidade, pedi uma licença sem vencimento, fruto do meu direito e do vínculo que tinha ao jornal por contrato assinado. Para minha surpresa, ao regressar dos exames, tinha sido dispensado e nem uma das minhas canetas sobrara na secretária, entretanto ocupada por outro estagiário. Resolvi levar os tratantes ingratos a Tribunal. Na barra, os senhores, meu chefe de redacção e director, mentiram com todos os dentes ao dizer que eu era um mero colaborador pontual e irregular.

    Dez meses de palmadinhas nas costas, idas ao SNOB e louvores ao puto talentoso que publicava aos dois e três artigos por semana (alguns deles manchetes), redundaram num perjúrio descarado, que o meu defensor não soube contornar porque o contrato tinha desaparecido. Mais uma vez, o totó do Salazar, não guardara uma cópia. Não bastaram as provas de vencimentos pagos a termo certo, a avença, outra galga, porque se fosse colaborador pontual não receberia um vencimento nem uma avença, quanto muito uns patacos dos artigos publicados.

    Foto: PÁGINA UM

    [Nunca contei isto em público, e mesmo em privado, evitei ao máximo andar a remexer na trampa. O Jornalismo para mim só não feneceu porque há o PÁGINA UM. Pode ser que no rescaldo de outra revolução (ou de uma Revolução em casa alta) volte a haver desse Jornalismo em que acreditei e a quem dei três décadas da minha existência. Mas se voltar, que volte livre destes sujeitos. O mais certo é ser no dia de S. Nunca à tarde.]

    Volto à Clara que terá destas e doutras para contar. É claro que a Clara, como todos os que caem em desgraça, deixou de ser fiável. É como um adúltero. Uma vez adúltero, adúltero para sempre. Ou um larápio de maior ou menor envergadura. Faz a fama e deita-te na cama. Para os conservadores do burgo, a Clara é a gaja dos plágios e dos orgasmos porventura fingidos. Build yourself a reputation. A Clara a quem os revisionistas acusam, sem ler mais do que as infâmias em sua honra, de ser uma fraude de alto abaixo e de cara a rabo. Não há período de nojo que lhe(s) valha, nem a confissão e a decorrente absolvição dos seus actos, sejam eles de facto, manietados ou inventados como na melhor ficção.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

  • Ignorância não

    Ignorância não

    “Não avançamos

    Por nenhum caminho

    Já aberto –

    Avançamos

    Levando mais além o âmago

    Raptor,

    De fonte latejante

    Drenando um deus

    Pequeno

    Mas vivo.

    Filipe Jarro

    CARTOGRAFIAS


    A mudança de ano condena-nos à vivência de mais um reinado Donald Trump, com a certeza de que teremos de ouvir mais chorrilhos de tolices e de que o mundo não ficará mais bonito. Falei-vos da sua declaração de campanha de que em dois minutos de briefing percebeu tudo o que havia a perceber, o que levava à promessa de que os americanos podiam ficar descansados porque ele é o pai da fertilização in vitro. E mais: vai torná-la grátis para todos os interessados. Se a primeira declaração era de uma estupidez que faz doer, a segunda é de uma demagogia que não se aguenta – termos de ouvir o homem que mais esperneia contra os cuidados de saúde acessíveis para todos os residentes prometer que vai oferecer-lhes de graça um tratamento muito caro que é procurado há décadas por milhões de casais, em clínicas que operam para proveito próprio. Tudo isto para parecer mais moderno do que os fundamentalistas do seu partido que estavam a levantar a voz porque os embriões já eram pessoas e, portanto, congelá-los era um crime. Tudo isto volta a levantar a velha pedra de toque do grande caos que vai na cabeça das pessoas sobre a diferença entre um embrião e um feto. E isso, infelizmente, não acontece só na Améria – os americanos apenas fazem mais barulho. Vale a pena aproveitar a oportunidade para tentar, outra vez, por as coisas no sítio.


    Na vida real, a aventura embrionária é uma montanha-russa de um mês, regulada por três tipos de hormonas diferentes: as gonadotrofinas, que vêm do cérebro, e fazem o ovário amadurecer um dos seus ovos; os estrogénios, que vêm do ovário, e regulam a ligação desse ovo com o espermatozoide mais capacitado para a tarefa; e, finalmente, a progesterona, que participa activamente na ligação do embrião às paredes do útero. Estas tarefas devem estar todas prontas ao fim de um mês, ou, mais apropriadamente, ao fim do equivalente a um ciclo lunar[1]. Se não estiverem é porque não houve embrião, pelo que não houve fertilização. Assim sendo, ao fim de alguns dias depois deste ciclo, o cérebro envia mais gonadotrofinas para o ovário para que o ciclo comece outra vez.

    Quando o ovo por fertilizar[2] cai do ovário para a Trompa do Falópio, inicia uma jornada até ao útero em que pode, ou não, encontrar-se com espermatozoides pelo caminho. Se não encontrar nada, o revestimento nutritivo que, entretanto, o útero preparou para receber o ovo fertilizado[3] torna-se inútil, e ocorre a menstruação. Mas, se o ovo se encontrar com espermatozoides na sua jornada, e se um deles o fertilizar com sucesso, cerca de cinco dias depois do acto sexual o embrião começa a formar-se, ainda dentro da trompa. Em ciclos que demoram de oito a doze horas, primeiro o ovo divide-se num embrião de duas células, e depois num embrião de quatro células. No total, entre a entrada na trompa e a implantação total no útero um embrião demora cerca de dez dias a completar o seu percurso.

    É importante parar aqui, porque geralmente, nas fertilizações in vitro[4], os embriões que os médicos transferem para o útero da mulher, e todos os embriões excedentários que congelam, têm exactamente quatro células.

    E, portanto, a resposta é não: estes embriões não são pessoas.

    Ainda vão ter que andar muito para lá chegarem.

    No fim da jornada pela trompa, o embrião que cai no útero é um círculo microscópico de células todas iguais, que inicia de imediato os seus primeiros contactos com as paredes externas da zona de implantação[5]. À medida que progridem nessa implantação, as tais células todas iguais acabam por formar dois grupos diferentes, numa estrutura que agora já mostra uma diferenciação mais marcada: por fora está uma parede de células todas iguais; e, por dentro, está um botãozinho de células arredondadas agarradas a essa parede. A parede externa vai formar a placenta, e todas as outras estruturas de suporte à gravidez; e só o botãozinho minúsculo é que dará origem ao feto propriamente dito.

    Mesmo assim, não, claro que não: estes embriões ainda estão muito longe de ser pessoas.

    À medida que o seu processo de implantação no útero progride, o embrião vai-se diferenciando cada vez mais, formando os precursores dos primeiros tecidos, as células precursoras do tubo neural, e, finalmente, as estruturas percursoras dos primeiros órgãos.

    Esta gestação embrionária demora cerca de oito semanas. Só depois de concluída é que o embrião passa a ser considerado um feto. E, mesmo assim, é preciso suster a respiração até ao terceiro mês de gravidez, absolutamente crucial para a ligação do feto à placenta, e tipicamente o momento em que ocorrem mais abortos espontâneos. Agora reparem na diferença enorme entre um feto bem-sucedido no final do seu terceiro mês e um embrião de quatro células no seu segundo dia de existência. Se não conseguirem memorizar de outra maneira, usem esta: ninguém precisa de um microscópio para ver um feto. Um embrião, por outro lado, não pode ser visto de outra maneira.

    E, evidentemente, o “pai da FIV” não é Donald Trump.

    Quem primeiro conseguiu juntar o ovo da mãe com os espermatozoides do pai numa caixa de Petri, obter um embrião de quatro células, transferi-lo para o útero da senhora, e obter uma gravidez bem-sucedida a termo foi o investigador britânico Robert Edwards, trabalhando em conjunto com o ginecologista Patrick Steptoe. Depois de muitas falsas partidas, muitos enganos, muitas pistas erradas, os dois conseguiram sincronizar o ciclo hormonal de Lesley Brown, inseminá-la com um ovo fertilizado fora do corpo com sémen do marido, e fazer nascer Louise Brown, o primeiro “Bebé-Proveta[6]” do mundo, a 25 de Junho de 1978. Posteriormente, o seu trabalho conjunto no Center for Human Reproduction, em Olddham, na Inglaterra, permitiu o nascimento de mais de mil bebés, incluindo a irmã mais nova de Louise. Edwards recebeu o Nobel da Fisiologia ou Medicina em 2010, e faleceu em 2013.

    À época, as FIVs permitiam evitar problemas de infertilidade devidos, por exemplo, a bloqueios nas trompas do Falópio: recolhendo o ovo directamente no ovário, fertilizando-o no laboratório, deixando-o desenvolver-se até à fase de quatro células, e injetando-o de novo no útero em sincronia com o ciclo hormonal, saltava-se por cima desse bloqueio, que é responsável por uma quantidade substancial dos casos de infertilidade feminina. Como é evidente, a técnica expandiu-se logo pelo mundo, e foi logo melhorando. Uma das primeiras melhoras foi esta transformação do “embrião” em “embriões” que tanto preocupa os fundamentalistas e ainda hoje baralha todas as pessoas que não têm qualquer obrigação de ter especializações na matéria.

    Chamou-se-lhe a superovulação.

    Os médicos passaram a estimular artificialmente os ovários da mulher para que, em cada ciclo, em vez de um ovo pudessem obter – facilmente – um valor entre doze e vinte. Isto permitia ter bastante mais embriões bem desenvolvidos, transferir para o útero uns três em vez de só um, para aumentar a possibilidade de pelo menos um se agarrar bem à placenta. Como todos os tratamentos para obter e recolher os ovos são bastante violentos para o organismo feminino e para a psique da mulher que quer engravidar, os embriões excedentários guardavam-se numa câmara de Azoto líquido, prontos para serem descongelados intactos, prontos a repetir a operação sem mais tratamentos se a primeira tentativa falhasse – ou se os pais felizes quisessem ter outro bebé.

    Isto já se fazia nos anos 80 do século passado.

    Já nessa altura gerava a maior das confusões, criava toda a espécie de controvérsias, e levantava dilemas legais nunca antes vistos.

    É espantoso como ainda falta explicar tanta coisa.

    E como Trump tem a lata de dizer, e repetir, e jurar aos quatro ventos, que percebeu tudo em dois minutos.

    O pó que se levanta com estas grandes questões, legitimamente complexas para a inquietação humana, só assenta se nos dispusermos a um mínimo de esforço no seu estudo, por forma a compreendermos o que está mesmo em causa. Distinguir embriões de fetos, por exemplo, já é um grande passo em frente. Já agora, distinguir os fetos insipientes dos três meses das crianças potencialmente viáveis dos cinco meses também é uma grande urgência. Explica-nos porque é que fazemos algumas coisas e outras não.

    O que aí vem é do pior. Por favor, que ninguém escolha manter-se ignorante.

    Feliz Ano Novo.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Ou seja, 28 dias.

    [2] O oócito, ou ovócito.

    [3] O zigoto.

    [4] FIVs.

    [5] O endométrio.

    [6] Não se sabe quem inventou o termo, que foi caindo em desuso com o tempo, à medida que se expandiu e trivializou. De qualquer maneira não era especialmente bem-sucedido, uma vez que a FIV tem lugar em caixas de Petri, e não em provetas.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.