Categoria: Crónica

  • Adolescência (a série): um abismo sem plano sequência

    Adolescência (a série): um abismo sem plano sequência

    Aviso: Este texto contém revelações sobre a série Adolescência que podem comprometer o efeito de surpresa — se é que isso ainda existe.


    Vivemos um tempo cheio de buracos.

    E já que tratamos aqui de televisão, é curioso observar como a indústria cultural soube reconfigurar os dispositivos da catarse, não sendo apenas um reflexo da “realidade” mas tratando dela para a reorganizar num sistema de validação moral atractivo e muito dicotómico, embora perto do vazio.

    As séries contemporâneas converteram-se em repositórios de códigos éticos formatados, onde o espectador é conduzido por uma arquitectura emocional que não exige dúvida, mas um apelo à identificação.

    Daí talvez o sucesso desta série chamada Adolescência que foi filmada no norte de Inglaterra, entre South Kirkby, South Elmsall e Sheffield, e sobre a qual se debruça este texto.

    Trata-se da mais recente produção da Netflix com assinatura britânica, e que se inscreve exemplarmente nesta genealogia: uma obra que simula o abismo, mas opera sempre à beira da superfície; que quer parecer disruptiva, mas permanece meticulosamente dentro dos contornos do admissível pelo mainstream ideológico, como seria de esperar em tempos tão simulados e pouco rigorosos a roçar a hipocrisia, marca inevitável de quando só existem dois lados possíveis de escolha. 

    Na sequência do assassinato brutal de uma jovem estudante, Adolescência acompanha quatro dias decisivos na vida de Jamie, em que nem sempre ele está presente. Trata-se de um rapaz de 13 anos acusado do crime. Filmada em tempo real, a série mergulha no impacto psicológico e social do acontecimento, expondo as fragilidades da família, da escola e do sistema de justiça juvenil. Com uma narrativa densa e claustrofóbica, a série explora a culpa, o silêncio e o peso insustentável de crescer num mundo que parece ter pouco sentido, cheio de tensões e neurose  A título de curiosidade, a série é para maiores de 13 anos, a idade do protagonista. Tudo a condizer.

    A verdade é que o mundo colapsa, mas dentro de um guião. A série começa logo mal por se chamar Adolescência e não O adolescente (ou outra coisa). Fazendo passar um pelo todo, associação pertinente, o que é assustador. Como se na adolescência o normal fosse matar sem razão aparente. Esta série televisiva tem tudo o que se espera de uma tragédia contemporânea, pré-digerida para consumo emocional.

    É talvez no centro narrativo da série — o acto de Jamie de matar, visto pela câmara de vigilância — que se torna mais visível a escolha programática do argumento: não nos é dito porquê. Não há confissão, nem reconstituição, nem motivação dramática articulada.

    O espectador é mantido fora do momento do crime, não para pensar sobre ele, mas para sentir o seu eco. Quando se volta a estar com Jamie no terceiro episódio já passaram uns meses. E no quarto aparece a voz da sua confissão apenas.

    A consequência ocupa o lugar da causa. O gesto torna-se enigma, mas não no sentido trágico da palavra — apenas no sentido funcional.

    Jamie mata, não porque tenha razão, pulsão, trauma ou uma ideologia aparente, mas porque a narrativa precisa de uma figura sacrificial silenciosa, até omnipresente que active o colapso dos adultos à sua volta. O corpo do rapaz é o epicentro imóvel sobre o qual todos os outros orbitam em falência — pais, escola, justiça, e até a psicóloga esgotada no final da entrevista do terceiro episódio.

    E no entanto, a ausência de causalidade, tão elogiada pela crítica como sinal de maturidade narrativa, parece ser menos uma abertura ao abismo do que uma forma de evitar o pensamento.

    Ao recusar mostrar ou interrogar o gesto, impede-se o espectador de exercer a sua interpretação. O silêncio de Jamie não é ambiguidade, é controlo simbólico. E, pior ainda, é uma maneira de deslocar o peso do acto para o circuito emocional da culpa partilhada, onde a pergunta “porquê?” já não importa.

    Jamie mata, sim. Mas o que morre com ele é a possibilidade de uma dramaturgia que se arrisque a pensar o crime para lá do seu valor simbólico. E isso, mais do que a própria violência, é o gesto violento da série. Poderia ser uma actitude de provocação mas não é.

    Conhecendo minimamente a realidade inglesa, percebe-se que há ainda assim diferenças significativas entre os dois países — sobretudo na forma como a autoridade (ou a sua versão pseudo-autoritária) se exerce, e no peso que o Estado impõe às famílias, com a respectiva violência simbólica e estrutural. Portugal, ao lado dos anglo-saxónicos, parece um peso-pluma no velho índice foucaultiano, já gasto, sim, mas cada vez mais reactualizado com a televisão a servir de panóptico de fundo.

    Cada episódio é um plano-sequência: quatro blocos temporais contínuos, quatro actos de uma peça que quer fazer-se passar por realismo, como se esse género ainda pudesse ser mais estilizado, empregando um marketing crítico (se assim poderemos chamar), porque hoje as séries são avaliadas com o mesmo espírito que os produtos no Uber Eats: eficácia, satisfação emocional, identificação rápida envolta em likes e Emojis. 

    A crítica deixou de ser campo de pensamento e passou a ser validação simbólica, como se fosse uma extensão do marketing do filme, sempre com excepções, claro.

    Mesmo os jornais sérios vivem do clique, da partilha, do engajamento — e isso empurra para o consenso emocional e não para o pensamento incómodo.

    Dando uma vista de olhos pela crítica que se tem feito, percebe-se o entusiasmo em destacar a virtude da série por apontar a masculinidade tóxica como o alvo a abater.

    Supostamente, a culpa é da Net — encarnada numa conversa entre a mãe e o pai, que comentam as noites de luz azul acesa no quarto de Jamie até de madrugada. Mas a verdade é que a Net é hoje tudo, até o espelho. O próprio Governo,  surge maquilhado na narrativa como uma espécie de vítima inocente de uma abstracção digital incontrolável. Constatamos isso pelo esforço da policia e da impossibilidade da escola com os rapazes bullies a fazer das suas.

    Ironia suprema: a série é consumida na mesma Net que parece veladamente demonizar, e ali ficará a repousar como um cadáver bem maquilhado que já fez o seu trabalho num cemitério redundantemente zombie.

    Pode deduzir-se que o que se pede é mais regulação urgente e que os governos, coitados, são quase retratados como vítimas impotentes de um mundo abstracto que resvala para a anarquia. Mas a vida não é assim. As coisas estão hoje muito mais ensimesmadas e interligadas ao mesmo tempo, tornando-se a sua decifração tão blindada como um segredo de Estado.

    A arte, nesse contexto, parece muitas vezes remetida ao papel do chato funcionalismo público,  só que agora com a emoção da moral do bem, estrategicamente incrustada, como se isso lhe conferisse urgência estética.

    A câmara (e aqui começa o problema) não nos interroga — conduz-nos através do seu GPS afinado e convenhamos, fá-lo bem. Do ponto de vista da mise-en-scène formal parece-nos exímia.

    Mas por outro lado do ponto de vista intelectual, não parece exigir grande coisa aos espectadores num qualquer desvio que a câmara proponha, nenhum espaço onde se possa habitar a tragédia do ponto de vista da sua ambiguidade ou paradoxo e mesmo do livre arbítrio do espectador (se o tiver).

    Philip Barantini, o realizador, sabe dirigir actores e operar uma tensão formal com rigor mas tudo é demasiado operacional e afinado. É o teatro do naturalismo embalado numa estética condescendente com o próprio dispositivo televisivo, embora esta série se armadilhe de argumentos mais cinematográficos e experimentais como o tão falado uso do plano sequência, um doce para a critica especializada que parece já pouco sair à rua sem carpetes vermelhas.

    A escolha de filmar sem cortes aparentes cria uma armadilha: a ilusão da continuidade converte-se numa suspensão da complexidade. O tempo avança, mas não se transforma. A narrativa desliza sobre si própria. Às vezes parece não sair nunca do mesmo lugar, um artifício que pelos vistos funciona, ou não fosse esta a série da moda.

    Owen Cooper, no papel de Jamie, entrega uma fisicalidade apagada mas com fogachos como no caso da cena com a psicóloga em que invariavelmente se torna violento e ameaçador, como se o corpo estivesse sempre no rescaldo de um trauma que não nos é dado a ver, mas o actor fá-lo eximiamente e com uma representação típica do melhor dos britânicos neste tipo de encenação.

    Diria mesmo que no género são imbatíveis.

    Christine Tremarco, como mãe, transita entre o desespero e a impotência mas sempre dentro de um rigor que aflige positivamente. Stephen Graham, produtor e actor, encarna o pai com uma contenção que se pretende densa, mas que nunca verdadeiramente acende o fósforo, embora pareça que vai explodir a qualquer momento, para o bem ou para o mal da acção programática.

    Destaco ainda a filha, a psicóloga e o polícia que fazem jus à sua escola britânica  de forma brilhante e inspiradora, fazendo até esquecer outros aspectos menos interessantes, e não deixando instalar-se algum tédio inerente a uma obra sem cortes de edição.

    Jack Thorne, o criador, propõe um drama social que convoca o espectro de Ken Loach ou Mike Leigh, talvez, mas sem a coragem formal ou o radicalismo ético desses nomes.

    Não há confrontação de classes, nem análise de estruturas. Apenas psicologia e culpa. O sistema de justiça juvenil é pano de fundo, mas nunca é questionado. A escola surge como um lugar de passagem, não de formação. Será esta já a realidade? Pode ser, mas nesse caso chega-se ao fim de uma linha cujo dispositivo mediático pretende lavar daí as suas mãos. Já para não falar do comunicacional.

    A violência é um sintoma, mas nunca um fenómeno que se queira entender em profundidade. E aqui a série revela o seu coração: não é o mundo que está doente, são os indivíduos.

    O trauma substitui a ideologia. Em contraponto Elephant de Gus Van Sant é o exemplo do contrário já que se trata também de um filme de crime numa escola pública mas deixa os espectadores respirar nem que seja para dentro de uma saco de plástico escolhido por ele.

    Mais perturbador ainda é o desenho das personagens no plano simbólico. O masculino, em Adolescência, é sinónimo de ausência, ameaça ou fracasso.

    O pai é impotente, os colegas são predadores ou cúmplices. O assassino é um silêncio que mata. Em contrapartida, o feminino surge como espaço de escuta, contenção, empatia. A psicóloga, a irmã, a mãe: todas representam zonas de verdade emocional. Esta oposição, além de simplista, revela uma lógica binária que contradiz o próprio realismo que a série reivindica. Não há contradição nos corpos, nem ambiguidade nos gestos.

    Cada personagem está condenada ao seu arquétipo. Não há voz que escape ao destino.Não é por acaso que quem mata é masculino e quem morre é feminino. A organização simbólica da série é clara: o masculino como ameaça, silêncio ou falência; o feminino como escuta, dor e verdade emocional. Jamie, o agressor, não tem agência — é um corpo mudo que activa a queda dos adultos. A vítima, ausente, torna-se presença moral. É uma configuração que parece natural, quase inevitável, mas que revela a escolha de alinhar-se com uma narrativa binária, afectiva e funcional. Ao não tornar mais complexa esta divisão, Adolescência não interroga o seu tempo , apenas o confirma, pelo menos na sua percepção estereotipada.

    Não deixa de ser curioso que a serie é muito masculina na sua autoria incluindo Brad Pitt que  aparece como produtor executivo.

    Esta moralização do enredo seria menos problemática se a estrutura dramática oferecesse zonas de fuga, de interrogação, de ambivalência. Mas não: a série opera como um tribunal sem apelação. Cada gesto é carregado de um subtexto que se quer politicamente correcto como se a culpa fosse definitivamente de Jamie ou da sua família que apesar de tudo aparece como estruturada. Mas o mal surge da normalidade e parece querer enfatizá-lo ao estilo de Hannah Arendt mas sem sentido crítico.

    Curioso e também um pouco incompreensível ou mesmo enigmático é a palavra “pedófilo” aparecer escrita na carrinha de trabalho do pai, mesmo sabendo quem a escreve — mais uma vez rapazes prontos a armar sarilho doa a quem doer. A filha boa e generosa é apenas espectadora quando o pai bate num dos rapazes. É a violência explicita a entrar pela família adentro.

    O aparato técnico é irrepreensível deixando no ar uma certa magia não sendo óbvio perceber o seu dispositivo perturbador, sobretudo no episódio em que passamos para um ponto de vista do céu como se fosse o de um drone. A fotografia é sóbria, neutra, quase hospitalar. Tudo contribui para uma estética da contenção. Nunca há um verdadeiro risco.

    O plano-sequência, que poderia ser um dispositivo de descoberta, torna-se um mecanismo de controlo. 

    Funcionou, tendo em conta as audiências e a critica especializada.

    Também o Dallas no seu tempo.

    A crítica parece unânime no Rotten Tomatoes, ou no Metacritic na critica positiva. 100 por cento. Mas esta unanimidade revela mais sobre o estado da crítica do que sobre a série.

    Vivemos um tempo em que a adesão emocional se tornou critério de valor. Se um produto cultural afirma uma causa justa, isso basta para legitimar todos os seus defeitos. A forma tornou-se irrelevante, desde que a intenção seja correcta. O problema é que a intenção, aqui é estranha. Dizer mal ou criticar boas acções moralizantes acarreta os seus riscos no planeta das duas terras. Uma estupidez tramada, que acarreta medo e desordem.

    A adolescência — enquanto conceito — é, por definição, uma zona de conflito, metamorfose, risco, transgressão.

    Nesta série, é convertida num campo de purificação moral. Em vez de corpo em transformação, temos corpos culpados ou redentores. Em vez de afectos desregulados, temos sintomatologias. Em vez de pulsões, temos discursos.

    Nada escapa ao algoritmo narrativo.

    Não é preciso pensar, mas empatizar. Não há abismo. Não há interrupção. Apenas a certeza de que estamos do lado certo. E isso, num objecto cultural que se pretende desafiante, é o maior dos fracassos.

    Adolescência é também um exemplo acabado da cultura da segurança simbólica. É um produto com vocação de arte. Mas a arte, quando se limita a imitar a virtude, torna-se apenas mais um ramo da indústria — agora com plano-sequência e paleta neutra.

    Adolescência é, no fundo, um bom exemplo do que acontece quando a televisão tenta mimetizar algum cinema sem aceitar o seu risco ontológico mas tudo está submetido a uma lógica de continuidade emocional e controlo narrativo.

    A televisão, enquanto forma, vive da fidelização e da retenção — e mesmo quando se aproxima formalmente do cinema, não abdica da sua função principal de manter o espectador dentro do regime da identificação, da empatia, do reconhecimento e da compreensão, tudo aquilo que Twin Peaks não tinha, não deixando por isso de ser um sucesso de público e da critica mas num tempo em que a internet era só uma miragem. O cinema, por oposição, pode fracassar e desorientar. Pode fazer o espectador sentir que não está no lugar certo — e, justamente por isso, transformá-lo, correndo sempre riscos ideológicos ou morais.

    Alguns episódios de Black Mirror conseguem-no e aqui com mais alguns pormenores e com a intromissão  “diabólica” da tecnologia quotidiana, o primeiro episódio seria magnifico e poderia inscrever-se nessa dimensão mais aberta de Black Mirror que na verdade nunca pretende ser cinema nem usa fluídos cinematográficos pretensiosos que faça a crítica rejubilar.

    No final, talvez Adolescência deva ser lida não como um falhanço formal ou conceptual, mas como uma espécie de diagnóstico involuntário da própria televisão contemporânea. Nesse sentido é uma série que tenta emular a densidade do cinema de autor, mas acaba por cristalizar, com rigor quase académico, os limites internos da sua matriz televisiva.

    E é aí que se torna interessante: na tensão entre aquilo que pretende ser e aquilo que efectivamente é, dando prazer assistir.

    Não se trata de perdoar as suas falhas narrativas, nem de celebrar as suas virtudes técnicas, trata-se de reconhecer que a obra, na sua incapacidade de produzir verdadeiro abismo, revela com clareza o modo como a televisão actual opera: por sedução estética, por empatia emocional, por alinhamento moral. A sua forma — o plano-sequência — que poderia ser instrumento de desorientação, converte-se num dispositivo de segurança.

    A sua narrativa que parte de um trauma, nunca arrisca o desconforto real. A sua dramaturgia que invoca o realismo, encena apenas a previsibilidade ética do seu tempo. Queríamos mais e aqui estava uma excelente oportunidade.

    Nesse sentido, Adolescência não é uma má série: é uma série transparente à sua maneira. Se tivesse de atribuir uma nota daria 7 (10).

    Expõe os mecanismos de contenção simbólica da televisão pós-Netflix, onde tudo é coreografado para parecer radical, mas nada escapa ao regime do reconhecimento. Quase como se quisesse redimir em certos momentos onde a câmara deveria ir para ver mas não vai ficando talvez a sugestão. É evidente que gostaríamos de a ver entrar noutros sítios mais incómodos para o poder. Imaginem Kubrick ou Bergman.

    E talvez seja este o seu mérito maior — e mais perturbador: mostrar, com precisão, o que a televisão contemporânea pode ou não pode ser. Mostrar que o risco está simulado, que a densidade está encenada, que a arte está subordinada ao algoritmo narrativo da plataforma.

    A Netflix é mais que uma plataforma. É um espaço contemporâneo em que a dislexia e a neurose se evidenciam de forma apesar de tudo transparente.

    Adolescência, assim lida, é um espelho: não do mundo, mas do próprio meio que a produz. E nessa revelação inusitada, torna-se politicamente relevante. Porque nos diz até onde a televisão é capaz de ir — e até onde jamais ousará chegar, fazendo assim serviço público de relevância, mostrando-nos o aeroporto onde se pode aterrar em segurança.

    E a vida continua… Talvez como nos filmes de Kiarostami.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações: Swimming Pool Project


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Dinamarca 5.2: um osso duro de roer

    Dinamarca 5.2: um osso duro de roer


    De varanda em varanda, ando aqui a cogitar se, em muitas situações, não seremos todos uns voyeurs futebolísticos, debruçados sobre uma espécie de miradouro privado onde assistimos ao desfile das esperanças, angústias e pequenas traições. Comecei pela “Da Varanda da Luz”, mas logo dei abertura para surgir, de quando em vez, uns “Da Varanda do Varandas”, que o Carlos Enes, com o seu desplante sportinguista, fez nascer por brincadeira – ou talvez por inveja –, para depois se multiplicarem outras varandas: já houve um no Jamor, no ano passado, numa final de Taça de Portugal em que o Benfica injustamente esteve ausente; e a surpreendente Varanda de Montjuïc, ainda este mês, em Barcelona.

    Agora, cá estou eu novamente à varanda, desta vez em Alvalade, a pensar numa fidelidade tantas vezes posta à prova, num amor estranho que se divide entre um clube e uma Selecção.

    É curioso como as varandas e a fidelidade têm em comum a possibilidade do abandono. Se as varandas são espaços híbridos, que ligam e desligam ao mesmo tempo, entre o interior e o exterior, também a fidelidade ao futebol é assim, sujeita às circunstâncias e aos resultados. Nem meto aqui o jornalismo, porque isto é uma crónica futebolística, logo tendenciosa.

    Mas há uma diferença clara, convenhamos: se as varandas, mesmo abandonadas, se mantêm erguidas, intactas na sua solidão, já a fidelidade futebolística abana ao sabor de cada derrota. Talvez não haja varanda que resista a muitos maus resultados, especialmente quando se fala da Selecção Nacional, uma espécie de clube de todos e de ninguém.

    É por isso que, sentado aqui nesta varanda de Alvalade, me pergunto que nome lhe hei-de dar. Já perdi o exclusivo das varandas, é certo, mas talvez seja tempo de pedir ajuda às inteligências artificiais. Não dizem que o futuro passa por aqui? E já que o ChatGPT se tornou uma moda – e esta semana li um artigo científico em que a Inteligência Artificial é declaradamente um dos co-autores –, pergunto-lhe agora: que nome dou a esta varanda de onde hoje vejo a Selecção jogar contra a Dinamarca?

    E ele dá-me três sugestões: ‘Varanda da Saudade’, ‘Varanda das Quinas’ e ‘Varanda do Cristiano’.

    (penalty!!!! E vai ser Cristiano Ronaldo a marcar: eis a oportunidade de ‘redenção’… e… e… falha!!!)

    Já estava decidido, mas sai agora reforçado por este falhanço. Fiquemos pela ‘Da Varanda das Cinco Quinas’, que me parece mais épico, evocando não os cinco reis mouros derrotados na Batalha de Ourique, mas as cinco mais relevantes vitórias futebolísticas nacionais: o Euro 2016, a Liga das Nações de 2019, o Campeonato do Mundo Sub-20 em 1989, o Campeonato do Mundo Sub-20 em 1991 e o Campeonato da Europa Sub-17 em 2003.

    Seja como for, sinto que o ambiente não está muito favorável para Portugal, sobretudo depois da exibição pavorosa da última quarta-feira em Copenhaga. Aquele jogo foi tão medíocre que a única figura a destacar acabou por ser o guarda-redes Diogo Costa, agravando ainda mais a exibição global. Um guarda-redes brilhar em demasia significa quase sempre que tudo o resto falhou em absoluto. E falhou.

    Como sucede nestas ocasiões de derrota ou exibição sofrível da Selecção Portuguesa, o Cristiano Ronaldo é imediatamente atirado para as feras, sem misericórdia nem respeito. Ainda mais agora que é quarentão e o Martinez o mantém de pedra e cal, apesar de ele, o Ronaldo, estar mais parecido com uma pedra.

    (entretanto, ali em baixo, depois do domínio português nos primeiros 20 minutos,)

    Quando se trata de Cristiano Ronaldo, não interessa que durante quase duas décadas tenha sido quase sempre bestial e único, porque o futebol, como a vida, é ingrato. Agora, se não marcar golos decisivos – e sobretudo se fizer falta aquele penalty –, será uma besta negra, como se o fado da Selecção dependesse exclusivamente dele.

    (e goloooooooo… Portugal!!! 1-1. Fantástico! Quer dizer: teve de ser um dinamarquês a marcar na própria baliza; mas conta para Portugal e isso é que interessa)

    Mas, pelo menos, Ronaldo tem agora um refúgio seguro na imprensa portuguesa. Bem pode jogar mal ou ficar em branco, porque há agora um jornal que nunca mais escreverá mal dele: o Correio da Manhã…

    (e chega o intervalo)

    Aproveito para vos revelar que hoje sinto-me um privilegiado aqui nesta varanda, porque, além de o farnel da Federação Portuguesa de Futebol não ser nada mau – uma sandes de carne, um sumo e uma água, um pacote de batatas fritas e um chocolate –, tenho aqui um relato radiofónico em directo, por via dos meus camaradas do lado direito, da FlashScore. Como sou algo pitosga, é uma vantagem saber quem passa e quem remata.

    (recomeça o jogo)

    De varanda em varanda, cá estou eu a assistir agora ao recomeço desta segunda parte, ainda desconfiado e com um pressentimento que não me agrada. É certo que chegámos ao intervalo empatados na eliminatória, ainda que com ajuda de um dinamarquês confuso e bem-intencionado, mas uma selecção que só marca golos por caridade adversária é uma equipa que vive perigosamente. Se nos últimos anos Portugal se habituou a ser melhor no sofrimento do que no espectáculo, parece-me que estamos hoje decididos a exagerar no sofrimento.

    (e dito e feito; golo da Dinamarca; marca, segundo diz o camarada do lado, Rasmus Nissen, que nem sei onde joga)

    Está lindo. Estava eu para escrever que o Cristiano Ronaldo ainda deveria estar a remoer o penalty falhado, e ainda acontece pior. Agora estamos bem pior: fantasmas trágicos pairam em Alvalade – e Portugal arrisca sair da Liga das Nações sem honra e glória. Bom, mas, na verdade, ainda falta muito, e eu confio no Cristiano Ronaldo. Ainda tenho memória daquele jogo contra a Espanha no Mundial da Rússia em 2018 ou na segunda mão do play-off de apuramento para o Mundial do Brasil em 2014.

    (é goloooooooooo: Cristiano Ronaldo!!!!! Eis a redenção! Remate de Bruno Fernandes ao poste esquerdo de Kasper Schmeichel, com o CR7 a facturar na recarga)

    Enquanto escrevo estas linhas, dou comigo a pensar que as varandas têm afinal outro traço comum com o futebol português: estão sempre à beira do precipício. Basta um ligeiro tropeção, um erro infantil, um passe errado, uma hesitação, para que esta varanda épica se transforme num miradouro de derrotas, lamentos e frustrações. É um risco que se repete jogo após jogo, varanda após varanda. E hoje, mais do que nunca, temo pela queda.

    E cá estou eu, entre o pessimismo crónico e uma réstia de esperança renascida por via da redenção de Cristiano Ronaldo. O homem é assim mesmo: sempre que o enterram vivo, regressa ainda mais teimoso, mais obstinado, quase como um Lázaro de chuteiras que insiste em desafiar a sua própria mortalidade futebolística.

    (e olhem: o Ruben Dias armado em António Silva, no Benfica, permite a intercepção de um dinamarquês para um cruzamento rasteiro e golo fácil de Eriksen)

    Estamos lindos. Com este resultado, Portugal está eliminado. Não há tempo para grandes devaneios filosóficos quando se está perto do abismo, faltando menos de 15 minutos para o final. Bastou mais um momento de desconcentração, um desentendimento defensivo, para que surja novo desespero.

    Em todo o caso, há algo em mim que recomenda calma – e sobretudo a mim próprio, que tenho o coração já habituado a sofrer –, porque esta varanda, que é a primeira nesta versão, não pode iniciar-se com um fracasso. Vou aqui debicando o farnel, bebericando mais um pouco de água, petiscando outro chocolate, mais para afastar o nervosismo do que a fome. E o relógio continua…

    (e golooooooooo! Trincão!!! Nunca imaginei gritar um golo em Alvalade marcado pelo sportinguista Trincão)

    Caramba! Temos mesmo jogo. Acho que, se isto for a prolongamento, vou ficar só a assistir, porque não dá para escrever com alguma graciosidade num jogo destes que parece uma montanha-russa.

    Como dizia eu: de varanda em varanda, vou-me dando conta de que o futebol português é exactamente como esta varanda das Cinco Quinas, frágil e instável, mas ainda assim capaz de nos proporcionar emoções inesperadas. Já nos vi eliminados duas vezes esta noite e cá estamos outra vez com a alma renovada. Parece um filme repetido, daqueles que sabemos sempre como acabam, mas não conseguimos deixar de ver até ao fim, porque temos esperança de que, desta vez, o final seja diferente.

    Entretanto, Cristiano Ronaldo é substituído pelo Gonçalo Ramos, certamente para dar mais fôlego para o prolongamento. O golo que marcou serviu de redenção para o penalty falhado. Se Portugal virar este resultado, amanhã não dirão que é bestial, mas pelo menos não o tratarão por besta. É assim o nosso futebol, e acho que o de todos: bipolar, imprevisível, incoerente. Tanto passamos da euforia à depressão como regressamos, sem escalas, ao sonho. No fundo, é também por isso que se continua fiel a esta varanda, porque, independentemente do sofrimento e dos tropeções, não há nada que supere o prazer de viver momentos como este, em que nos sentimos protagonistas de uma história épica escrita ao vivo e sem guião.

    Estou a exagerar, claro – e encerram-se os 90 minutos. Vai haver prolongamento e, se me permitem, vou estar mais atento ao jogo do que à crónica durante os 30 minutos do prolongamento.

    (golooooooooo. Trincão!!! Trincão!!! Bis do Trincão)

    Estamos à frente, finalmente!!!

    Agora sim, percebo plenamente a verdadeira natureza desta Varanda das Cinco Quinas: é uma varanda masoquista, feita à medida dos sofrimentos e das angústias que tão bem caracterizam o futebol português. Estamos, é certo, novamente em vantagem, e pela improvável figura de Trincão, cuja dupla façanha de marcar em Alvalade me deixa tão surpreendido quanto desconfortável. Mas já aprendi há muito tempo que não importa a cor da camisola que vestem os heróis quando a Selecção Nacional está em causa. Sobretudo num jogo tão bipolar como este.

    Agora, deixem-me desligar este portátil por alguns minutos. Há uma certa liturgia que exige respeito: nos instantes finais desta eliminatória, que Portugal agora parece controlar, não posso estar dividido entre a escrita e o jogo. Afinal, como se sabe, as varandas, mesmo as mais épicas, são lugares perigosos. Basta um passo em falso para que a alegria se transforme num voo trágico rumo ao abismo futebolístico. E a mim, hoje, não me apetece nada cair.

    (goloooooooooo…. Gonçalo Ramos!!! 5-2! Está resolvido pelo antigo benfiquista!)

    Assim termina esta noite surreal na nova Da Varanda das Cinco Quinas, numa partida digna dos melhores (ou piores) argumentos cinematográficos: o drama inicial deu lugar à euforia inesperada. Da angústia à alegria, do pessimismo à festa, do Ronaldo bestial ao Ronaldo besta e de novo a bestial — a bipolaridade do futebol é também a bipolaridade das lusas emoções, reflectida neste espaço precário, algures entre o sofrimento e o triunfo, onde tanto me agrada estar.

    E agora que tudo está resolvido, olho com serenidade e gratidão para esta varanda improvável em Alvalade, percebendo que, afinal, talvez o futebol seja o reflexo da vida: um lugar instável e contraditório – e que venham mais noites assim, porque, no fundo, ser adepto (e jornalista pouco objectivo quando se trata de futebol) é isto mesmo: não saber como começa, desconhecer como termina, mas desfrutar sempre, apaixonadamente, do caminho até lá chegar.

  • ‘Flooding the zone’: o regresso da censura

    ‘Flooding the zone’: o regresso da censura


    Antes de mais nada, é preciso entender que este meu grupo de amigos com quem eu percebi que a informação americana estava a ser cuidadosamente manipulada são todos professores universitários mais velhos do que eu, as pessoas inteligentes em quem eu confiava para discutir as minhas ideias e a minha forma de expor em público as questões mais controversas. São pessoas que ainda hoje seguem as notícias, que ainda hoje se indignam[1], e que ainda hoje me mandam clips dos newsgroups que subscrevem[2] sempre que lhes parece que é bom que eu saiba. À excepção do Jim, que é republicano e gosta de falar comigo não só para me picar, mas sobretudo porque se queixa de já não existirem republicanos inteligentes desde que apareceu o Trump[3], que ele abomina, os outros três são democratas. Um democrata americano é mais ou menos o equivalente de um social-democrata europeu, a palavra socialista nem se pronuncia, mas, sob a pressão da alarvidade desta presidência, estão os três a ficar cada vez mais liberais – sei lá, mais parecidos com o Mário Soares quando saiu do comboio depois do 25 de Abril.

    Na América nunca se diz de ninguém que é comunista. No tempo de Edgar J. Hoover, que fundou o FBI e o dirigiu durante 38 anos, houve muitas pessoas que foram perseguidas, sabotadas, assediadas, sabotadas, chantageadas, e presas, através de vigilância ilegal, ilegal, escutas telefónicas, e roubos, como parte da caça aos espiões e comunistas.  Morreram pessoas na cadeira eléctrica por causa de acusações destas, como o casal Rosenberg, vítima de um julgamento confuso entre os presidentes Truman e Eisenhower que culminou em 1953, quando Ethel Rosenberg tinha 37 anos e dois filhos pequenos, com o que é hoje considerado “uma história horrífica absolutamente bárbara[4]”. Também é extremamente perigoso seja quem for definir-se como radical. Foi este epíteto, sinónimo de anarquista no coração da democracia, que condenou à morte Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti em 1921, depois de um julgamento tão questionável que as testemunhas de defesa nunca chegaram a ser ouvidas[5]. Ou seja, a Land of the Free já passou por períodos terríveis de censura. E, de cada vez que a Sparky[6] disparava, o povo americano gritava de alegria. Só que isto aconteceu nos Estados Unidos do tempo de Estaline, quando se temia genuinamente que “os russos” deitassem bombas atómicas sobre a América – o tempo em que se vivia no medo, e o medo traz sempre consigo em grande potencial de histeria. Mas a censura caótica inventada por Trump é muitíssimo mais perversa do que todas as que o antecederam: consegue iludir até os seus adversários mais inteligentes.

    A Tracy chamou a si a tarefa ingrata de ensinar aos seus alunos de primeiro ano, acabados de sair do secundário, a arte de distinguir as notícias verdadeiras das fake news. Sabe que Trump tem vindo a impedir cada vez mais os jornalistas sérios de fazerem correctamente o seu trabalho: por exemplo, nunca responde às perguntas da CNN. Baniu a Associated Press das suas conferências de imprensa. Evita dize alguma coisa que faça qualquer espécie de sentido se as perguntas forem de órgãos dos media como o Washington Post, a Time Magazine, a NPR ou a PBS. Mas fala com gosto para os media próximos da direita republicana, pelo que são essas ideias que circulam com mais impacto entre o público americano. “Se quiseres ver notícias na televisão e estiveres a faze zapping,” diz-me a Tracy, “notas que muitas coisas não batem certo. Vezes e vezes sem conta, tens de ouvir o Presidente, que devia ser imparcial, dizer à CNN, ou a qualquer outro repórter com quem ele embirre, que se recusa a responder porque não gosta deles. O ALJAZEERA AMERICA[7], um excelente canal de notícias que se apanha com a maior facilidade em todo o mundo dado a quantidade de antenas que os seus fundadores puderam instalar no deserto, agora está permanentemente cheio de interferências. E depois, finalmente, aparecem aqueles debates, ou mesmo notícias, que tu já sabes que são da Fox[8]. E sabes logo, mesmo antes de ouvires, porque nestes canais todas as mulheres, sejam jornalistas sejam convidadas para opinar, são loiras. E este espectáculo das mulheres loiras – loiras e boazonas, como tu dizes – passa uma mensagem absolutamente tóxica ao público americano: sobre quem detém o poder, e quem detém a verdade. Agora experimenta explicar isto aos teus alunos, que são quase todos brancos, e maioritariamente loiros.”

    No entanto, naquela sexta-feira que vai ficar marcada a negro para sempre em todos os livros de História, nem a Tracy percebeu logo porque é que eu estava a vituperar com tanta raiva que – onde é que já se viu. Desde quando é que, num encontro de alto nível entre dois chefes de Estado, destinado a assinar ou não um tratado de colaboração cheio de cláusulas discutíveis, entram trinta jornalistas para a Sala Oval para assistir à conversa em directo? Desde quando é que esses jornalistas, que para já nem lá deviam estar, têm carta branca para interromper a conversa tensa dos Presidentes com perguntas parvas como a do fato e gravata? A Tracy interrompe-me, um bocado aflita: “Espera lá. Mas esse do fato e gravata não foi o Vance?”

    Em dois ou três minutos refazemos o puzzle. Nós vimos o que se passou. Os americanos viram o mesmo, mas filmado de um plano esquinado, e tão apertado que não permitia ver os jornalistas na sala. E agora já não podem ir tentar verificar porque a imagem integral já não está no ar: estão só meia dúzia de clips dos dois homens, com Trump a repetir que fez de Zelensky um homem muito poderoso, e assim como fez pode desfazer, até porque o outro nunca lhe agradeceu. E depois vê-se Zelensky a ser “expulso” da Casa Branca porque não agradeceu mesmo. E acabou. Há muitas maneiras de censurar a informação, e Trump foi o criador das fake news.

    O Jim foi o nosso Director de Projecto na época da clonagem de mamíferos, uns bons anos antes de nascer a Dolly, e nessa altura tivemos muito tempo para nos rirmos um do outro a respeito das nossas respectivas convicções. De cada vez que eu fazia toda a gente no laboratório rir-se às gargalhadas com mais uma belíssima descrição de grande detalhe ilustrativa de como os americanos eram uns parolos, ele tirava os olhos do microscópio onde estava a tirar os núcleos aos ovos e dizia-me, com um risinho maldoso, “Pois… se calhar devíamos ter pensado duas vezes antes de implementarmos o Plano Marshall[9], não é?”

    “Ó seu parolo, Portugal não entrou na Guerra, por isso não precisou do Plano Marshall.”

    Mas nesses tempos eu já nem ligava, porque tinha perdido a conta à quantidade de americanos, democratas ou republicanos, que quando eu os encostava à parede numa brincadeira qualquer me atiravam à cara com essa do Plano Marshall, como se a Guerra tivesse acabado ontem e o tempo a seguir ficasse parado. Aliás, a maior parte das pessoas nem nunca tinha ido a lugar nenhum da Europa porque diziam todos que era perigoso. Porquê? Foi o que me disseram. Há muitas doenças. Não há vacinas. Não se pode beber a água da torneira. Parolos. Eu já nem dizia mais nada. Ainda havia de ter que ouvir falar outra vez do Plano Marshall.

    Não estava à espera era que o Jim, na sexta à noite, pouco depois de me ver aparecer no Messenger, começasse a rir e dissesse, vindo de parte nenhuma,

    “Olha olha… o Plano Marshall!”

    Então o que era?

    Eu tinha começado a mandar vir sobre o Trump achar que a situação com a Ucrânia se resolvia directamente com o Putin, sem estarem presentes nem representantes da Ucrânia nem da União Europeia. E a graça toda, para o Jim, era a União Europeia. Não era só que o Trump, perante os americanos, não nos ligasse absolutamente nenhuma nem nos considerasse qualquer espécie de parceiros em qualquer espécie de frente, falando sempre como se nem sequer estivéssemos na NATO. Era pior. Era que, quando falava do armamento da União Europeia para apoiar a Ucrânia, a única coisa que o Trump dizia era que, assim como assim, o armamento que conseguíamos juntar para apoiar a Ucrânia era absolutamente ineficaz perante o poder do armamento russo. Mas, para nós, já estava a tornar-se, e ia tornar-se cada vez mais com o tempo, um dívida de tamanho tal que… que… que… (estas eram as partes em que o Jim parava para rir)… que no final nós não teríamos outro remédio senão virar-nos para a América para pedir, desesperados, que nos concedesse outro… outro… outro… (e agora o Jim ria cada vez mais)… “outro Plano Marshall, Clara! E sempre que eu oiço isto lembro-me de ti, e desato a rir. Pelo que te estou muito grato, porque aqui no South Dakota a pessoa não tem assim muitas razões para rir!”

    Jim, estás a gozar. Só podes.”

    Não estou. O gajo está sempre a dizer que a União Europeia vai acabar por ter que pedir-nos outro plano Marshall!”

    Lá acabámos por nos entender. O Trump diz isto ao povo americano mais do que uma vez por semana, é verdade. Aliás, ao que parece, é a única coisa que lhe diz sobre a União Europeia. Mas diz em entrevistas para pequenos jornais locais, para pequenas rádios estaduais que mal se detectam, os únicos microfones com maior audiência que lhe repetem essas palavras são os dos radio-shock jocks[10] como Howard Stern, todos assumidamente de direita, que toda a gente sabe que tanto poderiam estar a inventar aquilo como a repetir uma afirmação autêntica do Presidente – ou então são os dos Evangélicos, que até já falaram da Europa a implorar outro plano Marshall à América por causa das suas despesas com a defesa da Ucrânia num recente comício em Timber Lake, perto da propriedade do Jim.

    Finalmente, já muito tarde para mim, mas para eles não, consigo falar com o Dick.

    “Sabes o que é que isto tudo me lembra?”, pergunta-me ele, quando consegue, por fim, parar de bradar impropérios sobre a pouca-vergonha do espectáculo dessa tarde. “Lembra-me aquele filme de extra-terrestres que os nossos filhos adoravam quando eram adolescentes e que da primeira vez nós caímos no erro de ir os dois ao cinema ver com eles, acho… acho que se chamava só mesmo CHAOS, não estás a ver? Os Extra-terrestres alimentavam-se do caos para sobreviver e para procriar, só vinham à Terra pôr um ovo e depois iam-se embora, mas para que isso fosse possível precisavam de criar o caos a toda a sua volta… e iam criando cada vez mais caos, e destruíam tudo e absorviam o  caos por uma espécie de exoesqueleto e atrás deles não ficava nada… até que punham o tal ovo e partiam… e via-se a Terra da perspectiva deles, ao longe, toda dizimada mas ainda com grandes zonas azuis e verdes… e depois via-se o ovo a rachar e uma pata igual às outras a sair lá de dentro… que ia de certeza criar mais caos… e assim por diante. As pessoas tentavam tudo para resistir, mas era inútil, o mundo vivo não resistia ao caos.”

    “Que horror. Eu fui com vocês ver uma coisa dessas?”

    “Foste pois. Numa de Mãe, não é? Aquelas coisas que tu fazes.”

    “Tudo bem, osso ter ido. Mas não vi o filme. Devo ter estado quase todo o tempo de olhos fechados, porque não suporto esse género de porcarias. Já sabes como é. Depois tenho medo à noite.”

    “Pois, mas é o que o Trump anda a fazer. Deliberadamente. Diz uma coisa num dia, e o seu oposto no outro, e mente com quantos dentes tem na boca sempre que for preciso. Se calhar foi ele quem fez do Zelensky um homem muito forte? Alguma vez? Um homem que tomou posse no fim de Janeiro? Pelo amor de Deus, se alguém fez o Zelensky tão forte quanto possível foi o Joe Biden! Mas o Trump fala, sistematicamente, como se o Biden nunca tivesse existido. E é assim mesmo que os americanos começam a sentir-se. O homem faz batota em tudo, baralha tudo, já estamos a passar pela vergonha de ser a China a dizer que está a lutar pela sua grande prioridade de manter a ordem e a estabilidade no mundo, e as pessoas já nem percebem que estão a ser enganadas. Já pensaste bem nos minerais raros? O Trump fala deles como se fossem a coisa de que o americano médio mais precisa para melhorar a sua vida, e ainda por cima fala deles como se estivessem já para amanhã! A sério, Clarinha, eu sei, tu sabes: uma mina daquelas, em tempo de guerra, demora no mínimo dez anos a construir. Põe a América nas mãos da China, porque só os Chineses é que têm a tecnologia para exploração destas minas. E uma grande parte da mina vai acabar em território russo, e achas que os russos vão fazer o quê, colaborar… ou pilhar? E tudo isto é o sonho de um homem de 78 anos que adora exibir-se, pavonear-se, gritar, saltar, ou seja, parece que vai ter um enfarte a qualquer momento. E esta táctica do caos, da forma como ele a usa, vai enganá-las cada vez mais, porque já ninguém tem paciência para pensar.”

    “Olha lá, ao menos, logo a seguir à saída do Zelensky, houve um congressista republicano que escreveu no seu Facebook “I am ashamed of being na American today.” E recebeu logo dezenas de likes, todas de outros congressistas republicanos. Não foi?”

    “Foi?”

    A notícia não tinha passado em nenhum noticiário americano.

    “Mas pronto,” continuei eu. “Apesar de tudo, aquela indecência teve outras consequências positivas. Em vez de se limitar a ser neutro e a receber cimeiras, o Erdogan já anunciou que as Forças Armadas turcas estão prontas para patrulhar toda a extensão da fronteira Ucrânia/Rússia que ficar definida nestes acordos, no sentido de manter a paz, evitar abusos, e impedir mais transgressões invasivas. Certo? Era um papel muito chato que ainda ninguém se tinha oferecido para fazer, e olha: não me parece nada que o Putin queira meter-se com os turcos. Certo?”

    Esta notícia também não tinha passado nos noticiários americanos.

    “Também nós temos a nossa longa e feias história de censura,” suspira o Dick. “Basta pensar no Edgar J. Hoover e no Kennedy. Ah, pois, e na Marilyn. Estás a ver? Nós nunca saberemos quem matou estes dois, mas sabemos que a CIA sabe. Agora, com o Trump, a táctica principal é outra. Basicamente, chama-se FLOODING THE FIELD.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] A maior parte dos americanos não se indigna com nada desde a Guerra do Golfo. Os apoiantes de Trump acham tudo muito bem e não querem saber porquê, e os seus detractores já nem seguem as notícias para não se irritarem mais.

    [2] Isto, na América, é uma actividade absolutamente louvável. A maioria dos americanos engole pacificamente todas as fake news que possam aparecer nas redes sociais, enquanto outros tantos se informam do estado da nação seguindo o trabalho instável dos comediantes.

    [3] Eu e o Jim tínhamos alguns pontos de total acordo em comum. Éramos os dois únicos católicos do laboratório, o que fazia de nós as duas únicas aves raras que se manifestavam constantemente contra a pena de morte. Na segunda candidatura Clinton/Gore eu teria votado neles se fosse americana, obviamente – mas tanto o Jim como eu tínhamos um fascínio que só partilhávamos um com o outro pelo candidato republicano, um sujeito vindo do Kansas, como o Jim, exactamente com o mesmo sotaque que o Jim tinha, e ainda por cima com o mesmo sentido de humor. Depois de perder graciosamente para os democratas dedicou-se a ganhar imenso dinheiro em torno do lema “nunca consigo ganhar!”. Por exemplo, ia a guiar pelo meio do coração deserto do Kansas, parava para pôr gasolina, mas eles não aceitavam VISA, só aceitavam MASTERCARD. Dole virava-se para a câmara, encolhia os ombros, fazia o seu sorriso irónico, e repetia o estribilho “I just can’t win” – com o sotaque igualzinho ao do Jim. O Jim e eu desatávamos a rir, e os outros diziam-nos que não batíamos bem. Uns anos mais tarde, Bob Dole foi a figura de lançamento do VIAGRA na América – com a frase “So you thought I’d never win, huh?!” Eu já estava em Harvard, mas liguei logo ao Jim. Bastou-lhe ouvir a minha voz para nos desatarmos os dois a rir…

    [4] Anne Saba: “ETHEL ROSENBERG: A COLD WAR TRAGEDY”:

    [5] Os dos emigrantes italianos, chegados aos Estados Unidos em 1908, foram apanhados numa rusga subsequente a um assalto a uma fábrica e sapatos a 15 de Abril de 1920 no Massachusetts. Sempre protestaram a sua inocência. O filme SACCO AND VANZETI, com música de Enio Morricone e uma canção final imortalizada pela voz de Joan Baez, repõe a verdade sobre a manipulação do julgamento

    [6] Nome colloquial para a cadeira eléctrica.

    [7] Situado no Catar e com correspondents em todo o mundo, o canal tem dois escritórios principais, um em Doha e outro em Londres.

    [8] Todos os noticiários da Fox são de direita, e, portanto, amigos de Trump.

    [9] Baptizado com o nome do Secretário de Estado dos EUA George Marshall, o Plano Marshall foi o principal plano de apoio dos Estados Unidos para reconstrução dos países aliados da Europa depois da II Guerra Mundial. Em valores de 2020, teria correspondido a 132 bilhões de dólares.

    [10] Esta arte de chocar toda a gente pela radio tornou-se d tal forma popular que até já tem uma entrada própria no Cambridge Dictionary: “Um radio shock jock é uma pessoa que apresenta um programa de rádio em que frequentemente diz coisas que não são consideradas aceitáveis pela maioria das pessoas.” Howard Stern ganhou a sua coroa de gajo mais nojento da rádio depois e uma longa linhagem de percursores, como Rusty Humphries ou Mancow Muller. Ao pé deste género de gente, artistas de choque como Rush Linbaugh, vindos da extrema-direita para colonizarem a rádio, a televisão, e até a literatura, são apenas isso mesmo: verdadeiros artistas.

  • Notas do diário

    Notas do diário


    CERTIFICADOS I Todo o trabalho tem o seu saber. A certificação de um ofício (e o estudo com aproveitamento) é uma forma de arrumo. Se não houver batota, de separar o trigo do joio. Ora, exerci o ofício de jornalista entre 1991 e 2016 sem nenhum diploma, por tal não ser imperativo, letra de lei.

    Fiz o tirocínio com mestres (sem cursos de Jornalismo) e vali-me de uma vontade e à-vontade de contar histórias que me acompanham desde menino e moço. De então para cá sustento-me a guiar montadas e a pé a fazer o que sempre fiz: contar histórias. O critério é idêntico: seriedade e atenção plena ao interlocutor. Escrever livros é mais do mesmo. Podia ter cursado Letras ou Turismo. Poderei ser forçado a tal se assim me for exigido, tal como um dia tirei a certificação de técnico de exercício físico e uma especialidade em boxe, estas obrigatórias por lei para ser remunerado na actividade de PT.

    Não me encanitam os auto-didactas. Só me dá espasmos no esófago a concorrência desleal, a patranha, o cinismo do bom “colega” ou a exclusão boçal de quem dá o litro por fazer bem o Bem, que é justificar o valor recebido pelo serviço. Vale o raciocínio para os clientes, que sejam gratos pela dedicação ao que lhes é servido de bandeja.

    MIGRANTES I Lido todos os santos e profanos dias com migrantes. Ou melhor, imigrantes, pois são oriundos de lugares fora do burgo lusitano. No ramo dos tuks há marroquinos, argentinos, argelinos, bangladeshis, paquistaneses, indianos, brasileiros, angolanos, guineenses, cabo-verdianos, espanhóis de várias procedências, franceses e até um dissidente da América de Trump. Deve haver mais, mas não os contei. Também há famílias inteiras de ciganos no activo, sendo este um ramo da mercância de rua onde têm atávica experiência. Este melting pot dá um colorido ao já de si garrido andar das “carruagens”. O que leva os emigrantes a instalarem-se, dito por todos à uma, são os euros. E uma certa paz lusitana.

    No ramo paralelo dos carteiristas é esta mesma paz mansa que atrai. Afinal são detidos mas quase nunca deportados. Portugal acolhe e ao acolher sem crivo, encolhe. Aposto o dedo mindinho esquerdo em como no ramo dos tuks nem dez por cento dos habibis estudam a língua nativa, a História (onde também pulularam califas) e se convertem como apaixonados camonianos. Os camones e as suas carteiras aliviadas são o cânone. Pespegar um dichote qualquer e siga a Marinha. Ligar a estereofonia, o luzeiro e adejar as flores artificiais em troca de verdinhas. E ala pois Alá é grande. Por outro lado, deve ser tão mau o panorama de onde vêm que se sujeitam à diáspora. Um ou outro já emborca pastéis de bacalhau, bojecas e não arrota. Só postas de pescada, mas essas são toleradas porque o turista é pouco exigente e acha graça a passear por Lisboa como se andasse na Tailândia.

    OS DONOS DISTO TUDO I Quem manda no burgo? Vamos lá ver: Há o Estado e as suas instituições, corporações e companhias limitadas. Dado o passivo, o Estado obedece à UE, e aí mandam a Alemanha e a França. Costa late para a caravana passar. Voltemos ao burgo: Opus Dei, Maçonaria, Igreja, as sete famílias do grande capital e os seus contributos partidários. Os penetras novos ricos também ditam regras ao açambarcar o seu quinhão.

    A CS obedece ao Capital. Há que a comprar. Há as polícias e exércitos, a soldo e mando do Estado e das suas governações. Depois, há as ilusões dos outros mafiosos de que ao terem negócios obscuros e amealharem os seus milhões (lavados ou deslavados) mandam através da lei da bala e do suborno. Plata ou plombo. Há umas aves raras, Agostinhos da Silva e Joãos Césares, e um punhado de lúcidos insubmisos, que mandam sem mandar. Nem que seja pó caralho. A “melhor” forma de exercer e aplicar o poder é manter na ignorância, subjugar pela pobreza, esconder as verdades às marionetas e alimentá-las com circo e patranhas.

    PRÉ CAMPANHA I Estamos naquele impasse de venha o Diabo e escolha. Negar a existência do Mal, é imoral. Quanto ao Bem, entende-se o dar a mão à família e aos amigos. Que se o faça na Política é humano, mas não deixa de ser desfaçatez e abuso de poder. Entre a Camorra e qualquer organização mafiosa e os clubes, seitas e partidos a diferença está no método. Mata-se na mesma, se o inimigo faz dano. Recorre-se ao jogo sujo, à exposição de toda a sorte de actos e factos, com recurso à mentira, à coacção e agora à IA, esse recurso de cariz gótico. Valha-nos Deus se mais nada valer.

    POLÍTICOS I Hannah Arendt escreveu um ensaio sobre A Política e a Mentira. Como acreditar na política e em políticos? Ver para crer é um bom princípio. O que devia ser uma arte nobre é um lodaçal de falta de seriedade. A ideologia é de somenos (cada um vota e come o que gosta). Grave, gravíssimo, é o impacto da política na vida real e a dificuldade em encontrar bons políticos e políticos bons neste burgo mal frequentado. Um mau carácter pode ser um bom político, mas só para quem nele se filia, dele tira partido e lhe lambe as botas. O voto é o remédio da Democracia. É rara a Democracia que não redunde numa oligarquia. Tal como nenhuma Ditadura é boa. Que fazer? Estudar, estudar os programas, estudar os políticos, escrutinar e dar o voto em consciência. Mesmo em branco, o voto é relevante. Venham as eleições.

    COMUNS MORTAIS I No geral acho que sou um tipo porreiro. Por vezes, a roçar o ingénuo. Se me pisam os calos sou capaz de dizer qualquer coisa na justa medida do ataque. Porém, aceito criticas bem urdidas. Isto, a propósito de sacralizar os artistas. Exemplos comuns entre nós são as azias, as purgas e o comunismo do Nobel Saramago, que limpou o DN e as dedicatórias nos livros à esposa Isabel. Ou o cinismo e crueldades de Agustina. A arrogância de Lobo Antunes e de outros quinhentos. Os pavões e pavoas.

    A distinção entre o homem e a obra é um tema de peso. Neruda e a rejeição da filha macrocefala. Picasso, o misógino. Pelé, o promíscuo. Maradona, o drogado impostor e putanheiro. Celine e o anti-semitismo. Em todos os artistas há paradoxos, egos hipertrofiados e indomados, sobressaltos, causas por vezes radicais e injustas. O desgosto pode ser um laboratório para o mal. Virgínia dizia que não trocava um bom coração por uma cabeça dotada mas retorcida. Ou como dizia o tio do Peter Parker, com grandes poderes vêm grandes responsabilidades.

    CONTEÚDOS I Cada um de nós é uma consequência de aspectos, do mapa astral ao lugar (família, país) onde nasceu. Há aspectos marcantes como desaguar onde haja livros e o gosto por ler e dialogar. No meu caso uma avó professora e um pai alfarrabista.

    A minha avó era franciscana e purista com a expressão da linguagem. O meu maior orgulho era escrever redacções sem erros. A avó oferecia-me um docinho quando a redacção vinha limpinha. Fiquei como o cão de Pavlov. A salivar depois de dar ao gatilho. O meu pai já leu milhares de livros e tem o condão da filosofia. Quando falamos do rescaldo dos jogos de futebol é de xadrez e da arte da guerra que se trata. Um sistema de crenças deve ser revisto e rebatido. Embora defenda os Acratas, leio toda a sorte de ideologias, até o Mein Kampf e a cartilha de João de Deus. Há dias estóicos e outros tomado por Epicuro. Ou outros em que harmonizo o dever e o prazer. Ontem vi o filme sobre o George Foreman. O corpo pode ser forte, o coração de leão, mas as vitórias estão na cabeça.

    PAX, PAZ, PÁS I Levo 53 anos e alguns dias nas pernas, ou seja, tempo suficiente para dissertar sobre a paz como uma Miss Mundo. Desde o instante da inseminação na praia da Ursa até escorregar pra fora do loft uterino e ser instalado num par de berços entre a Coronel Marques Leitão e a Leite Vasconcelos conheci a paz da placenta. Talvez. Não sei nem nunca vou saber. Sei do dia em que realizei morar numa casa de possessos e na rua valer a lei do mais forte. O Cabanas, por exemplo, mais velho e mais encorpado, a jogar à bola dava cacetada de três em pipa. O Bernardo um dia espetou-me um soquete assim do nada durante uma jogatina (talvez por não dar tantos toques na chincha). Não reagi. Até porque gostava dele e da sua postura. O Joca, um puto estúpido, cravou-me um x-acto na palma da mão esquerda e quase me deixava deficiente. A ciganada andava sempre à coca dos nossos pertences e de nos aviar. Um dia, num raide, levei uma pedrada num olho. Hoje, dá para rir, eu aos gritos que tinha ficado cego. Durante anos comi mais do que aviei. Não entendia a violência. Em casa, por dá cá aquela palha, levava solhas, socos, carolos, insultos. Na rua, tinha que gramar com caceteiros e larápios.

    Tenho impressão que o trauma de ter partido o nariz num choque brutal me coibiu de pelejas mais acesas. A primeira vez que puxei da culatra foi à saída da catequese, quando um gajo me gozou e por instinto lhe preguei um directo. De tal ordem, que daí em diante passou a ser meu amigo ou coisa parecida. Na adolescência tive umas cegadas. Um dia, uns galfarros apalparam a Célia no comboio e inspirado no Balboa distribuí um arraial. Safei-me pelo inesperado de fazer frente a uma mão cheia de chico-espertos. Na faculdade repetiu-se a cena do conflito. Um idiota, que era o Artur, levou uma bolachada por conta de um rol de provocações. Em casa, levei carolos e insultos até quase à idade adulta. Depois, havia a violência psicológica. A rejeição e o rebaixamento. Imagino ser judeu, preto, cigano ou outra coisa qualquer. Ter ido à guerra. A escrita cedo ocupou o lugar da revolta. Meti-me no boxe para saber bater em caso de. Tudo dava azo a uma certa agressividade. Ser do Sporting, por exemplo. A paz é uma miragem. Depende de como reagimos ou não.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

    N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • Barcelona 1.3

    Barcelona 1.3


    Em Barcelona estou — e me confesso. Disseram-me, certo dia, que a cidade é uma festa contínua de Cultura e Futebol, e não duvidei. Tirei uns dias, como quem suspende o tempo entre trabalho e férias, com o fito de fazer Cultura — da verdadeira, a que se procura sem patrocínios nem favores — e, claro está, de ver futebol, esse último teatro das multidões.

    Agora mesmo, escrevo-vos sentado no Estadi Olímpic Lluís Companys, em Montjuïc, onde joga provisoriamente o Barça, que ficou sem Camp Nou enquanto o velho colosso se refaz, como se em Espanha até os estádios precisassem de renascimentos cíclicos. Aviso já que foi tudo pago pelo meu bolso, avião e estadia – que isso de viagens pagas para ver a bola, já sem falar em avenças, são coisas para o Montenegro.

    E foi justamente nesta bancada da imprensa, depois de ter visto a correr a ala gótica, medieval e barroca do Museu de Arte da Catalunha, entre turistas que não percebem a diferença entre um fora-de-jogo e um Lucas Cranach el Viejo, que me ocorreu uma ideia que se me afigura menos absurda do que parece à primeira vista: Portugal deve muito à Catalunha. Mais concretamente, devemos aos catalães a nossa Restauração de 1640. Se não fosse a revolta catalã que rebentou em Maio de 1640 — a dita Guerra dels Segadors, que os historiadores portugueses tão pouco lembram —, Portugal teria tido enormes dificuldades em sacudir o jugo da monarquia dual dos Filipes.

    (E começa o jogo; tive de contornar o cordão de adeptos benfiquistas, ladeados por duras colunas de guardas pretorianos da polícia de choque, e lá me enfiei estádio adentro, não sem dificuldade de encontrar o meu lugar; em todo o caso, encontrei o Lucas, o brasileiro que, no Barcelona, se dedica a escrever sobre as façanhas do Raphinha.)

    Continuemos com a História. Enquanto os exércitos castelhanos tentavam domar os rebeldes catalães, a conspiração em Lisboa aproveitou esta janela aberta. E lá se mandou um sicário às ordens dos Filipes, o Miguel de Vasconcelos, janela abaixo, e como um exército castelhano andava ocupado em manter Barcelona sob controlo, nas lusitanas terras pôde João IV ser proclamado rei e organizar a defesa.

    (Pronto! E por falar em defesa: a do Benfica já levou o primeiro, logo aos 11 minutos, pelo inevitável Raphinha, o desgraçado ex-sportinguista que, de repente, começou a meter bolas umas atrás das outras ao Trubin.)

    Enfim, sem aquela revolta catalã, os catalães estariam agora a falar catalão, uma língua que ninguém entende, a não ser eles — e eu estaria a escrever esta crónica em castelhano, que desconfio que, ao longo dos séculos, ficando o território de Portugal integrado em Espanha, o português acabaria reduzido a uma espécie de mirandês. E os brasileiros, como o Raphinha ali em baixo, em vez de ‘oi’ andariam a dizer “hola”.

    Mas a História é uma grande mestra de ironias, e não dá sem depois cobrar. A Catalunha ficou presa à Espanha, renegociou autonomias, foi castigada, renasceu, tornou-se a mais rica das regiões espanholas, depois tentou a independência e falhou, mas sempre com a altivez de quem se crê melhor do que o vizinho. Já Portugal, que fez do Atlântico o seu caminho, arrisca-se agora a não ser mais do que uma Galiza com nome próprio, ou uma Estremadura com praias. Digo-o sem despeito, mas com inquietação: há algo na comparação entre a Catalunha e Portugal que me obriga a reflectir.

    (GOLOOOOOOO! Otamendi, na marcação de um canto: renasce a esperança…)

    Este golo — e mesmo uma improvável, nesta altura, reviravolta na eliminatória — não nega uma evidência: a Catalunha, sendo uma região, perdeu a esperança de ser um país; e Portugal, sendo um país quase milenar, arrisca sempre a ser uma mera região, quase ultraperiférica numa Europa de burocratas.

    Vejam-se Lisboa e Barcelona: as infra-estruturas, os projectos económicos, a ambição industrial, a cultura, os majestosos espaços públicos, a dinâmica social — aliás, logo que cheguei, no domingo passado, o dinamismo das manifestações fez-se sentir, pela noite adentro. Mesmo sabendo-se que Barcelona é um ponto turístico de excelência e de abusos — que se há-de fazer se se tem Cultura, monumentos, gastronomia, praias, variedade de espaços, rede de transportes eficiente? —, a capital da Catalunha projecta-se como uma cidade global.

    Já Lisboa cinge-se a disputar com o Porto o título de melhor cenário para selfies e pacotes turísticos. E se os catalães olham para Madrid com desconfiança, os portugueses parecem olhar para Bruxelas com submissão, como se fosse ela a nova corte filipina, de onde se esperam verbas em vez de se afirmar soberania.

    (Olha-me esta! Golo do Barcelona, com a defesa do Benfica a deixar que o miúdo Lamine Yamal apanhe uma bola de um livre mal marcado, flicta para a esquerda e atire a contar para o cantinho do Trubin…)

    Resta-me, portanto, conformar-me com este resultado. Ou resultados: o do futebol e o de Barcelona se impor a Lisboa — que o fair play não deve existir somente na ludopédia.

    Mas vamos lá equilibrar isto, embora tenham sido os nossos antepassados a legarem-nos essa vantagem. Os catalães, coitados, têm um idioma próprio que ninguém entende, enquanto a língua portuguesa é um império cultural de 265 milhões de viventes, se bem que quase sempre alheios à origem da fala. Mas, confesso: falta-nos agora aquela pulsão de querer ser maiores do que parecemos ser, sem pedir licença a ninguém. Até no futebol sinto isso, quanto mais na vida social e política de Portugal. Aqui, por exemplo, em Montjuïc, sinto um estádio velho, como o Estádio Nacional no Jamor, remendado para servir de casa temporária ao Barcelona, mas cheio de orgulho catalão. Em Portugal, quantas vezes parece que nem casa há?

    (Mais um do Raphinha! Mas que é isto? 3-1 e nem sequer chegámos ao intervalo. Agora, nem com um milagre…)

    E todavia, não quero esquecer 1640, porque aí vencemos: eles tentaram largar Madrid, e falharam; nós largámos e ganhámos em definitivo esse direito depois da estrondosa vitória na Batalha dos Montes Claros em 1665. Foram precisos 25 anos, mas vencemos!

    (Intervalo… descansemos.)

    Portanto, a Catalunha falhou, e Portugal conseguiu, embora ache que estejamos a perder a soberania aos poucos com uma Europa de políticos oligarcas que se perpetuam em torres de marfim em Bruxelas. Mas o relógio não pára…

    E assim aqui estou com esta Da Varanda de Barcelona, especialíssima, não como quem disseca e profetiza desgraças, mas como quem regista o que vê: no relvado, os jogadores do Benfica mostram-se sobretudo resignados, como quem já só cumpre um protocolo diplomático antes da rendição. Há um corpo presente em campo, é verdade, mas falta a alma.

    Esta talvez seja a mais dolorosa metáfora para Portugal, enquanto, lendo as notícias de Lisboa, o Governo de Montenegro definha no Parlamento. Estamos, existimos, marcamos presença no concerto das nações — e na Liga dos Campeões —, fazemos discursos e chutamos umas bolas, mas, no fim, parecemos ter perdido a capacidade de ganhar ou, pelo menos, de lutar por algo mais além do aceitável ou do confortável.

    Bem se pode dizer que a Catalunha e Barcelona estão sempre a falhar, mas não desistem; e isso é, talvez, o que os faz serem vencedores no futebol. Não desistiram em 1714, quando a cidade caiu às mãos dos Bourbons; não desistiram em 1939, quando o franquismo sufocou os seus gritos de autonomia; não desistiram em 2017, quando os tribunais e a polícia impediram o seu referendo de independência. Há, aqui, uma persistência que impressiona, e que só se explica por uma auto-estima colectiva que, mesmo na derrota, os mantém de cabeça erguida.

    E nós, portugueses? A nossa auto-estima arrumou-se na gaveta dos Descobrimentos, e nem sequer se encontra num museu, porque nos envergonhamos de um passado colonialista, como se não tivéssemos nascido de povos colonizados e colonizadores. Nem o nosso passado nos vale no presente.

    (Lá em baixo, o Barça desacelerou, e o Benfica porfia, mas sem grande garra; a eliminatória está decidida.)

    Mas não se pense que esta crónica é um manifesto catalanista. É, antes, um manifesto português, escrito a partir de Montjuïc, numa bancada fria, a olhar para um jogo já perdido. Mas se há coisa que aprendemos em 1640 é que há momentos em que, mesmo sem recursos, sem apoios externos e com probabilidades mínimas, é possível mudar o rumo. Mas não será hoje… Ou melhor, não foi hoje, porque o árbitro acaba de dar a partida por terminada após dois minutos de descontos. Valeu pela visita…

    Barcelona continuará a fazer o seu caminho, com ambição e orgulho. Lisboa — e o Benfica — precisam de acordar, de uma vez por todas, para o facto de que não basta viver da memória, dos discursos ou das verbas europeias. Um país e um clube não se sustentam apenas com boas intenções e cartões-postais. E se quisermos, como em 1640, ser donos do nosso destino, talvez seja tempo de voltarmos a acreditar que o impossível não é uma sentença, mas um desafio. E trabalhar um bocadinho com mais afinco e determinação.

  • Os encarniçados

    Os encarniçados


    O Sol é para todos, mas não o tapemos com uma peneira. O privilégio de estar aqui (a banhos), de charuto na mão esquerda, enquanto o indicador direito vos escreve, é, em boa parte, fruto do meu trabalho. Não os recebo, aos puros, dos meus amigos castristas. Volta e meia recebo um charuto de amigos que sabem ser este o meu prazer mais excelso, a par de celebrar o Amor carnal e espiritual.

    Devo aos genes, a uma avó professora, ao acaso feliz, a amizades do Caminho, a conjugação de valorizar o empenho como forma de obter o justo retorno do que quer que seja e me apaixone. Não nasci em berço de ouro, mas nos verdes anos nunca faltou nada, a não ser a presença afectiva dos meus imberbes pais. Talvez essa carência prematura dite a minha busca de prazeres, como deve haver outra razão qualquer para padecer de uma curiosidade insaciável.

    Tudo me interessa, da vida dos santos ao mais ínfimo detalhe da tola de bandidos. Faço um exercício diário de reflexão ao espelho e escrevo coisas assim:

    ORDEM E PROGRESSO I A demanda e a debanda de brasileiros que se instalam em Portugal afina quase sempre pelo mesmo diapasão: escapar da violência e da corrupção. Os nossos patrícios de língua preferem a Pátria de Cabral à terra amaldiçoada do pau brasil. Juca Chaves determinou que o Brasil não ia para a frente por terem cortado o pau do índio. Os euros também contam na decisão, perante a fraqueza do real. Há brasileiros e brasileiros nesta demanda. Mas a maioria não traz doutoramento, a não ser na universidade da vida. Os crânios do Brasil mais depressa se instalam nos EUA ou na Austrália. Dá pena, um país tão sobredotado pela mãe Natureza ter pais tão medíocres. Não foi por impulso que D. Pedro escolheu o Brasil. Eu, se fosse parido lá, não o trocava. Fazia de Paraty ou da chapada dos Veadeiros a minha eterna morada. Deixava crescer a barba. Lia e escutava Machado de Assis, Clarice, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, Vinícius, Jobim, Chico, João Gilberto, Betânia, Drummond de Andrade, Veríssimo, Amado… amava a minha pátria e agradecia ao Cabral.

    SANTOS I O meu santo padroeiro é o Fernando de Bulhões, arrebanhado pelos italianos de Pádua e santificado como António. Devo-lhe a recuperação de todas as coisas perdidas. Oro com fé e nunca me falha. Só não lhe devo a felicidade conjugal perpétua com uma das três nubentes do meu currículo porque não me deu para lhe pedir o quesito. A felicidade, porém, depende do que faço por ela. Os santos ajudam na curva descendente. Tenho um lema: todos os dias arrancar um sorriso ou gargalhada da consorte. O humor não chegou para lavar e durar noutros enlaces porque não tinha que ser mais do que foi. Santo é quem abdica das suas paixões e dá a vida por uma causa ou causas. Sem lixar o próximo. O santo é por natureza um milagreiro. É um milagre ainda haver santos.

    BANDIDOS I Eu gosto de bandidos que são bandidos porque há bandidos eleitos e venerados. Esses bandidos que são bandidos à margem das leis feitas por bandidos não aceitam que os tomem por lacaios e por parvos. Dillinger, Pancho Vila, Ernesto Guevara, Zapata, Makhno. Alguns a quem chamam de bandidos e assassinos são guerrilheiros imbuídos de ideais elevados que busca(ram) um mundo melhor, livre de bandidos como Nixon, Fulgêncio, Trump ou assim. Pinto da Costa foi um bandido e se eu fosse do FCP admirava-o. Teria um altar no WC. Faria parte da milícia pretoriana. Estou a exagerar. Mas gostaria dele. Há, houve e haverá bandidos em todos os lados, clubes, religiões, seitas, empresas. À solta, odiados e venerados. Para algumas mulheres eu sou um bandido arranca-corações. Onde é que isso já vai… Mas se calhar é por dizer estas coisas.

    PROFECIAS I Os açorianos riem-se da cagufa dos alfacinhas quando a terra treme. Habituados a viver debaixo de provações e abalos, um sismo moderado, um vinho entornado, não é nada. Ontem, estava eu no mictório, quando se deu a sacudidela de 4.7 ou 4.2. para bater certo com a falsa notícia de que pela última vez o pintinho assustava os mouros de Lisboa. Não precisei de sacudir as miudezas. Foi divertido. Mais tarde ouvi o Moedas e o noticiário da quase catástrofe. Tal como o analista sismólogo a classificar o fenómeno de “interessante” e estabelecer um paralelo curioso com outros paradeiros sacudidos como Santorini fruto de partilharmos o globo terrestre. De facto, na partilha é que está o ganho. Se deixassem de haver competições e troféus na esfera terrestre como seria? Um tédio, certamente, para quem aprecia a agitação.

    Estas pequenas coisas levam-me a pensar que sou um privilegiado. Nada me é dado de bandeja. Nem estas crónicas são feitas em troca de pilim. Recebo em géneros. É o meu género. Os encarniçados, descontentes, que só espumam e lamuriam, entediam-me.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

    N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • Barcelona 0.1

    Barcelona 0.1


    Cheguei atrasado à Varanda da Luz – só se justifica ficar aqui escrito por ser uma crónica, e não uma notícia, porque só o raro é notícia. Nem vi a águia a voar e perdi todo o ritual que marca o início das grandes noites europeias. Que seja: promete chuva, mas nada como aquele dilúvio do inglório 4-5 de há um mês e meio. Interessa, sim, dizer que estou confiante. Hoje, há qualquer coisa no ar. Talvez seja por causa do Bruno Lage estar de volta, e o futebol ter sempre um fraco por histórias de redenção.

    (estranhamente, o estádio não está cheio, não sei se pelo preço dos bilhetes ou pela semana do Carnaval ter esvaziado Lisboa)

    Ou talvez seja, para criar hipóteses absurdas para justificar o meu optimismo, por ter avistado há pouco um adepto, atrasado como eu, com uma camisola do Poborsky, o que só pode ser um sinal de que esta noite terá algo de mágico. Ou ainda por ter ouvido um senhor hoje no café dizer que, em vésperas de jogos grandes, quando sonha com um golo de calcanhar do Benfica, a vitória está garantida. Ou, vá-se a ver, por ter esta tarde visto um tipo engasgar-se a beber um fino quando assistia à antevisão do jogo na CMTV, e dito, quando recuperou: “Isso foi um presságio. Mas não sei é se bom ou mau”.

    Enfim, sinais não faltam. Se resultam em golos, logo se verá.

    Em todo o caso, temos aqui um problema: é que o meu atraso custou-me caro. Esgotou-se o farnel. Nem a pão e água estou. Pensando bem, nem é de todo mau – há semanas que ando a adiar uma dieta, e talvez esta seja a deixa que precisava.

    No relvado, tudo calmo por agora. O Barcelona pode não ser o colosso de outros tempos, mas continua a ser adversário de muito respeito. Troca a bola com aquela paciência estudada, como quem acredita que mais cedo ou mais tarde vai encontrar um buraco para ferir. Mas hoje não quero sofrer. Basta o que eu vou sofrer na próxima semana – e mais não digo por agora…

    (boaaaaaa… cartão vermelho para o Pau Cubarsí, que rasteirou um afoito e isolado Pavlidis; e quase que dava o bónus de penálti)

    Mais confiança. Está no ar, digo eu, uma oportunidade de ouro. Vão ser quase 70 minutos em superioridade numérica. Sei que ainda há muito jogo pela frente, mas a minha intuição não me engana: hoje pode ser uma daquelas noites em que a Luz se transforma num inferno para quem vem de fora.

    Agora é não facilitar – daqui é fácil de dizer. O Benfica tem de fazer valer o homem a mais, e nada melhor do que marcar já, ou daqui a cinco minutos, ou a dez, ou quando calhar: tem é de marcar, que isto não acontece todos os dias.

    Porém, estranhamente, enquanto denoto a incapacidade de o Benfica sufocar o Barcelona – as equipas portuguesas jogam contra o Barcelona ou o Real Madrid sempre com mais medo do que o Leganés ou o Osasuna –, começo a fraquejar no entusiasmo. Conheço este filme: tantas vezes já vi equipas reduzidas a dez crescerem dentro do jogo, das tripas fazerem coração, enquanto a equipa em vantagem numérica hesita, falha passes, exibe demasiadas cortesias no momento do remate, e contenta-se em trocar bolas como se houvesse um prémio para posse de bola estéril. E os adeptos querem é golo, nem que seja aos baldões.

    (para estragar a festa, e o Benfica apanhar uma valente e justificada multa da UEFA, os tontos dos No Name Boys, ou quem sejam eles, lançam tochas e outros artefactos; nunca compreendo a razão de as direcções dos clubes permitirem estas diatribes)

    Lá em baixo, não estou a ver grandes melhorias – e, na verdade, o jogo está equilibrado, com o Barcelona a ganhar até cantos e a fazer alguns remates. Vou ter de me concentrar uns minutos a assistir ao jogo para ‘meter’ energias nesta malta para que cheguem ao intervalo em dupla vantagem numérica: jogadores e golos.

    (pois bem, ou mal, termina o primeiro tempo, e só há vantagem em jogadores, e não em golos…)

    E recomeça o jogo. Entretanto, a fome aperta. Já parece que me cheira a bifanas. E começo a convencer-me de que, se o Benfica não marcar nos próximos cinco minutos, terei de reavaliar a minha relação com a dieta. Tento distrair-me com o jogo, mas a combinação de estômago vazio e nervos em alta não está a ajudar. O Barcelona, mesmo com dez, começa a ter mais bola, e eu começo a ver fantasmas. Isto de ser benfiquista é viver, em constância, entre o aconchego do sonho e o medo do trauma.

    Não sei se os jogadores são muito dados a palestras, nem se o Bruno Lage tem queda para prelecções entusiásticas. Mas, às tantas, devia ter pedido ao ChatGPT para lhe compor um discurso onde se clamasse que a História pode ser escrita também com os pés. E que esta noite o Benfica não joga somente para ultrapassar o Barcelona, mas para dar a um país cansado um vislumbre de grandeza, um motivo para acreditar que ainda há feitos que engrandecem, para além daqueles que envergonham.

    Portanto, quando tudo à volta parece um pântano, onde se afundam valores e esperanças, eles e o futebol são a tábua de salvação. Eu sei que é filosofia barata, mas com falinhas e bolinhos se enganam os tolinhos.

    (mas que lindo serviço nos fez o António Silva: falha um passe e o ex-sportinguista Raphinha marca; isto só visto)

    Lá se vai o ‘meu discurso’ para emplogar jogadores. Aquele paleio de que devem consciencializar-se para jogarem não pelo salário ou pelo prémio de jogo, ou pela progressão na carreira ou por estatísticas pessoais – que devem jogam, sim, para resgatar um orgulho que se tem esbatido entre manchetes de escândalos e o cansaço de um país que já nem se surpreende com nada. Jogam porque, entre o golfe do Montenegro, as avenças e o teatro habitual dos poderosos, o povo precisa de alguma coisa que seja só emoção e verdade – e o futebol, no seu estado puro, ainda pode ser isso.

    Agora, está a ir esfumar-se uma noite glorisa..

    Vamos lá! A História exige coragem. E a questão, como sempre, é se há coragem suficiente para não se deixar adormecer pelo medo, para não se contentar com a mediocridade, para não hesitar quando for preciso arriscar. Porque o medo de falhar muitas vezes pesa mais do que a vontade de vencer – e já vimos demasiadas equipas portuguesas a jogar contra colossos com um respeito que roça a subserviência. A História não se faz com medo.

    E eu a encher já chouriços…

    Agora, o pior não é perder. Perder, todos perdem alguma vez na vida. O pior é perder sem ter dado tudo, sem ter lutado, sem perceber a grandeza da ocasião. E temo que seja isso que me arrisco a assistir esta noite, aqui na Luz: contra um Barcelona reduzido a dez durante 70 minutos e sem o Benfica capaz de assumir o jogo, sem a ambição crua e visceral que transforma uma equipa boa numa equipa histórica. E o futebol não perdoa àqueles que hesitam, e a História muito menos.

    (lá em baixo, ninguém com um rasgo de talento; e o guarda-redes polaco, cujo nome não sei escrever e muito menos pronunciar vai dando conta do recado)

    Caminha o jogo para o fim – e, pela segunda vez, o raio do Raphinha fez das suas. Mais um murro no estômago, mais um lembrete cruel de que quem não quer ganhar acaba sempre por perder.

    E pronto: apito final. Saio daqui da Varanda da Luz com fome e com azia. Tudo mau. E esta crónica tornou-se simplesmente um repositório de filosofia barata e de frustração. Para a semana, lá estarei em Barcelona – mas acho que só lá vou para fazer turismo…

  • Haing S. Ngor: o não-actor acidental

    Haing S. Ngor: o não-actor acidental

    1. TERRA SANGRENTA

    Em temporada de Óscares, quero escrever sobre um “actor” que levou para casa uma dessas estatuetas douradas. E, justamente no dia em que esta crónica é publicada, assinalam-se 29 anos desde que Haing S. Ngor ‘deixou’ Hollywood. Mais precisamente, a 25 de fevereiro.

    Mas para bom entendedor, meia notícia basta.

    E então comecemos pelo filme Killing Fields, que em português tem o titulo de Terra Sangrenta.  Foi produzido em 1984 e é pelo qual o protagonista deste texto é conhecido. A obra venceu vários Óscares e recebeu muitos elogios da crítica.

    Vejamos a sinopse:

    Sydney Schanberg (Sam Waterston), repórter do The New York Times, vai cobrir a guerra civil do Camboja. Lá torna-se grande amigo de Dith Pran (Haing S. Ngor), tradutor e também jornalista.

    Juntos testemunham atrocidades, tragédia, loucura e esperança.

    Schanberg volta para casa e ganha um importante prémio de jornalismo pela cobertura que ambos fizeram, enquanto o seu amigo Dith Pran encara um triste destino no país agora comandado pelos Khmer vermelhos: torna-se prisioneiro dos campos de morte, após não ter ido com a equipa para os Estados Unidos. Mas Shanberg faz tudo para voltar a vê-lo…

    Este filme era aparentemente difícil de vender e de filmar, não sendo óbvio os estúdios aceitarem a priori.

    Mas havia algo de inevitável nele. Um argumento realista, uma história na qual o horror não era fabricado, mas sim reflectido num espelho sujo de sangue.

    Bruce Robinson, o argumentista entregou-o ao produtor David Puttnam, que percebeu imediatamente que tinha algo valioso nas mãos, mas não seria fácil encontrar um realizador adequado para o filme.

    Vários foram equacionados, entre eles Costa-Gavras, mestre e veterano do thriller político, que parecia a escolha óbvia.

    Dizem que Stanley Kubrick mostrou interesse na história, mas depois desistiu. Não porque fosse impossível, mas porque a brutalidade dos factos dispensava qualquer artifício cinematográfico para o autor.

    Era preciso alguém que compreendesse que esta não era apenas uma história sobre guerra, mas também sobre amizade e sobrevivência no inferno dos campos de trabalho, já que tinha os ingredientes principais para a culinária de que é feito o cinema americano.

    E então apareceu Roland Joffé, realizador pouco conhecido na altura, que vinha do mundo da televisão.

    Joffé não queria apenas fazer um filme de guerra, com uma denúncia política. Seria, acima de tudo, um retrato da amizade entre dois homens de dois mundos distintos, ligados pela paixão à verdade, indo assim ao encontro das ideias do argumentista.

    Mas Hollywood queria nomes sonantes.

    Roy Scheider, Alan Arkin e Dustin Hoffman mostraram interesse, mas constava que Puttnam e Joffé já tinham Sam Waterson em mente.

    Os estúdios ainda pressionaram, desconfiados da escolha, mas o produtor e o realizador responderam deixando um aviso de que as filmagens seriam perigosas e não seriam para qualquer um.

    Se Waterston já era uma aposta arriscada, Haing S. Ngor seria uma loucura arrojada, no entanto os estúdios aceitaram.

    A Tailândia serviu de cenário para o filme, já que tem muitas semelhanças territoriais. O peso da história ainda se fazia sentir ali, e as autoridades tailandesas compreenderam a importância de se fazer um filme como aquele.

    Viram essa acção como um testemunho, uma forma de garantir que o mundo não esquecia aquela guerrilha.

    Coisas da política.

    Foi um filme caro. A cena da evacuação de Phnom Penh, por exemplo, precisou de 3.000 pessoas que não eram apenas figurantes. Muitos deles, eram sobreviventes da tragédia.

    A película ainda ardia por aquelas bandas.

    Puttnam, que produziu The Killing Fields, nunca teve dúvidas. Considera-o o seu melhor filme.

    O público e a crítica concordaram, tendo gerado uma receita assinalável.

    O final é inesquecível.

    The Killing Fields distingue-se ainda pelo seu uso consciente de técnicas cinematográficas que amplificam o realismo e o impacto emocional. A fotografia de Chris Menges, vencedor do Óscar, utilizou luz natural e cores terrosas, criando uma atmosfera densa, parecendo até um pouco televisiva para os padrões da altura, quase documental.

    Mas Joffé vinha da televisão, para o bem e para o mal. 

    Na cena em que os jornalistas esperam ajuda americana, os longos planos-sequência permitem que o espectador experimente uma certa ansiedade inabitual, sentindo o peso dos momentos sem cortes artificiais. Essa adrenalina também se faz sentir nas cenas em que Dith Pran tenta sobreviver aos campos de trabalho, não sucumbindo — como muitas vezes acontece em filmes deste género — ao lado mais espectacular do entretenimento.

    O som desempenha um papel crucial, com a banda sonora minimalista de Mike Oldfield a contrastar com o som diegético intenso — explosões, tiros, gritos — sublinhando a tensão constante. Foi uma escolha inesperada.

    Em suma, o filme evita ritmos frenéticos, optando a edição  por cortes lentos que reforçam o impacto emocional, especialmente nas cenas de separação e sofrimento, privilegiando enquadramentos que isolam os personagens, simbolizando a solidão e o desespero, e planos austeros que evidenciam a desolação dos campos cambojanos.

    A ausência de artifícios estilísticos confere autenticidade, equilibrando entre uma estética algo fria e uma narrativa profundamente humana, tornando-se um marco do cinema político e humanitário.

    Nem parece um filme de Hollywood.

    Fade.

    2. O JORNALISMO

    Agora baralhemos o jogo para ter mais piada.

    Houve um tempo em que a palavra ‘genocídio’ era um corte — uma fissura no discurso que exigia pausas para respirar. Hoje, tornou-se um fragmento descartável, um artefacto linguístico que circula incessantemente, sem jamais se fixar. Uma palavra que fica bem e que, pelos vistos, não se percebe bem o que traduz. 

    The Killing Fields retrata o horror dos Khmer vermelhos, mas a sua ressonância ultrapassa o tempo e o território: poderia ser qualquer fronteira, qualquer conflito ou arquivo digital em que o sofrimento é armazenado, etiquetado, diluído e, sobretudo, desrespeitado. 

    A brutalidade de Pol Pot — que não aparece directamente mencionado, mas que está omnipresente no filme — não é uma relíquia: é o espelho deformado de uma contemporaneidade que, ao rejeitar aparentemente os extremos, os reproduz com uma nova sofisticação.

    Aparentemente, a brutalidade hoje é mais descomprometida, mas só na aparência. Uma guerra é uma guerra.

    Os Khmer vermelhos aboliram o indivíduo pelo excesso de controlo; hoje, e para fazer uma analogia, elimina-se pela saturação.

    O conhecimento já não é extinto pela força, mas pela redundância.

    No Camboja, bastava ostentar-se um par de óculos para se ser condenado à morte; hoje, basta um desvio do discurso predominante para se ser apagado, sobretudo quando a doença aperta.

    Não por censura explícita, mas por dispersão — um desaparecimento elegante entre fluxos intermináveis de dados cada vez menos de tabuleiro, inseridos num xadrez cada vez mais complexo.

    A terra que pertencia ao povo tornou-se, agora, o espaço simbólico que pertence à cloud, na qual o indivíduo é fragmentado, redistribuído e finalmente… Esquecido.

    The Killing Fields é menos um retrato histórico do que um ensaio fílmico sobre a vulnerabilidade da memória. O jornalismo que Schanberg e Pran representam não é apenas um acto de coragem, mas de resistência ontológica, enfrentando o esquecimento como destino inevitável.

    O filme recorda-nos que a verdade não desaparece apenas sob regimes totalitários; desaparece quando a sua velocidade de circulação a impede de ser compreendida. A informação, muitas vezes não rima com o humano. 

    Hoje, o jornalista de um órgão mainstream já não desafia o poder; depende dele. Dorme na mesma cama cujos lençóis parecem estar à vista, onde os cobertores já não protegem a audiência, aquecendo-a.

    O jornalista deixou de ser o observador incómodo para se tornar, muitas vezes, o marketeer cúmplice do poder, ou vítima da saturação de dados.

    A narrativa jornalística deixou de ser uma construção lenta e dolorosa para se tornar um reflexo instantâneo, tão rápido que se desfaz no mesmo momento em que surge.

    Não quer dizer que aquele mundo fosse melhor e que o jornalismo salvasse fosse o que fosse, mas a ética ganhava mais Óscares. É fundamental não se perder de vista a História, incluindo a do Cinema. Mesmo que tenha sido feita, como é normal, pelos vencedores e que até haja muitas Histórias para confrontar.

    Um bom filme é sempre intemporal. E pode ultrapassar todas as condicionantes. Nunca se sabe.

    Nos anos 70, para muitos profissionais, o jornalismo era uma arte lenta e meticulosa, movida pela obsessão com a verdade factual.

    Repórteres como Schanberg, retratado em The Killing Fields, arriscavam a vida para documentar realidades que o poder preferia ocultar, sobretudo o estado-unidense que também aqui é posto em causa, mostrando uma realidade vulnerável e mentirosa.

    A informação era escassa, preciosa, e a construção de uma notícia envolvia tempo, investigação rigorosa e confrontos com a censura e o silêncio.

    Hoje, talvez o jornalismo seja mais um reflexo instantâneo, moldado pela velocidade e pelo volume. As redes sociais ditam a agenda, e o que outrora exigia dias de apuramento, agora dissolve-se em segundos, num ciclo contínuo de headlines efémeras.

    Mas, paradoxalmente, e de acordo com o Comité para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), 2023 foi um dos anos mais mortíferos para jornalistas, com 99 profissionais mortos. É o número mais alto desde 2015. Em contraste, nos anos 70, o número de jornalistas mortos era significativamente menor, ainda que os dados dessa época sejam mais escassos e menos sistematizados.

    Nunca nada é só uma coisa e a percepção engana.

    Fade.

    3. A REALIDADE

    Haing S. Ngor não era um actor. Pelo menos, não no início. Nunca quis ser estrela de cinema. Nunca sonhou com Hollywood. Mas o destino colocou-o lá. E ele fez história.

    Nasceu no Camboja, em 1940. Cresceu num país aparentemente tranquilo. Tornou-se obstetra. Salvava vidas e acreditava no futuro.

    Em 1975, o regime de Pol Pot tomou o poder.

    Quando os soldados dos Khmer vermelhos chegaram, Haing S. Ngor escondeu a sua historia. Se descobrissem que era médico, seria morto. Rasgou os diplomas e enterrou os instrumentos cirúrgicos. ‘Deixou’ então de ser médico e tornou-se prisioneiro do regime.

    Foi enviado para os campos de trabalho. Lá viu o horror, a fome e a tortura. Perdeu a mulher que estava grávida e que morreu porque ele não podia ajudá-la; caso o fizesse, descobririam que sabia de medicina.

    Morreu nos braços dele.

    Ngor sobreviveu contra todas as probabilidades. Passou quatro anos no inferno, mas conseguiu fugir em 1979 para a Tailândia e depois para os Estados Unidos.

    Tentou reconstruir a vida em Los Angeles.

    Trabalhou como tradutor, mecânico, tudo o que aparecesse, até que foi parar a um casting de um filme sobre o seu país.

    Roland Joffé, o realizador queria um sobrevivente. Alguém que conhecesse essa realidade e que não tivesse de fingir.

    Haing S. Ngor fez o casting impressionando toda a gente e ganhou o papel de Dith Pran. A experiência do médico, não era muito diferente da do jornalista que iria encarnar, tendo até muitas coincidências.

    A realidade é sempre o melhor actor da realidade.

    Foi a primeira vez que ‘representou na vida’, mas a performance foi arrebatadora e quando o filme estreou, o mundo ficou em choque com a realidade anunciada e a credibilidade da obra. Sobretudo Ngor: fascinava pelos silêncios nada comuns para Hollywood.

    Ganhou o Óscar de Melhor Actor Secundário em 1985 e foi o primeiro asiático a vencer nessa categoria. O segundo na história dos Óscares.

    Mas o prémio não era só dele. Frisou-o bem. Subiu ao palco e dedicou a vitória à mulher e à filha que morreu antes de nascer.

    Haing S. Ngor usou a fama repentinamente adquirida para denunciar o regime de Pol Pot que ainda se mantinha nesse período, embora  em guerrilhas com o Vietnam no seu próprio território.

    Continuou sempre a falar sobre o massacre e escreveu um livro.

    Hoje, essa tragédia é considerada a maior em número da História conhecida e documentada, tendo esse regime chacinado 25% da população.

    Ngor criou várias fundações para ajudar refugiados e nunca deixou de se sentir um sobrevivente.

    Ainda fez outros filmes pouco relevantes, mas nunca quis ser apenas actor.

    Foi a voz dos seus compatriotas anónimos.  

    O seu percurso — de obstetra a prisioneiro, de sobrevivente a estrela acidental — é a narrativa que o cinema contemporâneo raramente consegue recriar, uma que não precisa de artifícios para ser devastadora.

    Talvez conheçamos melhor Dith Pran papel que ele ‘representa’ que o próprio Ngor.

    O jornalista cambojano, como aparece numa nota no fim do filme, tornou-se fotógrafo do The New York Times. Uma recompensa armadilhada, se pensarmos na metamorfose que o jornalismo que Ngor acreditava veio a sofrer.

    Fade.

    4. THE END

    Em 1996, a tragédia voltou à casa do médico.

     

    Três homens aproximaram-se do seu carro e disseram que era um assalto, mas ele recusou-se a dar o fio de ouro que tinha ao pescoço, no qual guardava a imagem da mulher.

    Deram-lhe um tiro na cabeça e morreu.

    A polícia disse que foi um crime banal como muitos outros naquela época.

    Mas muitos duvidaram.

    Ngor tinha inimigos, continuava a denunciar os Khmer vermelhos. Sabia demasiado, tal como no Camboja, e isso podia ser fatal em qualquer circunstância. Algum tempo depois, os assassinos foram apanhados e presos sem mais detalhe.

    Fim da história.

    A sua morte, tão banal quanto suspeita, é o último plano de um filme que nunca chegou a ser rodado: a verdade, afinal, não é derrotada apenas pelo totalitarismo, mas também pela indiferença de uma outra que se multiplica tão depressa que já não consegue olhar para si mesma.

    No entanto, algumas histórias não foram ‘feitas’ para caber num ecrã e muito menos num artigo de jornal. A realidade, ainda assim pode ser mágica, ainda mais que o cinema.

    Arrisco eu, refém que sou dela.

    Haing S. Ngor tinha 55 anos. Sobreviveu aos Khmer vermelhos, mas não sobreviveu à América.

    Ironia.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações: Ruy Otero


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  • Maria Teresa Horta

    Maria Teresa Horta


    Eu tinha vinte anos e os gajos lá do JORNAL riam-se com uma maldade muito fininha quando falavam nela, e sussurravam “e depois ela disse, pois então eu escrevo com o útero!”. Muito tempo mais tarde, fiquei a saber que aquilo era mentira – o que a Maria Teresa Horta escrevera[1] era que escrevia com o corpo. E o fenómeno de escrever com o corpo é que fenómeno quase sagrado que marca o trabalho de todos os escritores. Não sabemos de onde vêm as ideias, não sabemos de onde vêm todas aquelas frases com todas aquelas palavras, não sabemos como é que o nosso corpo faz andar os nossos braços sobre o teclado e carregar com os dedos nas teclas até que, de repente, acabámos por formar um parágrafo em que nunca tínhamos pensado. Esse milagre fantástico da escrita, um milagre empolgante e incompreensível que nos acontece a todos, é o milagre que sai diretamente do nosso corpo para o monitor, como dantes saía de dentro de nós diretamente para o papel, usando-nos apenas como intermediários. Nenhum de nós fala muito disso, porque nenhum de nós gosta de parecer meio aluado perante os seus leitores. Mas a Maria Teresa Horta, que era uma mulher corajosa, disse-o com todas as letras: escrevo com o meu corpo. O machismo dominante dos anos 80 podia sentir logo um grande frémito de gozo só de ouvir uma mulher pronunciar a palavra corpo, mas essa mesma mulher não estava a pronunciar a palavra útero. Nessa altura os homens do JORNAL divertiam-se a fazer dela o pior que podiam, mas ela recusou-se a descer ao seu nível e comentar as suas parvoíces, sempre de queixo erguido. Demoraram todos muito tempo a perceber que estavam perante uma grande senhora – e uma grande, grande escritora.


    Maria Teresa Horta não deve ter sentido qualquer razão para gostar de mim quando eu comecei a aparecer na Comunicação Social. Vinda de uma geração já completamente diferente da dela, eu não sentia qualquer necessidade de um movimento organizado de mulheres que me protegesse dos machistas. Se algum deles tentasse chegar a vias de facto comigo, espetava-lhe um bom par de murros, ou um boa joelhada nos tomates, e não pensava mais nisso. A contragosto com as sobreviventes do salazarismo, eu ria muito, com uma alegria que não era minimamente fingida. Além disso usava muitos palavrões na minha linguagem, e todas as histórias assustadoras e verdadeiras que contava[2] não pareciam ter-me deixado qualquer espécie de trauma. Insistia sempre que nunca me sentira prejudicada no meu trabalho por ser mulher, porque se dissesse o contrário estaria a mentir. Da maneira como me vestia, nunca teria sido preciso queimar sutiãs. E, no Verão, quando entrava na redacção de top e shortinhos e umbigo de fora, completamente torrada da praia, devia parecer-lhe ponto por ponto a imagem acabada daquilo a que então se chamava, no tom mais derrogatório possível, uma “mulher-objecto[3]”.

    Maria Teresa Horta quando jovem.

                O pecado mais grave que eu cometi aos seus olhos por essa altura foi um artigo chamado ORFÃOS DE FILHOS: OS PAIS DE DOMINGO, com entrevistas a vários homens que fiz por ocasião do Dia do Pai. Nenhum deles quis que eu revelasse o seu nome com medo de retaliações das ex-mulheres, ou com vergonha da situação em que se tinham encontrado a viver depois do divórcio. Mas todos falavam dos mesmos dramas – só verem os filhos de quinze em quinze dias, não terem um espaço condigno para estar com eles, terem vivido muito mal até começarem a namorar uma nova mulher bastante mais rica, as gritarias ao telefone porque os meninos chegavam a casa sujos ou molhados, e sempre, sempre, sempre, o pesadelo das pensões alimentares. A Maria Teresa Horta, indignada, escreveu para a revista MULHERES uma crítica impiedosa ao meu trabalho, intitulada A JORNALISTA MAIS MACHISTA.

                Mas a Maria Teresa Horta era uma senhora. Três anos mais tarde, quando saiu o meu primeiro romance, AGRIÃO!, a mesma revista MULHERES atribuiu-lhe o seu prémio de literatura. O texto que apresentava o livro também vinha assinado por ela, saudando a descrição da dureza da vida das mulheres que viviam numa terreola chamada Pintado, e mencionando o meu nome como se eu nunca tivesse sido a jornalista mais machista.

                Alguns anos mais tarde fui para Buffalo, e estes dares e tomares da vida lisboeta esbateram-se no fundo das minhas memórias. Publiquei muitos livros, uns mais queridos e outros mais difíceis. De entre os mais difíceis, lá para os meus trinta e muitos anos, publiquei um romance fragmentado em que todas as pessoas se desencontravam, com todas as possibilidades sempre em aberto, chamado MAIS MARÉS QUE MARINHEIROS. Quando cheguei a Lisboa, o meu editor telefonou-me a dizer que a Maria Teresa Horta queria entrevistar-me para o Diário de Notícias.

                Mais ninguém me tinha pedido uma entrevista, nem ninguém tinha escrito nada sobre aquele romance.

    Maria Teresa Horta

                Eu nem sabia o que é que havia de pensar.

                Cheguei à sala onde tínhamos marcado encontro, falámo-nos de beijinho, sentámo-nos uma diante da outra, ela fez-me um sorriso enigmático, e começou por dizer:

                – Sabe… Fiquei mesmo surpreendida. Não fazia a menor ideia de que você era assim tão cruel.

                – Pois – disse eu, retribuindo o sorriso – A maior parte das pessoas não sabe. Aliás, a maior parte das vezes nem eu sei.

                Aquela mulher não me conhecia de lado nenhum. Apaixonou-se por um dos meus livros mais difíceis de ler. Descobriu imediatamente em mim um traço de personalidade que eu própria tendo a esquecer-me de que transporto comigo. Depois fez-me uma entrevista interessantíssima, passou-a para o papel com imenso encanto, e escreveu duas ou três coisas sobre a forma como eu mexia as mãos ou fixava os meus olhos nos seus enquanto falava de quem esteve a prestar uma atenção de ave de rapina a toda a conversa.

                A Maria Teresa Horta fez-nos bem, e agora vai fazer-nos falta.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] e não propriamente que dissera, sendo que são duas actividades muito diferentes.

    [2] Contratempos com camionistas quando fazia sozinha longas viagens à boleia, por exemplo.

    [3] Mas seria preciso uma grande dose de má vontade. Uma mulher-objecto penteia-se, maquilha-se, e arranja as unhas. Pelo menos. Nada disto se aplicava a mim.

  • Hollywood burns (I)

    Hollywood burns (I)

    O título deste modesto texto poderia ser, sem dúvida, o título de um hipotético filme de John Carpenter, em que, assim como no Escape From L.A., há um mundo que chega ao fim. E todos os finais são trágicos, como nos mostra a literatura universal e o bom cinema.

    Não querendo dizer que alguns não possam ser finais libertadores e até desejáveis.

    Quantas vezes não vi The End escrito na parte final dos filmes, mesmo antes do genérico aparecer…

    Sobretudo quando jovem, havia filmes em que desejava que a legenda final nunca chegasse ao ecrã, tal era o prazer de ver cinema e de estar refastelado numa sala, com os condimentos necessários para que sonhássemos à grande e à… Americana.

    Nesses cinematográficos anos 80, não havia Internet e a RTP (tanto a 1 como a 2) encerrava a emissão por volta da meia-noite. Quem quisesse sentir mais um bocadinho da energia dos raios catódicos ainda tinha a chance de ficar a olhar para a mira técnica — e era uma sorte, porque, ainda assim, havia população que nem sequer um televisor em casa tinha e via o Passeio dos Alegres no café ou na colectividade.

    Aos sábados, as emissões prolongavam-se um pouco mais, chegando a ter as fantásticas noites de terror com filmes de Cronenberg, John Landis ou mesmo de Tobe Hooper. Uma série B que dava baile a muito cinema mainstream, carregado de moralismo americano e patriótico.

    Para mim, os anos 80 foram de grande respeito pela indústria de entretenimento, quando me começo a lembrar de Indiana Jones e dos Goonies, por exemplo, dos Gremlins, passando pelo Cotton Club de Coppola e por Richard Gere a fazer de músico, ou mesmo Mad Max, com o católico e “garganta funda” Mel Gibson a dar cabo de toda a chungaria que lhe aparecesse à frente no deserto.

    Vivia-se num mundo cognitivo que tinha o lema de “com a verdade me enganas” a assumir o comando e o controlo das operações, já que, inevitavelmente, iremos parar, como se está a ver, ao incrível mundo das conspirações, senão mesmo das auto-conspirações, para ser freudiano.

    O que pensávamos existir por trás dos filmes era, sem dúvida, um mundo longínquo, inalcançável e de sonho, certamente. A Internet e as redes sociais ainda estavam a anos-luz, por isso o mundo parecia mais com aquilo que o Expresso ou o Diário de Notícias escreviam.

    Mas um fim é sempre um fim. E há o fim da história, com inevitáveis happy ends, e o fim que quer dizer que o filme acabou.

    Os happy ends tendem a ser desagradáveis e moralistas, e a chavalada dos anos oitenta já tinha mergulhado num cinismo new age através da música e do Spectrum ZX, e já não se alimentava de happy ends desoladores.

    Era, para Portugal, o início de uma pós-modernidade que chegava tarde, mas a boas horas.

    O actor português Joaquim de Almeida fazia inveja a muita gente porque conseguia uns papéis de mafioso latino em Hollywood, contracenando com estrelas dessa indústria. Tanto que a alcunha muito portuguesa desse actor no meio audiovisual lusitano era Quim Hollywood. Boa alcunha, diga-se.

    Hoje, tudo é diferente. Podes ser facilmente amigo do Richard Gere no Facebook e até ter pena dele no Instagram. E o Joaquim de Almeida ainda vai tendo trabalho no outro continente, mas é também a voz do Alerta CM da CMTV.

    Como se vê, o glamour do actor latino vai ficando nas ruas da fábrica da amarguinha e não nas do Château Pétrus.

    É assim a vida. Ouvi dizer.

    Aqui, na nossa realidade, que também cada vez mais se assemelha a um filme de série B, parece que estamos a chegar ao fim de um mundo que nos acompanhou, para o bem e para o mal, durante tanto tempo, chamado Hollywood, e a pista para lá chegarmos é, entre outros mafiosos, Diddy Combs.

    Jeffrey Epstein já tinha aberto o apetite para o mergulho na torrente de lascívia do mundo oculto, trazendo para a esfera alguns nomes sonantes de alguma elite, tanto política como artística, embora, para a maior parte das pessoas, Hollywood ainda esteja mais viva do que nunca e seja consumível até ao volante de um Uber, com um passageiro lá dentro, sendo até os filmes descarregados para telemóveis e tablets, continuando a destilar glamour pelas revistas.

    Os actores principais são até cada vez melhores pessoas e lutam permanentemente pela igualdade, até a dormir (cheios de soníferos).

    Muita gente consome até as novelas que o Moniz amassou.
    É assim. Consomem tudo e não deixam nada.

    Para muitos, os actores e actrizes continuam lindos, elegantes e cheios de saúde.
    Normalmente, a sua apreciada benevolência chega tanto a África como às vítimas de violência doméstica, apostando, para isso, no activismo e na filantropia, passando pelo Tibete e pelo Dalai Lama, que até parece ser guia espiritual de alguns, já para não falar da pertença à Igreja da Cientologia, que deixa sempre as suas marcas por onde quer que meta o bedelho.

    Mas esse tema fica para outra crónica dos bons malandros.

    Quanto ao eventual charme de Hollywood… Nada de mais errado.

    Hollywood arde e as estrelas aparecem cada vez mais chamuscadas aos olhos de uns quantos que não acreditam nas conspirações oficiais, que normalmente rivalizam com as não-oficiais.

    Nem mesmo muitos Canadairs apagariam as chamas que já ardem há umas temporadas (para ser fiel às séries) pelos lados das florestas californianas e que já chegam a chamuscar com fumo negro Nova Iorque (não a suja da era pré-Giuliani, mas a clean pós-11 de Setembro).

    As estrelas são a carne de que é feito o canhão do cinema, parecendo mesmo que têm andado carregadas de pólvora e de sangue ultimamente, tendo mesmo literalmente visto as chamas reais e a queimar a chegar às suas mansões apetecíveis, o que até faz parecer um argumento de um filme.

    Um filme dentro de um filme, embora aqui a legenda final antes do genérico não seja tão importante quanto o próprio genérico.
    Pelo menos para o FBI.

    Nomes. Vá!

    O mundo quer nomes e eles só vão saindo ao passo de uma cadeira de rodas.

    Já no caso Epstein, que inclui o Lolita Express e a Ghislaine Maxwell (que foi condenada, estando hoje presa), os nomes são de difícil aceitação e divulgação para os media mainstream em geral, parecendo que ainda é uma mera teoria da conspiração, mesmo com o julgamento da angariadora e cúmplice Ghislaine Maxwell terminado há algum tempo e tendo ficado condenada a prisão efectiva.

    Hollywood é cool, humano, humanista e, pelos vistos… Pedófilo.

    Mas é cool, sobretudo.

    Os seus actores e estrelas ainda são exemplos a seguir, mesmo que as revistas em geral também mostrem, aqui e ali, o mundo sombrio em que essa gente deambula.
    Mas, claro, paradoxalmente, o mundo sombrio vende bem, porque nos faz pensar, alimentando-nos da ideia de que não somos ricos, mas, pelo menos, somos melhores pessoas que esses taradões. E que talvez até a riqueza seja má companheira e pouco progressista.

    Todo um paradoxo existencialista.

    Vivemos, sem dúvida, num estranho planeta-terror que nos vai atarantando a cognição desde que nascemos, e talvez por isso já não possamos passar sem este mundo feito de cinzas.

    Mas a verdade é que, no universo champanhe hollywoodesco, a passadeira vermelha vai ficando cada vez menos colorida, e mesmo a qualidade do champanhe começa a deixar dúvidas.
    No planeta conspirativo, cool quer dizer satânico para muitos.

    E assim chegamos a Diddy.

    [CONTINUA]

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações: THE SWIMMING POOL PROJECT


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