Categoria: Crónica

  • Artérias de Liberdade

    Artérias de Liberdade


    GUETOS FELIZES I Um libertário defende a LIBERDADE como valor supremo. A LIBERDADE termina onde começa a dos outros. Há um erro crasso na análise de um libertário. Anarquia não é rebaldaria. Simplesmente, o Acrata não aceita um Sistema só porque ele existe. Se existe e se revela disfuncional há que ser derrubado. O problema da eficácia da anarquia está na pobre harmonia de vontades (ineficiência da comunhão e comunicação) e de entre quem a defenda haja sempre um ou outro mais vaidoso, impetuoso e autoritário que queira sobressair. Mandar nos outros. Ora, eu não quero mandar nos outros, nem que mandem em mim. É como numa relação amorosa: só resulta se houver igualdade, bem como verdade e vontade de cooperar. Um amante do fascismo aprecia pôr a pata em cima. Ama a palavra conjugal que é pôr jugo. Nem tudo se resolve com o bom uso da palavra justa. Mas se porventura não há coincidência de pontos de vista, o caminho libertário é seguir a viagem solitário. Há guetos felizes.

    OS RUSSOS I Quando era chavalito dizem que um dia me apanharam a dizer spasiba e pajalsta e outras palavras em russo. O meu livro favorito era As Aventuras do Miguel Strogoff, o carteiro do Czar Nicolau. Antes dos vinte anos, li Pushkin, Yevtushenko, Gogol, Tolstoi, Dostoiévski, Tchecov, Ribakov, Bulgakov entre outros. Nunca os abandonei. Um dia, um bruxo vidente disse-me que antes desta reencarnação andei pelas estepes como médico de campanha. Gosto de casacos à cossaco. Tive duas filhas na Rússia tal como tenho agora. A minha primeira viagem foi à URSS. Estudei a fundo o comunismo e o anarquismo para me situar, tal como os liberais e fascistas e toda a sorte de ismos. Acrata fiquei, muito em parte graças ao meu preclaro tio Filipe. A mãe Rússia é fértil de prodígios. Nem vou nomear os músicos, compositores, escultores ou o Aranha-Negra. Estes são os russos que me interessam. Prefiro-os aos cobóis.

    1991 I Escapa-me o dia exacto, mas foi em Outubro de 1991 que desaguei na redacção do extinto Semanário com uma carta de Adelino Alves, meu vizinho de patamar do terceiro piso na Rua Coronel Marques Leitão, número 25, na altura professor jubilado e ex-director de O Dia. Tudo começou a ganhar forma no ano de 1990, quando no dia do meu aniversário me vi posto ao fresco da casa materna por ter atingido a maturidade. Fui recambiado para casa da minha avó Vessadas. Ou melhor, depois de andar uns dias a fazer contas à vida, foi na casa da minha avó Vessadas que encontrei refúgio até ter capital próprio para a independência. Tinha feito uns biscates nas vindimas e como estafeta de uma empresa de transporte marítimo, mas o Jornalismo chamava por mim. Avô materno jornalista, apesar de nunca o ter conhecido por ter morrido nos anos 50, infância e parte da adolescência a conviver com jornalistas (o prédio era habitado por jornalistas), mais o apelo inato de contar histórias, ditaram a escolha. Uns meses antes de recorrer a Adelino Alves, ainda fui bater ao ferrolho do tio Balsemão, o Rupert Murdoch lusitano, meu conhecido da Quinta da Marinha e dos fairways do golfe, na esperança deste todo poderoso me arranjar trabalho no Expresso ou outro dos seus títulos. Procurava trabalho de estafeta, antes de me abalançar a estagiar nos jornais. É preciso dizer que podia ter feito carreira de desportista, quer no futebol, quer no golfe. Haverá quem o ateste por aqui. Sem que o tio Balsemão me desse guia de marcha, fui assim parar ao Semanário, de carta de recomendação entregue ao chefe Adriano Oliveira. Não sabia o teor da carta, deduzindo apenas que me recomendava para o cargo de estafeta. Afinal, e sem o saber até ser enviado ao primeiro serviço (no Júlio de Matos), tinha sido recrutado para estagiário de jornalismo. Vi-me assim entregue a mim próprio, sabendo apenas ler e escrever (redacções). Tinha publicado uns contos no DN-Jovem e ganho uns prémios. Achava-me capaz de dar conta do recado. Nesses primeiros meses devo ao Eurico de Barros, ao Nuno Henrique Luz e à Sofia Barrocas os ensinamentos, que se prolongaram no DN, para onde fui e encontrei a Maria Augusta Silva, a grande mestra do ofício a par do Moutinho António José M. Pereira, cuja amizade e conselho duram até hoje. 34 anos já lá vão. Fiz tudo o que quis no Jornalismo. Só não entrevistei um par de figuras por quem nutria estima. De resto, fui à fala com nomes como José Cardoso Pires ou Maria Velho da Costa, Agustina e Luiz Pacheco, entre outros ilustres. Foi no jornalismo que ganhei calo. Aprendi onde estão as rugas na prosa. Vi o Jornalismo dar lugar à promiscuidade dos negócios. Fora as desilusões próprias da vida como ela é. Sem jornalismo livre não há democracia. Tal como sem mestres não há como afirmar uma voz. O mestre está em cada um. As boas influências são uma ajuda.

    FRACTURAS I Morei uns tempos em Chelas. Tinha amigos dealers, carochos e da barra prezada. Uns faleceram de overdoses. Outros foram de cana. Havia alcunhas como “Rambo” e “Comando”. A esperança de vida era limitada e desprovida de sonhos. Ou se vendia ou se consumia. O Jordão só vendia. O Jordão gostava de atestar o meu depósito e ir pela estrada fora, de cabelos compridos encaracolados de carapinha ao vento. Tinha um Talbot Samba descapotável e o Jordão gramava o ar livre. Foi de cana uns anos e quando saiu fui buscá-lo para rodarmos pelo asfalto até gastar o petróleo. A polícia volta e meia entrava por ali adentro a distribuir cacetada. Era a forma de educação. Rusgas, porrada e insultos. Pedagogia fascista. Afinal, era um bairro de bardamerdas. A palavra bardamerdas ouvi-a da boca de um policial com cara de cu à paisana. Tal como “cambada de merdas”. Ia dar ao mesmo. Quem não se metia nas drogas, na compra e consumo ou na venda, ia jogar à bola ou para o boxe. A nobre arte salvou e salva muitos da raiva incontida. Querem um exemplo actual? O Paulo Seco, da Quinta do Loureiro. Vou lá, e ninguém me faz mal. Sou recebido como um do bairro. Sabem o que leva à revolta dos excluídos? Haver poltronas de políticos a incitar a matança dos desalinhados. Aqueles que atiram para os guetos e escravizam com salários africanos. Aqueles que são párias para eliminar.

    GRITA LIBERDADE I Quando nasci, enquanto a minha mãe chamava putas às parteiras eu gritava o meu primeiro tropo de indignação. Ou talvez berrasse por me terem roubado o aconchego uterino, a piscina morna da placenta. Os males da garganta, nos adultos, advêm de protestos contidos. Não se trata de dizer tudo como os malucos, mas de exercer a comunicação assertiva. Há que desembuchar os pedaços entalados. De preferência cara a cara com os provocadores das moléstias, no lugar de guardar as aflições no buraco escuro e cinzento do crânio. Tal serve de igual modo para declarar o amor a quem se ama sem reservas tímidas ou receios de rejeição. As cordas vocais são artérias de liberdade.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

    As ilustrações foram elaboradas com recurso a inteligência artificial.

  • Os actores

    Os actores


    1. Formação e Ideologia: A Representação como Resto

    A figura do actor, historicamente associada à mediação entre o real e o simbólico, entre o gesto e a palavra, encontra-se hoje num ponto de inflexão estrutural que ultrapassa em muito as transformações estéticas do teatro ou do cinema, revelando um processo mais vasto de reconfiguração da subjectividade artística no seio de um ecossistema mediático que se alimenta da exposição, da performatividade do eu e da substituição progressiva da experiência pela aparência.

    E isso é também comum a muitas outras áreas.

    Mas nesta em particular sobre a qual me debruçarei, o actor tornou-se, simultaneamente, o último elo da cadeia de produção artística — profundamente dependente de estruturas externas de validação e selecção e tirando todo o ecossistema técnico que também envolve a profissão — sendo o mais visível, precisamente por se encontrar exposto num mercado simbólico no qual a presença se confunde com existência e a visibilidade com legitimidade.

    O corpo é o seu produto também e o grau de exposição ao qual é sujeito é brutal, distinguindo-se assim de artistas plásticos, por exemplo.

    Esta condição paradoxal manifesta-se desde logo no processo formativo. Cada vez mais, os actores saem das escolas — sejam conservatórios ou cursos profissionais — com uma formação técnica fragmentada, fortemente voltada para a adaptação funcional ao mercado (castings, self tapes, agências, networking), mas muitas vezes desprovida de pensamento crítico, de base teórica ou de referências estruturantes sobre a história e a filosofia do teatro, do corpo, da cena e da linguagem. Nalgumas escolas as cadeiras teóricas são até opcionais.

    Claro que haverá excepções, que até conheço, de professores que fazem de outra forma — e serão certamente bastantes, quero acreditar — mas há limites para a docência, porque obedecem a programas.

    O desconhecimento de nomes fundamentais como Stanislawski, Brecht, Meyerhold, Grotowski, Ionescu, Beckett ou mesmo Shakespeare e muitos outros protagonistas da História, nos mais jovens não é apenas um sintoma de ignorância histórica; é um reflexo de uma pedagogia que favorece a operacionalidade à consciência e a repetição ao questionamento, que muitas vezes cede ao imperativo do entretenimento como valor absoluto, apagando o papel do actor enquanto sujeito pensante e realmente critico.

    Olhando para trás, parece que isso já foi mais efectivo, durante o século XX, sobretudo nas transições políticas ou mesmo com o fim de regimes totalitários, não sendo porém evidente. Precisaria certamente de outro estudo mas isso é texto para outra coluna.

    Nas estruturas, tanto espontâneas como oficiais ou paralelas, o pensamento prêt-à-porter “humanista” já lhes está intrinsecamente associado.

    As ideias de Gramsci venceram.

    A hegemonia cultural que antes era projecto estratégico tornou-se norma pedagógica. As escolas de arte, teatro e ciências sociais transformaram-se em templos do progressismo automático, onde a linguagem da inclusão, da representatividade e da resistência simbólica se tornou dogma — um novo catecismo afectivo travestido de crítica.

    Os alunos já são de “esquerda” sem saberem porquê, já são “anti-capitalistas” por reflexo, já operam dentro de uma matriz moral que confunde empatia com pensamento.

    E o actor, outrora sujeito trágico da cena, agente de tensão, de contradição e de gesto simbólico, é agora mascote ideológica de um sistema que lhe alimenta o ego enquanto esvazia o corpo. Substitui-se a crítica pelo posicionamento, a ética pela performatividade e a arte pelo simulacro bem-intencionado do que supostamente devia ser perigoso.

    Enquanto isso “as direitas” afastaram-se completamente de uma arte contemporânea em que não percebem a complexidade, apesar de tudo, do efeito Duchamp ou da conceptualidade por exemplo, e deixaram o papel da operacionalidade artística para outras zonas de mercados mais ambíguos e recicláveis conforme as ondas e marés.

    Mas direita e esquerda já não são para aqui chamadas, numa era em que uma existe para representar e ser o negativo da outra, como que por falência e graças ao meta-capitalismo estruturante desta nova dimensão (a)política.

    A maioria dos agentes culturais ainda vive nessa velha dicotomia capitalismo versus socialismo, como que por magia.

    O delay já faz eco.

    2. Tipologias e Fragilidades: O Actor na Era da Exposição

    Por outro lado, a profissão do actor tornou-se um campo especialmente vulnerável à lógica de mercantilização das emoções e das identidades, sobretudo numa época em que a representação não se limita ao palco ou ao ecrã, estendendo-se a todas as esferas da vida quotidiana através da auto-exposição digital e da contínua construção de avatares nas redes sociais.

    Neste contexto, o actor profissional deixou de ser o único a representar: todos representam, todos actuam, todos encenam versões de si mesmos para consumo público.

    Esta contaminação entre representação artística e performance social, esvazia o gesto do actor do seu potencial simbólico, na medida em que já não se distingue, com clareza, entre a arte de representar e a compulsão de se mostrar — sendo certo que o guião a seguir muitas vezes coincide.

    O que pode ser cómico para os cómicos.

    Acresce que o lugar do actor nas estruturas de produção cultural se tornou profundamente condicionado por factores extrínsecos ao seu ofício — critérios de representatividade, políticas de quotas, discursos identitários ou agendas de financiamento — que, embora tenham tido origem em reivindicações bastante legítimas e até urgentes, vão tendo um efeito boomerang e tendem hoje a reduzir a complexidade da arte à função ilustrativa ou pedagógica, transformando o actor num funcionário do afecto e da correcção simbólica aliando essa vertente a uma hipocrisia conhecida no meio artístico.

    Dando para rir entre o que é dito no público e no privado. 

    Mas este novo paradigma acentua a fragilidade estrutural do actor enquanto trabalhador precário, obrigando-o a adaptar-se constantemente às exigências de um mercado cada vez mais sensível à performance política do corpo e à sua legibilidade dentro dos discursos dominantes — muitas vezes em detrimento da qualidade estética, da ética artística ou da exigência crítica.

    É neste cruzamento entre fragilidade laboral, hiperexposição mediática e instrumentalização ideológica que o actor contemporâneo se encontra — e é precisamente aí que deverá ser repensado o seu “papel”.

    Há que distinguir entre os vários estilos e práticas de representação, sem cair na caricatura, mas também sem iludir os problemas.

    Existem inúmeros tipos de actores, entre eles destaco: o actor intuitivo, que depende exclusivamente do impulso emocional, frequentemente carece de ferramentas críticas para intervir sobre o material que trabalha, e é normalmente muito inseguro e emocionalmente dependente — a carência supera e ofusca o desejo, podendo torná-lo ridículo na sua prática.

    O actor técnico, que por sua vez tende a encarar o corpo como um dispositivo executável, desprovido de pulsão e de risco, funcionando normalmente por compensação económica. Pode ter ou não personalidade e conhecimento fora da sua zona de acção , mas normalmente conhece bem o sector e é calculista.

    Ainda existe, noutra geração, o actor do método, que mergulha perigosamente na biografia das suas personagens — mesmo que tenham sido escritas por uns tarefeiros de serviço — como se a experiência pessoal pudesse substituir a dramaturgia. Aqui dependem da experiência dos realizadores de televisão ou dos encenadores para moldar o seu conhecimento às exigências do produto em que normalmente não há tempo para experiências psicanaliticas.

    Para além de outros géneros existentes , sem dúvida, (não é para ser exaustivo), tanto que as gerações também são muito distintas em conhecimento, devo destacar ainda aquele que parece ser o mais problemático e vítima número um do deslumbre do fenómeno da Desconstrução: o actor pós-dramático.

    Este género bastante permissivo ao sabor do tempo, dissolve-se num formalismo estéril que abdica da construção simbólica em nome da presença imediata e da intuição, aliada a uma história muitas vezes inverosímil e distorcida da performance nas Artes Plásticas — sempre associada aos impulsos do corpo e dos sentidos — para normalmente cair num vazio pouco sustentado e frágil do ponto de vista argumentativo.

    Adora Marina Abramovich mas nunca viu.

    Esta tipologia pode ter tido origem no Living Theatre (é discutível) e tomou muitos caminhos, passando pelos efervescentes e oitentões La Fura Dels Baus — que foram depois muito criticados por abrirem os Jogos Olímpicos de Barcelona, na altura por se terem vendido ao capitalismo, segundo a esquerda dominante nas artes, numa era menos obscura, pré-internet, em que o discurso anti capitalista e anti americano moldava muitas cabeças, ainda que os actores nunca deixassem de pensar em Hollywood como um sonho a atingir. Não todos, claro.

    Um paradoxo de sonho… Ou pesadelo.

    Nenhum destes modelos é inválido, mas todos se tornam limitadores quando não acompanhados por um pensamento que os interpele, que os questione, ou que os coloque em relação com o mundo e com a história da representação enquanto acto político, ético e estético.

    Importa ainda afirmar que esta crise do actor é, também, uma crise do público.

    Um público deseducado, emocionalmente condicionado pelas narrativas audiovisuais dominantes e treinado para consumir identificação em vez de complexidade, já não reconhece o valor da representação como distanciamento, nem entende o artifício como linguagem. Sempre com excepções como é evidente. Falo também de Portugal, desconhecendo propriamente outros países. Mas não me parecem muito diferentes no seu modelo ocidental.

    A confusão entre arte e vida, tão promovida pelas culturas de massas e pelos dispositivos algorítmicos de selecção simbólica, transforma o actor num espelho vazio: reflecte aquilo que o público quer ver, não aquilo que precisa de pensar.

    Não é que o publico já tenha sido mais culto, mas com a fragmentação e o excesso cada vez mais evidente, já não são só os agentes da cultura e representação que desconstroem mas até o publico o está a fazer sem saber.

    Desconstruir até cair para o lado, parece ser essa a ordem crescente pregada de moral para consumo interno, sempre com a cumplicidade das indústrias farmacêuticas e psiquiátricas com homeopatias e acupuncturas pelo meio. Não é possível desconstruir mais sem depressões associadas, para ser irónico.

    Mas não é por isto que deixamos, como que por magia, de ver grandes “representações” e performances dos actores, tanto em televisão como no cinema ou no teatro.

    Nem tudo tem explicação. E o mundo não acabou.

    3. Narcisismo, Crise Simbólica e a Possibilidade de Representar

    A crise da representação não se exprime apenas em termos de condições externas, mas atinge directamente o núcleo da prática actoral: a sua relação com o eu, com o corpo e com o mundo.

    A figura do actor tornou-se, no contexto contemporâneo, uma das expressões mais visíveis do paradigma narcisista dominante, que transforma a arte da representação numa gestão contínua da própria imagem e da própria emocionalidade. Esta mutação arrasta consigo o esvaziamento simbólico da prática artística e a sua conversão em performance afectiva para consumo imediato.

    O actor, já não apenas como intérprete de papéis, mas como figura pública e marca pessoal, é chamado a sustentar uma identidade coerente, exposta, emocionalmente legível e esteticamente consistente.

    A distinção entre o espaço do trabalho artístico e o da auto-representação quotidiana dissolve-se num regime de visibilidade permanente. As redes sociais, ao exigirem uma narrativa constante do eu, impõem ao actor uma representação contínua, muitas vezes sem conteúdo, onde a vulnerabilidade se torna valor e a autenticidade é convertida em capital simbólico.

    As práticas performativas dominantes são reflexo desta transformação. Para voltar às tipologias anteriores: o actor intuitivo representa a valorização do afecto imediato em detrimento da construção simbólica; o técnico revela a conversão do corpo em dispositivo funcional e programável; o do método indica a fusão entre biografia e ficção, que compromete a mediação crítica; o pós-dramático manifesta a desmaterialização da linguagem e a aposta numa presença que, muitas vezes, abdica da significação.

    Talvez fosse bom de quando em vez voltar-se a penetrar Brecht ou imergir no livro de Robert Bresson com as suas insinuações sobre o actor, para não falar em Peter Brook, todos sempre actuais e pertinentes nas suas linhas, ainda que dogmáticas.

    Estas tipologias, apesar de distintas, convergem na recusa — ou na perda — da representação enquanto acto mediado ou mesmo construído e pensado — logo, por isso, político.

    Esta configuração é reforçada por um ecossistema simbólico que desvaloriza a crítica em nome do apoio emocional, que confunde empatia com complacência e que romantiza a precariedade como forma de resistência criativa. Até ver.

    O elogio constante e a ausência de exigência transformam o campo artístico num espaço de validação afectiva, impedindo o confronto com os limites e a profundidade do gesto artístico. O actor, nesse ambiente, é infantilizado enquanto trabalhador e idealizado enquanto figura pública — sem espaço real para errar, questionar ou resistir.

    O resultado é a conversão da arte da representação num espelho do desejo social, num reflexo imediato das expectativas afectivas do público e das lógicas algorítmicas de visibilidade.

    O actor, em vez de intervir simbolicamente sobre o real, é convocado a reproduzir narrativas emocionalmente aceitáveis, facilmente partilháveis e alinhadas com os códigos dominantes de sensibilidade.

    A arte deixa de distanciar para reflectir; o corpo deixa de significar para agradar.

    Repensar o lugar do actor, hoje, exige muito mais do que mudar práticas pedagógicas ou modelos de produção. Terá de vir dos próprios.

    Serão certamente os actores quem reagirá mais tarde ou mais cedo ao “cataclismo asséptico”, até provavelmente o poder detectar a convulsão. Ou não. Talvez a História ao rimar novamente encontre novas terminologias e o feitiço se vá voltando contra o feiticeiro. O mundo é um lugar dinâmico… Como sempre.

    Estou optimista.

    Exige é uma redefinição profunda do que significa representar, numa época em que todos performam. Significará sem dúvida devolver ao actor a sua dimensão crítica, simbólica, política.

    Dever-se-à quanto a mim, voltar a valorizar a linguagem, a narrativa e inscrever o corpo no pensamento e a sua presença num mundo que precisa de mais autonomia. Sobretudo autonomia, o que não é fácil, certo.

    E, sobretudo, recusar a transformação do actor em produto emocional de um mercado simbólico disfarçado de “humanista” totalmente em colapso, em que os “actores” principais  desta era também não sabem nada de Beckett , Ionescu ou Shakespeare, quer-me parecer.

    Daí o optimismo.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações: Ruy Otero


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Arouca 2.2

    Arouca 2.2


    Perguntou-me o director do PÁGINA UM se eu estaria interessado em começar a escrever crónicas a cada jogo do Benfica. Depois de chatear activamente os leitores da Extrema-direita, Pedro Almeida Vieira escolhe agora aborrecer os adeptos dos outros clubes.

    Vamos partir deste princípio basilar nesta que será a minha primeira crónica. Eu não sou jornalista, sou adepto benfiquista, gosto de futebol e, portanto, tudo o que podem esperar ler aqui é a minha opinião. Com alguma sorte teremos momentos de triângulos invertidos e basculação no meio-campo.

    Ainda a bola não tinha começado a rolar e já os adeptos da minha cor me envergonhavam. Sim, eu sou benfiquista, mas não sou cego. Durante o minuto de homenagem a Aurélio Pereira, uma figura ímpar do desporto português, um conjunto de acéfalos resolveu imitar o fatídico som do very light que matou um adepto sportinguista na final do Jamor. Um dia alguém me explicará como é que há um benfiquista — seja ele quem for — orgulhoso com um dos momentos mais negros da nossa centenária história.

    Quando entramos na recta final do campeonato, tudo o que não nos interessa é ver um Benfica-Arouca. São jogos que me fazem lembrar as derrocadas finais nos tempos de Jorge Jesus. A vitória é certa no papel, a equipa acredita que a bola, cedo ou tarde, entrará, e o pouco espectáculo arrasta-se penosamente por longos noventa minutos. O Arouca é uma equipa cuja classificação não reflecte o futebol jogado. Não se limitam ao clássico bloco baixo esperando um contra-ataque milagroso, sabem ter a bola no pé e apresentam um plantel com jogadores interessantes.

    A primeira parte teve quase sentido único, com o Benfica, no seu onze habitual, a dominar o meio-campo e a controlar as operações. Ainda assim, essa posse de bola não se reflectiu em oportunidades de golo. As poucas que aconteceram foram quase sempre cortadas por defesas em lugar do guarda-redes. O Estádio da Luz, cheio como é habitual, demonstrava algum nervosismo com a ineficácia e o ritmo baixo.

    A asa esquerda do Benfica foi, como de costume, o abono de família do ataque, com Carreras, especialmente, em bom plano. Do outro lado, Tomás Araújo continuou preso por arames, a fazer o que pode. Di María, ou GOAT, como é conhecido cá em casa, insistiu nos lances individuais que já não consegue fazer, deixando as recuperações para o norueguês amigo. Ainda assim, há sempre aquele momento em que descobre uma linha de passe que mais ninguém vê e obriga qualquer comentador de sofá, como eu, a meter a viola no saco.

    É estranho pensar na profundidade do plantel do Benfica para disputar um jogo com o Arouca. Mas foi exactamente isso que fiz ao intervalo.

    Rezei para que Bruno Lage pedisse autorização ao Di María para o deixar no balneário, na companhia de Tomás Araújo. A minha expectativa era que a ala direita carregasse jogo com mais eficácia na segunda parte. Opções no banco parecem não faltar.
    A segunda parte começou com um três para três na área do Benfica, sacudido por Trubin, seguido de mais um ataque desperdiçado por Di María. Bruno Lage não viu nada de errado na primeira parte e apostou, tal Marcello Caetano, na transição da continuidade. Aos cinquenta minutos de jogo, já eu fazia contas à vida depois do Arouca ter chegado com perigo à baliza do Benfica.

    Passava a hora de jogo quando comecei a ver nuvens negras e a lembrar-me de um campeonato perdido contra o Estoril. Por esta altura, até um penálti à Diomandé se aceitava. Carreras percebeu o sofrimento da classe operária, que precisa de motivação para trabalhar amanhã, e desatou a ultrapassar gente pelo lado esquerdo. A bola desaguou no pé direito de Kokçu e o turco fez arte, colocando a dita onde a coruja faz o ninho.

    Di María, logo de seguida, falhou um golo cantado e Jason, o melhor jogador do Arouca, tentou trazer um Geny para o Estádio da Luz. O mergulho foi bom, a entrada na água fez pouco espalhafato e o VAR fez o que se espera dele em Portugal: marcou.

    Há uma tendência neste final de época para se ver a mais nalgumas latitudes e fechar os olhos noutras. Dizem-me que é azar. Do Benfica, obviamente. Azar esse que se prolongou do VAR para a inoperância de Bruno Lage que, aos 75 minutos, ainda não tinha visto necessidade de mudar fosse o que fosse.

    Quando Belotti e Schjelderup entraram, já o Arouca estava na opção do bloco baixo e o espaço para jogar se reduzira a um T1 de meio milhão em Arroios. Esperava-se que o norueguês ganhasse os duelos que Di María não conseguiu.

    As substituições, tardias, tiveram efeito quase imediato. Kokçu, o tal rapaz com um pé direito que daria jeito ao Florentino, descobriu Pavlidis sozinho, enquanto Belotti arrastava os centrais. São aquelas dinâmicas, como lhes chamam os entendidos da bola, que acontecem quando dois rapazes, com a mesma camisola, estacionam permanentemente na área alheia.

    O Arouca não reagiu ao segundo golo porque o Benfica não tirou o pé do acelerador. Seguiram-se algumas hipóteses de golo desperdiçadas, um golo anulado e mais uma dose de nervos até ao fim.

    O prolongamento chegou com 7 minutos que ninguém percebeu e o Arouca, vendo que o jogo não era sentenciado, apostou tudo nos instantes finais, conseguindo marcar já depois dos 95 minutos.

    O campeonato volta a dar mais uma volta e, pela segunda vez, o Benfica não aguenta a liderança mais do que uma semana.
    Tal como disse no início desta crónica, gosto pouco destes jogos em que pouco se ganha e tudo, ou quase, se perde.

    Fotos de Pedro Almeida Vieira (no estádio)

  • Ainda de olho ao peito

    Ainda de olho ao peito


    Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, dizia Camões — e, valha a verdade, se o nosso épico não tivesse perdido um olho, talvez visse com mais nitidez o que esta crónica, de visão ainda turva, tem vindo a confirmar: a tradição já não é o que era, e quem de costume observa a bola da Varanda da Luz, anda mais dado a filosofias e quejandos do que à redondinha propriamente dita, aqui o garante.

    De facto, nos últimos jogos do Benfica na Liga, este vosso cronista habitual fez gazeta, primeiro porque foi lourear a pevide para Espanha, depois porque um bisturi decidiu meter-se em campo e substituí-lo sem aviso prévio. Ou seja, perdeu dois jogos no conforto da Luz, mas vá-se lá saber como, no último mês e meio, apareceu em Montjuic, foi a Alvalade ver a selecção e ainda teve a ousadia de ir ao antro do Dragão, onde o Benfica deu uma coça ao Porto.

    E tudo isto, nas últimas duas semanas, com um olho que vê mal ao perto e só agora começa a distinguir camisolas ao longe. E o outro está como estava: mal. Ja consigo ver os números nas costas dos jogadores, o que é um progresso — antes disso, via os jogos como quem lê prescrições médicas: de longe, com desconfiança e a torcer para não me enganar.

    Mas como o bom filho à casa retorna (ainda que tropeçando nos degraus e piscando os olhos ao ecrã como quem faz sinal à torre de controlo), eis que esta crónica volta à vida. Ou melhor, ressuscita com ajuda: o relato de hoje é da pena do Tiago Franco, que além de ver bem (ao que consta) ainda escreve com propriedade sobre futebol. Ficam mais bem servidos, não duvidem — porque se fosse eu a escrever, acabava-se a falar da teoria do caos, da filosofia dos penáltis, ou da geopolítica dos fora-de-jogo.

  • ‘People are strange’: e eles nem sequer estão malucos

    ‘People are strange’: e eles nem sequer estão malucos


    É noite; o astro saudoso
    Rompe a custo um plúmbeo céu,
    Tolda-lhe o rosto formoso
    Alvacento, húmido véu:
    Traz perdida a cor de prata,
    Nas águas não se retrata,
    Não beija no campo a flor,
    Não traz cortejo de estrelas,
    Não fala d’amor às belas,
    Não fala aos homens d’amor.

    João de Lemos

    LUA DE LONDRES (1872)

    Para compreender melhor o título[1]


    A pessoa já quase não se lembra do tempo em que existiam em Portugal verdadeiros políticos dignos desse nome. Esta gente que nos governa agora é para lá de má. É pior que decepcionante. É mais desaconchegante do que este inverno que começou em catapultas de chuva em pleno Outono e se manteve assim, gélido e encharcado, até à Primavera. Dentro dos seus sobretudos azuis, com os seus sapatos pretos, repetindo em toda a parte os mesmos sorrisos sobranceiros e as mesmas palavras de quem não tem absolutamente nada para dizer, esta gente que nos governa debaixo de uma profusão cansativa de chapéus de chuva escuros transportados por vassalos silenciosos é profundamente triste. Ainda por cima, sai-nos cada vez mais cara com os seus dares e tomares que cada vez parecem menos ir dar seja onde for. Estará tudo completamente perdido?

    A verdade é que o povo português já foi espantosamente sensato e paciente antes.

    Mas este é um desafio sem precedentes.


    De repente, olha-se para toda aquela marabunta[2], ouve-se toda aquela gente mandar vir, e alguma coisa em nós faz clic a braços com um fenómeno muito estranho. É que, embora saibamos que representam ideias e ideais diferentes, começou a parecer-nos que são todos iguais. Ainda por cima, parece cada vez mais que estão todos a dizer a mesma coisa, falando exactamente da mesma maneira. O fenómeno é insuportável, mas depois de detectado é como o poço da Alice: estamos a cair lentamente lá dentro sem sabermos onde nos leva, desesperadamente incapazes de voltar à superfície, que era o sítio onde estava a realidade que estávamos habituados a conhecer. Tentamos racicionar, mas é inútil: nem sequer sabemos que latitude e que longitude é que já percorremos[3]. E então dá vontade de tapar os ouvidos com as mãos e chamar pela mãezinha[4], porque parece mesmo que está tudo maluco.

    Depois percebe-se que isto é o que parece porque esta é a versão mais simplista dos acontecimentos, e, ao fim do dia, a Comunicação Social gosta sempre de apontar os microfones ao bobo da corte, que a presenteia com as afirmações mais pobres de espírito, mais francamente tontas, mais descaradamente insultuosas, e portanto mais divertidas. Por isso somos obrigados a seguir a política portuguesa com comentários finais a cargo de André Ventura, a única pessoa vestida de político que é capaz de concluir um bloco informativo com a declaração “na minha opinião, um polícia branco que mata um gajo preto depois do anoitecer não é nenhum psicopata, é mas é um herói, a quem deviam fazer um busto de homenagem, e nunca na vida abrir um processo de investigação,[5]” e sair imune.

    E sair imune, caraças[6] – mas há que entender que saiu imune exactamente porque é o bobo.

    Enquanto bobo, a criatura tem um direito ao microfone nunca antes visto. E, enquanto homem-espectáculo, basta-lhe apanhar um microfone desses pela frente para desatar a espingardar qualquer uma dessas javardices sem fundamento nem conteúdo que um homem gosta de ouvir quando está profundamente revoltado ou se sente muito perdido. Isso, hoje em dia, são quase todos os homens portugueses, e os media sabem isto muito bem. Em resultado, todos os dias temos que gramar com o palhaço. E, de facto, quando nos servem o País visto pelos olhos dele, parece mesmo que está tudo completamente maluco. Quem gosta de circo, e gosta de palhaços, sabe que é a isso mesmo que os palhaços se destinam: estão ali para convencer os espectadores que foram antes eles, todos eles, que enlouqueceram colectivamente. E entretanto, no seu mundo à parte, os palhaços continuam cheios de razão, como sempre estiveram. Não é por acaso que há tanta gente com fobia a palhaços. Quando os meus filhos eram pequeninos trepavam de pânico por mim a cima de cada vez que entravam palhaços na arena. Depois lá se habituaram a ficar quietinhos no seu lugar, mas todos a tremer e de olhos fechados.

    Com estas memórias simpáticas do Circo Chen nos Natais de Lisboa recordamo-nos de que os olhos de André Ventura não veem o mundo como os olhos das pessoas normais, caímos em nós, e o caso torna-se mais sério. A triste figura que têm andado a fazer todos aqueles funcionários públicos sem um único lampejo de inspiração que são hoje em dia os nossos políticos não têm propriamente a ver com, por alguma razão que nos transcende, todos ficarem malucos, cada um para seu lado.

    Tem antes a ver com padecerem todos é de uma angustiante falta de qualidade.

    E comportam-se como se lhes fosse completamente indiferente o que o comportamento medíocre deles faz aos portugueses.

    Vamos lá ver. Um bom político governa. Uma boa oposição impõe-lhe mudanças de rumo. E, supostamente, os eleitores ficam a ganhar com tudo isto. Mas, neste caso, a governação trocou insultos, e pelo meio foi descendo cada vez mais baixo até bater mesmo no fundo da Fossa das Marianas – sem que os portugueses ganhassem absolutamente nada com isso. Nos últimos tempos, em vez de tratar de todo e qualquer assunto que seja verdadeiramente importante para a qualidade de vida das pessoas, aquelas aves[7] passaram dias, semanas, meses, a espiolhar o escândalo das empresas do primeiro-ministro e da sua família. O primeiro-ministro não explicou nada que tornasse a situação menos escandalosa, e a partir daí fez toda a gente perder ainda mais tempo repetindo ad nauseum que não tinha absolutamente mais nada a dizer uma vez que já tinha feito da sua vida um livro aberto. Seguem-se episódios dignos de uma telenovela brasileira, daquelas que se passam no século XIX numa cidade no meio do mato onde a única lei que vigora é a do mais forte ou a do mais pérfido, que se arrastam durante um ano com detalhes tortuosos que ainda não tínhamos sonhado possíveis, e no entanto esta democracia já leva atrás de si um lastro considerável de péssimos políticos.

    Mas é que estes são piores.

    Primeiro, numa fuga para a frente de estupidez nunca vista, o governo, apoiado por todo o partido no poder, passa uma moção de confiança a si próprio. Em resultado óbvio, a oposição em peso passa uma moção de censura ao governo. Em decorrência inevitável, o Presidente da República dissolve a Assembleia e convoca novas eleições para amanhã. Reiterando imediatamente o seu pé de chumbo, o partido que estava no poder volta a pôr à cabeça da sua lista o mesmo primeiro-ministro altamente suspeito de grandes trafulhices com as suas empresas familiares. À falta de alternativas excitantes, e como simples factor decorrente de um enorme cansaço, até é possível que o povo português decida manifestar-se numa espécie de triste vingança poética[8] e faça com que este ex-primeiro-ministro ainda volte a ser primeiro-ministro.

    Em tudo isto gasta-se imenso dinheiro, perde-se imenso tempo, e talvez nenhuma destas duas coisas muito más seja a pior.

    Eu digo que a coisa pior, mas pior mesmo, é que, assim, vamos ser obrigados a viver com quatro eleições ensanduichadas em pouco mais de um semestre. Ainda nem estamos recompostos da telenovela do século XIX no meio do mato e já vamos ser obrigados a votar para legislativas em Maio; e depois seguem-se votos para autárquicas em Outubro, e para presidenciais em Janeiro[9], imediatamente seguidas da segunda volta dessas mesmas presidenciais se ainda alguém estiver vivo. Ora, a precisar de digerir três campanhas de seguida com toda a interferência que as campanhas causam na vida quotidiana, com imensa a gente a dizer-lhes “vota em mim” de dezenas de diferentes formas por centenas de razões diferentes – têm a certeza de que o pessoal consegue manter-se concentrado? Às tantas ainda saberemos para que serviço público é que aquela ave[10] específica nos pede que votemos nela? Estão a imaginar bem quantas pessoas vão aparecer a apertar-vos a mão quando vocês estão cheios de pressa, a dar-vos papelinhos que ninguém vai ler e que são, todos eles, árvores deitadas abaixo para nada? E quantas vezes seguidas, desta vez, é que vão ter gente que não conhecem de lado nenhum tratar-vos carinhosamente por Amigos, Companheiros, Camaradas, e aquele Portuguesas e Portugueses muito melífluo em que as senhoras passam sempre primeiro, para depois começarem todos a gritar-vos aos ouvidos em mais um comício que a certa altura começa mesmo a ser impossível manter nota de quem é e para que é? E o pior é que tudo isto acontece enquanto aqueles carros com música e alguém a bradar qualquer coisa pelo megafone, que parecem sempre anunciar uma tourada, não param de correr pelas ruas como baratas do inferno. E nós também já não sabemos o que é que anunciam ou defendem – mesmo descontando a possibilidade de estarem a chamar o povo à tourada dessa tarde.

    Há mais.

    A total falta de visão dos políticos que desencadearam este canhão gigante de exercício eleitoral foi tão grande que ainda há mais.

    Preparem-se para oito meses que vão passar por nós como um sonho estranho[11].

    Durante todo este tempo, mas todo este tempo, todo este tempo mesmo[12], hão de ser arruadas, atrás de arruadas, atrás de arruadas. Hão de ser imensas, porque dão nas vistas, não requerem grande preparação, reciclam-se, e, desde que o Candidato consiga caminhar, não há nada mais simples de fazer do que uma arruada.

    O que, antes de mais nada, quer dizer que vamos esbarrar com imensos momentos imprevisíveis, e não necessariamente agradáveis, em que de repente não se pode passar na rua.

    Ainda piores são aquelas alturas em que passar na rua é perigoso, porque – uma vez mais – o cidadão incauto corre sempre o risco de ser encostado à parede por um Candidato a Qualquer Coisa seguido pelos seus seguidores, que ainda é capaz de lhe perguntar “Olá Amigo, sabe quem eu sou?” – e o cidadão, tão evasivo quanto possível, já sem saber se há de ser abrupto[13] ou se há de manter o que ainda lhe resta de compostura eleitoral: “Bem, eu conheço a sua cara da televisão, claro, mas agora de repente estou com uma branca, não me lembro do seu nome” – o Candidato sorri e aproxima-se ainda mais arregaçando melhor as mangas, várias mãos estendem brochuras e panfletos, até um cartaz, e ainda um cravo vermelho, como aliás todos eles têm na lapela, mas para o pobre cidadão assim acossado isso não quer dizer absolutamente nada porque com cravos andam todos, no outro dia até na comitiva do Ventura iam umas miúdas muito giras a oferecer cravos vermelhos, suspeita-se que eram manequins contratadas à hora mas de qualquer maneira a intenção é que conta – “Deixe-nos informá-lo sobre o meu projecto para Portugal, antes de mais nada eu sou”– o cidadão ouviu o singular seguido por “Portugal” e bastou-lhe, o nome de uma única pessoa associado ao nome do País por inteiro revela-lhe que estão em causa as Presidenciais, ele está saturado de campanhas em geral e de arruadas em particular[14] porque as ruas ali são todas muito estreitinhas, só quer é despachar o assunto e então agarra naquelas árvores mortas que lhe estendem, livra-se dos seguidores com o ombro e acena seriamente ao Candidato enquanto inicia a fuga: “Ah mas eu sei, eu sei, o senhor é o Almirante que salvou o País do COVID, é um Herói, e conte comigo, eu vou votar em si.” – e desaparece, tirando partido da sua vantagem sobre a comitiva de conhecer muito melhor aquele dédalo de ruelas.

    O Candidato, que na realidade era o Vitorino das Rãs, não desanima, como nunca desanimou. Diz aos seus seguidores que já se viu que a disponibilidade das pessoas que vão a passar nas rua estreitinhas daquele lugar não é grande coisa, melhor será entrar num tasco, pagar umas rodadas, confraternizar, deixar por ali os materiais de propaganda como quem não quer a coisa, contar ao pessoal histórias verdadeiras e muito sentidas das suas lutas regionais, e deixar as gentes dali daquelas ruelas ver bem as filhas de vários seguidores que vieram hoje na camioneta, estão excitadíssimas com a sua estreia na política[15], desfazem-se em risinhos, e são boas como o milho[16]. Daí a uma hora, visitarão outro tasco. Daí a três horas, até aproveitam o tasco para ver o jogo. Nesse dia a estratégia foi um sucesso. Mas há quem diga que foi só porque nesse dia nós ainda tínhamos aquele treinador pouco dotado mas mesmo assim ganhámos o jogo, que por acaso era contra a Inglaterra e passem bem que o País está ao rubro.

    Bem contados são oito meses disto, e muita gente a candidatar-se a muita coisa, sobretudo tendo em conta a quantidade de estranhos personagens[17] que já se candidataram ou ameaçam vir a candidatar-se à Presidência da República. Uma eleição a nível nacional é sempre um fenómeno extremamente interessante, e não é só pelos resultados. Os programas que os candidatos apresentam, os tópicos onde põem a sílaba tónica, a escolha de slogans e de frases-feitas, a forma como se vão desenrolando os acontecimentos à medida que os autocarros das campanhas cruzam o País, as cabeças de cartaz que fazem concertos para cada facção, os debates, tudo é um dedo no pulso do País que tanto pode ser deprimente como hilariante, mas uma coisa é sempre certa, está cheio de vida. Agora – Três grandes eleições a contra-relógio e a seguir ainda um desempate? Alguém acha que isto vai correr bem? Será realmente preciso um sujeito ser especialista em análise política, ou em sociologia, ou em comentário jornalístico, para explicar ao País e ao mundo por que é que a abstenção em Portugal não para de subir e as eleições se saldam por resultados bastante bizarros?

    Epá, não gozem comigo[18].

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora



    [1] Para todos aqueles que não chegaram a este mundo a tempo de identificar imediatamente a referência, aqui vão aos primeiros acordes da imorredoira canção dos THE DOORS, PEOPLE ARE STRANGE: people are strange/ when you’re a stranger/ faces look ugly / when you’re alone/ women seem wicked/ when you’re unwanted/ streets are uneven/ when you’re down… e vários outros desenvolvimentos igualmente deprimentes.

    [2] Figura de estilo. Em Angola aplicava-se a tudo o que metesse muitas criaturas sempre em movimento, das formigas brancas às crianças. No entanto, a aplicação do termo às crianças já era, em si mesma, uma figura de estilo. Culpa delas. Nunca paravam quietas. De onde a expressão, também angolana, e também metafórica, “criança ferra.” Como é evidente, as crianças não possuem ferrão, pelo que no sentido literal não podem ferrar. Mas o uso do termo dispensa explicações.

    [3]Que estranho,” pensa a Alice logo na segunda página da história, algum tempo depois de ter caído no buraco do coelho, não ter conseguido voltar para cima, e por muito que dê aos braços continuar perpetuamente a cair, muito devagar. “Sempre gostava de saber que latitude e que longitude é que já percorri.”

    [4] Não necessariamente uma figura de estilo. Eu, como vivo sozinha com o Sebastião, posso dar-me ao luxo de fazer isso mesmo com os meus horrores de estimação. Ele põe a cabeça de lado a olhar para mim e arrebita as orelhas com o seu arzinho de cachorrinho amoroso. O que me faz passar logo a irritação, porque um cachorrinho amoroso com 54 kg é uma imagem absolutamente hilariante.

    [5] Versão literariamente melhorada das declarações originais do actual candidato à Presidência da República, que acha mesmo que os polícias que resolvem as coisas matando as pessoas são os verdadeiros heróis do dia.

    [6] Talvez aqui viesse a calhar um ponto de exclamação se essa não fosse a pontuação que eu mais detesto. Desculpem. Já tenho um certo direito a ter as minhas manias.

    [7] Parafraseando Aristófanes, 445-386AC

    [8] É mesmo. Toda a situação é tão triste que até as vinganças poéticas, completamente destituídas de fulgor e de garra e de sangue na guelra, são apenas isso mesmo – tristes. Tristes assim mais ou menos como a LUA DE LONDRES do João de Lemos.

    [9] De nada. É sempre um prazer googlar factoides interessantes como este para vossa informação como quem não quer a coisa.

    [10] Não há como aprender com os Clássicos, que já sabiam tudo – no caso dos Gregos, até sobre o funcionamento das democracias. Chega a ser frustrante.

    [11] Em sinal de respeito pela democracia omite-se aqui a hipérbole “pesadelo”, por muito que apeteça usá-la.

    [12] Recorde-se: pelo menos oito meses.

    [13] Eufemismo.

    [14] Note-se que, se vamos nas Presidenciais, já estamos na terceira campanha em programas ininterruptos.

    [15] Estas meninas andam todas no secundário e já votam. Estudaram o programa do Amigo do Pai com a dedicação com que estudam para os exames. Passaram a noite em claro a fazer perguntas umas às outras para se certificarem de que sabiam responder a tudo. Foi muito proveitoso, porque durante o tour do Candidato foram abordadas por numerosos jovens interessados em conviver saudavelmente em termos socio-políticos, mostrando-lhes também a noite da sua terra.

    [16] Claro que o Candidato não diz “boas como o milho” diante dos pais das meninas, nem que mais não seja porque um Candidato tem que ter Tacto. Mas a ideia é essa, e elas sabem-no melhor do que ninguém. Mais aperaltada, só mesmo a Shakira antes de entrar em cena.

    [17] Havia, já há muitos anos, um programa de televisão em todos os visados tinham alcunhas, e a do Marques Mendes era “O Anãozinho Pérfido.” Só para dar um exemplo.

    [18] Por acaso é a conclusão de uma das minhas anedotas preferidas. É pena toda esta história não ser uma anedota, no entanto.

  • Benfica 1.4

    Benfica 1.4


    O Pedro Almeida Vieira foi operado aos olhos e não consegue ver ao perto. Inicialmente, pensei que me estava a dizer que tinha entrado no curso de iniciação a VAR, onde, como se sabe, é requisito essencial ver mal. Mas enganei-me… era uma forma de me cravar para escrever a crónica do jogo. Logo a mim, um rapaz tão isento em matéria futebolística.

    Ainda não tinha decidido se ia buscar uma cerveja ou começava a preparar o corpo para o Verão quando, poucos segundos depois do apito inicial, já Pavlidis tinha deixado Diogo Costa a pensar na transferência de Verão.

    Foto: PÁGINA UM

    Os primeiros 20 minutos de jogo foram de sentido único, com o Benfica a controlar o meio-campo e a criar várias oportunidades. O Porto acordou a partir do minuto 25 e o Benfica baixou o bloco, apostando nas recuperações de Aursnes para lançar o contra-ataque.

    Nesta fase, as oportunidades do Porto eram criadas essencialmente por quatro jogadores: Rodrigo Mora, de longe o mais inconformado e talentoso portista; António Silva, um rapaz que se tenta descobrir desde aquele fatídico Portugal-Geórgia; Florentino, com o habitual brinde de jogo grande; e, claro, Di María, o meu favorito do plantel, que resolveu perder quase todas as bolas em que tocou.

    Depois de algumas bolas ao poste por parte dos jogadores do Benfica, Florentino ensaiou algo que não é a sua praia — o remate — e fez uma assistência primorosa. Pavlidis agradeceu, sentou um defesa e voltou a dar pensamentos futuros a Diogo Costa.

    Ao intervalo, pensei que Bruno Lage deixaria Di María no balneário, por estar a ser a maior fragilidade, mas enganei-me. Deve ser por isso que o treinador é ele e não eu. O Porto também não mexeu, mas no caso de Anselmi nem é bem pela falta de vontade — é mesmo falta de matéria-prima.

    O início da segunda parte foi uma repetição da primeira. O Benfica jogou e o Porto assistiu. Di María faz-me lembrar o meu avô: falava pouco, mas falava bem. Apareceu uma única vez, antes de ser substituído, para fazer uma assistência boa — mas tão boa — que até o Samu marcaria. E marcou mesmo.

    António Silva, que insiste em adormecer nestes jogos, ficou a observar o movimento técnico de Samu na recarga a um remate de um colega. Deu-lhe nota 10 pela execução e depois abriu os braços, como que a perguntar aos colegas: sabem quem é que deu outra casa?

    O Porto aproveitou o embalo e criou nova oportunidade, aproveitando a péssima adaptação de Dahl à lateral direita. Foram minutos de excepção à tendência do jogo.

    O Benfica mostrou superioridade do início ao fim e teve a vitória mais tranquila que alguma vez me lembro de ver no estádio do Dragão. A imprensa dirá que Pavlidis foi o homem do jogo. Eu acho que a perfeição, esta noite, teve outro nome: Aursnes. O norueguês que não treme nem complica. Defende, ataca, cobre o lado de Di María, compensa as falhas de Florentino, faz a dobra ao António Silva. É um daqueles jogadores que, discretamente e sem controvérsias, conquista a plateia.

    O Pedro disse-me, antes do jogo, que isto ia acabar 1-4. Nada mau, para um homem que vê tudo desfocado.

    Foto: PÁGINA UM
  • O Dragão e o Lobo

    O Dragão e o Lobo


    Já percorri muitas varandas futebolísticas nos últimos dois anos, mais como um turista excêntrico — daquele tipo que percorre mosteiros barrocos — do que como jornalista. Escrevo crónicas que, em certa medida, compensem os meus poucos atributos sobre tácticas e estilos. Daí que houve, neste ínterim, dezenas de Varandas da Luz, umas Varandas do Varandas (com e sem Carlos Enes), uma do Jamor, outra em Montjuic — com vista para a nostalgia catalã — e até uma Varanda das Cinco Quinas, que soa mais a chá com bolinhos e um fora-de-jogo. Começava, pois, a ambientar-me à doce vida de cronista da bola: ver sem ver, escrever sem ver muito, e opinar com aquele à-vontade próprio de quem nunca treinou sequer um grupo de escuteiros e nunca calçou chuteiras, apesar de, como jornalista, dar muitas caneladas.

    Foto: PÁGINA UM

    Até que, no esplendor de uma convalescença ocular, desembarquei no Dragão. Não num cavalo branco, mas com a garantia de o Tiago Franco — benfiquista militante e erudito da táctica invertida com carapaus — me escrever a crónica, e assim, de smartphone em punho, dispus-me apenas a fazer o que qualquer jornalista faz quando não tem de escrever: tirar fotografias.

    Eis senão quando, surge uma senhora. Não uma senhora qualquer, mas uma zelosa representante da FC Porto Média, que em vez de um crachá trazia, presume-se, um faro treinado para detectar crimes audiovisuais. “Está a filmar o jogo?”, pergunta-me com a doçura de um fiscal tributário. “Deixe-me ver o seu crachá”, remata. Pasmo. Não estava a filmar. E digo-o. E repito. E entro, vá, numa altercação ligeiramente furibunda (com a suavidade de um cronista que só vê com um olho e mesmo assim vê demais) sobre que raio de coisa era aquela de estar a querer saber o que um jornalista em funções estava a fazer ou deixava de fazer. Não gravo a conversa, mas tirei fotografia ao seu crachá para memória futura…

    Foto: PÁGINA UM

    É verdade, confesso, dei demasiado nas vistas: quase gritei golo do Benfica ao primeiro minuto. Mea culpa. Não bati palmas a jurar fidelidade ao dragão nem entoei o hino com reverência litúrgica antes do apito inicial. Mas daí até ser tratado como um espião de bancada vai um salto… de vara.

    Enfim, se querem afastar o mito de que o FCP é um clube dado a tiques inquisitoriais, talvez não seja má ideia dispensarem o papel de Santo Ofício às suas zeladoras. Afinal, quem não quer parecer lobo talvez devesse reconsiderar o uso insistente de pele lupina.

  • Tuks

    Tuks


    Na véspera de eleições, para satisfazer os munícipes dos bairros históricos, arreliados com os enxames de tuks e afins, Dom Moedas ordenou mais uma leva de interdições à circulação de ruas cruciais para a execução do serviço de embaixada cultural. Bem feito, é disto que se trata.

    Como moeda de troca aumentou o número de lugares de estacionamento autorizado e ordenou a vigilância sistemática de quem se posiciona indevidamente em segunda, terceira ou sexta fila. Tá certo.

    Foto: D.R.

    Quanto ao escrutínio de competências bastaria certificar obrigatoriamente quem presta tal serviço, no lugar de ser uma opção aleatória. Queres ser guia? Tens paixão por contar histórias? Sabes línguas estrangeiras? Articulas sujeitos, predicados e complementos directos sem engasgos? És empático e simpático? Então estuda e obtém aproveitamento. Não um cursozeco qualquer, mas uma licenciatura ou no mínimo um bacharelato. Depois, como em qualquer lugar organizado e civilizado, haverá quem igualmente certificado se incumba de verificar a certidão profissional. Quem não o tenha, ala.

    De outro modo, tal como é há 14 anos, e continuará a ser, qualquer atrevido se fará ao piso. Estou a fazer um curso de 76 horas no Turismo de Portugal para ver o que se ensina e quem o faz. Os formadores sabem da fruta. Interessam-me em particular os módulos com as polícias.

    Dom Moedas destacou um batalhão tipo SWAT para dar caça aos tuks. Para reforçar o acto musculado, o edil juntou a famigerada EMEL, onde desagua todo aquele que não tem capacidade para mais nada a não ser dar ao dedo e apertar bloqueadores. Alguns são armários das artes marciais e do MMA, para intimidar o condutor.

    Foto: D.R.

    No lugar de ir à raiz da questão — como é possível haver uma actividade económica sem controle de facturação —, não, ataca-se com os gendarmes.

    A AT, se quisesse, apertaria os calos aos enriquecimentos ilícitos. Tem uma arma digna de um criminoso: os métodos indirectos de correção fiscal, além das penhoras e execuções. Isto não sucede, e mesmo quem foi alvo de inspeções e processos de fraude e evasão fiscal, goza com recurso ao móbil de nada ter em seu nome (recorre a família e amigos) ou se tem, ninguém lhes pergunta como obteve o capital para aumentar o património. Não lhes fodem a vida. Talvez até os corrompam.

    Há uma ou outra empresa que trabalha com marcações através de sites e plataformas e lá vai pagando, mesmo que empregue sem grande respeito pelo trabalhador, nomeadamente no vínculo que o une à empresa. A maioria é tarefeiro ou trabalha por conta própria e risco.

    Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa. / Foto: D.R.

    Outra forma de asseio seria determinar quantos veículos cabem sem estorvar. Já agora, estabelecer critérios de ordem nas filas e preços fixos. No dia em que se fizer um documentário, ensaio ou investigação séria, este ramo cairá de maduro. Mas isso será no dia de S. Nunca à Tarde. Até lá, será o que sempre foi: a selva, lugar do mais forte e adaptado. Até lá, assiste-se ao espectáculo do mundo. Da sobrevivência a quanto obrigas.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

  • Medo, suor, lágrimas… e um kit de sobrevivência

    Medo, suor, lágrimas… e um kit de sobrevivência


    Estou no carro e ouço pela rádio que, nos últimos dias, a União Europeia lançou mais uma recomendação digna de Independence Day: a criação de um kit de sobrevivência para 72 horas, destinado a preparar os cidadãos para cenários de emergência, incluindo desastres climáticos, guerras e pandemias… Ou (digo eu) a aterragem de um OVNI com “bonecada” lá dentro perigosíssima. Nada que os terraplanistas não tenham avisado.

    As 72 horas parecem uma versão reciclada dos 15 dias para aplanar a curva. Soa a briefing de um reality show: Survivor – União Europeia Edition.

    O alerta chega com um tom grave, quase apocalíptico, como se estivéssemos a entrar numa nova era de catástrofes permanentes. Segundo um amigo meu, já não é a excepção permanente, mas sim a sketchização permanente, como se nunca mais saíssemos de dentro de um episódio do Flying Circus.

    A questão que se impõe, porém, não é a necessidade de precaução – que sempre existiu – mas sim a insistência numa narrativa que reforça o medo como instrumento de governação. Nada de novo na frente ocidental.

    Mas estes ocidentais querem a guerra, ajudando a Ucrânia. E paz não?

    Sai mais barato.

    Bolas, ainda ontem vi O Herói de Hacksaw Ridge, um filme curioso e a guerra é assustadora.

    Que vá para lá o Macron ou o António Costa. Já não basta terem de arranjar 800 mil milhões de euros para a financiar?

    Agora a von der Leyen anda a brincar aos porta-aviões? Vendem-te a guerra e depois o kit. Gostava de saber o que é que a BlackRock acha disto. Senão pergunto à Vanguard.

    Antes de mais, convém recordar que a ideia de kits de emergência não é nova. Países como o Japão, habituados a desastres naturais, há muito que promovem medidas desse género.

    Antes da pandemia, a única catástrofe natural da nossa geração tinha sido umas horas sem luz. E pronto… A Grécia do Euro 2004 também.


    Ultimamente, é um ver se te avias infinito. Agora, a UE quer que tenhamos comida, água e mantimentos para 72 horas. Basicamente, um festival de música sem concertos e sem drogas.

    Mas, no caso europeu, a novidade está na amplitude do alerta, na conjugação de múltiplos riscos e, sobretudo, no subtexto da comunicação: uma sociedade em permanente estado de ameaça.

    A mensagem é clara: o cidadão deve estar preparado para sobreviver sozinho, pelo menos por três dias, porque não pode confiar que o Estado o proteja de imediato.

    Se estiverem 40 graus, o Estado não tem culpa. As pessoas é que consomem demais. Agora olha… três dias a ver o sol aos quadradinhos. O nosso dióxido de carbono dá cabo da floresta. Este é o oxigénio que a União Europeia amassou.

    De cortar a respiração…

    E nesses três dias de reclusão, haverá Wi-Fi? Aí, sim, em caso de corte haverá rebelião de certeza.

    Ao invés de um debate sério sobre resiliência social e infraestruturas de emergência, o que temos é um apelo individualizado à autossuficiência.

    A responsabilidade de garantir um mínimo de segurança desloca-se para o cidadão comum, que deve agora assegurar reservas de água, alimentos, medicamentos essenciais e até fontes alternativas de energia para ver na Netflix filmes sobre… catástrofes naturais, claro!

    O sossego devia ser uma palavra retirada do dicionário. Já não se usa.

    Na notícia, não há qualquer menção a reforços significativos nos serviços públicos ou a investimentos estruturais que tornem estas medidas desnecessárias. Apenas a exigência de um pequeno bunker portátil. Provavelmente feito na China. Outro inimigo.

    Haverá um kit premium? Com ostras champanhe e abacate?

    O que mais impressiona nesta narrativa é a sua lógica de escalada. Não falamos apenas de kits de emergência para inundações ou incêndios, problemas há muito reconhecidos e já integrados em planos de proteção civil. Agora, o espectro do risco é alargado para incluir cenários de guerra e novas pandemias.

    As gripes andam aí. É fácil um morcego enganar-se e comer um pintassilgo para depois o Rodrigo Guedes de Carvalho nos dar umas prédicas com kit completo incluído.

    Depois de uma crise sanitária global que serviu de ensaio para um controlo social em larga escala e em plena guerra na Ucrânia, a UE parece querer que todos os cidadãos se comportem como pequenos sobreviventes urbanos, preparando-se para um futuro incerto e perigoso que faz The Day After parecer o D’Artacão.

    Não será de estranhar que, em breve, surjam “packs certificados pela União Europeia” disponíveis no mercado, promovidos como itens essenciais para qualquer lar europeu consciente. O meu kit vou comprá-lo à feira do relógio. Traz de certeza uma bifana de bónus.

    As oportunidades económicas são evidentes: de fabricantes de alimentos liofilizados a empresas de purificadores de água, há toda uma nova indústria à espreita. No fim de contas, o medo é sempre um excelente negócio.

    Mas quem é que inventou esta palhaçada? Coitados dos miúdos que deixaram de jogar com a Intel e passaram a ser Incel. Se foi um palhaço, era do antigo Circo Mariano, de certeza.

    Não querendo com isto defender criminosos, claro. Mas generalizar?

    É legítimo questionar se este tipo de recomendações são realmente necessárias ou se fazem parte de uma estratégia política mais ampla.

    Num continente onde a confiança nas instituições tem vindo a deteriorar-se, fomentar o medo pode ser uma forma eficaz de manter a população numa espécie de obediência preventiva. A sensação de crise permanente reduz a capacidade crítica e fomenta um conformismo passivo: se a ameaça é inevitável, então resta apenas seguir as diretrizes das autoridades.

    Esta abordagem não é inédita. Durante a pandemia de covid-19, as mensagens institucionais oscilaram entre a necessidade de controlo social e a culpabilização individual, com a tentativa de venda do StayAway Covid pelo Paulo Portas na TVI sem grande sucesso.

    Agora, com o foco alargado para as alterações climáticas e conflitos geopolíticos, a fórmula repete-se. O cidadão não deve apenas ser responsável pela sua saúde pública, mas também pela sua própria sobrevivência em caso de colapso temporário dos serviços essenciais. O Estado não tem culpa nenhuma.

    Peçam o livro de reclamações à Rússia.

    O problema deste tipo de discurso não é a falta de fundamento, mas a ausência de soluções estruturais para lidar com os desafios que nos são apresentados.

    Não se trata de um jogo de Paintball em Belas, em que nos podemos safar sozinhos. Agora, trata-se mesmo de perigos que levam à morte. Aqui, a haver humor, é mesmo negro.

    Negro escuro.

    O Estado, em vez de garantir sistemas de saúde robustos, redes de abastecimento resistentes e uma política energética coerente, aposta na lógica do “faça você mesmo”.

    Ficou punk.

    Em última análise, esta narrativa de autossuficiência não é apenas um reflexo das preocupações com um futuro incerto, mas também um sintoma de um modelo político que se demite de certas responsabilidades.

    Na pandemia, muitos políticos (e pessoas) – como veio a saber-se depois – não cumpriram regras e divertiram-se à grande em festarolas de arromba. Daqui a uns anos, já não se verá o 24 Hour Party People, mas sim o 72-Hour Party People. E, em vez de ser na Hacienda, será em Buckingham.

    Em vez de roqueiros a cair para o lado, teremos chefes de Estado.

    Esta abordagem, além de criar ansiedade desnecessária, legitima políticas de desresponsabilização.

    O resultado sem duvida é um progressivo enfraquecimento da ideia de comunidade e de solidariedade social, substituída por uma lógica quase empresarial de gestão de risco individual. O famoso neo-liberalismo de esquerda. Estou já a ver a esquerda caviar a pedir kits para 100 horas em vez de 72, com o alto patrocínio do Infarmed.

    Fogo, quem não gostaria de estar fechado 100 horas com o Louçã era eu. Só de imaginá-lo a dizer piadas… Preferia 50 do Fernando Rocha contando com as mais estúpidas, que 2 do Louçã.

    Em suma, não se trata de ignorar a necessidade de precaução – porque, claro que desastres acontecem e a preparação é útil –, mas sim de questionar por que motivo as respostas políticas se centram cada vez mais na lógica do medo em vez da prevenção sistémica.

    Concluindo. O mais engraçado disto tudo é a transparência do modelo: primeiro criam-se as condições para o colapso – cortes na saúde, privatizações, precariedade energética – depois vendem-se soluções individuais para problemas colectivos.

    É um meta-capitalismo de desastre gourmet, agora numa versão mais higiénica, com selo europeu e talvez até uma estrela Michelin, se fores VIP. 

    A classe média já era. E agora fica só com 72 horas para apertar o cinto. Tipo jogo de computador.

    Mas vejam lá o Wi-Fi. Depois ficamos sem saber como é que o Gerard Depardieu sobreviveu numa cave sem Confit de Canard.

    Enfim, mais uma vez o Flying Circus encontra-se com o 1984 na Feira Popular para celebrar este admirável mundo novo que está a ficar velho.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações: Swimming Pool Project


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Adolescência (a série): um abismo sem plano sequência

    Adolescência (a série): um abismo sem plano sequência

    Aviso: Este texto contém revelações sobre a série Adolescência que podem comprometer o efeito de surpresa — se é que isso ainda existe.


    Vivemos um tempo cheio de buracos.

    E já que tratamos aqui de televisão, é curioso observar como a indústria cultural soube reconfigurar os dispositivos da catarse, não sendo apenas um reflexo da “realidade” mas tratando dela para a reorganizar num sistema de validação moral atractivo e muito dicotómico, embora perto do vazio.

    As séries contemporâneas converteram-se em repositórios de códigos éticos formatados, onde o espectador é conduzido por uma arquitectura emocional que não exige dúvida, mas um apelo à identificação.

    Daí talvez o sucesso desta série chamada Adolescência que foi filmada no norte de Inglaterra, entre South Kirkby, South Elmsall e Sheffield, e sobre a qual se debruça este texto.

    Trata-se da mais recente produção da Netflix com assinatura britânica, e que se inscreve exemplarmente nesta genealogia: uma obra que simula o abismo, mas opera sempre à beira da superfície; que quer parecer disruptiva, mas permanece meticulosamente dentro dos contornos do admissível pelo mainstream ideológico, como seria de esperar em tempos tão simulados e pouco rigorosos a roçar a hipocrisia, marca inevitável de quando só existem dois lados possíveis de escolha. 

    Na sequência do assassinato brutal de uma jovem estudante, Adolescência acompanha quatro dias decisivos na vida de Jamie, em que nem sempre ele está presente. Trata-se de um rapaz de 13 anos acusado do crime. Filmada em tempo real, a série mergulha no impacto psicológico e social do acontecimento, expondo as fragilidades da família, da escola e do sistema de justiça juvenil. Com uma narrativa densa e claustrofóbica, a série explora a culpa, o silêncio e o peso insustentável de crescer num mundo que parece ter pouco sentido, cheio de tensões e neurose  A título de curiosidade, a série é para maiores de 13 anos, a idade do protagonista. Tudo a condizer.

    A verdade é que o mundo colapsa, mas dentro de um guião. A série começa logo mal por se chamar Adolescência e não O adolescente (ou outra coisa). Fazendo passar um pelo todo, associação pertinente, o que é assustador. Como se na adolescência o normal fosse matar sem razão aparente. Esta série televisiva tem tudo o que se espera de uma tragédia contemporânea, pré-digerida para consumo emocional.

    É talvez no centro narrativo da série — o acto de Jamie de matar, visto pela câmara de vigilância — que se torna mais visível a escolha programática do argumento: não nos é dito porquê. Não há confissão, nem reconstituição, nem motivação dramática articulada.

    O espectador é mantido fora do momento do crime, não para pensar sobre ele, mas para sentir o seu eco. Quando se volta a estar com Jamie no terceiro episódio já passaram uns meses. E no quarto aparece a voz da sua confissão apenas.

    A consequência ocupa o lugar da causa. O gesto torna-se enigma, mas não no sentido trágico da palavra — apenas no sentido funcional.

    Jamie mata, não porque tenha razão, pulsão, trauma ou uma ideologia aparente, mas porque a narrativa precisa de uma figura sacrificial silenciosa, até omnipresente que active o colapso dos adultos à sua volta. O corpo do rapaz é o epicentro imóvel sobre o qual todos os outros orbitam em falência — pais, escola, justiça, e até a psicóloga esgotada no final da entrevista do terceiro episódio.

    E no entanto, a ausência de causalidade, tão elogiada pela crítica como sinal de maturidade narrativa, parece ser menos uma abertura ao abismo do que uma forma de evitar o pensamento.

    Ao recusar mostrar ou interrogar o gesto, impede-se o espectador de exercer a sua interpretação. O silêncio de Jamie não é ambiguidade, é controlo simbólico. E, pior ainda, é uma maneira de deslocar o peso do acto para o circuito emocional da culpa partilhada, onde a pergunta “porquê?” já não importa.

    Jamie mata, sim. Mas o que morre com ele é a possibilidade de uma dramaturgia que se arrisque a pensar o crime para lá do seu valor simbólico. E isso, mais do que a própria violência, é o gesto violento da série. Poderia ser uma actitude de provocação mas não é.

    Conhecendo minimamente a realidade inglesa, percebe-se que há ainda assim diferenças significativas entre os dois países — sobretudo na forma como a autoridade (ou a sua versão pseudo-autoritária) se exerce, e no peso que o Estado impõe às famílias, com a respectiva violência simbólica e estrutural. Portugal, ao lado dos anglo-saxónicos, parece um peso-pluma no velho índice foucaultiano, já gasto, sim, mas cada vez mais reactualizado com a televisão a servir de panóptico de fundo.

    Cada episódio é um plano-sequência: quatro blocos temporais contínuos, quatro actos de uma peça que quer fazer-se passar por realismo, como se esse género ainda pudesse ser mais estilizado, empregando um marketing crítico (se assim poderemos chamar), porque hoje as séries são avaliadas com o mesmo espírito que os produtos no Uber Eats: eficácia, satisfação emocional, identificação rápida envolta em likes e Emojis. 

    A crítica deixou de ser campo de pensamento e passou a ser validação simbólica, como se fosse uma extensão do marketing do filme, sempre com excepções, claro.

    Mesmo os jornais sérios vivem do clique, da partilha, do engajamento — e isso empurra para o consenso emocional e não para o pensamento incómodo.

    Dando uma vista de olhos pela crítica que se tem feito, percebe-se o entusiasmo em destacar a virtude da série por apontar a masculinidade tóxica como o alvo a abater.

    Supostamente, a culpa é da Net — encarnada numa conversa entre a mãe e o pai, que comentam as noites de luz azul acesa no quarto de Jamie até de madrugada. Mas a verdade é que a Net é hoje tudo, até o espelho. O próprio Governo,  surge maquilhado na narrativa como uma espécie de vítima inocente de uma abstracção digital incontrolável. Constatamos isso pelo esforço da policia e da impossibilidade da escola com os rapazes bullies a fazer das suas.

    Ironia suprema: a série é consumida na mesma Net que parece veladamente demonizar, e ali ficará a repousar como um cadáver bem maquilhado que já fez o seu trabalho num cemitério redundantemente zombie.

    Pode deduzir-se que o que se pede é mais regulação urgente e que os governos, coitados, são quase retratados como vítimas impotentes de um mundo abstracto que resvala para a anarquia. Mas a vida não é assim. As coisas estão hoje muito mais ensimesmadas e interligadas ao mesmo tempo, tornando-se a sua decifração tão blindada como um segredo de Estado.

    A arte, nesse contexto, parece muitas vezes remetida ao papel do chato funcionalismo público,  só que agora com a emoção da moral do bem, estrategicamente incrustada, como se isso lhe conferisse urgência estética.

    A câmara (e aqui começa o problema) não nos interroga — conduz-nos através do seu GPS afinado e convenhamos, fá-lo bem. Do ponto de vista da mise-en-scène formal parece-nos exímia.

    Mas por outro lado do ponto de vista intelectual, não parece exigir grande coisa aos espectadores num qualquer desvio que a câmara proponha, nenhum espaço onde se possa habitar a tragédia do ponto de vista da sua ambiguidade ou paradoxo e mesmo do livre arbítrio do espectador (se o tiver).

    Philip Barantini, o realizador, sabe dirigir actores e operar uma tensão formal com rigor mas tudo é demasiado operacional e afinado. É o teatro do naturalismo embalado numa estética condescendente com o próprio dispositivo televisivo, embora esta série se armadilhe de argumentos mais cinematográficos e experimentais como o tão falado uso do plano sequência, um doce para a critica especializada que parece já pouco sair à rua sem carpetes vermelhas.

    A escolha de filmar sem cortes aparentes cria uma armadilha: a ilusão da continuidade converte-se numa suspensão da complexidade. O tempo avança, mas não se transforma. A narrativa desliza sobre si própria. Às vezes parece não sair nunca do mesmo lugar, um artifício que pelos vistos funciona, ou não fosse esta a série da moda.

    Owen Cooper, no papel de Jamie, entrega uma fisicalidade apagada mas com fogachos como no caso da cena com a psicóloga em que invariavelmente se torna violento e ameaçador, como se o corpo estivesse sempre no rescaldo de um trauma que não nos é dado a ver, mas o actor fá-lo eximiamente e com uma representação típica do melhor dos britânicos neste tipo de encenação.

    Diria mesmo que no género são imbatíveis.

    Christine Tremarco, como mãe, transita entre o desespero e a impotência mas sempre dentro de um rigor que aflige positivamente. Stephen Graham, produtor e actor, encarna o pai com uma contenção que se pretende densa, mas que nunca verdadeiramente acende o fósforo, embora pareça que vai explodir a qualquer momento, para o bem ou para o mal da acção programática.

    Destaco ainda a filha, a psicóloga e o polícia que fazem jus à sua escola britânica  de forma brilhante e inspiradora, fazendo até esquecer outros aspectos menos interessantes, e não deixando instalar-se algum tédio inerente a uma obra sem cortes de edição.

    Jack Thorne, o criador, propõe um drama social que convoca o espectro de Ken Loach ou Mike Leigh, talvez, mas sem a coragem formal ou o radicalismo ético desses nomes.

    Não há confrontação de classes, nem análise de estruturas. Apenas psicologia e culpa. O sistema de justiça juvenil é pano de fundo, mas nunca é questionado. A escola surge como um lugar de passagem, não de formação. Será esta já a realidade? Pode ser, mas nesse caso chega-se ao fim de uma linha cujo dispositivo mediático pretende lavar daí as suas mãos. Já para não falar do comunicacional.

    A violência é um sintoma, mas nunca um fenómeno que se queira entender em profundidade. E aqui a série revela o seu coração: não é o mundo que está doente, são os indivíduos.

    O trauma substitui a ideologia. Em contraponto Elephant de Gus Van Sant é o exemplo do contrário já que se trata também de um filme de crime numa escola pública mas deixa os espectadores respirar nem que seja para dentro de uma saco de plástico escolhido por ele.

    Mais perturbador ainda é o desenho das personagens no plano simbólico. O masculino, em Adolescência, é sinónimo de ausência, ameaça ou fracasso.

    O pai é impotente, os colegas são predadores ou cúmplices. O assassino é um silêncio que mata. Em contrapartida, o feminino surge como espaço de escuta, contenção, empatia. A psicóloga, a irmã, a mãe: todas representam zonas de verdade emocional. Esta oposição, além de simplista, revela uma lógica binária que contradiz o próprio realismo que a série reivindica. Não há contradição nos corpos, nem ambiguidade nos gestos.

    Cada personagem está condenada ao seu arquétipo. Não há voz que escape ao destino.Não é por acaso que quem mata é masculino e quem morre é feminino. A organização simbólica da série é clara: o masculino como ameaça, silêncio ou falência; o feminino como escuta, dor e verdade emocional. Jamie, o agressor, não tem agência — é um corpo mudo que activa a queda dos adultos. A vítima, ausente, torna-se presença moral. É uma configuração que parece natural, quase inevitável, mas que revela a escolha de alinhar-se com uma narrativa binária, afectiva e funcional. Ao não tornar mais complexa esta divisão, Adolescência não interroga o seu tempo , apenas o confirma, pelo menos na sua percepção estereotipada.

    Não deixa de ser curioso que a serie é muito masculina na sua autoria incluindo Brad Pitt que  aparece como produtor executivo.

    Esta moralização do enredo seria menos problemática se a estrutura dramática oferecesse zonas de fuga, de interrogação, de ambivalência. Mas não: a série opera como um tribunal sem apelação. Cada gesto é carregado de um subtexto que se quer politicamente correcto como se a culpa fosse definitivamente de Jamie ou da sua família que apesar de tudo aparece como estruturada. Mas o mal surge da normalidade e parece querer enfatizá-lo ao estilo de Hannah Arendt mas sem sentido crítico.

    Curioso e também um pouco incompreensível ou mesmo enigmático é a palavra “pedófilo” aparecer escrita na carrinha de trabalho do pai, mesmo sabendo quem a escreve — mais uma vez rapazes prontos a armar sarilho doa a quem doer. A filha boa e generosa é apenas espectadora quando o pai bate num dos rapazes. É a violência explicita a entrar pela família adentro.

    O aparato técnico é irrepreensível deixando no ar uma certa magia não sendo óbvio perceber o seu dispositivo perturbador, sobretudo no episódio em que passamos para um ponto de vista do céu como se fosse o de um drone. A fotografia é sóbria, neutra, quase hospitalar. Tudo contribui para uma estética da contenção. Nunca há um verdadeiro risco.

    O plano-sequência, que poderia ser um dispositivo de descoberta, torna-se um mecanismo de controlo. 

    Funcionou, tendo em conta as audiências e a critica especializada.

    Também o Dallas no seu tempo.

    A crítica parece unânime no Rotten Tomatoes, ou no Metacritic na critica positiva. 100 por cento. Mas esta unanimidade revela mais sobre o estado da crítica do que sobre a série.

    Vivemos um tempo em que a adesão emocional se tornou critério de valor. Se um produto cultural afirma uma causa justa, isso basta para legitimar todos os seus defeitos. A forma tornou-se irrelevante, desde que a intenção seja correcta. O problema é que a intenção, aqui é estranha. Dizer mal ou criticar boas acções moralizantes acarreta os seus riscos no planeta das duas terras. Uma estupidez tramada, que acarreta medo e desordem.

    A adolescência — enquanto conceito — é, por definição, uma zona de conflito, metamorfose, risco, transgressão.

    Nesta série, é convertida num campo de purificação moral. Em vez de corpo em transformação, temos corpos culpados ou redentores. Em vez de afectos desregulados, temos sintomatologias. Em vez de pulsões, temos discursos.

    Nada escapa ao algoritmo narrativo.

    Não é preciso pensar, mas empatizar. Não há abismo. Não há interrupção. Apenas a certeza de que estamos do lado certo. E isso, num objecto cultural que se pretende desafiante, é o maior dos fracassos.

    Adolescência é também um exemplo acabado da cultura da segurança simbólica. É um produto com vocação de arte. Mas a arte, quando se limita a imitar a virtude, torna-se apenas mais um ramo da indústria — agora com plano-sequência e paleta neutra.

    Adolescência é, no fundo, um bom exemplo do que acontece quando a televisão tenta mimetizar algum cinema sem aceitar o seu risco ontológico mas tudo está submetido a uma lógica de continuidade emocional e controlo narrativo.

    A televisão, enquanto forma, vive da fidelização e da retenção — e mesmo quando se aproxima formalmente do cinema, não abdica da sua função principal de manter o espectador dentro do regime da identificação, da empatia, do reconhecimento e da compreensão, tudo aquilo que Twin Peaks não tinha, não deixando por isso de ser um sucesso de público e da critica mas num tempo em que a internet era só uma miragem. O cinema, por oposição, pode fracassar e desorientar. Pode fazer o espectador sentir que não está no lugar certo — e, justamente por isso, transformá-lo, correndo sempre riscos ideológicos ou morais.

    Alguns episódios de Black Mirror conseguem-no e aqui com mais alguns pormenores e com a intromissão  “diabólica” da tecnologia quotidiana, o primeiro episódio seria magnifico e poderia inscrever-se nessa dimensão mais aberta de Black Mirror que na verdade nunca pretende ser cinema nem usa fluídos cinematográficos pretensiosos que faça a crítica rejubilar.

    No final, talvez Adolescência deva ser lida não como um falhanço formal ou conceptual, mas como uma espécie de diagnóstico involuntário da própria televisão contemporânea. Nesse sentido é uma série que tenta emular a densidade do cinema de autor, mas acaba por cristalizar, com rigor quase académico, os limites internos da sua matriz televisiva.

    E é aí que se torna interessante: na tensão entre aquilo que pretende ser e aquilo que efectivamente é, dando prazer assistir.

    Não se trata de perdoar as suas falhas narrativas, nem de celebrar as suas virtudes técnicas, trata-se de reconhecer que a obra, na sua incapacidade de produzir verdadeiro abismo, revela com clareza o modo como a televisão actual opera: por sedução estética, por empatia emocional, por alinhamento moral. A sua forma — o plano-sequência — que poderia ser instrumento de desorientação, converte-se num dispositivo de segurança.

    A sua narrativa que parte de um trauma, nunca arrisca o desconforto real. A sua dramaturgia que invoca o realismo, encena apenas a previsibilidade ética do seu tempo. Queríamos mais e aqui estava uma excelente oportunidade.

    Nesse sentido, Adolescência não é uma má série: é uma série transparente à sua maneira. Se tivesse de atribuir uma nota daria 7 (10).

    Expõe os mecanismos de contenção simbólica da televisão pós-Netflix, onde tudo é coreografado para parecer radical, mas nada escapa ao regime do reconhecimento. Quase como se quisesse redimir em certos momentos onde a câmara deveria ir para ver mas não vai ficando talvez a sugestão. É evidente que gostaríamos de a ver entrar noutros sítios mais incómodos para o poder. Imaginem Kubrick ou Bergman.

    E talvez seja este o seu mérito maior — e mais perturbador: mostrar, com precisão, o que a televisão contemporânea pode ou não pode ser. Mostrar que o risco está simulado, que a densidade está encenada, que a arte está subordinada ao algoritmo narrativo da plataforma.

    A Netflix é mais que uma plataforma. É um espaço contemporâneo em que a dislexia e a neurose se evidenciam de forma apesar de tudo transparente.

    Adolescência, assim lida, é um espelho: não do mundo, mas do próprio meio que a produz. E nessa revelação inusitada, torna-se politicamente relevante. Porque nos diz até onde a televisão é capaz de ir — e até onde jamais ousará chegar, fazendo assim serviço público de relevância, mostrando-nos o aeroporto onde se pode aterrar em segurança.

    E a vida continua… Talvez como nos filmes de Kiarostami.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações: Swimming Pool Project


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.