O relato de Nuno André, jornalista do PÁGINA UM, que se encontra na Ucrânia e na Polónia, sobretudo a fazer trabalho humanitário no centro de acolhimento de refugiados em Przemyśl, com incursões até Lviv. Apresentamos uma série de 10 depoimentos sobre a sua vivência.
Neste primeiro depoimento, Nuno André fala-nos das primeiras fases do acolhimento dos refugiados, das crianças e das mulheres que chegam sozinhas, da chegada e partida de quem vem ajudar, da organização dos centros e dos anseios daqueles que trazem a vida numa mala. E responde sobre se Portugal é ou não apetecível como destino dos que fogem à invasão russa.
Publicaremos ainda hoje o segundo episódio desta série de depoimentos intitulada “A terra da guerra”.
Organismo norte-americano que faz gestão da covid-19 corrigiu número de óbitos, que caíram em todos os grupos etários, mas especialmente nas idades pediátricas. Porém, desde o início do ano, os números alarmantes de supostos internamentos e mortes de menores nos Estados Unidos fizeram parte da campanha comunicacional para convencer pais a vacinarem as crianças contra a covid-19.
Um alegado erro informático “limpou” mais de 72 mil mortes indevidamente atribuídas à covid-19 em 26 estados norte-americanos, incluindo 416 óbitos em crianças, admitiu ontem o Centers for Disease Control and Prevention (CDC), o organismo federal que supervisiona a gestão da pandemia naquele país da América do Norte. A justificação do CDC, apresentada em comunicado à agência Reuters, remete para “ajustes de mortalidade do Covid Data Tracker em 14 de Março, porque o algoritmo estava contando acidentalmente mortes que não estavam, relacionadas com a covid-19”.
A correcção administrativa das mortes atribuídas à covid-19 atingiu todas as faixas etárias, mas no caso dos menores de 18 anos a redução foi de 24%, passando de 1.757 óbitos para 1.341.
Tendo em conta que a população menor de idade nos Estados Unidos ronda os 74 milhões (22,3% do total), segundo o United States Census Bureau, o número de mortes nesta faixa etária é o equivalente a 31 óbitos em Portugal para o grupo homólogo.
Recorde-se que, em Portugal, apenas se registaram até ao momento a morte de quatro menores de idade, todos com graves comorbilidades. E saliente-se também que os Estados Unidos tem sido um dos países desenvolvidos que mostra maiores disparidades sociais em termos de impacte da covid-19, com a incidência da hospitalização a ser quatro vezes superior na população negra adulta em comparação com a população branca.
O jornal digital Washington Examiner, de postura política conservadora, adiantou, entretanto, que a Covid Data Tracker empolou sobretudo as mortes de menores nas primeiras semanas de 2022, numa altura em que se intensificavam os programas de vacinação. Muitos órgãos de comunicação social, também em Portugal, foram aliás lestos a divulgar uma onda de internamentos de crianças nos Estados Unidos, que aparenta agora ter sido falsa.
Uma notícia da Agência Lusa no início de Janeiro, reportando o internamento de “cerca de 1.000 crianças” norte-americanas num só dia, teve eco, por exemplo, no Diário de Notícias, no Observador e na SIC.
Com um título mais alarmante, o canal televisivo da Impresa noticiaria, em 17 de Janeiro, que a Ómicron seria a responsável por aquela situação.
Ainda recentemente, na edição de 11 de Março, o jornal britânico The Guardian relatava que “um terço de todas as mortes infantis” por covid-19 nos Estados Unidos tinham ocorrido durante o surto da Ómicron. Fazia crer assim que esta variante, claramente menos letal para a população mais vulnerável, poderia ser afinal mais perigosa para crianças e adolescentes.
Algo que, com a correcção do CDC, mostrou ser falso. O jornal do Reino Unido viria mesmo a rectificar a notícia original anteontem, passando a titular que afinal, em vez de um terço (33%) das mortes era “um quinto” (20%), anotando também que o erro da notícia se devera a “um erro de codificação” do CDC.
Apesar do alarmismo em redor da covid-19 em idade pediátrica, o impacte efectivo neste grupo populacional é irrelevante no ponto de vista da saúde pública. De acordo com dados do CDC, os menores de 5 anos representam 6% da população e apenas constituem 0,1% dos óbitos causados pela pandemia, o que contrasta com a situação dos maiores de 85 anos: são apenas 2% da população dos Estados Unidos, mas aí se concentraram 26,7% dos óbitos. A população com mais de 65 anos (16,5% do total) registou 75,2% de todas as mortes por covid-19.
Em Portugal, a mortalidade por covid-19 ainda é mais residual nas faixas etárias inferiores. Os menores de idade representam cerca de 17% da população, e os quatro óbitos registados constituem 0,02% do total. Já a população com mais de 60 anos concentra 95,5% da mortalidade atribuída à covid-19, representando 30% da população.
Uma nova norma da Direcção-Geral da Saúde procura orientar os profissionais de saúde a identificar e tratar sintomas crónicos decorrentes da covid-19. Porém, tudo cabe no chamado long covid, incluindo pessoas que nunca tiveram teste positivo. E mesmo pessoas que se sentiram mal depois da vacina podem acabar assim diagnosticadas. Seguindo-se esta norma, o SARS-CoV-2 tem, afinal, “costas” tão largas que até pode ser apontado como culpado por suicídios.
3.380.263 – é este o número oficial de infecções por SARS-CoV-2 que, segundo os dados da Direcção-Geral de Saúde (DGS), tiveram teste positivo à covid-19 desde o início da pandemia em Portugal, em Março de 2020.
Também de acordo com a DGS, houve 21.285 mortes atribuídas a esta doença, o que significa que 3.358.978 pessoas com teste positivo tiveram doença (grave ou ligeira) ou foram assintomáticas, e sobreviveram ao SARS-CoV-2.
De entre essas, e considerando uma taxa de mortalidade mensal em Portugal de 0,01% (12 por 1.000 ao fim de um ano), podemos então estimar que quase 17 mil pessoas terão morrido de outras doenças depois de já terem contraído e recuperado de covid-19 [daqui a 100 anos será praticamente 100%].
Em suma, estarão seguramente vivas um pouco mais de 3,3 milhões de portugueses com comprovativo de teste para SARS-Cov-2, independentemente da gravidade.
Porém, ainda segundo a DGS, o número de pessoas susceptíveis estarem a sofrer de long covid – ou mais prosaicamente condição pós-covid-19 – pode ser até superior a este número. No limite do absurdo, potencialmente poderá haver mais casos de long covid do que de doentes-covid.
Isto porque uma norma homologada esta quarta-feira pela directora-geral da Saúde, Graça Freitas, determina que o “diagnóstico da condição pós-covid-19 [long covid] é clínico e deve ser considerado quando existe forte suspeita, mesmo na ausência de história de teste para SARS-CoV-2 positivo.”
Norma da DGS considera possível sintomas de long covid, que inclui depressão, mesmo sem teste positivo ao SARS-Cov-2.
Ou seja, mesmo pessoas sem conhecimento de terem tido alguma vez covid-19 – nem por teste PCR ou de antigénio nem por teste serológico –, portanto, dois terços da população portuguesa, podem vir a ser diagnosticadas, segundo a norma da DGS, como sofredoras de long covid.
Para tal bastará que tenham um quadro de sintomatologia muito variado, que vai desde a dispneia súbita ou em repouso, a febre associada a dor torácica com características pleuríticas até toracalgia pleurítica e/ou toracalgia com características de angor, passando ainda por alteração do olfacto e do paladar, alteração do estado de consciência, défices neurológicos focais, cefaleia súbita e intensa, depressão e ansiedade e até mesmo sintomas psiquiátricos graves com risco de suicídio. Tudo pode ser por culpa do SARS-CoV-2.
Embora a norma da DGS indique formas de despistagem para identificação de sequelas da covid-19 sobretudo pulmonares e cardíacos – com exames complementares de diagnósticos complementares, como eletrocardiogramas, avaliação imagiológica do tórax e provas funcionais respiratórias –, em muitas situações mostrar-se-á algo forçoso atribuir especificamente ao vírus a causa de determinadas perturbações.
São os casos, por exemplo, dos sintomas psiquiátricos indicados na norma da DGS, como a ansiedade, a depressão, a perturbação do sono ou mesmo a ideação ou a concretização de suicídio.
Norma inclui teste PHQ-9 para detecção de depressão por long covid.
No limite, aquilo que a DGS aparenta querer fazer é atribuir um eventual aumento do número de suicídios não como uma consequência da gestão da pandemia e das dificuldades económicas dos portugueses, mas sim apontar um suposto diagnóstico de long covid como uma causa patológica, mesmo em “pacientes” que nunca estiveram doentes com covid-19 ou nem sequer teste positivo apresentaram em qualquer data anterior.
Por exemplo, de acordo com o Anexo 8 da norma da DGS, que inclui a aplicação do PHQ-9, um teste clínico de diagnóstico de depressão, se alguém tiver alterações de humor compatíveis com um valor entre 15 e 28 – que indicia necessidade de tratamento – pode ser também considerada uma vítima de long covid.
No absurdo, até sem qualquer histórico de teste positivo. Dependerá somente da decisão clínica do médico.
Porém, mais estranho ainda nesta norma da DGS é a preocupação em se saber também, através de um detalhado questionário clínico (Anexo 2), informação detalhada sobre o estado vacinal do paciente, inquirindo mesmo quantas doses foram tomadas e qual a marca administrada (Spikevax, Comirnaty, Vaxzevria, Janssen ou outra).
Nesse inquérito, o paciente apenas será questionado se um eventual agravamento do seu estado de saúde se registou antes da covid-19. Nada se pergunta se a pessoa teve alguma “recaída” após a vacinação.
Recorde-se que a própria Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 admitiu que “parece existir uma maior frequência de reacções adversas sistémicas após vacinação de indivíduos previamente infectados”.
Em suma, a DGS mostra nesta norma que não considera relevante uma avaliação sobre eventuais efeitos adversos após a vacinação, mas tão-só busca supostos casos de long covid mesmo em pessoas sem contacto confirmado de covid-19, sejam estas vacinadas ou não. Recorde-se que 91,4% da população portuguesa se encontra vacinada.
Direcção-Geral da Saúde escondeu discordâncias entre os membros da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 sobre a vacinação de adolescentes, dando a entender que a opção pela vacinação foi técnica e cientificamente consensual. Não foi. E nem se baseou em dados científicos consolidados. Foi uma opção política, e os pais nunca foram informados.
No âmbito da estratégia do combate à pandemia, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) justificou a implementação do programa de vacinação em adolescentes, no Verão passado, com base em dois pareceres polémicos que mereceram mesmo a não concordância de cinco dos membros da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC). Esta situação foi inédita em todos os outros 21 pareceres.
Na totalidade dos 23 pareceres (vd. lista em baixo), apenas outros dois não mereceram unanimidade, mas apenas por um dos membros, cada: o primeiro, referente à vacinação de maiores de 80 anos; o segundo, sobre a co-administração das vacinas contra a covid-19 e a gripe.
Destaque-se que as discordâncias nos dois pareceres sobre vacinação de adolescentes, datados em 28 de Julho e em 8 de Agosto do ano passado, foram sempre omitidas pela DGS. Relembre-se que todos os membros, com funções consultivas e publicamente pró-vacinas, foram escolhidos a dedo pela directora-geral da Saúde, Graça Freitas.
E nunca constaram da informação dada aos pais com vista ao consentimento informado. Ou seja, os pareceres foram “vendidos” à opinião pública como se houvesse consenso entre peritos. Nunca houve.
Recorde-se que estes e os outros 21 pareceres – com excepção do referente às crianças que foi divulgado por pressão política em Dezembro passado – estiveram inacessíveis ao público até esta semana. O PÁGINA UM, após uma longa “luta jurídica” de cerca de cinco meses, conseguiu ter finalmente acesso aos pareceres da CTVC, na sequência de um parecer solicitado à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA).
No primeiro parecer sobre a vacinação de adolescentes, homologado por Graça Freitas em 28 de Julho, de entre 12 votos da CTVC registaram-se três contra e duas abstenções. Menos de duas semanas mais tarde, em 8 de Agosto registaram-se quatro votos contra e “uma pessoa não votou”.
Apesar do PÁGINA UM ter solicitado, no âmbito da queixa contra a DGS na CADA, o acesso também às actas da CTVC, estas não foram ainda disponibilizadas. Ontem, o PÁGINA UM questionou a DGS para identificar os membros da CTVC que votaram contra no primeiro e no segundo pareceres, mas não obteve qualquer resposta, apesar do e-mail com essa solicitação ter sido recepcionado por pelo menos cinco técnicos dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS), que assessoram a DGS, a saber: Diana Mendes, Diana Cohen, Sandra Bessa, Nélson Guerra e Bruna Cadima.
Além das discordâncias, aquilo que ressalta nos dois pareceres foi a drástica mudança de conteúdo técnico num tão curto espaço de tempo. Em apenas 11 dias, a opinião da CTVC – longe da unanimidade – passou de uma não recomendação para indivíduos saudáveis – ou seja, apenas para jovens com comorbilidades – para a vacinação universal desta faixa etária.
Aliás, numa primeira fase, a DGS chegou a anunciar apenas vacinação prioritária para adolescentes com comorbilidade, tendo mesmo divulgado, no dia 3 de Agosto, quais aquelas que deveriam ser consideradas, de acordo com um parecer de pediatras, classificado como confidencial. De entre essas comorbilidades estavam cancro activo, diabetes, obesidade e insuficiência renal crónica.
Porém, a DGS mudaria de opinião pouco dias depois, mesmo se apenas sete de entre 12 membros da CTVC tivessem concordado com essa vacinação universal.
De acordo com a análise comparativa, feita pelo PÁGINA UM, ambos os pareceres reconhecem que a covid-19, como doença, era “ligeira nas crianças e adolescentes, com um risco de hospitalização e de morte extremamente baixo” e que existiam “algumas comorbilidades que colocam as crianças e adolescentes em maior risco”.
Foi, aliás, nesse sentido que o parecer de 28 de Julho recomendou apenas a vacinação nos casos da existência de comorbilidades ou através de prescrição feita por pediatra.
O texto dos dois pareceres é similar também quando referem que “está em curso a avaliação de um sinal de segurança pela EMA [Agência Europeia do Medicamento], associado à ocorrência de casos muito raros de miocardite e pericardite após a administração destas vacinas”.
Sobre essas reacções adversas, os pareceres referem que “não são conhecidos os fatores de risco [que levaram à hospitalização] nem os seus efeitos a médio/longo prazo”. Os técnicos estimavam que “o número de hospitalizações por covid-19 prevenidas é muito próximo do número de miocardites esperadas com a vacinação universal de adolescentes, sobretudo para o sexo masculino”, conforme descrito nos dois pareceres.
O único argumento substancial que distingue os dois pareceres – e descrito na fundamentação sumária do parecer de 8 de agosto –, diz respeito aos “resultados da vacinação de 15 milhões de adolescentes nos Estados Unidos da América, Israel e União Europeia sem novos alertas de segurança”.
No extenso capítulo relativo à segurança das vacinas, o segundo parecer acrescenta apenas, relativamente ao primeiro, uma atualização de dados de 30 de julho do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) relativos à vacinação de 8,9 milhões de adolescentes norte-americanos (12-17 anos) onde “foram reportadas 863 reações adversas graves, incluindo 347 episódios de miocardite e 14 mortes (quatro entre os 12 e os 15 anos)”, indicando ainda que “não foram reportados casos de morte em resultado de miocardites, embora os dados sejam preliminares e apresentem limitações”.
São ainda referenciadas o número de doses de vacinas mRNA administradas a adolescentes (12-18 anos) em 11 países europeus, e é assumido o desconhecimento sobre as reacções adversas. “No decurso da vacinação destas faixas etária na União Europeia, não foram tornados públicos dados adicionais de segurança relativamente à ocorrência de miocardites e pericardites”, refere-se no documento analisado pelo PÁGINA UM.
Também é indicado igualmente que “está prevista uma nova avaliação deste sinal de segurança pelo PRAC no início do mês de setembro de 2021”. O segundo parecer não refere quaisquer dados sobre Israel que fundamentem a inclusão desse país na lista daqueles utilizados como referência para a decisão. Não houve mais qualquer parecer, de avaliação e actualização, pela CTVC sobre esta matéria.
Note-se, porém que as razões apresentadas para uma inversão completa das recomendações na vacinação contra a covid-19 na faixa etária dos 12-15 anos parecem carecer de rigor científico e de fundamentação. Os dados norte-americanos não se baseiam em ensaios clínicos estruturados, mas somente de uma avaliação de eventuais reacções adversas de curto prazo eventualmente notificadas após a inoculação em grupos anónimos.
Os dados referidos relativamente à Europa assumem o total desconhecimento sobre as reações adversas, enquanto a informação israelita é completamente omissa. A análise também subverte uma variável essencial neste tipo de estudos – a idade –, apresentando dados que incluem idades até aos 18 anos, ou seja, fora da faixa etária dos 12 aos 15 anos.
Em ambos os pareceres, é dedicado um extenso capítulo ao que era conhecido na altura relativamente aos riscos de miocardites e pericardites (inflamações no coração), após a administração de vacinas mRNA. Foram feitas ainda projecções sobre o “impacto da vacinação universal de adolescentes entre os 12 e os 17 anos, num período de 120 dias, em três cenários de incidência, face ao número de miocardites esperadas nestas idades”.
Em ambos os pareceres, foram projetados os casos, internamentos e admissões em unidades de cuidados intensivos (UCI) evitados, como também as miocardites, “considerando a taxa de ocorrência registada nos dados publicados nos EUA”. Os quadros servem como base para a análise risco/benefício da recomendação e verifica-se, em ambas as datas (28 de julho e 8 de agosto), que as previsões relativamente aos casos, internamentos e admissões UCI evitadas são iguais.
No entanto, o número de miocardites esperadas é superior no parecer de 8 de agosto (24,5) face ao previsto a 28 de julho (21,8). Assim, conclui-se que a relação risco/benefício piorou para o lado do risco, mas o parecer que prevaleceu (vacinação universal) faz a interpretação exactamente contrária.
O relatório dos técnicos refere que a projeção, utilizada primordialmente para justificar a alteração da recomendação, possui diversas limitações, como é o caso da “inclusão de pessoas com 16 e 17 anos, cuja vacinação universal já estava em vigor. Ou seja, pode haver sobrestimação do número de casos e hospitalizações prevenidas com a hospitalização”.
Igualmente é assumido que “não existem na União Europeia dados representativos de farmacovigilância para pessoas com menos de 18 anos vacinadas com vacinas mRNA”, tendo sido utilizados dados “extrapolados dos EUA” relativamente aos riscos de miocardites/pericardites.
Além disso, um aspecto fundamental, ambos os pareceres acabavam por confessar que “os riscos associados à administração da vacina, nestas faixas etárias, não são ainda definitivamente conhecidos”.
Adiantam ainda que “o número de participantes vacinados nos ensaios clínicos que conduziram à aprovação da extensão de indicação das vacinas nos grupos etários dos 12 aos 15 anos para a Cominarty e dos 12 aos 17 anos para a Spikevax é baixo”, reconhecendo também que, esta situação, “não permite conhecer eventuais reações adversas muito raras, mas potencialmente graves nestas faixas etárias, principalmente quando comparados com o número de adultos incluídos nos ensaios clínicos para a indicação inicial”.
Na extensa lista de considerações sobre a indefinição das reações adversas, os pareceres referem que “está em curso a avaliação de um sinal de segurança pela EMA, associado à ocorrência de miocardite e pericardite após a administração de vacina mRNA contra a Covid-19. Até ao momento, na União Europeia, foram apenas avaliados casos em pessoas com 18 ou mais anos de idade, não sendo ainda conhecidos os riscos abaixo dessa faixa etária”.
Os técnicos da CTVC omitiram também dados referentes ao impacto das miocardites na saúde a longo prazo, apenas referindo que, a curto prazo, “os episódios são ligeiros e que os pacientes recuperam rapidamente em ambiente hospitalar”.
As considerações sobre projecções são comuns a ambos os pareceres, mas a CTVC adicionou outras advertências à análise dos dados em 8 de Agosto, dizendo que “não foi considerada a potencial interação entre SARS-CoV-2 e outros vírus respiratórios”.
O parecer de 8 de Agosto refere que “a implementação de medidas não farmacológicas de prevenção e controlo de infeção diminui a circulação de vírus sazonais, bem como o seu impacto no sistema de saúde”, assumindo que “não se conhece o impacto que o alívio de medidas não-farmacológicas pode ter na co-circulação de SARS-CoV-2 e outros vírus no próximo Outono-Inverno”.
LEIA E DESCARREGUE OS 23 PARECERES INTEGRAIS DA COMISSÃO TÉCNICA DE VACINAÇÃO CONTRA A COVID-19
De entre todos os 23 pareceres da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19, revelados pelo PÁGINA UM, há um que demonstra como a Política se sobrepôs à Ciência durante a pandemia. Para agradar a todas as farmacêuticas, nem sequer se permitiu a opção pela marca da vacina, e os dados revelam que existiam desempenhos muito diferentes. Para se chegar a bons níveis de vacinação, pressionou-se até recuperados a vacinarem-se mesmo não havendo ensaios clínicos sobre este grupo. E, no meio disto, a Direcção-Geral da Saúde mantém um silêncio ensurdecedor sobre muitas incertezas.
Embora as orientações da Direcção-Geral da Saúde (DGS) pudessem excluir algumas marcas para determinados grupos e idades, nunca foi verdadeiramente possível escolher-se a vacina contra a covid-19 a ser administrada.
Resultado disto: uma lotaria.
Por exemplo, quem tomou a vacina da Janssen em Portugal teve um risco cerca de quatro vezes superior a sofrer uma infecção pelo SARS-CoV-2 em comparação com quem foi injectado com a vacina da Moderna; e quase duas vezes superior ao de quem recebeu a da Pfizer.
Para começar, estes são alguns dos perturbadores aspectos que constam do parecer 17 (ver todos em baixo) da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC), que o PÁGINA UM obteve após uma longa “luta” para DGS os disponibilizar publicamente.
Este parecer em concreto – homologado em Dezembro passado, constituindo uma actualização sobre a vacinação de pessoas recuperadas – acaba por se debruçar bastante nas taxas de infecção dos vacinados (breakthrough infections), analisando o desempenho por tipo de vacina e também por grupo etário.
O conteúdo integral de todos os 23 pareceres, finalmente obtidos ontem pelo PÁGINA UM – e que foram emitidos entre 1 de Dezembro de 2020 e 20 de Janeiro deste ano – podem ser consultados AQUI. Apesar de um parecer da Comissão de Acessos aos Documentos Administrativos (CADA), a DGS não os forneceu em formato digital, pelo que os documentos tiveram de ser fotografados página a página.
De acordo com este 17º parecer, até 30 de Setembro do ano passado – quando 84% da população já estava então vacinada e quase 1,1 milhões de portugueses tinham tido contacto com o SARS-CoV-2, dos quais 1,7% tinha falecido –, “a taxa média global de infecção de indivíduos completamente vacinados foi estimada em 5,0 por 1.000 vacinados”. A taxa mais elevada era a dos vacinados com a Janssen (8,7 por 1.000), sendo que a da AstraZeneca atingia os 6,2, a da Pfizer 4,6 e a da Moderna 2,1.
Por grupo etário, aqueles que apresentaram maiores taxa de infecção após a vacinação foram os maiores de 80 anos, com um rácio de 7,7 por 1.000 vacinados, seguindo-se o grupo dos 50 aos 59 anos, com 6,2 por 1.000. O grupo com menor taxa de reinfecção foi o dos menores de 20 anos (1,0 por 1.000). Nos restantes grupos etários, essa taxa situava-se entre os 4,5 e os 5,1 por 1.000 vacinados.
A CTVC alertava, porém, que estes valores dependiam de diversos factores, “nomeadamente, o grau de exposição ao vírus, o aparecimento de variantes mais transmissíveis, e a diminuição com o tempo da protecção inicial conferida pela resposta imunitária à vacina (waning immunity), a qual varia com a idade do vacinado”.
O parecer também confirma que a protecção das vacinas é bastante curta e decai significativamente sobretudo a partir do sexto mês. Por exemplo, para as infecções registadas em Setembro do ano passado, aqueles que tinham sido vacinados antes de Março apresentaram globalmente uma taxa de infecção de 3,9 por 1.000, enquanto esse rácio foi apenas de 1,1 para quem se vacinara há um mês. Para quem se vacinou entre Março e Julho, a taxa situou-se entre os 1,4 e os 1,9 por 1.000. A DGS nunca revelou este tipo de informação.
Dossier dos pareceres consultados pelo PÁGINA UM.
Saliente-se, contudo, que uma taxa de infecção de 3.9 em 1.000 (ou 0,39%) não significa que a vacina conceda uma protecção de 99,61%, uma vez que o risco de se estar em contacto com o vírus no período de um mês é bastante reduzido mesmo sem protecção, sobretudo fora do período invernal. Note-se que, para atingir comprovadamente um terço dos portugueses, o SARS-CoV-2 “precisou” de 24 meses, ou seja, em média infectou 1,4% da população por mês.
Estes números indicados pela CTVC não entram, além disto, em consideração com o surgimento da variante Ómicron – mais transmissível, mas muito menos letal –, que fez “explodir” o número de casos positivos, e, na mesma linha, as taxas de infecção entre vacinados. Com cerca de 2,4 milhões novos casos positivos (quase um quarto da população) desde Outubro do ano passado, até ao final da semana passada, a taxa de letalidade atinge apenas 0,14% – um valor já próximo de um surto gripal.
Embora a explicação oficial, e dos chamados “peritos”, aponte sempre o grande contributo da vacinação para estes baixíssimos níveis de letalidade, a menor agressividade da variante Ómicron parece encaixar-se melhor como hipótese mais plausível. Com efeito, se até finais de Dezembro de 2020 – o início do programa de vacinação –, a taxa de letalidade da covid-19 se situava nos 1,66%, ao longo dos primeiros nove meses de 2021 – com o plano de vacinação em curso, mas dominando então a variante Delta –, a taxa de letalidade manteve-se estável: 1,68%.
Por esse motivo, a diminuição da letalidade a partir do final do ano passado – com a variante Ómicron a “varrer” vacinados e não-vacinados – não pode ser assim explicada apenas pela acção da vacina. Se assim fosse, a taxa de letalidade entre Janeiro e Setembro de 2021 já teria de ser necessariamente muito mais baixa do que os 1,66% observados. Sobre esta questão, fundamental e elementar, a CTVC não analisa nem se pronuncia em qualquer parecer.
Tendo em consideração que, com a vaga de casos de infecção nos primeiros dois meses deste ano, pelo menos um terço da população portuguesa (3,4 milhões de pessoas) teve já, comprovado por teste PCR, contacto (infecção) com o SARS-CoV-2 (independentemente do regime de vacinação), uma questão se coloca: justificam-se reforços de vacina ou vale mesmo a pena (e o risco) um recuperado vacinar-se?
Sede da Direcção-Geral da Saúde, em Lisboa.
Embora a CTVC destaque, e bem, que “a evidência mais sólida quanto à protecção de reinfecção que pessoas que recuperaram de infecção por SARS-CoV-2 mantém, provém de estudos de reinfecção”, pouco adianta depois em números concretos.
Para o caso português, nem sequer indica a taxa de reinfecção dos recuperados não-vacinados – e essa informação deverá constar do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE) – nem tão-pouco a percentagem de reinternamentos ou mesmo de morte após uma segunda infecção.
A este respeito, os membros da CTVC somente fazem referências mais detalhadas para os vacinados que foram depois infectados – ou seja, recuperados com imunidade natural e vacinal. Para esses, a CTVC diz que “existem vários estudos em curso (..) cujos resultados, incluindo dados de segurança, devem ser conhecidos antes de serem feitas recomendações específicas sobre a administração de doses de reforço de vacinas contra a covid-19 nessas pessoas”.
E salienta a CTVC também (e a negrito, no original) um aspecto perturbador: “os ensaios clínicos que suportaram a aprovação pela Agência Europeia de Medicamento da dose de reforço de Comirnaty [Pfizer] e Spikevax [Moderna] excluíram pessoas com infecção prévia por SARS-CoV-2”. Ou seja, quem se vacinou nestas condições, depois da recuperação, foi uma autêntica “cobaia”. Correu bem? Depende da perspectiva.
Por um lado, os recuperados sem vacina têm um risco “muito inferior ao das pessoas vacinadas sem infecção prévia por SARS-CoV-2”. Por outro, a própria CTVC confessa que “parece existir uma maior frequência de reacções adversas sistémicas após vacinação de indivíduos previamente infectados”.
O PÁGINA UM confirmou que esse importante detalhe não consta do consentimento informado, ou seja, quem vai a correr vacinar-se depois de recuperado, ignora estar a arriscar maiores efeitos adversos pela obtenção de nenhuma vantagem sobretudo perante as pessoas que apenas tenham imunidade através da vacina.
Em todo o caso, com base em diversos estudos, a CTVC acaba por afirmar neste parecer, embora com pouca convicção, que “pode ser defensável a administração de uma dose de reforço em pessoas recuperadas e vacinadas de acordo com a Norma 002/2021 da DGS que apresentem risco para infecção por SARS-CoV-2 e covid-19 grave (grupos definidos para a estratégia de reforço vacinal)”.
Face ao elevado número de infectados durante a vaga da variante Ómicron, e que tinham o esquema vacinal completo (muitos com três doses), é previsível um difícil imbróglio, sobretudo se se mantiver em uso o certificado digital que se baseia em tomas repetidas. Com efeito, a CTVC avisa que “à data não existe evidência para recomendar a administração de doses de reforço”.
Deste modo, se o Governo – e a própria União Europeia – decidirem manter o certificado digital em função de novas tomas de vacina contra a covid-19, então das duas uma: ou a Política ignora a Evidência, ou então “convence” a Ciência a mudar de opinião.
Nota da Direcção
Sendo eu um recuperado da covid-19, e parte (muito) interessada em informação que respeita à minha saúde, procurei nos últimos meses, ainda com maior enfoque, estudos e informação sobre as vantagens e desvantagens da vacinação. No meu caso em concreto, exactamente por recear aquilo que a leitura do parecer 17 revela.
Seis meses após a minha recuperação, em Dezembro passado, realizei um teste serológico, tendo registado o valor de IgG de427,0 BAU/ml, sendo 33,8 BAU/ml o limiar positivo. Não sendo uma certeza absoluta sobre a imunidade natural, tem sido um dos melhores indicadores para aferir a capacidade do meu organismo se defender em caso de reinfecção, ademais sabendo-se que a variante dominante é muitíssimo menos agressiva.
Dias depois do resultado do teste serológico, no dia 28 de Dezembro, como cidadão português, jornalista e director do PÁGINA UM – e acreditando que um esclarecimento seria útil, e não apenas para mim –, enderecei à directora-geral da Saúde, Graça Freitas – que é a Autoridade de Saúde Nacional –, as seguintes questões:
1 – Gostava de saber se existe algum estudo português conhecido pela DGS (ou da sua responsabilidade) sobre o nível de anticorpos de recuperados não-vacinados. Se não existe, porque nunca foi feito? Se existe, pode ser facultado?
2 – Existe também algum estudo científico que mostre em Portugal a evolução temporal dos valores médios de IgG após a vacinação e após infecção (e dentro deste grupo, separando assintomáticos, doentes ligeiros e doentes graves com internamento)? Se sim, pode ser facultado?
3 – Existe algum estudo sobre eventuais diferenças em termos de efeitos adversos das vacinas entre aqueles que nunca tinham tido contacto com o vírus e queles que já tinham tido contacto (recuperados)? Se sim que diferenças foram detectadas? Pode ser facultado esse estudo?
4 – Tendo em consideração que os níveis de IgG são indicativas de uma resposta imunitária ao SARS-CoV2, está a ser ponderado algum valor de referência mínimo (em termos de BAU/ml) abaixo do qual se recomenda a vacinação ou reforço de vacinação. Se sim, qual? Se não, porquê?
A senhora directora-geral não respondeu. Nem ninguém por ela. Nem quando se insistiu duas e três vezes.
A falta de informação é uma forma de desinformação. E de desrespeito pelos cidadãos. Ou pior ainda, tratando-se de questões de saúde.
Pedro Almeida Vieira
LEIA E DESCARREGUE OS 23 PARECERES INTEGRAIS DA COMISSÃO TÉCNICA DE VACINAÇÃO CONTRA A COVID-19
SERVIÇO PÚBLICO: Leia e descarregue em baixo todos os 23 pareceres não revelados pela Direcção-Geral da Saúde durante meses.
Desde Outubro de 2021, o PÁGINA UM solicitou à Direcção-Geral da Saúde (DGS) os pareceres e outros documentos da actividade da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC). A DGS nunca respondeu.
O PÁGINA UM apresentou queixa à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), que fez um parecer favorável em 20 de Janeiro passado.
Apesar disso, a DGS continuou a não se mostrar favorável a disponibilizar os documentos, apesar de o PÁGINA UM ter reiterado o pedido, com base no parecer da CADA.
Somente no passado dia 4 de Março, a DGS informou o PÁGINA UM de estar disponível para publicitar os pareceres, informando também que, antes desse acto, poder-se-ia consultar os pareceres nas suas instalações.
Apesar de dois e-mails do PÁGINA UM (dias 4 e 8 de Março) para que fosse indicada a data para consulta, a DGS nunca respondeu.
O PÁGINA UM deslocou-se esta tarde à sede da DGS, e após uma hora de espera foi então encaminhado para uma sala, onde foi disponibilizado um dossier com os 21 pareceres da CTVC.
Apesar de ter sido feito o pedido para obtenção de cópia digital ou fotocópias, mas, após uma espera de mais de meia hora, uma funcionária da DGS disse ao PÁGINA UM não ser possível, por agora, a primeira alternativa; e a segunda teria de ser feita com tempo e um custo de 75 cêntimos por página.
O PÁGINA UM decidiu fotografar todas as páginas dos 23 pareceres, que estão aqui disponibilizados em formato pdf.
Uma legislação com quase 30 anos continua a ser “meiga” para quem recusa transparência e a abertura do Estado aos cidadãos. Nos últimos tempos, além de continuarem a recusar acesso a informação pública, muitos dirigentes da res publica já nem sequer ligam às cartas da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), que emite pareceres que continuam a ser não vinculativos. Ou seja, nada valem se a Administração Pública quiser. Os partidos na Assembleia da República continuam a assobiar para o ar. O estado da democracia vê-se nestes “pormenores”.
Quase três décadas após a criação da legislação de incentivo à transparência da gestão da res publica, o modelo de acesso aos documentos administrativos está esgotado e moribundo. Um sinal, ou melhor dizendo, uma evidência, observa-se na taxa de respostas nos processos abertos pela entidade responsável pela gestão das queixas e emissão de pareceres – a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) –, que não tem parado de descer nos últimos dois anos.
A cultura do obscurantismo na Administração Pública continua bem presente; e nos últimos tempos mostra-se em todo o esplendor, ou seja, nem sequer dão satisfações sobre a sua falta de transparência.
Desde 1993, de forma inequívoca, a lei portuguesa consagra o direito aos cidadãos acederem aos arquivos do Governo, Administração Pública, autarquias e mesmo entidades privadas com funções públicas, como ordens profissionais e determinadas associações e empresas que exerçam serviços públicos.
Previsto na denominada Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), o princípio do “arquivo aberto” determina que essas entidades têm um prazo de 10 dias úteis para dar resposta aos pedidos de acesso aos diversos documentos (papel, digital, sonoro e audiovisual), sem sequer necessidade de justificar o motivos, excepto se, grosso modo, estiverem em causa dados pessoais, e mesmo assim estes podem ser expurgados.
Contudo, como a própria Assembleia da República que aprovou esta lei já preveria a existência de dirigentes obstinados e relapsos em matérias de transparência, criou a CADA para defender os cidadãos daqueles que julgassem que poderiam tudo fazer sem dar satisfação aos cidadãos.
A CADA, um organismo independente que funciona junto da Assembleia da República, é presidida por um juiz conselheiro e é constituída também por membros nomeados pelos deputados, Governos nacional e regionais, municípios, Ordem dos Advogados e Comissão Nacional de Protecção de Dados.
Contudo, além da influência política na indicação dos seus membros, a acção da CADA sempre se mostrou bastante limitada, por uma simples mas marcante razão: os seus pareceres, no decurso das queixas, não são vinculativos. Ou seja, as entidades requeridas não ficam sequer obrigadas, nem os seus dirigentes são penalizados, se não cumprirem os pareceres. Se persistir a recusa após um parecer favorável às pretensões do requerente, restam os tribunais administrativos morosos e onerosos.
Deste modo, até recentemente, a CADA constituía um mero organismo de pressão, uma espécie de provedoria, mas até isso agora parece estar a perder: nos últimos dois anos, cada vez mais entidades sujeitas à LADA deixaram de lhe responder às cartas da CADA para relatarem os motivos de não autorizarem o acesso a documentos administrativos.
De acordo com um levantamento do PÁGINA UM aos pareceres emitidos nos dois primeiros meses (Janeiro e Fevereiro) dos anos de 2019 a 2022 – e respeitando somente a queixas de particulares e empresas –, a tendência para colaborar com a CADA tem diminuído drasticamente.
Número de processos com (SIM) e sem (NÂO) colaboração das entidades requeridas referente aos pareceres (provenientes de queixas) emitidos em Janeiro e Fevereiro no período 2019-2022. Fonte: CADA.
Enquanto nos processos finalizados naqueles dois meses de 2019 e em 2020, a taxa de resposta das diversas entidades (alvo de queixas) ainda rondava valores próximos dos 70%, este ano já só se cifrou em 39%. Em 2021, a taxa de resposta era já só de 57%.
Este ano, de entre 71 pareceres já emitidos, a CADA não obteve colaboração das entidades requeridas em 33 casos. A Administração Pública foi o grupo que mais ignorou a CADA: apenas 26 dos 42 processos tiveram resposta da entidade sob queixa. No caso das autarquias, em seis pareceres, houve quatro que não colaboraram.
O Governo – que tem também funções de orientação das práticas da Administração e de exemplo – foi já sujeito, neste período, a três pareceres (por outras tantas queixas devidas a recusas de acesso a documentos administrativos), todas favoráveis aos requerentes. Porém, só prestou informações à CADA num dos processos, relativo à queixa do jornalista de um órgão de comunicação não identificado que solicitou ao ministro das Infraestruturas e Habitação, Pedro Nuno Santos, o acesso a uma carta de uma empresa, datada de 2 de Outubro, a propósito da reprivatização da CP Carga, na qual solicitava ao Governo que concluísse a privatização com a venda dos 5% que ainda são detidos pela CP – Comboios de Portugal”.
Nos outros dois processos, nada. No primeiro caso, foi aberto no seguimento de uma queixa do Pingo Doce contra o Ministério da Administração Interna, devido à recusa de acesso a documentos relacionados com o exercício de competências da Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil. No segundo caso, o queixoso foi um denominado Movimento Cívico Grupo de Lisboa, que requereu documentação na posse da Presidência do Conselho de Ministros sobre a situação pandémica e medidas, com o seu custo, adoptadas desde Maio de 2020. Saliente-se que mesmo se uma entidade pública não deter os documentos solicitados, deve então indicar quem os possa ter.
Tal como tem sido habitual, o sector da Saúde foi aquele que, este ano, já registou mais processos com parecer aprovado, e também o que mais ignora a CADA. Nos dois primeiros meses de 2022, em 12 dos 17 pareceres não houve colaboração por parte de entidades da Administração da Saúde.
Neste lote encontram-se cinco pareceres solicitados pelo PÁGINA UM face ao obscurantismo da Direcção-Geral da Saúde, mas também mais sete relativos a queixas contra o Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia-Espinho, a Unidade Local de Saúde do Alto Minho, o Centro de Saúde de Ponte da Barca, a Administração Regional de Saúde do Norte e os hospitais de Loures, de Amadora-Sintra e de Ponta Delgada.
Pela amostra dos dois primeiros meses dos últimos três anos, nota-se que algumas entidades – ou seja, dirigentes, com nome – optam ostensivamente por ignorar tanto os pedidos dos requentes como os convites da CADA para se pronunciarem. Além da Direcção-Geral da Saúde, são os casos da Direcção-Geral da Administração Escolar, Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte, Autoridade para as Condições de Trabalho, Instituto da Segurança Social, Câmara de Grândola, Agrupamento de Escolas dos Templários (Tomar), Instituto de Conservação da Natureza e Florestas.
Instado a comentar esta situação de menosprezo pela legislação que promove o “arquivo aberto”, o presidente da CADA salienta que “responder a requerimento de acesso é um dever jurídico”, mas constitui “um dever jurídico cujo incumprimento não acarreta sanção jurídica”.
Alberto Oliveira refere ainda que, embora a CADA “tenha o dever jurídico de convidar a entidade demandada a responder”, na verdade não existe dever jurídico de responder. “Corresponder ao convite é uma opção da entidade demandada”, esclarece este juiz conselheiro.
Considerando que “a opção legislativa”, desde a criação da CADA em 1993, foi “uma figura próxima da do Ombudsman [uma espécie de defensor público], também sem poderes vinculativos”, Alberto Oliveira recusou emitir a sua opinião sobre algumas questões colocadas pelo PÁGINA UM, entre as quais se considerava útil a existência de obrigatoriedade de resposta ou se os pareceres da CADA deveriam passar a vinculativos com penalizações aos dirigentes que não os acatassem.
Os últimos dados relativos ao cumprimento dos pareceres não-vinculativos da CADA são apenas referentes ao ano 2020, estimando-se que, no total de 297 pareceres favoráveis emitidos naquele período, 48 não terão sido seguidos, ou seja, cerca de 16%. Convém, no entanto, destacar que a CADA fez esse levantamento junto das entidades requeridas, e não dos queixosos. Na última década, a CADA tem emitido uma média de cerca de 430 pareceres por ano, com o máximo a ocorrer em 2018, com 556.
No ano passado, a CADA emitiu 370 pareceres, mas tal pode não dever-se a uma redução de conflitos, mas sim a atrasos na conclusão dos pareceres. Na verdade, até nos processos que envolvem jornalistas – que são considerados prioritários –, raramente a CADA consegue agora cumprir o prazo de 40 dias úteis para emitir um parecer após a entrada da queixa. Para um cidadão comum pode atingir mais de quatro meses.
Número global de pareceres emitidos pela CADA desde 1993 (inclui queixas, pedidos de esclarecimentos e reclamações). Fonte: CADA.
Por exemplo, actualmente, o PÁGINA UM tem um processo a aguardar parecer da CADA desde Novembro do ano passado – ou seja, há quatro meses – relativo à recusa de acesso à base de dados do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE) por parte da Direcção-Geral da Saúde. A CADA já agendou por duas vezes a votação deste parecer para se aceder a uma base de dados fundamental para entender a gestão da pandemia – e por isso, é assunto politicamente delicado.
O presidente da CADA justifica ser “inerente ao trabalho colegial a possibilidade de um tema apresentado para apreciação necessitar de melhor reflexão para a obtenção do entendimento a ser subscrito por cada membro”, acrescentando que “o colégio é soberano na decisão de adiamento”. O juiz conselheiro Alberto Oliveira apresenta um, e apenas um, outro caso de duplo adiamento (processo n.º 339/2021), que também versava matéria sensível, neste caso um pedido de acesso ao registo disciplinar de um advogado.
Relatório da Direcção-Geral da Saúde aponta para uma redução de casos em 2020, mas antevê já um recrudescimento da tuberculose nos próximos anos. A subnotificação por atrasos no diagnóstico explica a enganadora melhoria no primeiro ano da pandemia. O PÁGINA UM também revela que, durante 2020, houve 32 doentes com tuberculosos que foram considerados doente-covid. Destes, nove morreram.
A Direcção-Geral da Saúde admite que a tuberculose terá previsivelmente, nos próximos anos, recrudescimento do número de casos, associados “à deterioração das condições económicas e sociais, ao aumento na demora nos dias até ao diagnóstico e ao risco de formas mais graves com consequente maior morbilidade e mortalidade”.
Este é o quadro traçado pelo relatório de vigilância e monitorização da tuberculose em Portugal relativo ao ano de 2020, que mostra uma situação favorável apenas na aparência durante o primeiro ano da pandemia.
Com efeito, embora a DGS destaque a tendência de diminuição dos casos notificados – 14,2 casos por 100.000 habitantes, a que correspondeu 1.465 casos, menos 383 do que em 2019 – é admitido que a descida em 2020 se deveu aos efeitos da pandemia causada pelo SARS-CoV-2. De facto, nos quatro anos anteriores a 2020, a taxa de incidência estava estagnada, em redor dos 18 casos por 100.00 habitantes.
Sem-abrigos e estrangeiros são os grupos mais vulneráveis à tuberculose.
Esta redução é, porém, artificial, e até denotando uma subnotificação ou mesmo uma incorrecta notificação. Através da base de dados dos internamentos de doentes-covid, que o PÁGINA UM tem vindo a divulgar, durante o ano de 2020 foram hospitalizados com teste positivo à covid-19, um total de 32 pessoas também com diagnóstico de tuberculose. Destas, nove faleceram.
No caso concreto de óbitos atribuídos à tuberculose, a DGS indica terem ocorrido 94 durante todo o ano de 2020. Mesmo considerando as nove mortes consideradas por covid-19 mas de doentes tuberculosos, a situação portuguesa tem melhorado consideravelmente neste século. Em 2002, de acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística, morreram 345 pessoas com tuberculose e em 2010 foram 205.
Os efeitos da suspensão de muitos dos diagnósticos e exames do Serviço Nacional de Saúde (SNS) durante a pandemia, em especial no primeiro ano, também se observa no aumento do número de dias desde o início dos sintomas até ao diagnóstico.
Evolução da taxa de notificação de tuberculose em Portugal (2000-2020). Fonte: DGS.
Em 2020, metade dos doentes com tuberculose tiveram o seu primeiro diagnóstico ao fim de 80 ou mais dias, o valor máximo registado na última década, e uma subida de 25% relativamente ao valor registado em 2010. Em dois terços dos casos, esta demora foi atribuída aos doentes, o que também denota o medo incutido nas pessoas durante a pandemia.
Os homens continuam a ser o grupo de maior risco, representando 65% do total de casos, sendo que metade dos doentes tinha 49 ou mais anos. Nas crianças de idade igual ou inferior a cinco anos, apenas se contabilizaram 25 novos casos. Os distritos de Lisboa e Porto foram as regiões que apresentaram maior incidência, sendo que os sem-abrigos e os estrangeiros mostraram ser os grupos mais vulneráveis.
Neste último aspecto, mostra-se particularmente a evolução da incidência na população estrangeira. No ano de 2020 já cerca de 27% dos casos de tuberculose eram de estrangeiros, sobretudo originários de Angola, Guiné-Bissau, Brasil e Cabo Verde. Em 2008 representavam apenas 14,9%.
Evolução da demora mediana entre o início de sintomas até ao diagnóstico de Tuberculose (2010-2020). Fonte: DGS.
Segundo o relatório da DGS, existe uma forte relação entre vulnerabilidades sociais e a incidência de tuberculose com o consumo de álcool ou de drogas ilícitas, bem como a residência comunitária, a constituírem variáveis relevantes.
A associação da tuberculose ao vírus da imunodeficiência humana (HIV) também se mantém. Em 2020, cerca de 77% dos casos notificados foram testados para VIH (85,6% em 2019) e 9% apresentavam co-infeção tuberculose/VIH.
Para Portugal atingir os objetivos fixados pela Organização Mundial de Saúde – redução do número de mortes em 95% e a taxa de incidência em 90% até 2035 face a 2015 –, em nota incluída no relatório, a directora-geral da Saúde Graça Freitas destaca “o rastreio e tratamento gratuito e o livre acesso às consultas de tuberculose nos Centros de Diagnóstico Pneumológico”.
Contudo, esta responsável admite que “a desaceleração na redução percentual anual da doença, associada a uma diminuição abrupta do número de casos em 2020 e ao aumento da mediana de dias até ao diagnóstico, reforçam a necessidade de definir novas estratégias e monitorizar resultados.”
Cometo, neste texto, um pecado capital. Como jornalista, não soube distanciar-me do objeto da notícia. Estou, em simultâneo, a fazer trabalho humanitário. Envolvi-me demasiado para estar agora a escrever notícias “objectivas”.
Antes de partir, sentei-me no sofá, desliguei a televisão, pedi inspiração para um pequeno texto para publicar nas redes sociais. Ocorreu-me uma pergunta: a que saberá a morte?
Sem resposta, comecei a arrumar a mala: duas camisolas, um casaco, dois pares de calças, dois pares de meias, um par de botas e um gorro, e outras coisas habituais e íntimas para um viajante. Bagageira e lugares preenchidos com mantimentos: além de alimentos, medicamentos e material de socorrismo, material logístico.
A família, os amigos e os conhecidos rapidamente espalharam a novidade.
Um dia depois, chegaram os primeiros donativos. A esposa, as amigas dela, os meus amigos ajudaram a separar e embalar os produtos. No dia seguinte já não tinha lugar em casa, nem na garagem, nem no jardim.
Entretanto, não escrevi o texto. Apenas tive tempo para avisar os meus alunos e colegas que não daria as próximas aulas. Avisar o Pedro que, afinal, não tivera oportunidade de escrever o texto sobre as guerras que continuaram a pulular pelo Mundo nos últimos dois anos sem terem capacidade de “estancar” a pandemia.
Em Lviv, a carrinha com mantimentos que me transportou desde Portugal.
Parti. Julgava seguir sozinho, mas afinal saí na companhia de dois recém conhecidos, Mykola e Nazar. O primeiro ofereceu-se para ser tradutor, porque desejava buscar três familiares. O segundo queria boleia para se alistar no exército e combater russos.
Percorremos em dois dias e meio a Europa. Espanha, França, Alemanha. Polónia, finalmente. Chegámos à vizinhança da Ucrânia. Fomos abordados pela polícia uma única vez, na fronteira francesa. Na Alemanha começámos a ver carros carregados, e algumas bandeiras ucranianas. Na Polónia, caravanas já organizadas.
Mykola Sydor e Nazar Khamulyak, portugueses de ascendência ucraniana, que me acompanham.
Na fronteira Polónia-Ucrânia não vimos sinais de covid-19, mesmo se, antes da invasão russa, aquele país estava ainda sob um surto, com 1,5% da sua população considerada infectada, apenas 35% vacinada.
Aliás, se houver covid-19 por aqui, anda desmascarada! Não há máscaras em lado algum, nem certificados. Não há gente isolada nem de quarentena. Não há sintomas gripais nem gente doente.
Há “apenas” guerra, e desde que há guerra não há máscaras – gente destemida. Dizem-me que por aí, em Portugal, há muita gente temida pela possibilidade de a chegada de ucranianos fazer ressurgir a pandemia. Quer-se vacinar tudo e todos.
Centro de acolhimento de refugiados em Przemyśl, na fronteira polaca.
Pelo caminho, Mykola conseguira resgatar a família sem se encontrar com ela. O “guerrilheiro” Nazar ficou tão absorvido pela multidão que encontrou que esta lhe sugou as forças com pedidos de ajuda. Trocou a frente de fogo pelas chamas do humanismo.
Valeu-lhes, e valeu-me, o facto de serem portugueses de origem ucraniana; dominam as duas línguas na perfeição.
Durante os primeiros dias foram-nos chegando camiões carregados. As ofertas vindas de Portugal eram rapidamente guardadas em armazéns improvisados. Na fronteira, uma correria de camionetas e de carros, num vaivém. Gratuitamente, levam os refugiados de uma fronteira para a outra. No meio do caos, alguma ordem.
Há vida nos carregadores.
Do lado da Ucrânia, filas de quarenta quilómetros de espera, para passar. Maridos que vêem partir a mulher e os filhos, mulheres e crianças assustadas.
Somente as crianças aparentam felicidade. Há internet gratuita e fichas para carregar os telefones. Para muitos, isso é a ligação aos familiares, à vida. Há vida assim.
Poucos quilómetros depois da fronteira, nas entranhas da Ucrânia, encontramos uma rotina diferente. Lviv é, apesar de tudo, uma cidade onde reina a normalidade. O comércio funciona, as pessoas circulam, vão para o trabalho, às compras, passeiam. Uma rotina.
Mas essas são os habitantes. Para quem chega de outras cidades, como Kiev, fugindo mesmo da guerra, e pernoita em escolas e armazéns, aguarda-se apenas com ânsias a oportunidade de seguir para a fronteira.
As estradas ucranianas na região oeste estão fortemente ocupadas por militares em postos de controlo de poucos em poucos quilómetros. Militares que não falam inglês, de pouca simpatia, mesmo para quem vem fazer serviço humanitário. São necessários alguns minutos até que nos olhem com outros olhos. Qualquer um de nós pode ser um infiltrado…
Vídeos e fotografias são proibidos. Revistam tudo. Fazem um excelente trabalho.
Um dos postos de controlo, anteontem à noite, no coração da Ucrânia.
Ao distribuir alguns mantimentos pelas escolas, conforme as necessidades de cada uma, fui recebendo outros pedidos, outras moradas. Gente para transportar. Cada uma mais perto de Kiev, cada vez com maior presença militar. Até agora, estão em falta super-guerrilheiras, modelos de perfeição, que nos chegam a Portugal pelas redes sociais.
Há gasóleo nas bombas, há gente que mantém rotinas. Em falta, mais ajuda humanitária. Mais meios, mais mãos para ajudar.
Depois de ganhar confiança com a população local, levam-nos aos seus pontos de encontro. Um deles é uma biblioteca transformada em fábrica de construção de redes para camuflar tanques. Ali, jovens, crianças e adultos cortam panos e vestem as redes, ao som de piano, guitarra. E cantos. Nunca vi biblioteca com tantos jovens. Há destes momentos deliciosos em tempos difíceis, onde se encontra a Humanidade.
Biblioteca em Lviv, onde se lê, canta e se costuram camuflados para tanques ucranianos.
Sabendo que me aproximo de Lviv, pedem-me para levar mantimentos, fazem-me entregas, abraçam-me. Por instantes esqueço os quatro graus negativos.
Recordo a minha família.
No Lviv International Media Center encontram-se os jornalistas que requisitam as credenciais, como eu, para o PÁGINA UM. Internet, computadores, casa de banho e bebidas quentes. Um luxo nestas paragens, e nestes tempos.
Para muitos enviados especiais, um lugar fantástico para apresentar directos, para copiar ou reescrever as notícias das agências internacionais. Estou grato a este centro, permitiu-me internet gratuita por instantes.
No centro de imprensa de Lviv.
Entretanto, um mea culpa.
Cometo, neste texto, um pecado capital. Como jornalista, não soube distanciar-me do objeto da notícia. Estou, em simultâneo, a fazer trabalho humanitário. Envolvi-me demasiado para estar agora a escrever notícias “objectivas”.
E também não sei ainda dizer qual o sabor da morte. Mas sei dizer-vos que a vida é deliciosa. Mesmo aqui, na Ucrânia.
O Conselho Superior da Magistratura quis saber qual o motivo para um jornalista querer ter acesso ao inquérito sobre a distribuição do juiz da Operação Marquês. O PÁGINA UM recusou aceitar essas condições anticonstitucionais e apresentou queixa à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos. O PÁGINA UM foi o único órgão de comunicação social que, ao longo deste processo, não aceitou um “não” do CSM.
O Conselho Superior da Magistratura (CSM) deve conceder ao PÁGINA UM acesso a todos os documentos do inquérito interno relativo à escolha inicial do juiz Carlos Alexandre para dirigir a Operação Marquês, iniciada em 2014, e que resultou na prisão preventiva do ex-primeiro-ministro José Sócrates.
Esta é a posição da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), através de um parecer solicitado pelo PÁGINA UM, no decurso da recusa do CSM de ceder essa documentação, e que foi aprovado nos últimos dias de Fevereiro passado.
Conselho Superior da Magistratura quis sempre manter secretismo sobre os meandros da Operação Marquês.
Recorde-se que o PÁGINA UM – que noticiou em primeira-mão que José Sócrates obtivera um parecer da CADA que lhe deu razão sobre o direito de acesso a esse inquérito – solicitou também o acesso em 2 de Novembro do ano passado.
Contudo, o CSM sempre recusou esse acesso ao PÁGINA UM, tendo mesmo a sua Encarregada da Protecção de Dados, Ana Sofia Wengorovius – após uma troca de e-mails, exigido que se esclarecesse “qual a finalidade do acesso e da recolha” dos documentos solicitados. Esta juíza, através de um longo parecer de sete páginas, defendia o secretismo deste inquérito, que na verdade se trata da “averiguação sumária nº 2018-346/AV”.
No seu parecer, Ana Sofia Wengovorius argumenta que o inquérito, mesmo se arquivado, se mantinha “confidencial”, porque se deveria ter “em vista assegurar a defesa dos direitos fundamentais de personalidade como o direito ao bom nome e à reputação”, invocando a Constituição. E que a divulgação por parte de um jornalista poderia violar ou afectar “os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”. Nessa medida, esta responsável do CSM dizia que o jornalista deveria obrigatoriamente de invocar um “interesse atendível ou legítimo”.
Ora, como o PÁGINA UM invocara de forma implícita esse interesse atendível (porque o pedido foi feito por um jornalista) e explicitamente (repetindo, por palavras, quais as funções de um jornalista), seguiu uma queixa para a CADA.
Primeira página do parecer do CADA que dá razão ao PÁGINA UM.
No parecer da CADA, presidida pelo juiz-conselheiro Alberto Oliveira, e que deu razão às pretensões do PÁGINA UM, destaca-se ser “doutrina (…) que o processo de inquérito e o processo de averiguações concluídos são livremente acessíveis (…), respeitando mesmo a matéria funcional”, o que incluiu mesmo “os depoimentos prestados, os quais são determinantes para compreender a globalidade do processo e a razão por que a administração decidiu num determinado sentido”. A CADA defende apenas que devem ser “expurgados”, ou seja, rasurados a negro, os dados “irrelevantes para a concreta decisão administrativa, designadamente, moradas, números de telefone, números de identificação civil e fiscal dos intervenientes”.
Em suma, a existência desses dados nos documentos originais não implica que aqueles possam manter-se secretos. Além disso, devem manter-se os nomes e mesmo as funções das pessoas envolvidas.
A atribuição do processo ao juiz Carlos Alexandre terá sido executada por uma funcionária judicial sem a presença de Ivo Rosa, o outro juiz que então integrava o Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC). Segundo o jornal ECO, a defesa de Sócrates alega que esta funcionária que fez a distribuição “já vinha a trabalhar com Carlos Alexandre há anos” em outro tribunal, e que “não era ela que estava para ser nomeada escrivã do TCIC” em Setembro de 2014.
De acordo com o Diário de Notícias, o juiz Carlos Alexandre terá sido entretanto constituído arguido no mês passado, depois de o Tribunal da Relação de Lisboa ter aceitado o requerimento de abertura de instrução apresentado por José Sócrates. Fonte judiciária adiantou também à Agência Lusa que por despacho do juiz desembargador Jorge Antunes foi ainda declarada aberta a instrução pedida por José Sócrates. O juiz Carlos Alexandre e a escrivã Maria Teresa Santos assumiram a qualidade formal de arguidos nesse processo.