Categoria: Crónica

  • Passadeiras assim tão jeitosas

    Passadeiras assim tão jeitosas


    Um lugar de estacionamento em Lisboa é um luxo. Mas é mesmo preciso colocar lugares a curta distância das passadeiras violando o Código da Estrada? Pelos vistos, sim. O Repórter LX mostra alguns exemplos e estimula os seus leitores a identificar mais…

    Diz a alínea d) do artigo 49º do Código da Estrada ser proibido estacionar a “menos de cinco metros antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou de velocípedes”. Compreende-se perfeitamente, pois isso impede que um condutor consiga ver se há ou não um peão na ponta da passadeira. É um perigo quando isso acontece.

    Mas o que dizer quando isso acontece em lugares que estão assinalados para o efeito? Não acredita que existam casos desses na cidade de Lisboa? Bem, venha então daí fazer um passeio pela cidade na companhia do Repórter LX e confira.

    Na Rua do Possolo, por exemplo, perto da Basílica da Estrela, e não muito longe da residência privada de um antigo primeiro-ministro e ex-Presidente da República, temos ali um espaço de estacionamento legal, devidamente assinalado e limitado no chão, mesmo em cima de uma passadeira. Não é preciso uma fita métrica para ver logo que não há os tais cinco metros de distância legal para o efeito. Aquilo nem um palmo tem de distância entre os limites do estacionamento e a ponta das linhas da “zebra”.

    Outro caso que topámos está na passadeira em frente ao Elevador da Bica, no Largo do Calhariz, ao cimo da Calçada do Combro. Mais uma vez, temos um espaço de estacionamento, limitado por marcas no solo, mas que não respeita a distância legal, constituindo um perigo para os turistas que querem atravessar a passadeira para aceder ao mui turístico elevador de Lisboa, numa das ruas mais bonitas e visitadas da cidade.

    A situação é ainda mais ridícula quando se vê que ainda está pintado no solo uma enorme barra branca que marca precisamente a distância entre o limite de estacionamento e a passadeira, mas que de nada serve, uma vez que o espaço de estacionamento a ultrapassa. Este lugar, frente a uma dependência da Caixa Geral de Depósitos, é ocupado sem que os condutores sejam depois incomodados por qualquer autoridade de fiscalização do estacionamento da cidade.

    Fomos encontrar um terceiro exemplo na Rua da Palma, a caminho da Praça do Martim Moniz para Praça da Figueira, na parte lateral do Hotel Mundial. Um dos lugares de estacionamento viola o limite de cinco metros, impedindo a visibilidade para o atravessamento em segurança dos peões.

    E, uma vez mais, tal como no Largo do Calhariz, lá está uma barra branca pintada no chão a marcar esse limite, mas, uma vez mais, com o lugar de estacionamento a ultrapassar o limite.

    E isto numa outra zona de grande movimento turístico à mistura, sendo que os estrangeiros são pessoas pouco habituadas a lidar com estas idiossincrasias bem locais e os que mais se espantam com as soluções criativas e originais e ilegais para certos lugares de estacionamento em Lisboa ditos… legais!

    Para terminar, deixamos ainda um registo de ontem na caótica Rua Garrett, que nem é carne nem é peixe, isto é, nem é rodoviária nem pedonal, antes pelo contrário. Continua com tráfego rodoviário, estacionamento lateral, fluxo de peões, trotinetes e o que mais houver, na calçada e no empedrado,

    Neste caso, ou neste caos, há ainda obras em curso, e porque em Portugal os maus exemplos vêm muitas vezes de quem deveria ser exemplar, encontrou o Repórter LX um belo carro da Polícia Municipal de Lisboa descansadamente estacionado em cima de uma passadeira em zona de estacionamento não permitido.

    Não se vislumbrou os agentes, mas certamente estariam a ordenar o trânsito. Ou a passar multas. Talvez por mau estacionamento.

    FDC / PAV


    Todos os textos da rubrica Repórter LX (marca registada do PÁGINA UM), mesmo se num estilo de crónica, são da autoria de jornalistas acreditados, identificados pelas iniciais. Para contribuir com sugestões de situações que lhe causem perplexidade na capital portuguesa, por favor escreva-nos para reporterLX@paginaum.pt.

  • Martim Moniz entalado na parede

    Martim Moniz entalado na parede


    Uma parede foi erguida nas arcadas públicas do Hotel Mundial, no Martim Moniz. Não se trata de conquistar Lisboa de novo aos mouros, mas apenas para impedir que os sem-abrigo morram à frente de um supermercado

    A lenda de Martim Moniz diz que o guerreiro morreu entalado na porta do Castelo quando estava a ajudar o rei D. Afonso Henriques a conquistar Lisboa aos mouros. Não vamos discutir aqui se esta história é verdadeira – o Castelo não foi conquistado, mas rendeu-se após um cerco de vários meses. O que devemos discutir é a parede que se ergueu nas arcadas públicas do Hotel Mundial, na Praça Martim Moniz.

    Martim Moniz AP, ou antes da parede…

    Foi em Janeiro passado que se montou a dita parede, no local onde está um supermercado Continente. Esta é uma estrutura tosca, sem qualquer gosto estético que combine com a arquitectura original, frágil e de madeira contraplacada. A intenção era óbvia: impedir que as arcadas servissem de habitação para sem-abrigo.

    Um mês antes, um sem-abrigo, que sofria de problemas respiratórios, faleceu naquele mesmo local. Como o negócio do hotel é vender alojamento a troco de dinheiro e o negócio do supermercado é vender comida a troco de dinheiro, sendo que um sem-abrigo precisa de ambos os serviços, mas não tem o dinheiro necessário, então a melhor solução foi a de fechar aquela zona do edifício.

    E, com isso, acabou também uma zona de passagem pública – antes de lá estar instalado o supermercado, funcionava uma sapataria, com montra para passagem pública das arcadas, mantendo assim a área limpa.

    Como não se pode fazer um decreto a acabar com os sem-abrigo, que “crescem” cada vez mais na cidade, a melhor solução dos responsáveis daquele espaço foi a de mandar colocar ali uma parede. Espera-se que a solução, altamente discutível do ponto de vista arquitectónico e de efeito visual numa área frequentada diariamente pelos turistas – o terminal do famoso eléctrico 28 está ali perto, do outro lado da rua –, tenha respeitado todos os preceitos legais, pois claro.

    Martim Moniz DP, ou depois da parede…

    Ou alguém iria imaginar que, numa cidade onde uma pessoa não pode mandar fazer uma marquise num telhado sem que isso provoque reacções públicas, uma parede possa ser erguida em pleno centro da cidade sem ter todas e mais algumas autorizações de arquitectos, técnicos municipais e políticos?

    Se a solução para impedir a morte de mais sem-abrigo passa por fazer paredes em locais onde eles dormem, então prevê-se que Lisboa, em breve, venha ser uma cidade com muitas paredes. Com a grande maioria a viver fora delas, obviamente.

    FDC


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  • O buraco de Santa Justa

    O buraco de Santa Justa


    Fim de Março 2023, esquina da Rua dos Fanqueiros com a Rua de Santa Justa. Ao lado do estabelecimento “Armazéns Afonso”, de venda de roupa e tecidos, perto dos correios e limitado por barreiras de plástico, abre-se um considerável buraco no chão.

    Há uns cabos à vista, bastante entulho misturado com garrafas de plástico e sacos de pedras. O abandono e desleixo é notório, e tudo que parece indicar estar assim há algum tempo.

    Existe uma esplanada perto e uma farmácia em frente. Turistas passam por ali com frequência, descendo do Castelo a caminho da Baixa e, em particular, em direcção ao histórico Elevador de Santa Justa.

    Repórter LX, de passagem pelo local, olha para o estado do caminho e, para tentar perceber a situação, interpela um comerciante local:

    – Este buraco está aqui há muito tempo?

    – Vai fazer cinco meses.

    – Cinco meses?! Tem a certeza? Não está a exagerar?

    – Então? Foi aberto em Novembro e estamos em Março…

    – Em Novembro? E ainda está assim? Mas abriram isto para quê?

    – Era para tirar uns cabos que estavam obsoletos, só que precisavam de arrancar uma árvore. O presidente da Junta disse que não concordava. O presidente da Câmara dizia que sim. Entretanto, cortaram a árvore, mas as raízes ainda estão aí! Está na mesma!

    – Desculpe lá, mas isso que me está a dizer é simplesmente ridículo! A árvore foi cortada, mas não tiram as raízes que impediam a remoção dos cabos? E agora ninguém faz nada quanto ao buraco?

    – O presidente da Câmara até já veio aí a ver. E o presidente da Junta, agora, evita passar por aqui para não ter de falar comigo sobre esta vergonha.

    – E isto, a si, prejudica-lhe o negócio…

    – Claro! As pessoas afastam-se desta parte do passeio por terem medo de cair, apesar de haver ali um pedaço de madeira. E o pior é que, à noite, usam isto como casa-de-banho pública. Fica depois o cheiro…

    – E já algum jornalista escreveu sobre isto?

    – Não. Ainda não.

    – Está bem. Obrigado, amigo e boa sorte com o negócio.

    – Obrigado.

    Repórter LX tira foto ao local e retira-se com a ideia de escrever algo sobre este buraco em particular.

    Dez dias se passaram, acrescidos aos cinco meses. Pelo sim, pelo não, Repórter LX passa no mesmo local para confirmar a situação e… nem de propósito, repara que, neste ínterim, o buraco foi tapado. Chão impecável, tudo limpinho, mas o coto da árvore, cortado, permanece no mesmo sítio, como se fosse um banco alto. Intrigado, pergunta ao mesmo comerciante como conseguiram, afinal, tirar os cabos sem a necessidade de remover as raízes da árvore.

    – Então, amigo? Conseguiram tirar os cabos e arranjar-lhe o buraco sem tirar o resto da árvore?

    – Qual quê? Foram obrigados a tapar isto porque, segundo ouvi dizer, mas não tenho a certeza, caíram aí duas senhoras durante a noite. Parece que veio cá polícia e ambulância. Eu não vi… Mas a Câmara mandou logo tapar.

    – Isso significa que os tais cabos obsoletos, que queriam tirar e obrigou à abertura do buraco, continuam lá em baixo?

    – Sim! Dizem que vão regressar para abrirem novamente o buraco, mas desta vez vão fazer um maior ao longo da rua…

    – Mas tapam e destapam? E a árvore que cortaram, afinal, ainda ali está o tronco. Não tiraram as raízes…

    – O presidente da junta já voltou a passar por aqui. Ele diz que vai colocar a Câmara em tribunal por causa do corte da árvore. Ou que até já colocou, nem sei…

    – Bem, as árvores fazem falta…

    – Claro que sim. Esta não era muito antiga. Devia ter pouco mais de 30 anos, talvez ainda do tempo do Kruz Abecassis. Só que está muito próxima de uma caixa de electricidade, enterrada ali ao lado. Pode ser um risco para esta zona da Baixa ficar sem luz…

    – Tenho a certeza de que vão conseguir chegar a uma solução. Pelo menos, para já, voltou a ter o chão como devia ser.

    – Para já, sim. Deixaram de usar isto como casa-de-banho. Agora vamos ver que buraco vão voltar a abrir…

    – Boa sorte, amigo, porque pelos vistos isto ainda não acabou!

    – Obrigado.

    Repórter LX tira então, enfim, e por fim, foto ao local, agora arrumado, e afasta-se, a pensar que a cidade é um palco de surpresas. Sobretudo quando um buraco é aberto e permanece assim durante quase meio ano, para ser tapado sem estar realizada a obra que levou à sua abertura, e, enquanto não é novamente aberto, provocou já o corte de uma árvore, cujas raízes permanecem enterradas, mas abrindo, aparentemente, uma disputa legal entre órgãos autárquicos.

    Mas, afinal, não fossem estas pequenas coisas, que outro motivo haveria para duas pessoas, estranhas, entabularem conversa nesta nossa Lisboa? 

    FDC


    Todos os textos da rubrica Repórter LX (marca registada do PÁGINA UM), mesmo se num estilo de crónica, são da autoria de jornalistas acreditados, identificados pelas iniciais. Para contribuir com sugestões de situações que lhe causem perplexidade na capital portuguesa, por favor escreva-nos para reporterLX@paginaum.pt.

  • A solidariedade também atrai abutres

    A solidariedade também atrai abutres

    O jornalista Nuno André esteve três semanas num centro de refugiados ucranianos na fronteira polaca, e fez várias incursões pela Ucrânia em ajuda humanitária. Regressado a Portugal, nos próximos dias mostrará aquilo que viu e sentiu. Eis o segundo episódio de Crónicas da Ucrânia.


    Na constante tensão entre aquilo que consideramos ser bom, porque nos dá prazer, e aquilo que tem de ser feito, porque é nosso dever, está o eixo em torno do qual se desenvolve o nosso carácter. Assim, se as dificuldades nos proporcionam oportunidades – vimos, ouvimos e lemos –, então não podemos ignorar.

    Portugueses, espanhóis, franceses, italianos, alemães, polacos, e tantos outros cidadãos do Mundo, partiram em carros particulares, enviaram carrinhas, alugaram autocarros, com a nobre intenção de levar mantimentos e resgatar famílias ucranianas.

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    Para nós, portugueses, tratou-se de uma viagem, entre ida e volta, de cerca de sete mil quilómetros, a gastar entre mil e três mil e quinhentos euros, dependendo do veículo ser ligeiro ou pesado, e a despender no mínimo seis dias, caso não tenha havido paragens para pernoitar ou descansar durante uma viagem de mais de oitenta horas.

    Estes números são meramente indicativos, e dependeram da carga, do número de condutores ou das obrigações legais. Aqui, não se contabilizaram as despesas com o alojamento e alimentação. Gastaram-se milhares e milhares de euros em deslocações. Fomos generosos, não há dúvida.

    Esta ajuda humanitária não esperou por instruções governamentais. Diria mesmo que não dependeu em nada das associações ou organizações oficiais teoricamente organizadas e estruturadas.

    Na generalidade, a acção humanitária eclodiu no seio das famílias comuns, em reuniões de jantar ou em encontros informais entre amigos, que não se conformaram com o cenário desastroso que diariamente passou a invadir os nossos lares.

    Por tudo isto, este texto podia terminar por aqui. Eventualmente, concluindo que se o egoísmo produz um efeito deletério sobre o desenvolvimento da sociedade, o altruísmo evoca o que de melhor existe no ser humano, para viver, e persistir em viver, em comunidade.

    Contudo, na verdade, a ajuda humanitária aos refugiados ucranianos teve tanto de belo como de perverso. Somos, por isso, obrigados a denunciar, a entender e a refletir sobre aquilo que aconteceu, e continua a acontecer, nas fronteiras, nos campos de refugiados. De forma perversa, mas também discreta. E, por isso, mesmo, por discreta, persistente.

    Os centros humanitários de apoio aos refugiados e sobreviventes ucranianos surgiram logo nos primeiros dias após a invasão pela Rússia. E de um modo voluntário e improvisado. E não estando preparados para receber tanta gente, funcionaram; ainda que sem liderança, estrutura ou organização formal.

    Além dos problemas inerentes ao grande fluxo de pessoas – como a higiene (ou falta dela) –, estiveram em causa problemas de segurança.

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    Nunca faltaram alimentos nem transportes nem cuidados de saúde. Os refugiados eram, na sua maioria, mulheres, crianças e idosos que caminhavam com ar cansado, desolado, entristecido. Traziam consigo toda uma vida arrumada numa pequena e singela bagagem. Sem casa, sem conforto, sem destino.

    Esta fragilidade abriu as portas aos criminosos – pervertidos, carniceiros – que, apercebendo-se dos pontos fracos, facilmente aproveitaram para raptar e traficar pessoas. Levaram-nas consigo. Fizeram-nas desaparecer. Nunca mais saberemos do seu paradeiro, e nem sequer daremos pela sua ausência. Serão vítimas da guerra. Os anónimos desaparecidos que caem nas estatísticas das estimativas. Sem rosto. O seu desaparecimento individual jamais será notícia.

    Durante as primeiras duas semanas do conflito, os campos de acolhimento não gozavam de vigilância nem de um registo capaz de cruzar informação sobre as pessoas que entravam e saíam. Qualquer motorista, que ali chegasse, parava o carro e oferecia boleia. Tudo simples. Não havendo controlo, os raptores circularam pelos corredores junto aos quartos onde dormiam centenas de refugiados, no meio de tantos outros que ofereciam autêntica ajuda humanitária.

    Fotografavam e filmavam crianças e mulheres, enquanto estas dormiam ou conversavam. Escolhiam. Apresentavam-se mais tarde com a promessa de lhes oferecerem um transporte, uma casa, um emprego, uma vida renovada, nova.

    Mostravam, de forma encenada, fotografias dos seus lares, apresentavam contratos de trabalho como garantia de emprego, e exibiam filmes da sua própria família, talvez fictícia, que se mostrava contente e preparada para os receber. Actuavam com rapidez e astúcia.

    O comportamento destes homens e mulheres chamou à atenção dos verdadeiros voluntários e, quando confrontados, estes limitavam-se a fingir não perceber a língua, saindo de cena sem dar nas vistas. Enquanto não houve uma forte presença policial nestes centros, pouco foi possível fazer para impedir esses crimes.

    Chegou a haver denúncias, e pessoas identificadas pelas autoridades. Contudo, sem provas concretas – ou porque não tinham sido apanhados em flagrante delito –, pouco ou nada se conseguiu fazer.

    Ser-se jovem, mulher, bonita ou elegante eram critérios essenciais no momento de escolher quem resgatar. Ali, a generosidade era aplicada segundo o peso e a medida. Fez doer a alma. Ainda me faz doer.

    Depois de terem sido aplicadas regras de segurança apertadas, o ritmo abrandou. Passou a ser obrigatório o registo de cada motorista e a viatura à chegada e à saída. Cada refugiado era registado à entrada e só podia sair depois de declarar todos dados, de forma a saber-se com quem e para onde seguia. Proibiu-se a circulação no interior dos espaços reservados aos refugiados, e criaram-se postos de controlo à saída do estacionamento.

    Enquanto estive, durante três semanas em Przemyśl, consegui perceber melhor a diferença entre solidariedade e bondade. Em nome da solidariedade, as mulheres bonitas também devem ser resgatadas – e mesmo sendo a beleza um aspecto relativo e discutível, constatei ser esse um critério determinante para esta mobilização. A solidariedade também atrai abutres.

    Já a bondade, não repara no número de dentes, no busto ou nas cicatrizes provocadas pelo tempo. Não olha para a cor da pele. Não olha a origem dos refugiados. Nem olha para o conflito.

  • Caridade sem prazo de validade

    Caridade sem prazo de validade

    O jornalista Nuno André esteve três semanas num centro de refugiados ucranianos na fronteira polaca, e fez várias incursões pela Ucrânia em ajuda humanitária. Regressado a Portugal, nos próximos dias mostrará aquilo que viu e sentiu. Eis o primeiro episódio de Crónicas da Ucrânia.


    De forma objectiva e fria, primeiro os factos. Durante as primeiras horas do dia 24 de Fevereiro, ouviram-se as sirenes em Kyiv, e mísseis russos caíram sobre solo ucraniano. Foi o despertar de mais uma guerra – uma nova ferida no coração da Humanidade.

    Ninguém pareceu surpreender-se. As movimentações militares e políticas, nas semanas antecedentes, prognosticavam uma invasão iminente, e, por esse motivo, as forças armadas ucranianas estavam preparadas para uma resposta defensiva minimamente eficaz. O avanço das tropas russas fez-se por três frentes: norte, leste e sul. A Ucrânia aplicou a Lei Marcial.

    Entretanto, quase todos nos sentámos no sofá para assistir, ao vivo, pela televisão, jornal e redes sociais, ao desenrolar de uma história que tem sempre pouco de original.

    Como sabemos, os responsáveis políticos dos países ditos ocidentais optaram por não intervir directamente. Enviaram apenas armamento, dinheiro e, a custo, sancionaram a Rússia.

    Mais lesta se mostrou a sociedade civil. Poucos dias após a eclosão do conflito, gentes de várias nações orquestraram, à margem dos governos e das instituições internacionais, planos individuais e humanitários.

    Por exemplo, no dia 1 de março, já tinham saído de Portugal mais de uma dezena de camiões carregados com mantimentos, recolhidos em escolas, sedes de associações, juntas de freguesia.

    E tudo serviu para o transporte: carros, carrinhas e camiões para levarem alimentos, roupas, medicamentos e o mais que se imaginasse poder ser útil para os refugiados da guerra.

    Mas foram também braços e pernas para ajudar. Muitos voluntários seguiram para a fronteiras da Polónia, Eslováquia, Hungria e Roménia junto à Ucrânia. E juntaram-se a muitos outros.

    Impossível saber agora – nem nunca saberemos – quantas toneladas de mantimentos foram enviadas pelos portugueses, sobretudo por causa de uma evidente falta de gestão organizada, que dificultou, em grande escala, que o generoso apoio de tantas famílias pudesse ser mais útil.

    E isso deve levar-nos a reflectir sobre a necessidade de uma educação e uma preparação social para que, no futuro, a solidariedade seja eficaz.

    Logo nas primeiras horas da minha chegada ao centro de apoio aos refugiados em Przemyśl, na fronteira polaca, foi evidente que, a montante, nos países que doaram os mais diversos mantimentos não havia a mínima ideia daquilo que mais falta fazia. Não havia uma plataforma ou uma central de informação e, portanto, nunca foi possível saber o que já tinha sido enviado, nem para onde, nem aquilo que seria útil.

    Como resultado, logo no final da primeira semana de Março, os responsáveis pelos armazéns do centro de refugiados em Przemyśl impediram mesmo a entrega de peças de vestuário. A quantidade de roupa enviada foi de tal modo exagerada que não havia forma nem meios para a guardar, escolher ou separar. Chegou-se a assistir a descargas descontroladas feitas pelos camionistas que, desesperados, tiveram de encontrar soluções de recurso para evitarem regressar ao ponto de partida com a carga. Houve mesmo quem tivesse sido multado ou visse o seu camião apreendido na Polónia por essa prática ser considerada crime.

    Perguntavam algumas mulheres ucranianas: “porque é que nos enviaram vestidos, calções ou fatos de banho?”; ou então: “para quem são estes sapatos de salto alto?”… E havia roupa suja, rasgada, de odor duvidoso. Felizmente, e saliente-se, também chegaram muitos casacos para o frio, sacos-cama, botas quentes.

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    Mas os problemas não se limitaram à roupa. Também se estenderam à alimentação, que deu dores de cabeça (e de barriga) a muitos.

    Falemos do centro que conheci, em Przemyśl, com vários pontos de entrega de refeições confecionadas. Para quem chegava da Ucrânia, havia pizzas, hambúrgueres, sopas e muitas outras receitas mais ou menos condimentadas. Tudo gratuito. Toda esta alimentação e refeições quentes provinham de uma empresa financiada com dinheiro dos fundos humanitários da Polónia.

    Ou seja, a maior parte dos alimentos que enviámos para a fronteira nunca chegou a fazer falta. Muito menos enlatados cuja validade terminava em 2017. Tudo isto, contrariando a realidade que se vive no interior da Ucrânia, onde aí sim fazem falta enlatados, chouriços, leite, bolachas, fruta, pois as massas ou o arroz, por exemplo, dificilmente podem ser cozinhados por faltar gás, eletricidade e água.

    Ainda assim vai chegando alguma alimentação necessária para os civis e para os militares. A enviar alimentos, que sejam em lata, mas com a garantia de que chegam mesmo às cidades e outras terras ucranianas, onde fazem falta.

    Situação similar aconteceu com os medicamentos e material médico. Quem estava em Portugal e noutros países europeus, talvez tenha idealizado um cenário de guerra junto às fronteiras, onde apareceriam feridos com braços esfacelados e pernas amputadas, balas nos corpos, feridas, fraturas expostas. A realidade era outra.

    No limite, os refugiados chegavam com dores de cabeça, febre ou diarreia – excepção para diabéticos, grávidas ou para quem sofria de outras doenças crónicas. Nestes casos, o apoio especializado estava garantido nos hospitais locais e de campanha na Polónia.

    Os medicamentos faziam falta sim, mas no interior da Ucrânia, sobretudo nas cidades cercadas ou bombardeadas. E aí tem chegado pouco do que tem sido enviado. É, por isso, legítimo perguntar onde param as toneladas de paracetamol, de amoxicilina e betadine que se enviaram ao longo do mês de Março.

    E tanto mais havia a dizer sobre os quilos e quilos de fraldas, as centenas de sacos de rações para animais, os milhares de escovas de dentes e as paletes de água engarrafada…

    Entretanto, somente agora, mais de um mês após o início das hostilidades, chegam à Ucrânia os políticos. Sem coletes. Sem capacetes. Sorridentes. Para se ser herói não é preciso ter uma capa. Só é preciso “ter lata”. E dentro do prazo.

  • Escolhas: as regras da evacuação para evitar o caos

    Escolhas: as regras da evacuação para evitar o caos

    O relato de Nuno André, jornalista do PÁGINA UM, que se encontra na Ucrânia e na Polónia, sobretudo a fazer trabalho humanitário no centro de acolhimento de refugiados em Przemyśl, com incursões até Lviv. Apresentamos uma série de 10 depoimentos sobre a sua vivência.

    Neste episódio, Nuno André conta como se tenta “escoar” os refugiados que vão chegando à fronteira polaca para lhes conceder um destino seguro mas para evitar também uma acumulação de pessoas a caminho do caos.

    Finalizamos, com este episódio, a primeira série de depoimentos intitulada “A terra da guerra”.

    Edição: Bernardo Almeida


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  • Penumbras: viagem pelas terras gélidas da Ucrânia

    Penumbras: viagem pelas terras gélidas da Ucrânia

    O relato de Nuno André, jornalista do PÁGINA UM, que se encontra na Ucrânia e na Polónia, sobretudo a fazer trabalho humanitário no centro de acolhimento de refugiados em Przemyśl, com incursões até Lviv. Apresentamos uma série de 10 depoimentos sobre a sua vivência.

    Neste episódio, Nuno André conta a sua viagem para além de Lviv, e fala dos perigos que espreitam à medida que se aproximava do epicentro dos conflitos armados.

    Continuamos a publicar os episódios desta série de depoimentos intitulada “A terra da guerra”.

    Edição: Bernardo Almeida


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  • Taxista humanitário: viagens pela Ucrânia

    Taxista humanitário: viagens pela Ucrânia

    O relato de Nuno André, jornalista do PÁGINA UM, que se encontra na Ucrânia e na Polónia, sobretudo a fazer trabalho humanitário no centro de acolhimento de refugiados em Przemyśl, com incursões até Lviv. Apresentamos uma série de 10 depoimentos sobre a sua vivência.

    Neste oitavo depoimento, Nuno André relata a sua experiência de ajuda humanitária por terras da Ucrânia, em Lviv e ainda mais para o interior daquele país, distribuindo mantimentos e medicamentos, auxiliando refugiados a chegarem até à fronteira da Polónia.

    E também conta as suas dificuldades iniciais para encontrar refúgio para si próprio nas gélidas noites da Ucrânia.

    Continuamos a publicar os episódios desta série de depoimentos intitulada “A terra da guerra”.

    Edição: Bernardo Almeida


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  • Língua: as palavras perigosas

    Língua: as palavras perigosas

    O relato de Nuno André, jornalista do PÁGINA UM, que se encontra na Ucrânia e na Polónia, sobretudo a fazer trabalho humanitário no centro de acolhimento de refugiados em Przemyśl, com incursões até Lviv. Apresentamos uma série de 10 depoimentos sobre a sua vivência.

    Neste sétimo depoimento, Nuno André exemplifica, com o seu caso pessoal, como uma única palavra – calma – pode afinal desencadear um efeito oposto se, por engano, for dita em russo e não em ucraniano.

    Continuamos a publicar os episódios desta série de depoimentos intitulada “A terra da guerra”.

    Edição: Bernardo Almeida


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  • Viagens: um estranho caldo de perigos e normalidade

    Viagens: um estranho caldo de perigos e normalidade

    O relato de Nuno André, jornalista do PÁGINA UM, que se encontra na Ucrânia e na Polónia, sobretudo a fazer trabalho humanitário no centro de acolhimento de refugiados em Przemyśl, com incursões até Lviv. Apresentamos uma série de 10 depoimentos sobre a sua vivência.

    Neste sexto depoimento, Nuno André fala-nos da sua experiência durante as suas “incursões” por território ucraniano, até Lviv, onde o controlo militar é intenso e os perigos espreitam. Mas também relata a aparente normalidade da principal cidade do oeste da Ucrânia.

    Continuaremos amanhã a publicar os episódios seguintes desta série de depoimentos intitulada “A terra da guerra”.

    Edição: Bernardo Almeida


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