…E QUE, AINDA POR CIMA, IRRITOU PROFUNDAMENTE TODOS OS QUE VIRIAM A SER OS GRANDES APOIANTES DE DARWIN
A hereditariedade é governada por tantas leis ou condições desconhecidas que até parece agir de maneira caprichosa.
Charles Darwin
Fique culto neste Verão
ESTE SABER VAI OCUPAR UM LUGAR COMPLETAMENTE VAZIO
“Foi um grande argumento contra a mutação das espécies, que li com medo e a tremer”
Charles Darwin
a propósito do ataque do seu antigo mestre ao livro VESTÍGIOS DA CRIAÇÃO
Está na altura de ficarmos a conhecer o primeiro de todos os trabalhos do século XIX que, ainda antes de Darwin, receberam o epíteto de “Livro do Macaco”. Mesmo que o dito epíteto tenha vindo a título insultuoso por parte dos leitores irados que na esmagadora maioria não podiam discordar mais do seu conteúdo, e apesar de todos os erros científicos e técnicos que pudesse conter, teve no seu tempo específico uma importância fundamental. Foi esta quase-ficção científica do “Livro do Macaco” que começou a preparar uma Europa ainda semi-refém do texto literal da Bíblia entendido enquanto o maior, melhor, e mais definitivo de todos os manuais científicos, para considerar alternativamente o conceito de que talvez as espécies de certa forma evoluíssem a partir umas das outras, em vez de todas elas serem criadas separadamente por Deus. No epicentro deste episódio vulcânico está um escocês chamado Robert Chambers, que de formação não é zoólogo nem botânico nem geólogo, nem sequer particularmente versado em ciências naturais. Até aqui, o que fez na vida[1], em colaboração com o irmão, foi mais escrever grandes Enciclopédias e Dicionários temáticos sobre os mais variados assuntos, sempre com grandes tiragens e iguais procuras. Também editou, desde muito cedo, uma revista de cultura geral onde nunca deixou de incluir material científico acessível a professores primários e a donas de casa. No entretanto, participou em expedições para aumentar o seu conhecimento geológico, e fez dissecações para conhecer melhor o mundo vivo. Finalmente, em 1841, refugiou-se nas Highlands, onde começou a escrever, no maior dos segredos, o estranho livro VESTÍGIOS DA CRIAÇÃO[2].
Por esta altura, e por muito que a contagem do tempo segundo a Bíblia pudesse parecer cada vez menos inteligível[3], ainda muitos grandes estudiosos defendiam a necessidade de grandes catástrofes como o Dilúvio de Noé para explicar o aparecimento de fósseis no alto das montanhas. Conhecidos como catastrofistas, estes homens confiavam que um Deus capaz de criar o Dilúvio também seria capaz, e por duas vezes, de criar todas as espécies uma por uma. Um dos mais distintos destes homens era Adam Sedgwick, antigo professor de geologia de Darwin, e, incidentemente, à época ainda muito orgulhoso do seu pupilo por todo o trabalho que desenvolvera a bordo do BEAGLE, arriscando-se frequentemente a apanhar doenças desconhecidas em locais onde não teria acedido a qualquer espécie de tratamento médico. “Está a fazer um trabalho admirável na América do Sul, e já enviou para Inglaterra uma colecção inestimável,” escreveu na altura a um amigo. “Havia algum risco de se tornar indolente, mas agora o seu carácter definiu-se, e, se Deus poupar a sua vida, alcançará uma grande reputação entre os naturalistas da Europa.”
Por outro lado, eram cada vez mais os estudiosos, nomeadamente entre os geólogos, que, observando a disposição dos fósseis entre os estratos rochosos, e tendo em conta a datação cada vez mais precisa destes estratos, já não viam no Dilúvio mais do que uma mera cheia do rio Jordão, e consideravam a passagem do tempo uniforme, sem um ponto de início nem um ponto de fim, apenas alterações topográficas constantes que iam arrastando os fósseis consigo. Conhecidos como uniformitaristas, estes homens não viam necessidade de criações constantes por parte de Deus para que as diferentes espécies se formassem em diferentes períodos geológicos. Um dos mais distintos representantes deste grupo contestatário era o advogado Charles Lyell, autor do fundamental PRINCIPLES OF GEOLOGY publicado em Julho de 1830, e o homem considerado por muitos o fundador da geologia moderna[4].
Secretamente, o que Chambers fez foi responder à questão que Sedgwick lançara a Lyell, a título de desafio de resposta impossível, destinado a demonstrar que Deus tem por força que intervir constantemente no progresso da vida: como explicar a progressão das formas orgânicas à luz da uniformidade que pressupunha uma lei natural invariável?
Sedgwick, que colocara a pergunta que estava mesmo a pedir esta resposta, nunca poderia ter imaginado que as coisas alguma vez chegassem ao ponto a que chegaram no VESTIGES, que foi publicado anonimamente em 1844. Ficou horrorizado:
“O mundo não pode tolerar ser virado do avesso; e estamos prontos a reentrar numa guerra sem quartel contra qualquer violação dos nossos princípios modestos e das nossas boas-maneiras sociais. As coisas devem manter-se nos seus lugares apropriados se se destinam a trabalhar em conjunto para qualquer finalidade positiva. As nossas gloriosas donzelas e matronas não podem envenenar as nascentes do pensamento feliz e do comportamento modesto escutando as seduções deste autor; que se lhes apresenta com os anéis da serpente e uma vez mais lhes pede que colham o fruto proibido de uma falsa filosofia – que lhes diz que a sua Bíblia é falsa quando lhes ensina que foram feitas à imagem de Deus – que são filhas de macacos e engendradoras de monstros – que anulou todas as distinções entre o físico e o moral – e que todos os fenómenos do universo são como o desenvolvimento e o progresso de um materialismo degradante e sem tréguas.”
Ha! Pelos vistos, e finalmente, aqui está o legítimo, e sem dúvida o primeiro, “Livro do Macaco”.
Não havia Darwin de ter lido todas estas invectivas “cheio de medo e a tremer” – por essa altura, como é evidente, já tinha começado a esboçar A ORIGEM DAS ESPÉCIES, cuja primeira edição veio a lume em 1859. E os gritos de protesto, mais ou menos apaixonados do que os do seu antigo professor, multiplicavam-se por toda a ilha à sua volta. Em 1850, o VESTIGES continuava a ser repudiado quase unanimemente por todos os cientistas e intelectuais de relevo em Inglaterra, incluindo homens que vieram a ser seus grandes apoiantes, como Huxley e Lyell. Além de ninguém estar disposto a aceitar as suas ideias no que respeita às ciências naturais, muitas das críticas ferozes ao VESTIGES expressam com toda a clareza um grande medo de que os seus conteúdos pudessem corromper a moral vitoriana – nomeadamente o medo de que seduzissem os trabalhadores a passarem de um estado resignado de graça para um estado conturbado de infidelidade social.
O que não quer dizer que não fossem conquistando também cada vez mais leitores leigos interessados naquela heresia, já que as edições do livro do autor desconhecido se sucediam umas às outras com grande rapidez – e, segundo Darwin, com melhoras notáveis ao longo do tempo. Entretanto, ia-se tornando cada vez mais popular nos jantares da alta roda discutir quem teria sido o verdadeiro autor do “Livro do Macaco,” contando-se entre os suspeitos figuras tão inesperadas como Lady Lovelace[5] e o próprio Príncipe Alberto.
O que é que Chambers fez para enraivecer a fina flor dos seus leitores a este ponto?
Bem, basicamente testou as águas – e substituiu Deus por um fenómeno que ainda não era a evolução, mas já era uma ideia parecida, e que se chamava “desenvolvimento”.
“É interessante observar em que pequeno campo se conforma o total dos mistérios da natureza. O mundo inorgânico tem uma lei compreensiva final, a GRAVITAÇÃO. O mundo orgânico, o outro grande departamento das coisas universais, repousa da mesma forma sobre uma única lei, isto é – o DESENVOLVIMENTO.”
Porque, pensando bem, é quase herético assumirmos que o Criador, que certamente criou o mundo, precisou de executar várias criações:
“Como podemos supor um exercício do Seu poder criativo criando numa época zoófitos, noutra época juntando-lhes alguns moluscos marinhos, noutra época introduzindo um ou dois crustáceos, depois produzindo peixes crustáceos, depois peixes perfeitos, e assim por diante até ao fim? Esta seria certamente uma ideia muito pouco respeitadora do Poder Criativo – reduzi-Lo a uma capacidade idêntica à capacidade criativa a que consegue chegar a humanidade.”
É bastante mais lógico – e respeitoso – assumirmos antes que
“o Ser Eterno organizou tudo antecipadamente, e incumbiu todas as operações da lei de executarem o Seu plano, estando Ele próprio sempre presente em todas as coisas.”
A partir daqui o Desenvolvimento está sempre em movimento porque
“a vida orgânica empurra-se a si própria sempre que há espaço ou encorajamento para tanto, sendo as formas sempre adequadas às circunstâncias, e em certa relação com elas.[6]”
Muitos dos exemplos oferecidos por Chambers a este respeito eram quase pequenos quadros de ficção-científica para o seu tempo, por demasiado extravagantes ou por total carência de fundamento, a verdade é que todo este quadro tecia, pela primeira vez e por incipiente que fosse, o esboço de um processo evolutivo. E assim, vestígio a vestígio, esta estranha forma de evolução acaba por chegar ao homem – cujo lugar neste sistema constituiu, sem sombra de dúvida, a proposta mais chocante do livro.
“O Homem, portanto, considerado zoologicamente, e não considerando o lugar distinto que lhe foi reservado pela teologia, toma simplesmente o lugar como o tipo de todos os tipos no reino animal.”
Irão então existir, quando as condições evoluírem,
“espécies superiores a nós em organização, mais puras nos sentimentos, mais poderosas em meios e actos, e que governarão sobre nós?”
Muito provavelmente, embora seja inegável que
“a raça presente, por rude e impulsiva que possa ser, é talvez aquela que se encontra melhor adaptada ao presente estado de coisas no mundo.[7]”
Finalmente[8], uma vez que hoje em dia podemos lidar com todos os problemas que conhecemos de forma estatística, os assuntos humanos não podem ser separados dos assuntos materiais.
“Esta regularidade estatística nos assuntos morais[9] estabelece plenamente a sua posição sob a presidência da lei. O Homem parece agora um enigma se for considerado apenas enquanto indivíduo: em massa, é apenas um problema matemático. A acção mental, sendo provado que está coberta pela lei, passa imediatamente à categoria das coisas naturais. O seu velho caracter metafísico desaparece num instante, e a distinção que se faz habitualmente entre o moral e o físico fica anulada.”
Gostando o ser humano como gosta dos seus duches ocasionais de adrenalina, é possível que muitos leitores tenham comprado o livro só pela aventura de o possuírem – e, certamente, de alguém lá em casa conseguir ler toda esta última parte. Não há razões para duvidar que algumas sequências chegassem a saber-se de cor. Ainda antes da publicação da primeira edição da ORIGEM DAS ESPÉCIES, já a história dilacerante do Livro do Macaco, com todo o debate que lhe vinha associado, estava a disseminar-se pela Europa e a pavimentar o caminho para o materialismo[10]. Talvez Chambers só quisesse ver o que é que acontecia se alguém explicasse o que é que os fósseis estavam a fazer no cimo de montanhas que afinal não tinham só seis mil anos de vida conforme a vida da Terra segundo a Bíblia usando a alternativa óbvia do sentido prático que permite explicar tudo sem qualquer problema: pura e simplesmente, tira-se Deus da equação. Mas a sua curiosidade abriu a Caixa de Pandora.
O próprio Darwin, que viera de uma família Unitariana inconformista e se juntara à fé Anglicana, de tal forma que foi estudar para a Universidade de Cambridge com o intuito de vir a ser clérigo, teve que prescindir de Deus como causa imediata quando juntou todos os pontos da sua viagem e chegou à selecção natural. Afastou esse Deus com a mesma tristeza com que, dois séculos antes, Johannes Kepler afastara órbitas dos planetas do desenho em círculo para desenhar antes órbitas elípticas que eram finalmente compatíveis com as observações planetárias feitas durante mais de um milénio no céu nocturno. O círculo simboliza a perfeição e a elipse simboliza o caos: é a tristeza do grande cientista perante os seus próprios dados, que não lhe agradam, mas representam a verdade e têm que ser respeitados enquanto tal. Kepler assumiu as órbitas elípticas dos planetas baseadas nas suas observações. E Darwin assumiu a evolução baseada na selecção natural:
“Não posso continuar a argumentar que, por exemplo, a mola tão bela de uma concha bivalve deve ter sido feita por um ser inteligente, tal como o homem constrói a mola de uma porta. Não me parece que haja mais desígnio na variabilidade dos, seres orgânicos e na acção da selecção natural, do que no quadrante de onde sopra o vento.”
Talvez Darwin não esperasse a raiva e a cólera com que as várias igrejas lhe caíram em cima. Mas toda aquela tareia, mais a perda de Deus como causa primeira, vibraram golpes duros na sua fé. Não quer dizer que se tenha tornado ateu. Mas tornou-se – a tal palavra cunhada pelo seu bulldog Thomas J. Huxley – tornou-se agnóstico. Por vezes, como escreveu a um dos seus primos:
“Nas minhas flutuações mais extremas nunca fui um ateu no sentido de negar a existência de Deus. – Creio que geralmente (& cada vez mais à medida que envelheço), mas nem sempre, que a melhor descrição do meu estado de espírito seria a de um agnóstico.”
Mas é evidente que ainda teríamos – e teremos – que assistir a muitas batalhas na longa História desta guerra. Segundo o lugar-comum geralmente atribuído ao físico alemão Ernst Mach, também ele do século XIX, as novas teorias só triunfam completamente quando a velha guarda desaparece. O que é pouco mais do que um sonho agradável, uma vez que que a velha guarda nunca desaparece.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Também enquanto autodidata, note-se. A falta de uma formação específica não tinha necessariamente de ser um entrave para qualquer britânico curioso, bem informado, que tivesse boas ideias e escrevesse bem.
[2]VESTIGES OF CREATION, no original; frequentemente encurtado para VESTIGES.
[4] Isto é, uma Geologia em que Deus nunca aparece como o princípio activo nem como o motivo explicativo, e em que o tempo passa de forma tão longa que se torna humanamente impossível de contar. Tirando isso, Lyell cometeu erros de raciocínio que podem parecer-nos fascinantes (o tempo futuro do regresso dos dinossauros, por exemplo) mas não deixam por isso de ser erros – de palmatória.
[5] Augusta Ada Byron, a única filha legítima do poeta Lord Byron, casou-se como Ada King, Condessa de Lovelace. Foi uma matemática especialmente respeitada na Inglaterra Vitoriana, que ficou reconhecida por ter escrito o primeiro algoritmo para ser processado por uma máquina.
[6] É verdade, isto está tudo muito mal escrito, o que é particularmente chocante quando contrastado com a fina prosa de Darwin, que navega o inglês vitoriano com a mestria de Dickens. Mas lembrem-se, Chambers costumava escrever enciclopédias para professores primários e donas de casa. Não estava habituado a grandes exigências em conhecimento científico, isso já vimos. Mas também é preciso ver que ninguém nas suas audiências habituais o acusaria de não escrever bem. Conseguia escrever, o que já era uma grande coisa.
[7] Note-se o cúmulo do insulto consubstanciado naquele “talvez”.
[9] Chambers estava a dar como exemplo a previsibilidade estatística dos índices criminais numa determinada região.
[10] “Este é o nosso homem,” escreveria mais tarde Marx a Engels quando saiu a primeira edição de A ORIGEM DAS ESPÉCIES.
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A hereditariedade é governada por tantas leis ou condições desconhecidas que até parece agir de maneira caprichosa.
Charles Darwin
Fique culto neste Verão
ESTE SABER VAI OCUPAR UM LUGAR COMPLETAMENTE VAZIO
A partir do último livro de Charles Darwin, THE ASCENT OF MEN & THE SEXUAL SELECTION
No contexto de uma nova tradução, revista e comentada, de todas as obras de Darwin, que entrará em publicação a partir de Dezembro de 2024 na editora Exclamação
“Uma Casa de Gosto é uma casa de bom gosto, onde todas as coisas são um reflexo de pensamentos refinados e desejos castos. Num tal lar, a Beleza preside à educação dos sentimentos, o intelecto é aperfeiçoado, e a natureza moral é depurada através dos apelos silenciosos da Natureza e da Arte, que são os alicerces do Gosto.[1]”
James Shirley[2] Hibberd, em RUSTIC ADORNMENTS FOR HOMES OF TASTE: CONTAINS SUGGESTIONS FOR THE FLORAL EMBELLISHMENT OF THE HOME, THE GARDEN, BALCONY, WINDOW, GREENHOUSE AND CONSERVATORY: WITH HINTS ON THE FORMATION AND MANAGEMENT OF FRESH-WATER AND MARINE AQUARIUMS, VIVARIUMS, ETC. Desde cerca de 1855 até à publicação em Oxford de todos os fascículos num único opúsculo de capa dura, em 1895.
Antes de mais nada, há um herói da cultura e das belas causas que pode ser uma criatura algo irritante, mas para todos os efeitos é a grande estrela desconhecida desta história. O britânicoHerbert Spencer, um dos grandes representantes do liberalismo clássico do seu tempo, nasceu em 1820 e morreu em 1903. Destacou-se a vida inteira enquanto notável opositor dos governos militares e autoritários, do colonialismo, do imperialismo, e de qualquer forma de guerra. Além disso, aplicou à sociologia ideias que eram próprias das ciências naturais, por forma a criar um sistema de pensamento que foi muito influente na sua época. As conclusões dos seus estudos levaram-no a defender a primazia do indivíduo perante a sociedade e o Estado, e a Natureza como fonte da verdade, incluindo a verdade moral. No campo pedagógico, Spencer fez uma verdadeira campanha pelo ensino escolar da ciência, combateu a interferência do Estado na educação, e afirmou que o principal objetivo da escola era a construção do caráter[3].
As suas cruzadas filosóficas foram sempre extremamente populares, e os números resultantes falam por si. Enquanto a maioria dos filósofos não consegue atingir muitos seguidores fora do grupo de colegas de profissão, entre 1870 e 1880 Spencer tinha alcançado uma popularidade sem precedentes. Foi provavelmente a primeira, e talvez a única vez na história, que um filósofo vendeu mais de um milhão de cópias de seus trabalhos durante a sua vida.
Não se trata aqui de um mero fenómeno de vendas, mas, muito provavelmente, de um verdadeiro benefício para a humanidade. Nos Estados Unidos, onde as edições piratas ainda eram comuns, a sua editora autorizada, a Appleton, vendeu 368.755 cópias entre 1860 e 1903. Este valor não difere muito das vendas na sua Inglaterra natal, e, quando adicionamos as edições do resto do mundo e o das edições pirata, o valor de um milhão de cópias parece ser uma estimativa conservadora. Como observou o filósofo e psicólogo americano William James,[4] Spencer “ampliou a imaginação, e libertou a mente especulativa de inúmeros médicos, engenheiros, advogados, físicos, químicos, e dos leigos em geral“. A parte do seu sistema de pensamento que enfatizava o autoaperfeiçoamento do indivíduo encontrou um público imediatamente interessado na classe trabalhadora qualificada.
Vale a pena notar, aliás, que o endeusamento da Natureza, que poderia ter sido escandaloso em tempos anteriores, e pode parecer-nos legitimamente ridículo hoje, é uma das posturas mais características dos intelectuais da segunda metade do século XIX, sobretudo nos Estados Unidos. Veja-se, por exemplo, toda a comunidade de pobres voluntários que escolheu viver em contacto estreito com a Natureza em torno do Lago Concord, no Massachusetts. Foi nesta comunidade que Louisa May Alcott escreveu, entre muitos outros, o seu quase autobiográfico MULHERZINHAS. Foi também aqui que o respeitadíssimo Ralph Waldo Emerson, considerado o grande expoente do Transcendentalismo, escreveu o livro A NATUREZA, que viria a ter uma influência impressionante sobre os jovens do seu tempo. Considerando a Natureza a fonte da verdade Herbert Spencer está, portanto, a reproduzir em Inglaterra muito do que foi escrito nos ensaios e poemas americanos, surtindo desde logo o mesmo impacto sobre o público, sobretudo o público mais jovem.
Como era próprio da época, Spencer teve várias especializações: foi antropólogo, filósofo e biólogo. Nesta última condição, tornou-se um profundo admirador da obra de Charles Darwin. Depois de ler A ORIGEM DAS ESPÉCIES, decidiu escrever um livro em que estabeleceria diversos paralelismos entre teorias económicas e teorias biológicas.
Para isso, evidentemente, era preciso que todos os leitores conseguissem compreender sem esforço as teorias biológicas – uma vez que as económicas, essas, para o efeito a que se destinavam, não levantavam qualquer problema.
Spencer não demorou muito tempo a reparar que é extremamente difícil explicar aos leigos que, tal como Darwin parecia postulá-la, a seleção natural funciona, ao que parece, e se não é bem assim é qualquer coisa deste género,
“pela sobrevivência do conjunto de mutações que, completamente por acaso, estão melhor adaptadas à transformação ambiental seguinte, sendo que ninguém pode prever que transformação vai ser essa, pelo que nunca é possível prever que mutações é que vão ser favoráveis para cada espécie; e uma espécie beneficiada num determinado contexto pode ser prejudicada logo a seguir por mudanças de contexto que também não podemos anticipar”
Portanto, temos aqui um grande problema. É importante que as pessoas percebam como é que funciona a evolução; mas, se vamos tentar explicá-la através da selecção natural, vamos mantê-las permanentemente confusas.
Com todo o seu treino de Filosofia, Psicologia, e Comunicação acessível até aos menos dotados, Spencer refletiu muito sobre este dilema, à procura de uma fórmula simples, de preferência uma única frase de uma única oração, que permitisse a toda a gente entender imediatamente como funciona a selecção natural, sem necessidade de mais explicações.
Não sabemos durante quanto tempo andou às voltas com o problema da simples frase.
Mas sabemos que conseguiu arranjá-la.
Querem saber como é que a evolução funciona, é?
Pois bem, é muito simples: a evolução funciona pela sobrevivência do mais apto.
Foi assim que a selecção natural apareceu descrita em 1864 no livro de Spencer PRINCIPLES OF BIOLOGY, que o autor se apressou a autografar e enviar ao seu Grande Herói Intelectual Charles Darwin.
Darwin, no entanto, achava a Biologia de Spencer “pouco útil”, e comentou uma vez, sigilosamente, ao seu grande amigo e colega de Geologia Sir Charles Lyell[5], que tinha uma certa dificuldade em ler todos aqueles best-sellers por causa do seu “estilo detestável”.
Consequentemente, tudo isto poderia ter-se ficado pelas páginas de um autor vitoriano de best-sellers científicos que agora ninguém recorda (os tais momentos de lugar ao sol que depois se somem no nevoeiro de que falava Charles Dickens exactamente nessa altura), se não fosse Alfred Russell Wallace. Este homem, que não conhecia Darwin de lado nenhum e chegou à teoria da origem das espécies precisamente ao mesmo tempo do que ele, publicou o seu trabalho separadamente e nunca mais deixou de trocar correspondência com o colega miraculoso. Cada um deles usava terminologia diferente, e Wallace já protestara várias vezes antes contra o termo darwiniano “selecção natural” porque, na sua opinião, era uma escolha de palavras que implicava que a existência de um “selecionador inteligente” com “pensamento e direcção” era fundamental no processo, quando na realidade o processo era totalmente aleatório, como ambos sabiam – mas os leitores com menos formação ficavam frequentemente confusos. Numa longa carta datada de 1866, Wallace pede então repetidamente a Darwin que experimente minimizar essa confusão utilizando antes “o termo de Spencer” – a saber, “a sobrevivência do mais apto”.
Mesmo sem gostar nem do termo nem da prosa de Spencer, Darwin não se furtou à experiência. Um pouco às apalpadelas, introduziu “o termo de Spencer” no seu VARIATIONS OF ANIMALS AND PLANTS UNDER DOMESTICATION de 1868, o seu livro mais volumoso de sempre[6]. Por fim, em 1869, chegou mesmo ao ponto de polvilhar com alguns “a sobrevivência” do mais apto” a sua quinta edição de A ORIGEM DAS ESPÉCIES, mas sempre, e fundamentalmente, enquanto auxiliar e explicação de “seleção natural”, um termo bastante mais complexo mas inescapavelmente necessário, uma vez que, tal como o autor nunca se cansou de insistir, a evolução é um processo sem vitórias: os vencedores da “luta pela existência[7]” (um termo que Darwin foi buscar ao economista e demógrafo inglês Thomas Malthus) podem tornar-se os vencidos se as circunstâncias mudarem. Por exemplo, a evidência fóssil indica que o Mamute Peludo estava perfeitamente adaptado durante a última Idade do Gelo, que acabou há cerca de 11.700 anos – mas tornou-se cada vez menos adaptado à medida que o clima foi aquecendo e os humanos aprenderam a caçá-lo cada vez melhor. Finalmente, a mesma evidência fóssil indica que este colosso terá sido dado por extinto alguns milhares de anos mais tarde.
Por esta altura, a introdução na linguagem científica da “frase de Spencer” já não causava estranheza a ninguém, gostasse-se dela ou não: toda a gente admitia que, mesmo que pudesse dar uma imagem um tanto ou quanto desfocada da selecção natural darwiniana, tinha o seu lugar justificado na literatura como forma de simplificar o entendimento do público mais generalista. E, naquela época, naquele meio, educar cientificamente o público laico era mais do que um dever: era uma missão quase sagrada a que ninguém que soubesse do seu ofício quereria furtar-se.
E foi assim, com a circulação incessante de obras e palestras destinadas à educação do público, que o chamado “darwinismo social” pôs a cabeça de fora.
Aplicado exclusivamente ao ser humano, e baseado sem mais complicações na “frase de Spencer”, o “darwinismo social[8]” defendia o que já se consegue imaginar daqui: que há pessoas melhores e pessoas piores, e é apenas justo, porque apenas normal e cientificamente justificado, que as piores morram e as melhores triunfem.
Regressemos, por exemplo, ao louvor que Shirley Hibberd fez em fascículos durante a segunda metade do século XIX, com um sucesso tão grande que foi a própria Universidade de Oxford a tomar a iniciativa de juntá-los a todos num único livro de capa dura. Tal como os fascículos que o antecederam, o livro está cheio de desenhos demonstrativos dos vários conceitos que o autor vai desenvolvendo, todos eles indiscutivelmente belos e apelativos. Todos esses desenhos foram feitos pelo próprio Shirley, na sua campanha de demonstração de como a Beleza exterior do jardim condicionaria a Beleza interior da casa – e, com ela, a Beleza e a Felicidade das famílias aí residentes.
Note-se que Shirley foi o grande e reconhecido pioneiro da jardinagem ao ar livre em grande escala, e com grande beleza, requerendo para o efeito um enorme esforço de manutenção – e tudo isto pelas suas próprias mãos. Toda a gente admirou não só o desenho dos seus jardins mas também a sua energia, aparentemente inesgotável. Mas nem toda a gente tinha qualquer espécie de interesse em ir lá para fora expor-se aos elementos (passando-se esta história em Inglaterra, deduz-se que estaria a chover quase todos os dias…) por causa de um jardim, cujo desenho, plantação, e abertura de estradas planas, de areia lisa, onde pudesse passar um automóvel, bem como pequenos caminhos de grandes pedras que pareciam ter-se encostado assim umas às outras completamente por acaso, para não falar do grande lago plácido com mesas de chá e de cartas, toldos, e encantadoras aves exóticas, poderia encomendar a Shirley – e depois pagar mal a uma série de empregados, oferecendo-lhes péssimas condições de trabalho, para manterem o seu Louvor à Beleza a funcionar de noite e de dia, melhor ainda do que VERSAILLES, para não dizer nada daquele famoso JARDIN LES DÉLICES, da famosa grande musa e mecenas Madame de Chatelêt, onde indivíduos como Voltaire e Rousseau se abrigavam para recuperarem as forças entre duas grandes batalhas da razão contra a reacção bruta, e depois se reuniam para jantar com vários outros pares interessantes que ali acorriam a convite da anfitriã, debatendo os grandes temas do momento com a mais requintada ironia e deliciosas exposições ao ridículo dos seus adversários. Entretanto, como num milagre, dezenas de tochas balsâmicas iluminavam a noite, seguradas tranquilamente, mas com grande dignidade, por jovens “de pele e feições vagamente africanas, e com enormes olhos claros, rasgados, mesmo no sorriso semelhantes aos olhos da serpente, e mais hipnóticos ainda do que os do animal. Submeti-me por mais do que uma vez à experiência quando estava pronto para ir dormir, e não posso dizer que conheça outra minimamente mais agradável.[9]” A avaliar pelas amostras de correspondência recolhidas entre vários dos membros destes jantares, parece que os comensais também eram frequentemente maravilhados por rapazes bonitos, musculosos, cuidadosamente selecionados pela sua pele morena e estatura elevada, que dançavam para eles “terríveis danças de guerra, provavelmente comparáveis às dos machos que se exibem para conquistar uma fêmea.[10]”
É assim que o darwinismo social separa as águas: quem tem meios para manter sempre a funcionar o seu jardim magnífico está no topo da pirâmide evolutiva e deve considerar-se mais apto com toda a justiça; enquanto que quem não tem meios para assegurar a presença, em torno de sua casa, de um jardim digno desse nome, está algures mais abaixo na pirâmide, vê-se obrigado a trabalhar sem descanso no jardim dos outros para conseguir sustentar a família, que já agora tende a ser cada vez mais, à medida que a escala da pobreza desce pelo interior da pirâmide, uma família em que a mulher fica envelhecida e encovada muito depressa, e muitos filhos morrem ao longo do percurso, por simples falta de acesso aos mais elementares de todos os cuidados médicos. É evidente que estão pouco aptos, e a sua sobrevivência é extremamente discutível.
Isto seria, digamos, a história de como um partido de extrema-direita da época defenderia o seu direito à existência pela lógica da razão pura.
Infelizmente, a história foi ainda pior.
O desastre consumou-se através de um meio-primo mais novo de Darwin, de seu nome Francis Galton, que se instalou cedo e confortavelmente na poltrona do darwinismo social, com tanto trabalho desenvolvido no estudo da inteligência humana e da sua transmissão que, em 1909, depois de 340 publicações, foi armado cavaleiro pelas suas contribuições para a ciência. E estas abundavam, porque o indivíduo era, no mínimo, e isto temos que conceder-lhe – era extremamente curioso. Galton foi o criador da expressão “nature versus nurture[11]”. Também foi o introdutor do uso das impressões digitais na ciência forênsica. Além disso foi antropólogo, matemático, estatístico, e especialista de metereologia, disciplina onde criou os primeiros mapas do clima e propôs a teoria dos anticiclones[12]. Ou seja, era considerado e respeitado enquanto cientista, pelo que arcava com a responsabilidade social de todos os seus pares. Portanto, quando publicou em 1883 o seu INQUIRIES INTO HUMAN FACULTY AND ITS DEVELOPMENT, apresentando pela primeira vez ao mundo culto do seu tempo o conceito de eugenia[13], legitimado cientificamente pela sobrevivência do mais apto, se fez asneira em grande estilo só fez porque quis. Era impossível que um cientista da craveira de Francis Galton, escrevendo em fins do século XIX, inspirado pelas publicações do seu primo[14], depois da redescoberta das obras de Mendel, e de tudo o que o registo fóssil já tinha revelado[15], não conseguisse entender que não pode existir nenhum fenómeno natural passível de ter como base um modelo tão simplista como a sobrevivência do mais apto.
O modelo foi-lhe muito conveniente, o que é outra coisa.
Em última análise, foi conveniente para todos os habitantes do Ocidente de pele clara, preferencialmente os de olhos azuis e cabelo louro: a sobrevivência do mais apto foi a primeira grande demonstração científica da supremacia branca, com todos os estragos que fez logo na altura e com os que ainda virá a fazer no futuro.
Extra-texto I
Pensem em todos os métodos que, hoje em dia, os bancos de sémen têm vindo a financiar para conseguirem vender produtos superiores. Por superior entende-se, sempre, “tipo escandinavo”, além de estudantes com notas mais altas e mesmo Prémios Nobel. A gente detesta engolir a parte em que a Eugenia, em vez de morrer para todo o sempre, agora voltou a acordar para nos angustiar de novo[16]. Mas a Eugenia é como a hidra. Já os gregos se temiam destas coisas. Cortem-lhe uma cabeça, cortem. Nascem-lhe logo outras duas. Não temos qualquer balística que combata este mito. Resta-nos o mais importante de tudo, que é a informação.
Por todas estas razões pouco bonitas, nesse fim de século ainda meio mundo discutia Darwin, mas já toda a gente entendia Galton[17] e respeitava sem margem para dúvidas a sua enorme respeitabilidade científica. E foi então que o futuro cavaleiro propôs que, segundo o conceito da eugenia, só deviam poder reproduzir-se os exemplares superiores da raça humana para que a população melhorasse como um todo[18]. Nesse sentido, a função reprodutiva, aquela que, de todas as que há no mundo, carrega consigo a maior das responsabilidades, passaria a ficar automaticamente vedada, fosse por esterilização ou fosse por prisão em instituições a criar para o efeito[19], aos deficientes, aos loucos, aos presos, aos criminosos, aos “débeis mentais[20]”, às prostitutas… e aos pobres.
A ideia básica deste plano era acelerar a lentidão infinda do Tempo Geológigo para a Rapidez Humana de duas ou três gerações, despachando com grande rapidez o que a selecção natural faria de forma extremamente lenta: introduzir, através de boas políticas medico-sociais, os protocolos necessários para melhorar rapidamente a espécie humana. Que é que tem? Há séculos que veterinários e agricultores vinham fazendo isso mesmo com crescente sucesso, e não menos aplauso público. Agora, meus senhores, a ciência permite finalmente esta intrépida mudança de paradigma, que leva ao mesmo melhoramento, finalmente possível no humano.
Se nos parecer estranho agora que nenhum dos visados enquanto “exemplares deletérios” da raça humana tenha armado qualquer espécie de tentativa de revolução, é apenas porque, nos mais inconscientes de todos os nossos níveis emocionais, todos somos profundamente moldados pela ideia que os outros têm de nós – e, se aqueles que nos desprezam o disserem em voz alta, se usarem até um megafone, acabamos por não conseguir sentir por quem somos mais do que um profundo desprezo. Durante as campanhas da Eugenia, houve milhões de pessoas, em todo o Ocidente, que foram seriamente pressionadas no sentido de se considerarem uma acabada porcaria, um erro crasso da natureza, até, que mais valia castrar para não contaminar a espécie no futuro. E, impotentes, baixaram a cabeça.
Os cientistas americanos que visitaram a Inglaterra durante a Idade de Ouro de Francis Galton ficaram tão seduzidos com este conceito de supremacia branca, comprovada pela sobrevivência do mais apto, e portanto com o selo de honra da aprovação científica, que agarraram na Eugenia e a levaram para casa. As ideias de Galton já tinham encontrado ecos entusiásticos em vários países europeus[21], e a resposta dos Estados Unidos não foi só um eco: foi um êxtase. E um êxtase muito bem financiado, diga-se de passagem. Os estudos sobre a questão de como melhor implantar a Eugenia Americana tiveram o apoio da Fundação Rockfeller, do Carnegie Mellon Institute, e da fortuna doada por Mary Harriman, viúva do grande barão dos caminhos de ferro americanos, E. H. Harriman, dono da linha de comboio costa a costa. Em 1906, J. H. Kellogg, o médico imortalizado na foto daquele velhote simpático que ainda hoje aparece nas caixas dos cereais que inventou, cobriu todos os custos da construção da Race Betterment Foundation[22], em Battle Creek, Michigan. Logo a seguir, em 1911, com o apoio das autoridades locais e por iniciativa do famoso e muito respeitado biólogo Charles B. Davenport, treinado em Harvard e docente na mesma universidade até ao início da sua cruzada eugénica, construiu-se em Cold Spring Harbor, Nova York, o Eugenics Record Office[23]. Davenport entregou a direcção do Departamento a um psicólogo seu amigo, também ele de enorme respeitabilidade, chamado Harry H. Laughlin. Além destes auxiliares de primeira linha mais vistosos, Davenport também contou sempre, na chuva de publicações que fizeram parte da cruzada épica que ele mesmo tratou de desencadear sobre o seu país para que a genética mendeliana pudesse ser aplicada aos humanos sem quaisquer entraves, com a colaboração da sua mulher, Gertrude Davenport, uma geneticista e embriologista de enorme renome.
Uma das tarefas a que este trio de projecção e propaganda, encarregue de assegurar novas gerações de americanos cada vez mais bem constituídos e mais inteligentes, meteu ombros sem demora, foi a questão de como diminuir os efectivos da população indesejável, que formava uma maioria ameaçadora para o melhoramento americano. Estabeleceu-se para a discussão de estratégias um regime de reuniões semestrais com um comité de sete colegas, todos eles imensamente qualificados em áreas mutuamente complementares. Foi numa destas reuniões de estratégia, realizada em 1933 sem qualquer espécie de secretismo, que se falou de Extermínio em Massa pela primeira vez.
Se o ano de 1933 vos disser alguma coisa, então deve ser porque Hitler foi democraticamente eleito a 5 de Março de 1933.
Davenport era um grande mestre da arte do lobbying, ao ponto de conseguir aliar a maioria das mulheres brancas, e até alguns intelectuais negros, na sua cruzada para elevar o povo americano acima de todas as outras raças do mundo. A definição do futuro americano ainda estava em aberto, pelo que a credibilidade científica da Eugenia, com todos os traços deletérios considerados hereditários[24], e portanto incorrigíveis, se transformou com o tempo num pretexto fantástico para impedir a entrada no país de tudo quanto fosse imigrante do Sul da Europa, de origem judaica, ou portador de outros estigmas considerados opostos à construção de uma sociedade perfeita[25]. O Immigration Act de 1924, que observa todas estas restrições, é claramente um triunfo dos eugenistas sobre os congressistas. E, ao mesmo tempo, já há uns bons dez anos que se promoviam, com grande sucesso e maior concorrência, cada vez mais concursos como “a melhor família americana”, ou “o melhor bebé americano”[26].
Logo em 1911, o problema dos defeitos hereditários, e o esforço científico de gizar bons métodos para acabar com a sua transmissão imutável de pais para filhos, levara Davenport a convocar mais uma reunião de especialistas, onde também não se observou qualquer secretismo. Ao fim de dois dias, estava elaborada, e assinada por todos os seus proponentes, uma lista de dezoito métodos para conter o flagelo imutável da hereditariedade. O oitavo método era a eutanásia. E, no sentido de tornar essa mesma eutanásia mais rápida e funcional, sugeria-se a construção de uma câmara de gás anexa aos hospitais.
Há detalhes históricos que não é prudente deixarmos cair no esquecimento, e estes fazem parte desse número: a ideia do Extermínio em Massa nasceu em Cold Spring Harbor em 1933, e a ideia da câmara de gás nasceu em Nova York logo em 1911.
O projecto não se realizou apenas porque os fundos começaram a tornar-se mais escassos, uma vez que todas as facções envolvidas sustentavam que um programa desta envergadura, destinado a salvar o povo americano do declínio, deveria por força ser financiado pelo Tesouro Federal. À falta de melhor, enquanto toda a gente discutia, foram-se explorando alternativas menos rápidas mas perfeitamente seguras, como a esterilização forçada de homens e mulheres: os números oficiais indicam que, entre 1907 e 1963, mais de sessenta e quatro mil pessoas foram anestesiadas e depois esterilizadas sem o seu conhecimento prévio[27]. A Califórnia, que só por si esterilizou mais pessoas do que todos os outros estados juntos, começou a partir de 1933 a enviar literatura especializada para hospitais, clínicas, e laboratórios farmacêuticos alemães, e a convidar os seus dirigentes a virem observar no terreno todo o seu imenso trabalho de campo.
De onde viria este cortejamento tão específico que os especialistas americanos começam a fazer à Alemanha, exactamente quando Hitler sobe ao poder? O entusiasmo popular e o interesse científico com que os alemães acompanhavam as actividades velozes da Califórnia teve de certeza um papel neste estranho noivado. Além disso, as tentativas repetidas que Davenport foi fazendo no sentido de criar Sociedades Eugénicas Internacionais não tinham surtido grande efeito entre os europeus à excepção dos escandinavos, pelo que uma aliança internacional com a aderência garantida da Alemanha caía muito bem nos seus propósitos propagandísticos.”
A avaliar pela correspondência trocada entre os investidores e empresários da época, o Grande Capital, só por si, pode muito bem ter desempenhado nesta história o papel mais relevante de todos. Qualquer capitalista que quer crescer precisa de novos clientes. Numa Europa toda ela empobrecida na sequência da I Guerra, a Alemanha aparecia como uma nação bastante rica, povoada por pessoas eugenicamente correctas, tão perfeitamente superiores como o Siegfried de Wagner. E os seus maiores expoentes tecnológicos e científicos pareciam tão interessados nas várias metodologias eugénicas americanas que, depois de todas as técnicas devidamente patenteadas, estava ali uma mina de ouro de certeza.
Não foi só a Califórnia que valorizou devidamente este interesse caloroso dos nacional-socialistas. Mostrando a boa-vontade e o interesse dos americanos em melhorar não só o seu país mas também o mundo das raças superiores, a Fundação Rockefeller estudou a fundo vários programas eugénicos alemães, apoiou o seu desenvolvimento, e, sobretudo, assegurou na totalidade o seu financiamento.
Os eruditos americanos ainda andaram ali desenganados por uns anos consideráveis, cheios de orgulho na importância que tinham adquirido junto dos grandes cientistas alemães, tão dedicados à causa eugénica e tão disciplinados na sua experimentação. Não houve conferência das diversas Sociedades Internacionais de Eugenia em que não repetissem que estavam cheios de orgulho. Aliás, deixaram-se andar cheios de orgulho até já ser tarde demais.
Todos aqueles nacional-socialistas alemães que vieram estudar o fenómeno no terreno regressaram à base cheios de grandes ideias. Sem conhecimento do resto da Europa[28], construíram com essas ideias um edifício teórico e bélico cada vez mais grandioso. No epicentro desse edifício, Adolf Hitler deixou de falar aos alemães de paz e prosperidade para falar antes da coragem de renovados sacrifícios, suficientemente grandes para que a raça alemã se tornasse superior a todas as outras. Vamos cerrar fileiras contra todos os que tentarem deter-nos, e dentro de duas ou três gerações o Siegfried seremos todos nós.
Foi este mesmo edifício que levou ao Holocausto.
Francis Galton morreu em 1944, sem poder assistir ao último acto da tragédia terrível criada no século XX pela sobrevivência do mais apto.
Quando foram julgados no Tribunal de Nuremberga, os obreiros da Solução Final garantiram que não tinham feito mais do que implementar os conhecimentos adquiridos na América junto dos maiores peritos da Ciência da Eugenia, que aliás financiaram os estudos dos nacional-socialistas, tanto quanto se percebia a fundo perdido.
Na altura, com a Europa ainda em estado de choque depois de ter visto aqueles filmes insuportáveis sobre o estado em que se descobriram os judeus encarcerados nos campos de extermínio, e com a Guerra ganha depois de, no seu último ano, os americanos se associarem aos Aliados, ninguém quis ouvi-los.
Mas, na realidade, aqueles réus detestáveis estavam positivamente cheios de razão.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
No contexto de uma nova edição, traduzida, revista, e comentada, de todas as obras de Charles Darwin, que entrará em publicação a partir de Dezembro de 2024 na editora Exclamação. O primeiro livro será exactamente o último, este A ASCENDÊNCIA DO HOMEM, onde Darwin conclui, reúne, e discute todo o seu formidável conhecimento de causa.
Extra-história
A ignorância causada pelo medo das espécies diferentes das outras que,
ouvindo notícias preocupantes,
foram esconder-se nos confins do bosque e nunca mais saíram de lá
HISTÓRIA DOS DOIS ANIMAIS DESCONHECIDOS
Dois animais que andavam há anos escondidos num bosque enorme com medo de uma razia aos animais estranhos de que toda a gente falava foram ao fim da tarde a um bebedouro num lugar onde a vegetação era tão densa que o tornava quase invisível. Ao contrário do que costumava acontecer, no entanto, chegaram ambos exactamente ao mesmo tempo. Ficaram estupefactos a olhar um para o outro, porque nunca tinham visto ninguém assim na variegada fauna do bosque.
“És um animal muito estranho,” disse, por fim, o primeiro. “Vivo há anos aqui escondido, e nunca vi nenhum animal assim. Podes dizer-me quem és?”
“Bem…”, principiou o segundo, com uma olhadela em volta para ter a certeza de que não estava mais ninguém a ouvir. “Eu sou um cão-lobo.”
“Um cão-lobo?”, indagou o primeiro. “Mas eu nunca ouvi falar disso. O que é exactamente um cão-lobo?”
“Então,” esclareceu o segundo, agora já com algum orgulho. “Eu sou um cão-lobo porque a minha mãe era uma cadelinha… muito bonita… que se perdeu neste bosque… onde encontrou o meu pai, que era um lobo… e foi assim que eu nasci. E tu, já agora, que também és muito estranho – que raio de animal é que tu és?”
“Eu? Ah, eu sou apenas um urso-formigueiro.”
“Eh pá, não gozes comigo.”
[1] Pode não parecer, e pode até aparecer à primeira vista como um opúsculo extremamente irritante destinado às donas de casa que tenham como sonho criar e manter a toda a sua volta um lar perfeito para toda a família, mas um livro destes, nesta altura, é na realidade uma autêntica bomba-relógio, pronta a explodir assim que lhe carreguem no botão. E os segredos das formas de chegar ao botão estão cheios de armadilhas. Convém ir avisando. Neste caso concreto, convém mesmo.
[3] Não admira que este Sistema fosse influente. Ainda hoje gostaríamos dele, mesmo com muito ensino de ciência na escola. Os lugares-comuns são sempre reconfortantes, e a ausência do Estado, mesmo que leve rapidamente ao caos total ou ao abandono escolar exponencial, de início é sempre uma ideia excitante. Para o período vitoriano, o conceito de procurar a verdade na Natureza não podia estar mais na ordem do dia.
[4] James também não é um psicólogo e filósofo qualquer. Na realidade, foi o primeiro intelectual a oferecer um curso de psicologia nas universidades dos Estados Unidos. James foi também um dos principais pensadores do final do século XIX, e é considerado por muitos como um dos filósofos mais influentes da história dos Estados Unidos, enquanto outros o rotularam mesmo como “pai da psicologia americana”.
[5] Charles Lyell é mais um destes personagens enormes do período vitoriano que operaram a grande mudança de paradigma que separa o século XIX do século XX. O seu PRINCIPLES OF GEOLOGY, e todos os debates a que deu azo, contribuíram decisivamente para alterar de vez a História do Tempo, transformando o Dilúvio numa mera cheia do rio Jordão, eliminando de vez o episódio da Arca de Noé com todos os seus animais, e estabelecendo firmemente que o tempo da vida na Terra não era mensurável em termos humanos. A sua teoria do uniformitarianismo, não obstante alguns erros de raciocínio absolutamente notáveis, teve o enorme mérito de tornar o tempo infinito de uma vez por todas.
[6] E se o são todos, escritos, como eram, num tempo em que havia tempo.
[12] Durante este período, era frequente as “mentes brilhantes”, sobretudo se não tivessem preocupações económicas, investirem a sua sabedoria e a sua capacidade de estudo em tantas áreas quantas pudessem. Hoje em dia, uma dispersão por tantas disciplinas tão diferentes como a de Galton seria impossível – e, acima de tudo, extremamente mal vista.
[13] O termo é tirado do grego para “bem-nascido”.
[14] Galton já tinha ficado entusiasmadíssimo com a leitura de A ORIGEM DAS ESPÉCIES. O que o levou a avançar até ao conceito de eugenia, no entanto, foi a leitura de A ASCENDÊNCIA DO HOMEM.
[15] Incluindo dinossauros, montes deles, correctamente entendidos e reconstruídos como tal. E algumas das aves gigantescas das ilhas onde anteriormente não existiam predadores, com uma datação dos seus ossos perfeitamente estabelecida. E tudo isto em estratos de rocha datáveis, também eles de épocas geológicas diferentes.
[16] Sobre os métodos de recolha e isolamento de sémen considerado “superior”, ver a passagem sobre SNIPs em FEAR, WONDER, AND SCIENCE.
[17] Há que ver que, mesmo para entender facilitismos como “a sobrevivência do mais apto”, é preciso saber ler e escrever, capacidade que estava vedada à esmagadora maioria das pessoas. Este “toda a gente” limita-se, portanto, apenas aos tais “bem-nascidos”. É naturalíssimo que entendessem: aquilo queria apenas dizer, agora com aprovação científica, que eles eram o topo natural da pirâmide. De TODAS as pirâmides, vendo bem as coisas.
[18] Para mais informações sobre o programa da Eugenia, as catástrofes que causou no seu tempo, e as formas como tem vindo a ser re-criada no século XXI graças aos bancos de sémen equipados com SNIPs para determinadas características genéticas do embrião, tais como os olhos azuis e o cabelo loiro, ver Gilbert & Pinto-Correia, FEAR, WONDER, AND SCIENCE, 2018.
[19] Ver Stephen Jay Gould, A FALSA MEDIDA DO HOMEM, 2004, para estudos alargados e bem fundamentados de todo o estrago causado pelas tentativas de implementar programas de esterilização e de encarceramento “em instituições a criar para o efeito.”
[20] Mesma fonte. O conceito de Eugenia acabou por levar ao conceito “científico” dos testes de QI, e a vasta maioria dos testes de QI usados até à II Guerra foram sendo cada vez mais inflexíveis em “provar” que todos os pobres, todos os pretos, e todos os filhos desta gentalha são “débeis mentais.” E, como isto é “hereditário”, não há nada nem ninguém que possa mudar-lhes o destino.
[21] Este “todos”, embora muito usado, é francamente relativo. A Eugenia foi acolhida de braços abertos pelos países do Norte da Europa, onde o povo era quase todo de pele clara, e pelo menos metade das pessoas era loura e de olhos azuis. Nos países do Sul, foi mais um motivo para as classes dominantes, tradicionalmente compostas por pessoas de pele clara casadas entre si, se considerarem no direito de usufruir de ainda mais privilégios, e acharem natural a proibição do voto popular.
[22] “Fundação para o Melhoramento da Raça.” A coisa promete, não é.
[23] “Departamento dos Registos Eugénicos,” que procurava reunir as árvores genealógicas de todos os americanos e detectar se algum deles, alguma vez, teria sido “contaminado” por sangue negro, o que podia levar à perda de alguns benefícios sociais, e sobretudo ditar uma esterilização imediata, para que aquele “vício” tão bem dissimulado não contaminasse mais ninguém.
[24] Estamos a falar de um tempo filosófico já habituado às ideias de Lamarck, e ainda desconhecedor, ou muito desconfiado, das ideias da Darwin. A ideia de que as características dos pais se tornavam hereditárias e eram transmitidas aos filhos (a famosa “teoria de como cresceu o pescoço da girafa”, para simplificar razões) era, portanto, perfeitamente aceitável. E, sobretudo, uma vez mais – no que respeita à inteligência humana, era muitíssimo conveniente.
[25] A este respeito, consultar uma vez mais Stephen Jay Gould, A FALSA MEDIDA DO HOMEM.
[26] Por “melhor” entenda-se “mais bonito” e mesmo “mais loiro”, e não “mais inteligente”. A tradição estendeu-se também à América Latina, como política preventiva contra a miscigenação. Supostamente, estas famílias, ou estes bebés, receberiam apoios estaduais, ou mesmo federais, para melhor crescerem e se multiplicarem. Não sabemos se os receberam mesmo. Para mais informações, consultar THE HOUR OF EUGENICS, de Nancy Leys Stepan, 1991. Consultar Também Gilbert e Pinto-Correia, 2018.
[27] Esta era a forma mais suave de esterilização. Utilizaram-se obviamente outras técnicas mais brutais, sobretudo em cadastrados, criminosos – e, claro, centenas e centenas daquela porcaria daqueles pretos.
[28] Um exemplo claro deste desrespeito alemão pelos acordos de paz da época, saliente-se que a RAF, a temível frota de aviação de guerra alemã, foi totalmente montada em segredo absoluto, ainda antes do início da Guerra.
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A conquista do campeonato com recordes de pontos, vitórias, golos bonitos e mulheres notáveis – tanto que já há muitos casamentos marcados –, deixou o plantel do Sporting vulnerável. O balneário começou a meter água e pedidos de autógrafos por todos os lados. Os geniais mas exaustos e aliviados craques deram por eles emaranhados até ao pescoço – os mais baixos até à raiz dos cabelos – numa maré de cornetas de plástico, foguetes e debates sobre comportamentos adequados na sociedade portuguesa.
– O Kökçü não é conhecido por ser lá muito trabalhador – comentou um conhecido adepto do Benfica, já a pensar na Taylor Swift para salvar a época. E que época, caramba! Qual Gabriel Alves passado a escrito, o ilustre director do PÁGINA UM bem relatou, ao longo de 17 aborrecidas e aturadas jornadas, como foi enervante e dolorosa a temporada na Varanda da Luz. Apesar do esforço democrático de Pedro Almeida Vieira, o comentário do adepto de bancada parlamentar não mereceu quaisquer desculpas no balneário do Sporting.
A princípio, os jogadores mergulharam em pequenas celeumas sobre direitos humanos e liberdade de expressão, que aos poucos degeneraram num burburinho generalizado, do Paulinho roupeiro ao Paulinho goleador, sobre a qualidade dos treinos do turco do Benfica. A polémica culminou na fundada suspeita quanto à existência de um plano concertado, a partir das mais altas instâncias e palácios, para retirar mérito à conquista do pátrio título e das raparigas mais bonitas de Lisboa. Coube ao presidente anunciar ao balneário um plano terapêutico para o completo restabelecimento da reputação do clube.
– Na final da Taça, é para rebentar com eles!
Está bem que faltou ao dr. Frederico Varandas, provavelmente o melhor presidente do Sporting desde que sou nascido, a precisão retórica de um José Hermano Saraiva ou a profundidade científica de um Sousa Veloso. Mas, que diabo, os médicos já não prescrevem com a prosa do dr. Fernando Namora! Mais uma vez, um inocente e desadornado comentário, despido de quaisquer intenções malévolas ou maliciosas, não passou despercebido no balneário do Futebol Clube do Porto.
A final da Taça de Portugal era, pois, um jogo de alto risco.
Fui ao estádio com a irresponsável esperança de curar as traumatizantes memórias das finais recentemente perdidas contra a gloriosa Académica e o colossal Desportivo das Aves. Até mesmo a réstia de fé que arrastei para a tribuna de imprensa era infundada: por ver ao vivo Pedro Almeida Vieira escrever ao vento do Jamor, enquanto eu cruzava os braços de frio, agravei um resfriado com vários dias de evolução. Aprimorado com uma camisola verde que alegremente me cravou, orgulhosamente vestida na bancada dos jornalistas, o Sr. Director animou-me a ir resistindo, sem grandes espirros, a 120 minutos mais descontos daquilo.
– Viste esta jogada? O Sporting este ano tem mesmo um ataque de rebentar!
A equipa do Sporting entrou em campo com a desconcertante descontracção daquele inocente pónei que foi violado nos seus direitos à alface e à imagem num supermercado de Sintra, sem ao menos o PAN relinchar por ele de indignação em conferência de imprensa. Já os jogadores do Porto apresentaram-se como cavalos selvagens. Matreiro, o Otávio pediu respeitosamente ao Gyökeres para ir atacar para outro lado, que ele não queria passar vergonhas no Estádio Nacional. O St. Juste, qual anjinho a esbracejar as asas, ficou tão extasiado pelo golo mais bonito da tarde que não tardou a afogar a equipa na esparrela do adversário. Talentoso e artista, Evanilson tantas vezes tentou, sem sucesso, encandear o árbitro e enganar um valente guarda-redes de 19 anos, que já no prolongamento caiu morto na relva e foi mesmo penalty.
Eu preparava-me para escrever o nome de Diogo Pinto no boletim distribuído pela Federação Portuguesa de Futebol aos jornalistas para escolhermos o homem do jogo. Senti-me tão confuso e contrariado que engoli em seco e votei em branco.
Confortaram-me, em coro ruidoso mas bem ensaiado, os adeptos do Porto, soltando até ao fim excruciantes gritos de alívio de cada vez que uma quadrilha de defesas roubava a bola ao Puro-sangue do Sporting. Aquele estridente trauma terá sido infligido por dois golos de rajada, ao minuto 86, por volta das dez horas da noite de 28 de Abril de 2024. Acredito que esse acontecimento, que fica para a História dos Clássicos, foi mais chocante para eles do que para nós não termos verdadeiramente chegado a disputar a final da Taça de Portugal.
Na véspera dos petardos do Gyökeres, deu-se um acontecimento muito mais importante para o futuro. Os corajosos sócios do Porto tiveram a sabedoria muito nortenha de votar em massa, limpar o clube e libertar a cidade. Deus ajude sempre quem muda com coragem! O Sporting honrou os seus adeptos e a sua História abrindo alas a um meritório e justo vencedor.
O Pedro levou a camisola verde que lhe emprestei para casa. Diz que já fica para a final da Supertaça.
Fica tu também, St. Juste! Da próxima vez, até ao fim do jogo – e da festa.
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Daqui da bancada de imprensa do Estádio do Jamor, venho, desde já, anunciar – que digo: proclamo –, por ex scientia et experientia incontrovertibilis, que a ‘sportinguite’ não é transmissível. Sem uso de fogueiras em ruas, sem salvas de artilharia, sem música estridente, porque as vibrações afastam o ar corrupto, sem caixas pendentes no nariz com soluções de vinagre, e sem máscaras de Froes, tenho passado incólume por turbas de ‘lagartos’, aos montes, de todas as idades e feitios, mais esguios e mais rechonchudos. Isto depois do sucedido na semana passada, onde, com intrépida valentia me arremessei pelo Estádio de Alvalade, invadindo um lugar da bancada central para retirar a alegria dos festejos de um sportinguista.
Mantendo-me, garanto-vos, benfiquista saudável, de língua rosácea, narinas desentupidas, garganta suave, bons fígados, melhores rins e sem bílis negra. E bom palato. Tanto assim que posso também confirmar que, enfim, a qualidade dos farnéis fornecidos pelos organizadores de jogos da lusitana Ludopédia têm um nível de progressão tão elevado como a Turquia no mercado de trabalho… isto, claro, se consideramos que a Turquia, afinal, é o 49º país (ou território) na produtividade do trabalho, e não o CR7 do mercado de trabalho, como pensa a esquerda partidária cá do burgo.
O sportinguista Carlos Enes, ao lado de Pedro Almeida Vieira, que perdeu o campeonato depois de andar a gastar o tempo a escrever 17 crónicas da Varanda da Luz. Por motivos de ‘indisposição’ momentânea, a sua crónica deste jogo será publicada apenas amanhã… se possível.
Um destes dias ainda me meto a fazer uma crítica gastronómica sobre lanches futebolísticos por esse mundo fora. Mas, pela amostra – apenas dois locais, convenhamos –, deve ser tudo corrido a sandes, uma peça de fruta, um sumo ou água, e um ou outro acepipe. Desde já, a quantidade fornecida pela Federação Portuguesa de Futebol é mais folgada. Pau (pão duro) com chouriço, que parece ter sido insuflado, mais uma baguete de presunto com queijo, em aparente similar condição, uma banana, um pacotinho de batatas fritas, e ainda uma barra contendo 27% de chocolate de leite recheado de caramelo e 32% de leite maltado, ignorando, por não constar na ‘ficha técnica’, que mixórdias estão nos restantes 41% deste Mars.
Avancemos, porque convém também assinalar que esta é a minha estreia absoluta em jogos no Jamor, também não há muitos – mas nunca antes me deu para vir, e desta deu-me, porque acedi ao desafio do Carlos Enes, e vai daí fiz-me de VIP, pedidos de acreditação, com direito a parque, e siga, que foi num pulinho que aqui chegámos, apesar de um acidente perto da saída – ou entrada – de Queijas.
Entrámos pela ala norte, só se viam verdes: árvores e lagartos, sendo que estes últimos até um porco estavam a assar. A festa, presumo, terá começado cedo, com comes e muitos bebes, música pimba, ou parecida. Nem dragões nem tripeiros nas imediações. Presumi, para em seguida confirmar no estádio, que aqui não há lugar a misturas; os portistas ficaram todos no topo sul, em menor número com portas de acesso e diversões noutra ala.
O estádio é catita – é mesmo catita, e agora percebo a razão de se mantê-lo, mais de 50 anos depois do fim do Estado Novo, como cenário da festa da Taça de Portugal. Rodeado de verde, encaixado numa encosta, somente com uma bancada central completa, num enquadramento paisagístico deslumbrante. Nem sequer compreendo assim a razão de se falar tanto no estádio do Braga concebido pelo Souto Moura.
Este vetusto estádio, que no próximo mês perfaz 80 anos, teve dois ‘pais’ dos melhores: o arquitecto Jacobetty Rosa e o arquitecto paisagista Francisco Caldeira Cabral. As cerimónias ante-jogo também têm o seu-não-sei-quê de Estado Novo com muita juventude, muito bem organizada com uma encenação a raiar a Mocidade Portuguesa. Também se apela, nos altifalantes, a que toda a gente de levante enquanto se entoa A Portuguesa. Mantenho-me traiçoeiramente sentado, antevendo o que se segue depois deste acto de patriotismo bacoco: música saindo dos altifalantes em altos berros … em língua estrangeira.
Confesso que aquilo que menos me interessa é o jogo. Não está cá o Benfica – nem o Leixões ou o Anadia, que são os meus clubes secundários, e portanto é-me indiferente o que saía daqui, embora sempre que o Porto perde, mesmo se a feijões, há sempre uma, pelo menos, alegria sádica só de imaginar a cabeça do Sérgio Conceição. Se não tivesse vindo cá, para uma inusitada crónica, ao lado do por certo descendente do cronista Gomes E(a)nes de Zurara, provavelmente nem sequer estaria a ver este jogo na televisão. Provavelmente, estaria a escrever uma investigação para publicar hoje no PÁGINA UM… e ver depois sair como manchete plagiada no Correio da Manhã daqui a 13 dias… Como sucedeu hoje…
Avancemos.
Em todo o caso, não me arrependo desta demanda. O jogo saiu animado, logo aos primeiros minutos houve ocasiões de ambas as partes, o ritmo amainou um pouco, houve depois, um golo para cada lado, e a seguir o momento ‘Big Brother’ em que foi expulso um central holandês chamado Saint Juste, que, segundo me diz o Carlos Enes, não foi justa.
A segunda parte foi praticamente de sentido único, com o Porto a atacar e o Sporting a fazer contas à vida, e a contar os minutos para aguentar a igualdade. Interiormente, já me queixo, porque o Carlos Enes está aqui ao meu lado de fraco ânimo, dizendo-se pouco inspirado. Pudera: já deve estar a sentir-se o Pep Guardiola que viu o seu City perder ontem por 2-1 com os toscos do United do ten Hag no duelo dos dois Manchester na Taça da Inglaterra.
Terminaram os 90 minutos. Mais 30 minutos. O Carlos Enes queixa-se do frio – eu nem tanto, porque ele me emprestou uma camisola, por sinal, verde. Já me diz que, se calhar, acaba a crónica no quentinho da casa. A minha sai assim…
(… e sai também um penalty para o Porto, uma saída em falso do miúdo Diogo Pinto, guarda-redes do Sporting, que estava a ser um ‘esteio’ na baliza, e acaba a dar um murro no Eavanilson; azares, o miúdo arriscava-se a ser o man of the match…)
E marca o Porto, e o Sérgio Conceição, talvez para não festejar em campo o golo do Taremi, faz-se expulsar pelo árbitro. Certamente mais uma injustiça… Deve já estar próximo das 30 cartões vermelhos em toda a carreira de treinador – de jogador não deve ter ficado longe. Faço pesquisa rápida: o homem tem menos cinco anos do que eu, por certo vai suplantar o Miguel Herrera, um treinador mexicano de 56 anos que, ‘diz-me’ o ChatGPT, detém o recorde de treinador de futebol mais expulso do Mundo, com 46 cartões vermelhos. Não consegui confirmar em local idóneo, mas é garantido que o ‘nosso’ Sérgio Conceição, fique ou não no Porto, vai ultrapassar o mexicano.
Caminha, entretanto, o prolongamento para o final. Canta-se “Campões! Campeões! Nós somos Campeões” na bancada do Sporting, como para suavizar esta derrota inglória. Os portistas devem estar nas suas sete quintas: afinal, sempre conseguem ganhar troféus sem o Pinto da Costa.
E pronto, factum est! Termina o jogo, faz já um ventinho desagradável, o mau perder do Carlos Enes já exige uma saída rápida antes da entrega da taça, deduzo que já não vai haver comezaina do ‘Grupo da Garagem’, e assim sendo levo para casa as duas chouriças para assar que trouxe no carro.
Em conclusão, ficamos assim como estávamos no que diz respeito a ‘dobradinhas’ de campeonato-taça: Benfica tem nove, o Sporting manteve as seis e o Porto anda com três.
Publique-se, portanto.
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Um grande objecto cinematográfico que tem, como protagonistas, as personagens mais estúpidas do cinema, pelo menos em filmes sérios, ainda que com humor negro entrelaçado lá pelo meio – marca dos realizadores.
Para mim, claro.
Não pretendo ser absoluto e muito menos totalitário nas ideias, como alguns que por aí andam na política, e, sobretudo, na horticultura, mas isso é sumo para outro copo… sustentável, claro.
Nesta fita, dois criminosos de terceira linha, e não muito credíveis, são contratados para raptar a mulher de um vendedor de automóveis.
Acontece que quem os contrata é o próprio vendedor de automóveis que anda com problemas financeiros, fruto de esquemas trafulhas não muito claros para o espectador, para assim receber, através de um resgate, o dinheiro que será pago pelo pai da vítima, o seu sogro e dono do stand onde o contratante trabalha.
O homem de 70 anos é relativamente rico, gosta muito da filha e, aparentemente, fará tudo por ela. Pelo menos, na cabeça do vendedor. A ideia seria, depois, o marido dividir o dinheiro com os criminosos contratados, e voltaria tudo ao normal.
Como se nos filmes dos irmãos houvesse normalidade.
Se até a própria realidade já não é normal quanto mais o cinema em Hollywood…
Mas corre tudo mal, claro.
O plano absurdo é sabotado pelo próprio cinema, como mandam as regras, e por isso entre malas de dinheiro, neve, sangue, sangue na neve, formas de falar características da região saloia onde se abusa do YA, mentiras e estupidezes relativamente evidentes, com mortes à mistura, a trama vai aparecendo, por sinal… Bastante tramada.
A personagem principal é uma xerife, gravida de vários meses, a quem foi incumbida a tarefa de capturar os raptores e de resolver os três assassinatos que, entretanto, se deram na sua jurisdição por causa do rapto mal engendrado.
Como se sabe, os americanos não são conhecidos por serem muito espertos nem bons a raptar.
Não querendo ser spoiler, creio que este resumo, sobretudo para quem conhece os filmes dos irmãos Coen, e que por sinal são bastante populares, será claro – e perceberá o alcance da história, para assim nos aventurarmos nas metáforas e analogias com a realidade e as sinopses das comédias negras portuguesas, travestidas de crime real ou não.
Como se o Direito ainda tivesse os seus direitos. Quem não conhece o filme, que o veja. É uma ordem.
Alguma semelhança com a realidade?
Toda.
Podemos hoje questionar a realidade e as suas diferentes facetas. Mas isso é vaso para outras flores – ou para outros canteiros, como dizem os chauvinistas dos franceses.
Tudo isto a pretexto, na verdade, do que tenho assistido pela TV ao ‘caso de polícia do momento’, e por isso tirei alguns apontamentos para um filme digno dos Coen. Não é uma sinopse, nem mesmo uma ideia. Acrescento, no entanto, alguns comentários e limito-me a reproduzir a trama de forma tão atabalhoada quanto a própria história.
Zé Vieira é conhecido por ser uma das, ou um dos, principais socialites da fauna portuguesa. Os media em geral deram-lhe sempre muita atenção, convidando-o muitas vezes para animar canais televisivos, pouco importando a credibilidade, destacando-se mais o palhaço para animar o circo onde os trapezistas de serviço até agora se têm aguentado.
Ao menos este não escondia o nariz.
Chegou mesmo a pulular por Quintas das Celebridades e programas do género. Nada contra.
É casado com uma senhora agora com 95 anos, de nacionalidade estadunidense, e tem um enteado de 77 anos que vive em Miami num prédio que tem como vizinho um dos filhos de Donald Trump. O enteado odeia-o e, numa fotografia que circula, estranhamente parece-se com o Cavaco Silva.
Qualquer semelhança com a realidade será, portanto, puro entretenimento.
Zé tem um amigo chamado Pedro, que também já andou por Big Brothers e coisas do estilo. Tem um ar pouco credível, mas simpático, não deixando de parecer um pouco tonto.
Por sua vez, Maya é uma senhora bastante duvidosa no que toca ao conhecimento de astrologia – e, já agora, no que toca a outras vertentes, como por exemplo ser apresentadora de programas cor-de-rosa na CMTV. Bom, também como se sabe, os portugueses não são conhecidos por serem grandes apresentadores de televisão, assim como os espanhóis não são por serem apreciadores de caracóis. Já os franceses matam-se por eles. Ah, e anda por aí, de igual modo, que os turcos… não!, desses não convém falar…
Voltemos a Maya. Uns tempos antes do episódio que levou a Lady B. para o hospital por supostamente ter sido empurrada pelo marido Zé, afectando o fémur, Maya fez grandes elogios no seu programa colorido ao ex-travesti por ser um grande cuidador e sobretudo um excelente marido.
E também não é verdade que a violência doméstica quase sempre se pratica na obscuridade? E não é um facto que a descoberta da identidade dos grandes serial killers sempre se mostra uma surpresa para os vizinhos e até para a família, quando estes são apanhados?
Nunca se vê em documentários os conhecidos do criminoso a dizer que se via logo que era ele, ou sempre desconfiei, aqueles blazers não me enganavam, ou ainda que o carrasco tinha mesmo cara de serial killer.
Nesta história parece haver também bastante testosterona tóxica por parte dos protagonistas – Zé e Pedro – que até são vistos num vídeo caseiro a darem estaladas e murros um ao outro. Ou coisa parecida.
Mas também não deixa de ser verdade que noutro vídeo filmado pelos próprios, estão numa cama aos beijos e abraços ainda que sem erotismo. Parece…
Numa das noites da Maya, até chegámos a ver ao mesmo tempo, no ecrã, os dois vídeos caseiros, um de cada lado, com os comentadores cor-de-rosa ao meio. Na esquerda dão estalos, na direita, beijos.
Genial! O paradoxo da condição humana.
Zé garante que nasceu homem e morrerá homem, e que é heterossexual. Um paradoxo interessante para explorar. Ou não. Pode sempre haver dias em que ele se sentirá o que quiser sentir-se. Afinal, no + do LGBTQIA+ cabe + do que o L, o G, o B, o T, o Q, o I, o A e o próprio +. Um looping infinito que nos proporcionam estes interessantes tempos do wokismo.
Nestes programas são sempre usados muitos superlativos e há transgressão politicamente incorrecta.
No meio de tanto confetti e lantejoula, também há verdade, e isso faz-nos mergulhar num mundo que se esforça para se afastar de clichés, os grandes inimigos da complexidade. Mas quase sempre não o conseguem.
Não é fácil. E exige arte.
A marca para a qual Zé estava a trabalhar, chamada Feira dos Sofás, lançou entretanto um comunicado a anuncia o fim da parceria com o socialite.
Num dos vídeos feitos para a marca, Zé, apontando para um sofá no qual se irá sentar, diz para o “empregado” que o móvel é pindérico, mas depois senta-se e fica tremendamente confortável, mandando de seguida o “empregado” comprar o sofá.
Tudo filmado na vertical e com muita chunguice. Eu não compraria um sofá daqueles. Horrível, é – mas confortável, segundo o reclame.
Nisto, Maya será importante porque é através do seu programa nocturno que vamos conhecendo os melhores ingredientes desta historieta.
Estes ingredientes, com aparentes contradições e muito suspense, poderão apimentar o filme, caso seja esse o objectivo. E sobretudo caso ainda haja espaço para a continuidade do Cinema com c grande também, já que, com tanta história tridimensional e tanta auto-representação que anda por aí, uma pessoa já nem sabe.
Se a vida é um filme, como dizem, com o Zé são dois.
Mas, a ser feito, será um meta-filme, de forma que o público se percepcione na realidade, mas dentro de uma sala de cinema.
Giro, giro, seria o Zé e o Pedro aparecerem de rompante num dos cinemas, no meio de uma sessão, plateia adentro a fazer das suas. Ou estalos, ou beijos.
Ou não… Até poderiam ser hologramas.
Mas, seja como for, possivelmente o público já não se surpreenderia.
Público que, aliás, neste caso também faz parte do guião. As pessoas, porque não vamos meter aqui o homónimo jornal para não tornar isto ainda mais degradante.
(ah!, e caso o filme seja realizado, e se um dia passar num cinema em Budapeste, não se admirem se os húngaros não o entenderem, pois, os húngaros são conhecidos por não perceberem nada de cinema).
Mas isto ainda não terminou, até porque é preciso acrescentar ao guião que o Pedro arrendou a casa à Betty para depois a poder subarrendar ao Zé para aí fazer os seus “espectáculos” de cabaret.
Como se sabe, em tempos foi Zé a Tatiana Romanova, e esteve perdidamente apaixonado por Pedro, segundo Pedro, que parece ter mau carácter – e, nisto, Zé sente-se vítima de uma cabala orquestrada pela Chanel.
No meio disto, o cabeleireiro de Zé é dos poucos amigos que dão a cara nos media, enquanto lhe continua a arranjar o cabelo, não se sabendo, porém, se agora é uma borla, já que a imprensa afirma que a ex-drag queen está sem dinheiro.
As TVs vão dando cobertura a todas estas informações oferecidas pelos próprios protagonistas, através de vídeos para as redes, e mesmo de telefonemas gravados pelos próprios.
As TVs deverão, aliás, funcionar como convém: promovendo primeiro para matando depois, e fazer isto como se não tivessem culpa nenhuma. Para dar força a esta ideia. dever-se-á dar relevo à história do dentista da TVI, que está a ser investigado por uma jornalista da CMTV que foi despedida da TVI. Talvez a jornalista o faça também por vingança pessoal, quem sabe…
Pensando bem, a ser feito um filme ao estilo dos Coen, se estes nos derem os direitos, deverá haver um capítulo dedicado a este dentista sádico.
Para quem estiver confuso por não ter visto as reportagens, este dentista terá chegado, dizem as supostas vítimas, a arrancar os dentes todos da boca sem anestesia de umas quantas pessoas que, entretanto, fizeram queixa às autoridades.
Isto surge aqui porque estas reportagens da CMTV têm potencial e estão a coincidir no tempo com a história do famoso socialite e do Pedro. Parece mais um daqueles casos de ‘o que interesssa é aparecer’. Nunca percebi o exibicionismo e a necessidade de que falem de nós, nem que seja para dizer bem…
Sou argumentista e não dentista – e por isso, junto histórias; não separo dentes de gengivas.
Portanto, chegados aqui, com a sociopatia aparente do Pedro, o narcisismo estético do Zé e o sadismo do dentista, sempre coadjuvados com os programas das Mayas, teremos um filme profícuo de neurose contemporânea dando cabo de vez da figura do Direito e da possibilidade desse estandarte da democracia existir. E sei qualquer ordem a pôr cobro na desordem.
Talvez, neste caso, por causa de tantos policias e ladrões a pulularem permanentemente pelos canais televisivos, em programas de manhã, à tarde e à noite.
Aliás, quem não se lembra também do ex-agente da Judiciária que veio a ser vice presidente do Sporting, mas que também depois tinha um gangue que assaltava casas de idosas em Cascais? Foi comentador muito tempo.
E eu próprio estou a ficar baralhado já.
E outros também. Os protagonistas desta história, por exemplo. O Zé e o Pedro viram certamente o Truman Show e baralharam-se.
Depois veio o Matrix, o 11 de setembro, o século XXI, e as grandes conspirações tipo Zeitgeist, mais tarde as extremas-direitas meteram a cereja no topo do bolo da discórdia. Agora, aqui estamos cheios de fulgor para ser os actores e os espectadores ao mesmo tempo nesta novela em tempo real. E baralhados.
Bom, mas entretanto, Lady B. pede o divórcio e deixa a entender que quer recomeçar a vida, dito por um dos comentadores que sempre que se refere a Zé e a Pedro, chama-lhes “os artistas”
(Aqui há um pequeno exagero de humor negro já que o comentador não disse que a senhora queria recomeçar a sua vida, mas fica a nota do autor com a sua liberdade para o sarcasmo).
Durante as primeiras semanas, uma nata de comentadores revisteiros do jet-set que aparentemente conheciam os confins do casal atípico, vão criticando a neurose do momento, como se eles fossem os médicos e psicólogos de serviço no ambiente asséptico dos estúdios em croma.
Não deixam de dizer o que pensam nesses estúdios-clínica.
Pelo menos, parece haver uma certa liberdade para isso.
Poderemos depreender que Pedro e Zé tinham uma espécie de plano para ficar com a casa em Sintra, um palacete, segundo Pedro.
Poderá ser este o clímax.
A verdade, no entanto, quanto a esta hipótese ainda está por apurar.
Saiu, entretanto, uma notícia que definitivamente sugere mesmo que Zé empurrou Lady B. pelas escadas do hotel.
Os médicos confirmam que poderá haver crime público e a queixa é apresentada.
Zé passa uma noite detido.
A prisão não é desenhada por Santiago Calatrava.
Nos media, em geral, há sempre um talvez definitivo.
Nunca se sabe. É talvez essa a fórmula de ainda manterem alguma audiência.
Ficamos a saber também que o idoso e enteado de Zé, também sofre de problemas de saúde, justificando-se assim a sua não vinda para acompanhar a mãe no hospital.
Esperem! Afinal, veio. Chegou a Lisboa, com os competentes jornalistas a cobrirem o acontecimento.
Entretanto saiu uma lista dada por Lady B. indicando quem a pode visitar no Hospital.
Gui, o filho de Zé e enteado de Lady B., não é um dos felizes contemplados dessa lista. Porém, mais tarde, num telefonema exibido pela CMTV, Pedro insta Zé a falar com o filho para ir ao hospital propor a compra da mansão por 700 mil euros, sendo que metade ficaria para o Zé.
Imaginamos que a mansão valha milhões.
Zé diz, contudo, que não tem direito a essa metade devido à separação de bens.
Pedro cai em si e responde:
-Pois é, caralho. (Longa pausa). Mas dou-te 30 mil.
Corte.
Aqui morro a rir como se tivesse mesmo a ver um filme dos bro Coen.
A pausa matou-me.
Surge ainda a notícia que Zé deverá estar a mais de um quilómetro da mulher, ou futura ex-mulher, através do controlo de pulseira electrónica
Por meio de telefonemas dos protagonistas, vamos percebendo a estupidez dos planos, tipo Fargo.
Quem manda para lá as gravações aparentemente é o próprio Zé, queimando-se a toda a hora por falar e aparecer demais. Segundo os jornalistas, devia era estar calado.
Mas queimar-se em televisão não parece ser assim tão mau. Até é bom, digo eu.
Pelo menos para o programa.
Como se trata de violência doméstica, Pedro faz um apelo nas redes para comprarem algumas t-shirts originais desenhadas pelo próprio, embora confesse não ser designer, e diz que o dinheiro irá para os cofres de várias instituições que acodem vítimas deste tipo de crime.
Ele próprio irá comprar uma a si mesmo.
Pouco tempo depois, as instituições negam o acordo.
Pelos vistos, o número da conta é a do próprio Pedro. A forma de pagamento seria através de PayPal.
Horas depois, é dito nas notícias que Pedro já foi agressor num caso que chegou a tribunal de violência doméstica e apanhou uma pena suspensa, por ameaçar de morte o seu então marido.
Ainda querem melhor do que isto?!
Um dia depois, o site das t-shirts sai de cena. Error404.
Tchau t-shirts.
Indignados, os comentadores massacram Pedro, dando a entender que não está bem mentalmente.
As t-shirts têm a imagem de Zé, entre outras – e são horríveis. O mau gosto vem ao de cima. Mais uma vez.
Pedro ainda entrevista uma antiga empregada do casal que confessa que, depois de alguns jantares em Sintra, iam todos para o quarto do casal comprar jóias por baixo da mesa, sem recibos.
A empregada, porém, jura que as jóias eram junk.
Entretanto, a CMTV passa imagens antigas de Zé no sentido de contextualizar o seu passado criminoso, mostrando-o no aeroporto, anos atrás, a filmar-se a si mesmo depois de roubar um perfume, negando o roubo, e afirmando que a rapariga-segurança que vai aparecendo em fundo, com o ar mais humilde do mundo, só quer é ter os seus 15 minutos de fama. A rapariga parece assustadíssima. Só fez o seu trabalho.
Ficamos a saber que o roubo aconteceu mesmo, e Zé Vieira acabou a fazer trabalho comunitário e pagou um multa.
E nós que pensávamos que todo o trabalho do Zé já era comunitário!…
Depois de Pedro confessar novamente, e em directo, que havia um plano sinistro de Zé para ambos sacarem o palacete assim que Lady B. morresse, ficamos com a certeza de que qualquer semelhança com um filme dos Coen é puro cinema.
A minha proposta final, portanto: peguemos nestes apontamentos que compilei (haverá com o tempo muito mais, à velocidade que os protagonistas vão abrindo a boca), e tentemos isto bem vendidinho aos irmãos Coen, para que façam um brilharete em Cannes.
Mas já sei que não vai resultar. Os portugueses são conhecidos por não saberem vender guiões a Hollywood.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
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Um lugar de estacionamento em Lisboa é um luxo. Mas é mesmo preciso colocar lugares a curta distância das passadeiras violando o Código da Estrada? Pelos vistos, sim. O Repórter LX mostra alguns exemplos e estimula os seus leitores a identificar mais…
Diz a alínea d) do artigo 49º do Código da Estrada ser proibido estacionar a “menos de cinco metros antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou de velocípedes”. Compreende-se perfeitamente, pois isso impede que um condutor consiga ver se há ou não um peão na ponta da passadeira. É um perigo quando isso acontece.
Mas o que dizer quando isso acontece em lugares que estão assinalados para o efeito? Não acredita que existam casos desses na cidade de Lisboa? Bem, venha então daí fazer um passeio pela cidade na companhia do Repórter LX e confira.
Na Rua do Possolo, por exemplo, perto da Basílica da Estrela, e não muito longe da residência privada de um antigo primeiro-ministro e ex-Presidente da República, temos ali um espaço de estacionamento legal, devidamente assinalado e limitado no chão, mesmo em cima de uma passadeira. Não é preciso uma fita métrica para ver logo que não há os tais cinco metros de distância legal para o efeito. Aquilo nem um palmo tem de distância entre os limites do estacionamento e a ponta das linhas da “zebra”.
Outro caso que topámos está na passadeira em frente ao Elevador da Bica, no Largo do Calhariz, ao cimo da Calçada do Combro. Mais uma vez, temos um espaço de estacionamento, limitado por marcas no solo, mas que não respeita a distância legal, constituindo um perigo para os turistas que querem atravessar a passadeira para aceder ao mui turístico elevador de Lisboa, numa das ruas mais bonitas e visitadas da cidade.
A situação é ainda mais ridícula quando se vê que ainda está pintado no solo uma enorme barra branca que marca precisamente a distância entre o limite de estacionamento e a passadeira, mas que de nada serve, uma vez que o espaço de estacionamento a ultrapassa. Este lugar, frente a uma dependência da Caixa Geral de Depósitos, é ocupado sem que os condutores sejam depois incomodados por qualquer autoridade de fiscalização do estacionamento da cidade.
Fomos encontrar um terceiro exemplo na Rua da Palma, a caminho da Praça do Martim Moniz para Praça da Figueira, na parte lateral do Hotel Mundial. Um dos lugares de estacionamento viola o limite de cinco metros, impedindo a visibilidade para o atravessamento em segurança dos peões.
E, uma vez mais, tal como no Largo do Calhariz, lá está uma barra branca pintada no chão a marcar esse limite, mas, uma vez mais, com o lugar de estacionamento a ultrapassar o limite.
E isto numa outra zona de grande movimento turístico à mistura, sendo que os estrangeiros são pessoas pouco habituadas a lidar com estas idiossincrasias bem locais e os que mais se espantam com as soluções criativas e originais e ilegais para certos lugares de estacionamento em Lisboa ditos… legais!
Para terminar, deixamos ainda um registo de ontem na caótica Rua Garrett, que nem é carne nem é peixe, isto é, nem é rodoviária nem pedonal, antes pelo contrário. Continua com tráfego rodoviário, estacionamento lateral, fluxo de peões, trotinetes e o que mais houver, na calçada e no empedrado,
Neste caso, ou neste caos, há ainda obras em curso, e porque em Portugal os maus exemplos vêm muitas vezes de quem deveria ser exemplar, encontrou o Repórter LX um belo carro da Polícia Municipal de Lisboa descansadamente estacionado em cima de uma passadeira em zona de estacionamento não permitido.
Não se vislumbrou os agentes, mas certamente estariam a ordenar o trânsito. Ou a passar multas. Talvez por mau estacionamento.
FDC / PAV
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Uma parede foi erguida nas arcadas públicas do Hotel Mundial, no Martim Moniz. Não se trata de conquistar Lisboa de novo aos mouros, mas apenas para impedir que os sem-abrigo morram à frente de um supermercado
A lenda de Martim Moniz diz que o guerreiro morreu entalado na porta do Castelo quando estava a ajudar o rei D. Afonso Henriques a conquistar Lisboa aos mouros. Não vamos discutir aqui se esta história é verdadeira – o Castelo não foi conquistado, mas rendeu-se após um cerco de vários meses. O que devemos discutir é a parede que se ergueu nas arcadas públicas do Hotel Mundial, na Praça Martim Moniz.
Martim Moniz AP, ou antes da parede…
Foi em Janeiro passado que se montou a dita parede, no local onde está um supermercado Continente. Esta é uma estrutura tosca, sem qualquer gosto estético que combine com a arquitectura original, frágil e de madeira contraplacada. A intenção era óbvia: impedir que as arcadas servissem de habitação para sem-abrigo.
Um mês antes, um sem-abrigo, que sofria de problemas respiratórios, faleceu naquele mesmo local. Como o negócio do hotel é vender alojamento a troco de dinheiro e o negócio do supermercado é vender comida a troco de dinheiro, sendo que um sem-abrigo precisa de ambos os serviços, mas não tem o dinheiro necessário, então a melhor solução foi a de fechar aquela zona do edifício.
E, com isso, acabou também uma zona de passagem pública – antes de lá estar instalado o supermercado, funcionava uma sapataria, com montra para passagem pública das arcadas, mantendo assim a área limpa.
Como não se pode fazer um decreto a acabar com os sem-abrigo, que “crescem” cada vez mais na cidade, a melhor solução dos responsáveis daquele espaço foi a de mandar colocar ali uma parede. Espera-se que a solução, altamente discutível do ponto de vista arquitectónico e de efeito visual numa área frequentada diariamente pelos turistas – o terminal do famoso eléctrico 28 está ali perto, do outro lado da rua –, tenha respeitado todos os preceitos legais, pois claro.
Martim Moniz DP, ou depois da parede…
Ou alguém iria imaginar que, numa cidade onde uma pessoa não pode mandar fazer uma marquise num telhado sem que isso provoque reacções públicas, uma parede possa ser erguida em pleno centro da cidade sem ter todas e mais algumas autorizações de arquitectos, técnicos municipais e políticos?
Se a solução para impedir a morte de mais sem-abrigo passa por fazer paredes em locais onde eles dormem, então prevê-se que Lisboa, em breve, venha ser uma cidade com muitas paredes. Com a grande maioria a viver fora delas, obviamente.
FDC
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Fim de Março 2023, esquina da Rua dos Fanqueiros com a Rua de Santa Justa. Ao lado do estabelecimento “Armazéns Afonso”, de venda de roupa e tecidos, perto dos correios e limitado por barreiras de plástico, abre-se um considerável buraco no chão.
Há uns cabos à vista, bastante entulho misturado com garrafas de plástico e sacos de pedras. O abandono e desleixo é notório, e tudo que parece indicar estar assim há algum tempo.
Existe uma esplanada perto e uma farmácia em frente. Turistas passam por ali com frequência, descendo do Castelo a caminho da Baixa e, em particular, em direcção ao histórico Elevador de Santa Justa.
Repórter LX, de passagem pelo local, olha para o estado do caminho e, para tentar perceber a situação, interpela um comerciante local:
– Este buraco está aqui há muito tempo?
– Vai fazer cinco meses.
– Cinco meses?! Tem a certeza? Não está a exagerar?
– Então? Foi aberto em Novembro e estamos em Março…
– Em Novembro? E ainda está assim? Mas abriram isto para quê?
– Era para tirar uns cabos que estavam obsoletos, só que precisavam de arrancar uma árvore. O presidente da Junta disse que não concordava. O presidente da Câmara dizia que sim. Entretanto, cortaram a árvore, mas as raízes ainda estão aí! Está na mesma!
– Desculpe lá, mas isso que me está a dizer é simplesmente ridículo! A árvore foi cortada, mas não tiram as raízes que impediam a remoção dos cabos? E agora ninguém faz nada quanto ao buraco?
– O presidente da Câmara até já veio aí a ver. E o presidente da Junta, agora, evita passar por aqui para não ter de falar comigo sobre esta vergonha.
– E isto, a si, prejudica-lhe o negócio…
– Claro! As pessoas afastam-se desta parte do passeio por terem medo de cair, apesar de haver ali um pedaço de madeira. E o pior é que, à noite, usam isto como casa-de-banho pública. Fica depois o cheiro…
– E já algum jornalista escreveu sobre isto?
– Não. Ainda não.
– Está bem. Obrigado, amigo e boa sorte com o negócio.
– Obrigado.
Repórter LX tira foto ao local e retira-se com a ideia de escrever algo sobre este buraco em particular.
Dez dias se passaram, acrescidos aos cinco meses. Pelo sim, pelo não, Repórter LX passa no mesmo local para confirmar a situação e… nem de propósito, repara que, neste ínterim, o buraco foi tapado. Chão impecável, tudo limpinho, mas o coto da árvore, cortado, permanece no mesmo sítio, como se fosse um banco alto. Intrigado, pergunta ao mesmo comerciante como conseguiram, afinal, tirar os cabos sem a necessidade de remover as raízes da árvore.
– Então, amigo? Conseguiram tirar os cabos e arranjar-lhe o buraco sem tirar o resto da árvore?
– Qual quê? Foram obrigados a tapar isto porque, segundo ouvi dizer, mas não tenho a certeza, caíram aí duas senhoras durante a noite. Parece que veio cá polícia e ambulância. Eu não vi… Mas a Câmara mandou logo tapar.
– Isso significa que os tais cabos obsoletos, que queriam tirar e obrigou à abertura do buraco, continuam lá em baixo?
– Sim! Dizem que vão regressar para abrirem novamente o buraco, mas desta vez vão fazer um maior ao longo da rua…
– Mas tapam e destapam? E a árvore que cortaram, afinal, ainda ali está o tronco. Não tiraram as raízes…
– O presidente da junta já voltou a passar por aqui. Ele diz que vai colocar a Câmara em tribunal por causa do corte da árvore. Ou que até já colocou, nem sei…
– Bem, as árvores fazem falta…
– Claro que sim. Esta não era muito antiga. Devia ter pouco mais de 30 anos, talvez ainda do tempo do Kruz Abecassis. Só que está muito próxima de uma caixa de electricidade, enterrada ali ao lado. Pode ser um risco para esta zona da Baixa ficar sem luz…
– Tenho a certeza de que vão conseguir chegar a uma solução. Pelo menos, para já, voltou a ter o chão como devia ser.
– Para já, sim. Deixaram de usar isto como casa-de-banho. Agora vamos ver que buraco vão voltar a abrir…
– Boa sorte, amigo, porque pelos vistos isto ainda não acabou!
– Obrigado.
Repórter LX tira então, enfim, e por fim, foto ao local, agora arrumado, e afasta-se, a pensar que a cidade é um palco de surpresas. Sobretudo quando um buraco é aberto e permanece assim durante quase meio ano, para ser tapado sem estar realizada a obra que levou à sua abertura, e, enquanto não é novamente aberto, provocou já o corte de uma árvore, cujas raízes permanecem enterradas, mas abrindo, aparentemente, uma disputa legal entre órgãos autárquicos.
Mas, afinal, não fossem estas pequenas coisas, que outro motivo haveria para duas pessoas, estranhas, entabularem conversa nesta nossa Lisboa?
FDC
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O jornalista Nuno André esteve três semanas num centro de refugiados ucranianos na fronteira polaca, e fez várias incursões pela Ucrânia em ajuda humanitária. Regressado a Portugal, nos próximos dias mostrará aquilo que viu e sentiu. Eis o segundo episódio de Crónicas da Ucrânia.
Na constante tensão entre aquilo que consideramos ser bom, porque nos dá prazer, e aquilo que tem de ser feito, porque é nosso dever, está o eixo em torno do qual se desenvolve o nosso carácter. Assim, se as dificuldades nos proporcionam oportunidades – vimos, ouvimos e lemos –, então não podemos ignorar.
Portugueses, espanhóis, franceses, italianos, alemães, polacos, e tantos outros cidadãos do Mundo, partiram em carros particulares, enviaram carrinhas, alugaram autocarros, com a nobre intenção de levar mantimentos e resgatar famílias ucranianas.
Para nós, portugueses, tratou-se de uma viagem, entre ida e volta, de cerca de sete mil quilómetros, a gastar entre mil e três mil e quinhentos euros, dependendo do veículo ser ligeiro ou pesado, e a despender no mínimo seis dias, caso não tenha havido paragens para pernoitar ou descansar durante uma viagem de mais de oitenta horas.
Estes números são meramente indicativos, e dependeram da carga, do número de condutores ou das obrigações legais. Aqui, não se contabilizaram as despesas com o alojamento e alimentação. Gastaram-se milhares e milhares de euros em deslocações. Fomos generosos, não há dúvida.
Esta ajuda humanitária não esperou por instruções governamentais. Diria mesmo que não dependeu em nada das associações ou organizações oficiais teoricamente organizadas e estruturadas.
Na generalidade, a acção humanitária eclodiu no seio das famílias comuns, em reuniões de jantar ou em encontros informais entre amigos, que não se conformaram com o cenário desastroso que diariamente passou a invadir os nossos lares.
Por tudo isto, este texto podia terminar por aqui. Eventualmente, concluindo que se o egoísmo produz um efeito deletério sobre o desenvolvimento da sociedade, o altruísmo evoca o que de melhor existe no ser humano, para viver, e persistir em viver, em comunidade.
Contudo, na verdade, a ajuda humanitária aos refugiados ucranianos teve tanto de belo como de perverso. Somos, por isso, obrigados a denunciar, a entender e a refletir sobre aquilo que aconteceu, e continua a acontecer, nas fronteiras, nos campos de refugiados. De forma perversa, mas também discreta. E, por isso, mesmo, por discreta, persistente.
Os centros humanitários de apoio aos refugiados e sobreviventes ucranianos surgiram logo nos primeiros dias após a invasão pela Rússia. E de um modo voluntário e improvisado. E não estando preparados para receber tanta gente, funcionaram; ainda que sem liderança, estrutura ou organização formal.
Além dos problemas inerentes ao grande fluxo de pessoas – como a higiene (ou falta dela) –, estiveram em causa problemas de segurança.
Nunca faltaram alimentos nem transportes nem cuidados de saúde. Os refugiados eram, na sua maioria, mulheres, crianças e idosos que caminhavam com ar cansado, desolado, entristecido. Traziam consigo toda uma vida arrumada numa pequena e singela bagagem. Sem casa, sem conforto, sem destino.
Esta fragilidade abriu as portas aos criminosos – pervertidos, carniceiros – que, apercebendo-se dos pontos fracos, facilmente aproveitaram para raptar e traficar pessoas. Levaram-nas consigo. Fizeram-nas desaparecer. Nunca mais saberemos do seu paradeiro, e nem sequer daremos pela sua ausência. Serão vítimas da guerra. Os anónimos desaparecidos que caem nas estatísticas das estimativas. Sem rosto. O seu desaparecimento individual jamais será notícia.
Durante as primeiras duas semanas do conflito, os campos de acolhimento não gozavam de vigilância nem de um registo capaz de cruzar informação sobre as pessoas que entravam e saíam. Qualquer motorista, que ali chegasse, parava o carro e oferecia boleia. Tudo simples. Não havendo controlo, os raptores circularam pelos corredores junto aos quartos onde dormiam centenas de refugiados, no meio de tantos outros que ofereciam autêntica ajuda humanitária.
Fotografavam e filmavam crianças e mulheres, enquanto estas dormiam ou conversavam. Escolhiam. Apresentavam-se mais tarde com a promessa de lhes oferecerem um transporte, uma casa, um emprego, uma vida renovada, nova.
Mostravam, de forma encenada, fotografias dos seus lares, apresentavam contratos de trabalho como garantia de emprego, e exibiam filmes da sua própria família, talvez fictícia, que se mostrava contente e preparada para os receber. Actuavam com rapidez e astúcia.
O comportamento destes homens e mulheres chamou à atenção dos verdadeiros voluntários e, quando confrontados, estes limitavam-se a fingir não perceber a língua, saindo de cena sem dar nas vistas. Enquanto não houve uma forte presença policial nestes centros, pouco foi possível fazer para impedir esses crimes.
Chegou a haver denúncias, e pessoas identificadas pelas autoridades. Contudo, sem provas concretas – ou porque não tinham sido apanhados em flagrante delito –, pouco ou nada se conseguiu fazer.
Ser-se jovem, mulher, bonita ou elegante eram critérios essenciais no momento de escolher quem resgatar. Ali, a generosidade era aplicada segundo o peso e a medida. Fez doer a alma. Ainda me faz doer.
Depois de terem sido aplicadas regras de segurança apertadas, o ritmo abrandou. Passou a ser obrigatório o registo de cada motorista e a viatura à chegada e à saída. Cada refugiado era registado à entrada e só podia sair depois de declarar todos dados, de forma a saber-se com quem e para onde seguia. Proibiu-se a circulação no interior dos espaços reservados aos refugiados, e criaram-se postos de controlo à saída do estacionamento.
Enquanto estive, durante três semanas em Przemyśl, consegui perceber melhor a diferença entre solidariedade e bondade. Em nome da solidariedade, as mulheres bonitas também devem ser resgatadas – e mesmo sendo a beleza um aspecto relativo e discutível, constatei ser esse um critério determinante para esta mobilização. A solidariedade também atrai abutres.
Já a bondade, não repara no número de dentes, no busto ou nas cicatrizes provocadas pelo tempo. Não olha para a cor da pele. Não olha a origem dos refugiados. Nem olha para o conflito.
O jornalista Nuno André esteve três semanas num centro de refugiados ucranianos na fronteira polaca, e fez várias incursões pela Ucrânia em ajuda humanitária. Regressado a Portugal, nos próximos dias mostrará aquilo que viu e sentiu. Eis o primeiro episódio de Crónicas da Ucrânia.
De forma objectiva e fria, primeiro os factos. Durante as primeiras horas do dia 24 de Fevereiro, ouviram-se as sirenes em Kyiv, e mísseis russos caíram sobre solo ucraniano. Foi o despertar de mais uma guerra – uma nova ferida no coração da Humanidade.
Ninguém pareceu surpreender-se. As movimentações militares e políticas, nas semanas antecedentes, prognosticavam uma invasão iminente, e, por esse motivo, as forças armadas ucranianas estavam preparadas para uma resposta defensiva minimamente eficaz. O avanço das tropas russas fez-se por três frentes: norte, leste e sul. A Ucrânia aplicou a Lei Marcial.
Entretanto, quase todos nos sentámos no sofá para assistir, ao vivo, pela televisão, jornal e redes sociais, ao desenrolar de uma história que tem sempre pouco de original.
Como sabemos, os responsáveis políticos dos países ditos ocidentais optaram por não intervir directamente. Enviaram apenas armamento, dinheiro e, a custo, sancionaram a Rússia.
Mais lesta se mostrou a sociedade civil. Poucos dias após a eclosão do conflito, gentes de várias nações orquestraram, à margem dos governos e das instituições internacionais, planos individuais e humanitários.
Por exemplo, no dia 1 de março, já tinham saído de Portugal mais de uma dezena de camiões carregados com mantimentos, recolhidos em escolas, sedes de associações, juntas de freguesia.
E tudo serviu para o transporte: carros, carrinhas e camiões para levarem alimentos, roupas, medicamentos e o mais que se imaginasse poder ser útil para os refugiados da guerra.
Mas foram também braços e pernas para ajudar. Muitos voluntários seguiram para a fronteiras da Polónia, Eslováquia, Hungria e Roménia junto à Ucrânia. E juntaram-se a muitos outros.
Impossível saber agora – nem nunca saberemos – quantas toneladas de mantimentos foram enviadas pelos portugueses, sobretudo por causa de uma evidente falta de gestão organizada, que dificultou, em grande escala, que o generoso apoio de tantas famílias pudesse ser mais útil.
E isso deve levar-nos a reflectir sobre a necessidade de uma educação e uma preparação social para que, no futuro, a solidariedade seja eficaz.
Logo nas primeiras horas da minha chegada ao centro de apoio aos refugiados em Przemyśl, na fronteira polaca, foi evidente que, a montante, nos países que doaram os mais diversos mantimentos não havia a mínima ideia daquilo que mais falta fazia. Não havia uma plataforma ou uma central de informação e, portanto, nunca foi possível saber o que já tinha sido enviado, nem para onde, nem aquilo que seria útil.
Como resultado, logo no final da primeira semana de Março, os responsáveis pelos armazéns do centro de refugiados em Przemyśl impediram mesmo a entrega de peças de vestuário. A quantidade de roupa enviada foi de tal modo exagerada que não havia forma nem meios para a guardar, escolher ou separar. Chegou-se a assistir a descargas descontroladas feitas pelos camionistas que, desesperados, tiveram de encontrar soluções de recurso para evitarem regressar ao ponto de partida com a carga. Houve mesmo quem tivesse sido multado ou visse o seu camião apreendido na Polónia por essa prática ser considerada crime.
Perguntavam algumas mulheres ucranianas: “porque é que nos enviaram vestidos, calções ou fatos de banho?”; ou então: “para quem são estes sapatos de salto alto?”… E havia roupa suja, rasgada, de odor duvidoso. Felizmente, e saliente-se, também chegaram muitos casacos para o frio, sacos-cama, botas quentes.
Mas os problemas não se limitaram à roupa. Também se estenderam à alimentação, que deu dores de cabeça (e de barriga) a muitos.
Falemos do centro que conheci, em Przemyśl, com vários pontos de entrega de refeições confecionadas. Para quem chegava da Ucrânia, havia pizzas, hambúrgueres, sopas e muitas outras receitas mais ou menos condimentadas. Tudo gratuito. Toda esta alimentação e refeições quentes provinham de uma empresa financiada com dinheiro dos fundos humanitários da Polónia.
Ou seja, a maior parte dos alimentos que enviámos para a fronteira nunca chegou a fazer falta. Muito menos enlatados cuja validade terminava em 2017. Tudo isto, contrariando a realidade que se vive no interior da Ucrânia, onde aí sim fazem falta enlatados, chouriços, leite, bolachas, fruta, pois as massas ou o arroz, por exemplo, dificilmente podem ser cozinhados por faltar gás, eletricidade e água.
Ainda assim vai chegando alguma alimentação necessária para os civis e para os militares. A enviar alimentos, que sejam em lata, mas com a garantia de que chegam mesmo às cidades e outras terras ucranianas, onde fazem falta.
Situação similar aconteceu com os medicamentos e material médico. Quem estava em Portugal e noutros países europeus, talvez tenha idealizado um cenário de guerra junto às fronteiras, onde apareceriam feridos com braços esfacelados e pernas amputadas, balas nos corpos, feridas, fraturas expostas. A realidade era outra.
No limite, os refugiados chegavam com dores de cabeça, febre ou diarreia – excepção para diabéticos, grávidas ou para quem sofria de outras doenças crónicas. Nestes casos, o apoio especializado estava garantido nos hospitais locais e de campanha na Polónia.
Os medicamentos faziam falta sim, mas no interior da Ucrânia, sobretudo nas cidades cercadas ou bombardeadas. E aí tem chegado pouco do que tem sido enviado. É, por isso, legítimo perguntar onde param as toneladas de paracetamol, de amoxicilina e betadine que se enviaram ao longo do mês de Março.
E tanto mais havia a dizer sobre os quilos e quilos de fraldas, as centenas de sacos de rações para animais, os milhares de escovas de dentes e as paletes de água engarrafada…
Entretanto, somente agora, mais de um mês após o início das hostilidades, chegam à Ucrânia os políticos. Sem coletes. Sem capacetes. Sorridentes. Para se ser herói não é preciso ter uma capa. Só é preciso “ter lata”. E dentro do prazo.