Categoria: Crónica

  • ‘People are strange’: e eles nem sequer estão malucos

    ‘People are strange’: e eles nem sequer estão malucos


    É noite; o astro saudoso
    Rompe a custo um plúmbeo céu,
    Tolda-lhe o rosto formoso
    Alvacento, húmido véu:
    Traz perdida a cor de prata,
    Nas águas não se retrata,
    Não beija no campo a flor,
    Não traz cortejo de estrelas,
    Não fala d’amor às belas,
    Não fala aos homens d’amor.

    João de Lemos

    LUA DE LONDRES (1872)

    Para compreender melhor o título[1]


    A pessoa já quase não se lembra do tempo em que existiam em Portugal verdadeiros políticos dignos desse nome. Esta gente que nos governa agora é para lá de má. É pior que decepcionante. É mais desaconchegante do que este inverno que começou em catapultas de chuva em pleno Outono e se manteve assim, gélido e encharcado, até à Primavera. Dentro dos seus sobretudos azuis, com os seus sapatos pretos, repetindo em toda a parte os mesmos sorrisos sobranceiros e as mesmas palavras de quem não tem absolutamente nada para dizer, esta gente que nos governa debaixo de uma profusão cansativa de chapéus de chuva escuros transportados por vassalos silenciosos é profundamente triste. Ainda por cima, sai-nos cada vez mais cara com os seus dares e tomares que cada vez parecem menos ir dar seja onde for. Estará tudo completamente perdido?

    A verdade é que o povo português já foi espantosamente sensato e paciente antes.

    Mas este é um desafio sem precedentes.


    De repente, olha-se para toda aquela marabunta[2], ouve-se toda aquela gente mandar vir, e alguma coisa em nós faz clic a braços com um fenómeno muito estranho. É que, embora saibamos que representam ideias e ideais diferentes, começou a parecer-nos que são todos iguais. Ainda por cima, parece cada vez mais que estão todos a dizer a mesma coisa, falando exactamente da mesma maneira. O fenómeno é insuportável, mas depois de detectado é como o poço da Alice: estamos a cair lentamente lá dentro sem sabermos onde nos leva, desesperadamente incapazes de voltar à superfície, que era o sítio onde estava a realidade que estávamos habituados a conhecer. Tentamos racicionar, mas é inútil: nem sequer sabemos que latitude e que longitude é que já percorremos[3]. E então dá vontade de tapar os ouvidos com as mãos e chamar pela mãezinha[4], porque parece mesmo que está tudo maluco.

    Depois percebe-se que isto é o que parece porque esta é a versão mais simplista dos acontecimentos, e, ao fim do dia, a Comunicação Social gosta sempre de apontar os microfones ao bobo da corte, que a presenteia com as afirmações mais pobres de espírito, mais francamente tontas, mais descaradamente insultuosas, e portanto mais divertidas. Por isso somos obrigados a seguir a política portuguesa com comentários finais a cargo de André Ventura, a única pessoa vestida de político que é capaz de concluir um bloco informativo com a declaração “na minha opinião, um polícia branco que mata um gajo preto depois do anoitecer não é nenhum psicopata, é mas é um herói, a quem deviam fazer um busto de homenagem, e nunca na vida abrir um processo de investigação,[5]” e sair imune.

    E sair imune, caraças[6] – mas há que entender que saiu imune exactamente porque é o bobo.

    Enquanto bobo, a criatura tem um direito ao microfone nunca antes visto. E, enquanto homem-espectáculo, basta-lhe apanhar um microfone desses pela frente para desatar a espingardar qualquer uma dessas javardices sem fundamento nem conteúdo que um homem gosta de ouvir quando está profundamente revoltado ou se sente muito perdido. Isso, hoje em dia, são quase todos os homens portugueses, e os media sabem isto muito bem. Em resultado, todos os dias temos que gramar com o palhaço. E, de facto, quando nos servem o País visto pelos olhos dele, parece mesmo que está tudo completamente maluco. Quem gosta de circo, e gosta de palhaços, sabe que é a isso mesmo que os palhaços se destinam: estão ali para convencer os espectadores que foram antes eles, todos eles, que enlouqueceram colectivamente. E entretanto, no seu mundo à parte, os palhaços continuam cheios de razão, como sempre estiveram. Não é por acaso que há tanta gente com fobia a palhaços. Quando os meus filhos eram pequeninos trepavam de pânico por mim a cima de cada vez que entravam palhaços na arena. Depois lá se habituaram a ficar quietinhos no seu lugar, mas todos a tremer e de olhos fechados.

    Com estas memórias simpáticas do Circo Chen nos Natais de Lisboa recordamo-nos de que os olhos de André Ventura não veem o mundo como os olhos das pessoas normais, caímos em nós, e o caso torna-se mais sério. A triste figura que têm andado a fazer todos aqueles funcionários públicos sem um único lampejo de inspiração que são hoje em dia os nossos políticos não têm propriamente a ver com, por alguma razão que nos transcende, todos ficarem malucos, cada um para seu lado.

    Tem antes a ver com padecerem todos é de uma angustiante falta de qualidade.

    E comportam-se como se lhes fosse completamente indiferente o que o comportamento medíocre deles faz aos portugueses.

    Vamos lá ver. Um bom político governa. Uma boa oposição impõe-lhe mudanças de rumo. E, supostamente, os eleitores ficam a ganhar com tudo isto. Mas, neste caso, a governação trocou insultos, e pelo meio foi descendo cada vez mais baixo até bater mesmo no fundo da Fossa das Marianas – sem que os portugueses ganhassem absolutamente nada com isso. Nos últimos tempos, em vez de tratar de todo e qualquer assunto que seja verdadeiramente importante para a qualidade de vida das pessoas, aquelas aves[7] passaram dias, semanas, meses, a espiolhar o escândalo das empresas do primeiro-ministro e da sua família. O primeiro-ministro não explicou nada que tornasse a situação menos escandalosa, e a partir daí fez toda a gente perder ainda mais tempo repetindo ad nauseum que não tinha absolutamente mais nada a dizer uma vez que já tinha feito da sua vida um livro aberto. Seguem-se episódios dignos de uma telenovela brasileira, daquelas que se passam no século XIX numa cidade no meio do mato onde a única lei que vigora é a do mais forte ou a do mais pérfido, que se arrastam durante um ano com detalhes tortuosos que ainda não tínhamos sonhado possíveis, e no entanto esta democracia já leva atrás de si um lastro considerável de péssimos políticos.

    Mas é que estes são piores.

    Primeiro, numa fuga para a frente de estupidez nunca vista, o governo, apoiado por todo o partido no poder, passa uma moção de confiança a si próprio. Em resultado óbvio, a oposição em peso passa uma moção de censura ao governo. Em decorrência inevitável, o Presidente da República dissolve a Assembleia e convoca novas eleições para amanhã. Reiterando imediatamente o seu pé de chumbo, o partido que estava no poder volta a pôr à cabeça da sua lista o mesmo primeiro-ministro altamente suspeito de grandes trafulhices com as suas empresas familiares. À falta de alternativas excitantes, e como simples factor decorrente de um enorme cansaço, até é possível que o povo português decida manifestar-se numa espécie de triste vingança poética[8] e faça com que este ex-primeiro-ministro ainda volte a ser primeiro-ministro.

    Em tudo isto gasta-se imenso dinheiro, perde-se imenso tempo, e talvez nenhuma destas duas coisas muito más seja a pior.

    Eu digo que a coisa pior, mas pior mesmo, é que, assim, vamos ser obrigados a viver com quatro eleições ensanduichadas em pouco mais de um semestre. Ainda nem estamos recompostos da telenovela do século XIX no meio do mato e já vamos ser obrigados a votar para legislativas em Maio; e depois seguem-se votos para autárquicas em Outubro, e para presidenciais em Janeiro[9], imediatamente seguidas da segunda volta dessas mesmas presidenciais se ainda alguém estiver vivo. Ora, a precisar de digerir três campanhas de seguida com toda a interferência que as campanhas causam na vida quotidiana, com imensa a gente a dizer-lhes “vota em mim” de dezenas de diferentes formas por centenas de razões diferentes – têm a certeza de que o pessoal consegue manter-se concentrado? Às tantas ainda saberemos para que serviço público é que aquela ave[10] específica nos pede que votemos nela? Estão a imaginar bem quantas pessoas vão aparecer a apertar-vos a mão quando vocês estão cheios de pressa, a dar-vos papelinhos que ninguém vai ler e que são, todos eles, árvores deitadas abaixo para nada? E quantas vezes seguidas, desta vez, é que vão ter gente que não conhecem de lado nenhum tratar-vos carinhosamente por Amigos, Companheiros, Camaradas, e aquele Portuguesas e Portugueses muito melífluo em que as senhoras passam sempre primeiro, para depois começarem todos a gritar-vos aos ouvidos em mais um comício que a certa altura começa mesmo a ser impossível manter nota de quem é e para que é? E o pior é que tudo isto acontece enquanto aqueles carros com música e alguém a bradar qualquer coisa pelo megafone, que parecem sempre anunciar uma tourada, não param de correr pelas ruas como baratas do inferno. E nós também já não sabemos o que é que anunciam ou defendem – mesmo descontando a possibilidade de estarem a chamar o povo à tourada dessa tarde.

    Há mais.

    A total falta de visão dos políticos que desencadearam este canhão gigante de exercício eleitoral foi tão grande que ainda há mais.

    Preparem-se para oito meses que vão passar por nós como um sonho estranho[11].

    Durante todo este tempo, mas todo este tempo, todo este tempo mesmo[12], hão de ser arruadas, atrás de arruadas, atrás de arruadas. Hão de ser imensas, porque dão nas vistas, não requerem grande preparação, reciclam-se, e, desde que o Candidato consiga caminhar, não há nada mais simples de fazer do que uma arruada.

    O que, antes de mais nada, quer dizer que vamos esbarrar com imensos momentos imprevisíveis, e não necessariamente agradáveis, em que de repente não se pode passar na rua.

    Ainda piores são aquelas alturas em que passar na rua é perigoso, porque – uma vez mais – o cidadão incauto corre sempre o risco de ser encostado à parede por um Candidato a Qualquer Coisa seguido pelos seus seguidores, que ainda é capaz de lhe perguntar “Olá Amigo, sabe quem eu sou?” – e o cidadão, tão evasivo quanto possível, já sem saber se há de ser abrupto[13] ou se há de manter o que ainda lhe resta de compostura eleitoral: “Bem, eu conheço a sua cara da televisão, claro, mas agora de repente estou com uma branca, não me lembro do seu nome” – o Candidato sorri e aproxima-se ainda mais arregaçando melhor as mangas, várias mãos estendem brochuras e panfletos, até um cartaz, e ainda um cravo vermelho, como aliás todos eles têm na lapela, mas para o pobre cidadão assim acossado isso não quer dizer absolutamente nada porque com cravos andam todos, no outro dia até na comitiva do Ventura iam umas miúdas muito giras a oferecer cravos vermelhos, suspeita-se que eram manequins contratadas à hora mas de qualquer maneira a intenção é que conta – “Deixe-nos informá-lo sobre o meu projecto para Portugal, antes de mais nada eu sou”– o cidadão ouviu o singular seguido por “Portugal” e bastou-lhe, o nome de uma única pessoa associado ao nome do País por inteiro revela-lhe que estão em causa as Presidenciais, ele está saturado de campanhas em geral e de arruadas em particular[14] porque as ruas ali são todas muito estreitinhas, só quer é despachar o assunto e então agarra naquelas árvores mortas que lhe estendem, livra-se dos seguidores com o ombro e acena seriamente ao Candidato enquanto inicia a fuga: “Ah mas eu sei, eu sei, o senhor é o Almirante que salvou o País do COVID, é um Herói, e conte comigo, eu vou votar em si.” – e desaparece, tirando partido da sua vantagem sobre a comitiva de conhecer muito melhor aquele dédalo de ruelas.

    O Candidato, que na realidade era o Vitorino das Rãs, não desanima, como nunca desanimou. Diz aos seus seguidores que já se viu que a disponibilidade das pessoas que vão a passar nas rua estreitinhas daquele lugar não é grande coisa, melhor será entrar num tasco, pagar umas rodadas, confraternizar, deixar por ali os materiais de propaganda como quem não quer a coisa, contar ao pessoal histórias verdadeiras e muito sentidas das suas lutas regionais, e deixar as gentes dali daquelas ruelas ver bem as filhas de vários seguidores que vieram hoje na camioneta, estão excitadíssimas com a sua estreia na política[15], desfazem-se em risinhos, e são boas como o milho[16]. Daí a uma hora, visitarão outro tasco. Daí a três horas, até aproveitam o tasco para ver o jogo. Nesse dia a estratégia foi um sucesso. Mas há quem diga que foi só porque nesse dia nós ainda tínhamos aquele treinador pouco dotado mas mesmo assim ganhámos o jogo, que por acaso era contra a Inglaterra e passem bem que o País está ao rubro.

    Bem contados são oito meses disto, e muita gente a candidatar-se a muita coisa, sobretudo tendo em conta a quantidade de estranhos personagens[17] que já se candidataram ou ameaçam vir a candidatar-se à Presidência da República. Uma eleição a nível nacional é sempre um fenómeno extremamente interessante, e não é só pelos resultados. Os programas que os candidatos apresentam, os tópicos onde põem a sílaba tónica, a escolha de slogans e de frases-feitas, a forma como se vão desenrolando os acontecimentos à medida que os autocarros das campanhas cruzam o País, as cabeças de cartaz que fazem concertos para cada facção, os debates, tudo é um dedo no pulso do País que tanto pode ser deprimente como hilariante, mas uma coisa é sempre certa, está cheio de vida. Agora – Três grandes eleições a contra-relógio e a seguir ainda um desempate? Alguém acha que isto vai correr bem? Será realmente preciso um sujeito ser especialista em análise política, ou em sociologia, ou em comentário jornalístico, para explicar ao País e ao mundo por que é que a abstenção em Portugal não para de subir e as eleições se saldam por resultados bastante bizarros?

    Epá, não gozem comigo[18].

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora



    [1] Para todos aqueles que não chegaram a este mundo a tempo de identificar imediatamente a referência, aqui vão aos primeiros acordes da imorredoira canção dos THE DOORS, PEOPLE ARE STRANGE: people are strange/ when you’re a stranger/ faces look ugly / when you’re alone/ women seem wicked/ when you’re unwanted/ streets are uneven/ when you’re down… e vários outros desenvolvimentos igualmente deprimentes.

    [2] Figura de estilo. Em Angola aplicava-se a tudo o que metesse muitas criaturas sempre em movimento, das formigas brancas às crianças. No entanto, a aplicação do termo às crianças já era, em si mesma, uma figura de estilo. Culpa delas. Nunca paravam quietas. De onde a expressão, também angolana, e também metafórica, “criança ferra.” Como é evidente, as crianças não possuem ferrão, pelo que no sentido literal não podem ferrar. Mas o uso do termo dispensa explicações.

    [3]Que estranho,” pensa a Alice logo na segunda página da história, algum tempo depois de ter caído no buraco do coelho, não ter conseguido voltar para cima, e por muito que dê aos braços continuar perpetuamente a cair, muito devagar. “Sempre gostava de saber que latitude e que longitude é que já percorri.”

    [4] Não necessariamente uma figura de estilo. Eu, como vivo sozinha com o Sebastião, posso dar-me ao luxo de fazer isso mesmo com os meus horrores de estimação. Ele põe a cabeça de lado a olhar para mim e arrebita as orelhas com o seu arzinho de cachorrinho amoroso. O que me faz passar logo a irritação, porque um cachorrinho amoroso com 54 kg é uma imagem absolutamente hilariante.

    [5] Versão literariamente melhorada das declarações originais do actual candidato à Presidência da República, que acha mesmo que os polícias que resolvem as coisas matando as pessoas são os verdadeiros heróis do dia.

    [6] Talvez aqui viesse a calhar um ponto de exclamação se essa não fosse a pontuação que eu mais detesto. Desculpem. Já tenho um certo direito a ter as minhas manias.

    [7] Parafraseando Aristófanes, 445-386AC

    [8] É mesmo. Toda a situação é tão triste que até as vinganças poéticas, completamente destituídas de fulgor e de garra e de sangue na guelra, são apenas isso mesmo – tristes. Tristes assim mais ou menos como a LUA DE LONDRES do João de Lemos.

    [9] De nada. É sempre um prazer googlar factoides interessantes como este para vossa informação como quem não quer a coisa.

    [10] Não há como aprender com os Clássicos, que já sabiam tudo – no caso dos Gregos, até sobre o funcionamento das democracias. Chega a ser frustrante.

    [11] Em sinal de respeito pela democracia omite-se aqui a hipérbole “pesadelo”, por muito que apeteça usá-la.

    [12] Recorde-se: pelo menos oito meses.

    [13] Eufemismo.

    [14] Note-se que, se vamos nas Presidenciais, já estamos na terceira campanha em programas ininterruptos.

    [15] Estas meninas andam todas no secundário e já votam. Estudaram o programa do Amigo do Pai com a dedicação com que estudam para os exames. Passaram a noite em claro a fazer perguntas umas às outras para se certificarem de que sabiam responder a tudo. Foi muito proveitoso, porque durante o tour do Candidato foram abordadas por numerosos jovens interessados em conviver saudavelmente em termos socio-políticos, mostrando-lhes também a noite da sua terra.

    [16] Claro que o Candidato não diz “boas como o milho” diante dos pais das meninas, nem que mais não seja porque um Candidato tem que ter Tacto. Mas a ideia é essa, e elas sabem-no melhor do que ninguém. Mais aperaltada, só mesmo a Shakira antes de entrar em cena.

    [17] Havia, já há muitos anos, um programa de televisão em todos os visados tinham alcunhas, e a do Marques Mendes era “O Anãozinho Pérfido.” Só para dar um exemplo.

    [18] Por acaso é a conclusão de uma das minhas anedotas preferidas. É pena toda esta história não ser uma anedota, no entanto.

  • Benfica 1.4

    Benfica 1.4


    O Pedro Almeida Vieira foi operado aos olhos e não consegue ver ao perto. Inicialmente, pensei que me estava a dizer que tinha entrado no curso de iniciação a VAR, onde, como se sabe, é requisito essencial ver mal. Mas enganei-me… era uma forma de me cravar para escrever a crónica do jogo. Logo a mim, um rapaz tão isento em matéria futebolística.

    Ainda não tinha decidido se ia buscar uma cerveja ou começava a preparar o corpo para o Verão quando, poucos segundos depois do apito inicial, já Pavlidis tinha deixado Diogo Costa a pensar na transferência de Verão.

    Foto: PÁGINA UM

    Os primeiros 20 minutos de jogo foram de sentido único, com o Benfica a controlar o meio-campo e a criar várias oportunidades. O Porto acordou a partir do minuto 25 e o Benfica baixou o bloco, apostando nas recuperações de Aursnes para lançar o contra-ataque.

    Nesta fase, as oportunidades do Porto eram criadas essencialmente por quatro jogadores: Rodrigo Mora, de longe o mais inconformado e talentoso portista; António Silva, um rapaz que se tenta descobrir desde aquele fatídico Portugal-Geórgia; Florentino, com o habitual brinde de jogo grande; e, claro, Di María, o meu favorito do plantel, que resolveu perder quase todas as bolas em que tocou.

    Depois de algumas bolas ao poste por parte dos jogadores do Benfica, Florentino ensaiou algo que não é a sua praia — o remate — e fez uma assistência primorosa. Pavlidis agradeceu, sentou um defesa e voltou a dar pensamentos futuros a Diogo Costa.

    Ao intervalo, pensei que Bruno Lage deixaria Di María no balneário, por estar a ser a maior fragilidade, mas enganei-me. Deve ser por isso que o treinador é ele e não eu. O Porto também não mexeu, mas no caso de Anselmi nem é bem pela falta de vontade — é mesmo falta de matéria-prima.

    O início da segunda parte foi uma repetição da primeira. O Benfica jogou e o Porto assistiu. Di María faz-me lembrar o meu avô: falava pouco, mas falava bem. Apareceu uma única vez, antes de ser substituído, para fazer uma assistência boa — mas tão boa — que até o Samu marcaria. E marcou mesmo.

    António Silva, que insiste em adormecer nestes jogos, ficou a observar o movimento técnico de Samu na recarga a um remate de um colega. Deu-lhe nota 10 pela execução e depois abriu os braços, como que a perguntar aos colegas: sabem quem é que deu outra casa?

    O Porto aproveitou o embalo e criou nova oportunidade, aproveitando a péssima adaptação de Dahl à lateral direita. Foram minutos de excepção à tendência do jogo.

    O Benfica mostrou superioridade do início ao fim e teve a vitória mais tranquila que alguma vez me lembro de ver no estádio do Dragão. A imprensa dirá que Pavlidis foi o homem do jogo. Eu acho que a perfeição, esta noite, teve outro nome: Aursnes. O norueguês que não treme nem complica. Defende, ataca, cobre o lado de Di María, compensa as falhas de Florentino, faz a dobra ao António Silva. É um daqueles jogadores que, discretamente e sem controvérsias, conquista a plateia.

    O Pedro disse-me, antes do jogo, que isto ia acabar 1-4. Nada mau, para um homem que vê tudo desfocado.

    Foto: PÁGINA UM
  • O Dragão e o Lobo

    O Dragão e o Lobo


    Já percorri muitas varandas futebolísticas nos últimos dois anos, mais como um turista excêntrico — daquele tipo que percorre mosteiros barrocos — do que como jornalista. Escrevo crónicas que, em certa medida, compensem os meus poucos atributos sobre tácticas e estilos. Daí que houve, neste ínterim, dezenas de Varandas da Luz, umas Varandas do Varandas (com e sem Carlos Enes), uma do Jamor, outra em Montjuic — com vista para a nostalgia catalã — e até uma Varanda das Cinco Quinas, que soa mais a chá com bolinhos e um fora-de-jogo. Começava, pois, a ambientar-me à doce vida de cronista da bola: ver sem ver, escrever sem ver muito, e opinar com aquele à-vontade próprio de quem nunca treinou sequer um grupo de escuteiros e nunca calçou chuteiras, apesar de, como jornalista, dar muitas caneladas.

    Foto: PÁGINA UM

    Até que, no esplendor de uma convalescença ocular, desembarquei no Dragão. Não num cavalo branco, mas com a garantia de o Tiago Franco — benfiquista militante e erudito da táctica invertida com carapaus — me escrever a crónica, e assim, de smartphone em punho, dispus-me apenas a fazer o que qualquer jornalista faz quando não tem de escrever: tirar fotografias.

    Eis senão quando, surge uma senhora. Não uma senhora qualquer, mas uma zelosa representante da FC Porto Média, que em vez de um crachá trazia, presume-se, um faro treinado para detectar crimes audiovisuais. “Está a filmar o jogo?”, pergunta-me com a doçura de um fiscal tributário. “Deixe-me ver o seu crachá”, remata. Pasmo. Não estava a filmar. E digo-o. E repito. E entro, vá, numa altercação ligeiramente furibunda (com a suavidade de um cronista que só vê com um olho e mesmo assim vê demais) sobre que raio de coisa era aquela de estar a querer saber o que um jornalista em funções estava a fazer ou deixava de fazer. Não gravo a conversa, mas tirei fotografia ao seu crachá para memória futura…

    Foto: PÁGINA UM

    É verdade, confesso, dei demasiado nas vistas: quase gritei golo do Benfica ao primeiro minuto. Mea culpa. Não bati palmas a jurar fidelidade ao dragão nem entoei o hino com reverência litúrgica antes do apito inicial. Mas daí até ser tratado como um espião de bancada vai um salto… de vara.

    Enfim, se querem afastar o mito de que o FCP é um clube dado a tiques inquisitoriais, talvez não seja má ideia dispensarem o papel de Santo Ofício às suas zeladoras. Afinal, quem não quer parecer lobo talvez devesse reconsiderar o uso insistente de pele lupina.

  • Tuks

    Tuks


    Na véspera de eleições, para satisfazer os munícipes dos bairros históricos, arreliados com os enxames de tuks e afins, Dom Moedas ordenou mais uma leva de interdições à circulação de ruas cruciais para a execução do serviço de embaixada cultural. Bem feito, é disto que se trata.

    Como moeda de troca aumentou o número de lugares de estacionamento autorizado e ordenou a vigilância sistemática de quem se posiciona indevidamente em segunda, terceira ou sexta fila. Tá certo.

    Foto: D.R.

    Quanto ao escrutínio de competências bastaria certificar obrigatoriamente quem presta tal serviço, no lugar de ser uma opção aleatória. Queres ser guia? Tens paixão por contar histórias? Sabes línguas estrangeiras? Articulas sujeitos, predicados e complementos directos sem engasgos? És empático e simpático? Então estuda e obtém aproveitamento. Não um cursozeco qualquer, mas uma licenciatura ou no mínimo um bacharelato. Depois, como em qualquer lugar organizado e civilizado, haverá quem igualmente certificado se incumba de verificar a certidão profissional. Quem não o tenha, ala.

    De outro modo, tal como é há 14 anos, e continuará a ser, qualquer atrevido se fará ao piso. Estou a fazer um curso de 76 horas no Turismo de Portugal para ver o que se ensina e quem o faz. Os formadores sabem da fruta. Interessam-me em particular os módulos com as polícias.

    Dom Moedas destacou um batalhão tipo SWAT para dar caça aos tuks. Para reforçar o acto musculado, o edil juntou a famigerada EMEL, onde desagua todo aquele que não tem capacidade para mais nada a não ser dar ao dedo e apertar bloqueadores. Alguns são armários das artes marciais e do MMA, para intimidar o condutor.

    Foto: D.R.

    No lugar de ir à raiz da questão — como é possível haver uma actividade económica sem controle de facturação —, não, ataca-se com os gendarmes.

    A AT, se quisesse, apertaria os calos aos enriquecimentos ilícitos. Tem uma arma digna de um criminoso: os métodos indirectos de correção fiscal, além das penhoras e execuções. Isto não sucede, e mesmo quem foi alvo de inspeções e processos de fraude e evasão fiscal, goza com recurso ao móbil de nada ter em seu nome (recorre a família e amigos) ou se tem, ninguém lhes pergunta como obteve o capital para aumentar o património. Não lhes fodem a vida. Talvez até os corrompam.

    Há uma ou outra empresa que trabalha com marcações através de sites e plataformas e lá vai pagando, mesmo que empregue sem grande respeito pelo trabalhador, nomeadamente no vínculo que o une à empresa. A maioria é tarefeiro ou trabalha por conta própria e risco.

    Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa. / Foto: D.R.

    Outra forma de asseio seria determinar quantos veículos cabem sem estorvar. Já agora, estabelecer critérios de ordem nas filas e preços fixos. No dia em que se fizer um documentário, ensaio ou investigação séria, este ramo cairá de maduro. Mas isso será no dia de S. Nunca à Tarde. Até lá, será o que sempre foi: a selva, lugar do mais forte e adaptado. Até lá, assiste-se ao espectáculo do mundo. Da sobrevivência a quanto obrigas.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

  • Medo, suor, lágrimas… e um kit de sobrevivência

    Medo, suor, lágrimas… e um kit de sobrevivência


    Estou no carro e ouço pela rádio que, nos últimos dias, a União Europeia lançou mais uma recomendação digna de Independence Day: a criação de um kit de sobrevivência para 72 horas, destinado a preparar os cidadãos para cenários de emergência, incluindo desastres climáticos, guerras e pandemias… Ou (digo eu) a aterragem de um OVNI com “bonecada” lá dentro perigosíssima. Nada que os terraplanistas não tenham avisado.

    As 72 horas parecem uma versão reciclada dos 15 dias para aplanar a curva. Soa a briefing de um reality show: Survivor – União Europeia Edition.

    O alerta chega com um tom grave, quase apocalíptico, como se estivéssemos a entrar numa nova era de catástrofes permanentes. Segundo um amigo meu, já não é a excepção permanente, mas sim a sketchização permanente, como se nunca mais saíssemos de dentro de um episódio do Flying Circus.

    A questão que se impõe, porém, não é a necessidade de precaução – que sempre existiu – mas sim a insistência numa narrativa que reforça o medo como instrumento de governação. Nada de novo na frente ocidental.

    Mas estes ocidentais querem a guerra, ajudando a Ucrânia. E paz não?

    Sai mais barato.

    Bolas, ainda ontem vi O Herói de Hacksaw Ridge, um filme curioso e a guerra é assustadora.

    Que vá para lá o Macron ou o António Costa. Já não basta terem de arranjar 800 mil milhões de euros para a financiar?

    Agora a von der Leyen anda a brincar aos porta-aviões? Vendem-te a guerra e depois o kit. Gostava de saber o que é que a BlackRock acha disto. Senão pergunto à Vanguard.

    Antes de mais, convém recordar que a ideia de kits de emergência não é nova. Países como o Japão, habituados a desastres naturais, há muito que promovem medidas desse género.

    Antes da pandemia, a única catástrofe natural da nossa geração tinha sido umas horas sem luz. E pronto… A Grécia do Euro 2004 também.


    Ultimamente, é um ver se te avias infinito. Agora, a UE quer que tenhamos comida, água e mantimentos para 72 horas. Basicamente, um festival de música sem concertos e sem drogas.

    Mas, no caso europeu, a novidade está na amplitude do alerta, na conjugação de múltiplos riscos e, sobretudo, no subtexto da comunicação: uma sociedade em permanente estado de ameaça.

    A mensagem é clara: o cidadão deve estar preparado para sobreviver sozinho, pelo menos por três dias, porque não pode confiar que o Estado o proteja de imediato.

    Se estiverem 40 graus, o Estado não tem culpa. As pessoas é que consomem demais. Agora olha… três dias a ver o sol aos quadradinhos. O nosso dióxido de carbono dá cabo da floresta. Este é o oxigénio que a União Europeia amassou.

    De cortar a respiração…

    E nesses três dias de reclusão, haverá Wi-Fi? Aí, sim, em caso de corte haverá rebelião de certeza.

    Ao invés de um debate sério sobre resiliência social e infraestruturas de emergência, o que temos é um apelo individualizado à autossuficiência.

    A responsabilidade de garantir um mínimo de segurança desloca-se para o cidadão comum, que deve agora assegurar reservas de água, alimentos, medicamentos essenciais e até fontes alternativas de energia para ver na Netflix filmes sobre… catástrofes naturais, claro!

    O sossego devia ser uma palavra retirada do dicionário. Já não se usa.

    Na notícia, não há qualquer menção a reforços significativos nos serviços públicos ou a investimentos estruturais que tornem estas medidas desnecessárias. Apenas a exigência de um pequeno bunker portátil. Provavelmente feito na China. Outro inimigo.

    Haverá um kit premium? Com ostras champanhe e abacate?

    O que mais impressiona nesta narrativa é a sua lógica de escalada. Não falamos apenas de kits de emergência para inundações ou incêndios, problemas há muito reconhecidos e já integrados em planos de proteção civil. Agora, o espectro do risco é alargado para incluir cenários de guerra e novas pandemias.

    As gripes andam aí. É fácil um morcego enganar-se e comer um pintassilgo para depois o Rodrigo Guedes de Carvalho nos dar umas prédicas com kit completo incluído.

    Depois de uma crise sanitária global que serviu de ensaio para um controlo social em larga escala e em plena guerra na Ucrânia, a UE parece querer que todos os cidadãos se comportem como pequenos sobreviventes urbanos, preparando-se para um futuro incerto e perigoso que faz The Day After parecer o D’Artacão.

    Não será de estranhar que, em breve, surjam “packs certificados pela União Europeia” disponíveis no mercado, promovidos como itens essenciais para qualquer lar europeu consciente. O meu kit vou comprá-lo à feira do relógio. Traz de certeza uma bifana de bónus.

    As oportunidades económicas são evidentes: de fabricantes de alimentos liofilizados a empresas de purificadores de água, há toda uma nova indústria à espreita. No fim de contas, o medo é sempre um excelente negócio.

    Mas quem é que inventou esta palhaçada? Coitados dos miúdos que deixaram de jogar com a Intel e passaram a ser Incel. Se foi um palhaço, era do antigo Circo Mariano, de certeza.

    Não querendo com isto defender criminosos, claro. Mas generalizar?

    É legítimo questionar se este tipo de recomendações são realmente necessárias ou se fazem parte de uma estratégia política mais ampla.

    Num continente onde a confiança nas instituições tem vindo a deteriorar-se, fomentar o medo pode ser uma forma eficaz de manter a população numa espécie de obediência preventiva. A sensação de crise permanente reduz a capacidade crítica e fomenta um conformismo passivo: se a ameaça é inevitável, então resta apenas seguir as diretrizes das autoridades.

    Esta abordagem não é inédita. Durante a pandemia de covid-19, as mensagens institucionais oscilaram entre a necessidade de controlo social e a culpabilização individual, com a tentativa de venda do StayAway Covid pelo Paulo Portas na TVI sem grande sucesso.

    Agora, com o foco alargado para as alterações climáticas e conflitos geopolíticos, a fórmula repete-se. O cidadão não deve apenas ser responsável pela sua saúde pública, mas também pela sua própria sobrevivência em caso de colapso temporário dos serviços essenciais. O Estado não tem culpa nenhuma.

    Peçam o livro de reclamações à Rússia.

    O problema deste tipo de discurso não é a falta de fundamento, mas a ausência de soluções estruturais para lidar com os desafios que nos são apresentados.

    Não se trata de um jogo de Paintball em Belas, em que nos podemos safar sozinhos. Agora, trata-se mesmo de perigos que levam à morte. Aqui, a haver humor, é mesmo negro.

    Negro escuro.

    O Estado, em vez de garantir sistemas de saúde robustos, redes de abastecimento resistentes e uma política energética coerente, aposta na lógica do “faça você mesmo”.

    Ficou punk.

    Em última análise, esta narrativa de autossuficiência não é apenas um reflexo das preocupações com um futuro incerto, mas também um sintoma de um modelo político que se demite de certas responsabilidades.

    Na pandemia, muitos políticos (e pessoas) – como veio a saber-se depois – não cumpriram regras e divertiram-se à grande em festarolas de arromba. Daqui a uns anos, já não se verá o 24 Hour Party People, mas sim o 72-Hour Party People. E, em vez de ser na Hacienda, será em Buckingham.

    Em vez de roqueiros a cair para o lado, teremos chefes de Estado.

    Esta abordagem, além de criar ansiedade desnecessária, legitima políticas de desresponsabilização.

    O resultado sem duvida é um progressivo enfraquecimento da ideia de comunidade e de solidariedade social, substituída por uma lógica quase empresarial de gestão de risco individual. O famoso neo-liberalismo de esquerda. Estou já a ver a esquerda caviar a pedir kits para 100 horas em vez de 72, com o alto patrocínio do Infarmed.

    Fogo, quem não gostaria de estar fechado 100 horas com o Louçã era eu. Só de imaginá-lo a dizer piadas… Preferia 50 do Fernando Rocha contando com as mais estúpidas, que 2 do Louçã.

    Em suma, não se trata de ignorar a necessidade de precaução – porque, claro que desastres acontecem e a preparação é útil –, mas sim de questionar por que motivo as respostas políticas se centram cada vez mais na lógica do medo em vez da prevenção sistémica.

    Concluindo. O mais engraçado disto tudo é a transparência do modelo: primeiro criam-se as condições para o colapso – cortes na saúde, privatizações, precariedade energética – depois vendem-se soluções individuais para problemas colectivos.

    É um meta-capitalismo de desastre gourmet, agora numa versão mais higiénica, com selo europeu e talvez até uma estrela Michelin, se fores VIP. 

    A classe média já era. E agora fica só com 72 horas para apertar o cinto. Tipo jogo de computador.

    Mas vejam lá o Wi-Fi. Depois ficamos sem saber como é que o Gerard Depardieu sobreviveu numa cave sem Confit de Canard.

    Enfim, mais uma vez o Flying Circus encontra-se com o 1984 na Feira Popular para celebrar este admirável mundo novo que está a ficar velho.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações: Swimming Pool Project


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Adolescência (a série): um abismo sem plano sequência

    Adolescência (a série): um abismo sem plano sequência

    Aviso: Este texto contém revelações sobre a série Adolescência que podem comprometer o efeito de surpresa — se é que isso ainda existe.


    Vivemos um tempo cheio de buracos.

    E já que tratamos aqui de televisão, é curioso observar como a indústria cultural soube reconfigurar os dispositivos da catarse, não sendo apenas um reflexo da “realidade” mas tratando dela para a reorganizar num sistema de validação moral atractivo e muito dicotómico, embora perto do vazio.

    As séries contemporâneas converteram-se em repositórios de códigos éticos formatados, onde o espectador é conduzido por uma arquitectura emocional que não exige dúvida, mas um apelo à identificação.

    Daí talvez o sucesso desta série chamada Adolescência que foi filmada no norte de Inglaterra, entre South Kirkby, South Elmsall e Sheffield, e sobre a qual se debruça este texto.

    Trata-se da mais recente produção da Netflix com assinatura britânica, e que se inscreve exemplarmente nesta genealogia: uma obra que simula o abismo, mas opera sempre à beira da superfície; que quer parecer disruptiva, mas permanece meticulosamente dentro dos contornos do admissível pelo mainstream ideológico, como seria de esperar em tempos tão simulados e pouco rigorosos a roçar a hipocrisia, marca inevitável de quando só existem dois lados possíveis de escolha. 

    Na sequência do assassinato brutal de uma jovem estudante, Adolescência acompanha quatro dias decisivos na vida de Jamie, em que nem sempre ele está presente. Trata-se de um rapaz de 13 anos acusado do crime. Filmada em tempo real, a série mergulha no impacto psicológico e social do acontecimento, expondo as fragilidades da família, da escola e do sistema de justiça juvenil. Com uma narrativa densa e claustrofóbica, a série explora a culpa, o silêncio e o peso insustentável de crescer num mundo que parece ter pouco sentido, cheio de tensões e neurose  A título de curiosidade, a série é para maiores de 13 anos, a idade do protagonista. Tudo a condizer.

    A verdade é que o mundo colapsa, mas dentro de um guião. A série começa logo mal por se chamar Adolescência e não O adolescente (ou outra coisa). Fazendo passar um pelo todo, associação pertinente, o que é assustador. Como se na adolescência o normal fosse matar sem razão aparente. Esta série televisiva tem tudo o que se espera de uma tragédia contemporânea, pré-digerida para consumo emocional.

    É talvez no centro narrativo da série — o acto de Jamie de matar, visto pela câmara de vigilância — que se torna mais visível a escolha programática do argumento: não nos é dito porquê. Não há confissão, nem reconstituição, nem motivação dramática articulada.

    O espectador é mantido fora do momento do crime, não para pensar sobre ele, mas para sentir o seu eco. Quando se volta a estar com Jamie no terceiro episódio já passaram uns meses. E no quarto aparece a voz da sua confissão apenas.

    A consequência ocupa o lugar da causa. O gesto torna-se enigma, mas não no sentido trágico da palavra — apenas no sentido funcional.

    Jamie mata, não porque tenha razão, pulsão, trauma ou uma ideologia aparente, mas porque a narrativa precisa de uma figura sacrificial silenciosa, até omnipresente que active o colapso dos adultos à sua volta. O corpo do rapaz é o epicentro imóvel sobre o qual todos os outros orbitam em falência — pais, escola, justiça, e até a psicóloga esgotada no final da entrevista do terceiro episódio.

    E no entanto, a ausência de causalidade, tão elogiada pela crítica como sinal de maturidade narrativa, parece ser menos uma abertura ao abismo do que uma forma de evitar o pensamento.

    Ao recusar mostrar ou interrogar o gesto, impede-se o espectador de exercer a sua interpretação. O silêncio de Jamie não é ambiguidade, é controlo simbólico. E, pior ainda, é uma maneira de deslocar o peso do acto para o circuito emocional da culpa partilhada, onde a pergunta “porquê?” já não importa.

    Jamie mata, sim. Mas o que morre com ele é a possibilidade de uma dramaturgia que se arrisque a pensar o crime para lá do seu valor simbólico. E isso, mais do que a própria violência, é o gesto violento da série. Poderia ser uma actitude de provocação mas não é.

    Conhecendo minimamente a realidade inglesa, percebe-se que há ainda assim diferenças significativas entre os dois países — sobretudo na forma como a autoridade (ou a sua versão pseudo-autoritária) se exerce, e no peso que o Estado impõe às famílias, com a respectiva violência simbólica e estrutural. Portugal, ao lado dos anglo-saxónicos, parece um peso-pluma no velho índice foucaultiano, já gasto, sim, mas cada vez mais reactualizado com a televisão a servir de panóptico de fundo.

    Cada episódio é um plano-sequência: quatro blocos temporais contínuos, quatro actos de uma peça que quer fazer-se passar por realismo, como se esse género ainda pudesse ser mais estilizado, empregando um marketing crítico (se assim poderemos chamar), porque hoje as séries são avaliadas com o mesmo espírito que os produtos no Uber Eats: eficácia, satisfação emocional, identificação rápida envolta em likes e Emojis. 

    A crítica deixou de ser campo de pensamento e passou a ser validação simbólica, como se fosse uma extensão do marketing do filme, sempre com excepções, claro.

    Mesmo os jornais sérios vivem do clique, da partilha, do engajamento — e isso empurra para o consenso emocional e não para o pensamento incómodo.

    Dando uma vista de olhos pela crítica que se tem feito, percebe-se o entusiasmo em destacar a virtude da série por apontar a masculinidade tóxica como o alvo a abater.

    Supostamente, a culpa é da Net — encarnada numa conversa entre a mãe e o pai, que comentam as noites de luz azul acesa no quarto de Jamie até de madrugada. Mas a verdade é que a Net é hoje tudo, até o espelho. O próprio Governo,  surge maquilhado na narrativa como uma espécie de vítima inocente de uma abstracção digital incontrolável. Constatamos isso pelo esforço da policia e da impossibilidade da escola com os rapazes bullies a fazer das suas.

    Ironia suprema: a série é consumida na mesma Net que parece veladamente demonizar, e ali ficará a repousar como um cadáver bem maquilhado que já fez o seu trabalho num cemitério redundantemente zombie.

    Pode deduzir-se que o que se pede é mais regulação urgente e que os governos, coitados, são quase retratados como vítimas impotentes de um mundo abstracto que resvala para a anarquia. Mas a vida não é assim. As coisas estão hoje muito mais ensimesmadas e interligadas ao mesmo tempo, tornando-se a sua decifração tão blindada como um segredo de Estado.

    A arte, nesse contexto, parece muitas vezes remetida ao papel do chato funcionalismo público,  só que agora com a emoção da moral do bem, estrategicamente incrustada, como se isso lhe conferisse urgência estética.

    A câmara (e aqui começa o problema) não nos interroga — conduz-nos através do seu GPS afinado e convenhamos, fá-lo bem. Do ponto de vista da mise-en-scène formal parece-nos exímia.

    Mas por outro lado do ponto de vista intelectual, não parece exigir grande coisa aos espectadores num qualquer desvio que a câmara proponha, nenhum espaço onde se possa habitar a tragédia do ponto de vista da sua ambiguidade ou paradoxo e mesmo do livre arbítrio do espectador (se o tiver).

    Philip Barantini, o realizador, sabe dirigir actores e operar uma tensão formal com rigor mas tudo é demasiado operacional e afinado. É o teatro do naturalismo embalado numa estética condescendente com o próprio dispositivo televisivo, embora esta série se armadilhe de argumentos mais cinematográficos e experimentais como o tão falado uso do plano sequência, um doce para a critica especializada que parece já pouco sair à rua sem carpetes vermelhas.

    A escolha de filmar sem cortes aparentes cria uma armadilha: a ilusão da continuidade converte-se numa suspensão da complexidade. O tempo avança, mas não se transforma. A narrativa desliza sobre si própria. Às vezes parece não sair nunca do mesmo lugar, um artifício que pelos vistos funciona, ou não fosse esta a série da moda.

    Owen Cooper, no papel de Jamie, entrega uma fisicalidade apagada mas com fogachos como no caso da cena com a psicóloga em que invariavelmente se torna violento e ameaçador, como se o corpo estivesse sempre no rescaldo de um trauma que não nos é dado a ver, mas o actor fá-lo eximiamente e com uma representação típica do melhor dos britânicos neste tipo de encenação.

    Diria mesmo que no género são imbatíveis.

    Christine Tremarco, como mãe, transita entre o desespero e a impotência mas sempre dentro de um rigor que aflige positivamente. Stephen Graham, produtor e actor, encarna o pai com uma contenção que se pretende densa, mas que nunca verdadeiramente acende o fósforo, embora pareça que vai explodir a qualquer momento, para o bem ou para o mal da acção programática.

    Destaco ainda a filha, a psicóloga e o polícia que fazem jus à sua escola britânica  de forma brilhante e inspiradora, fazendo até esquecer outros aspectos menos interessantes, e não deixando instalar-se algum tédio inerente a uma obra sem cortes de edição.

    Jack Thorne, o criador, propõe um drama social que convoca o espectro de Ken Loach ou Mike Leigh, talvez, mas sem a coragem formal ou o radicalismo ético desses nomes.

    Não há confrontação de classes, nem análise de estruturas. Apenas psicologia e culpa. O sistema de justiça juvenil é pano de fundo, mas nunca é questionado. A escola surge como um lugar de passagem, não de formação. Será esta já a realidade? Pode ser, mas nesse caso chega-se ao fim de uma linha cujo dispositivo mediático pretende lavar daí as suas mãos. Já para não falar do comunicacional.

    A violência é um sintoma, mas nunca um fenómeno que se queira entender em profundidade. E aqui a série revela o seu coração: não é o mundo que está doente, são os indivíduos.

    O trauma substitui a ideologia. Em contraponto Elephant de Gus Van Sant é o exemplo do contrário já que se trata também de um filme de crime numa escola pública mas deixa os espectadores respirar nem que seja para dentro de uma saco de plástico escolhido por ele.

    Mais perturbador ainda é o desenho das personagens no plano simbólico. O masculino, em Adolescência, é sinónimo de ausência, ameaça ou fracasso.

    O pai é impotente, os colegas são predadores ou cúmplices. O assassino é um silêncio que mata. Em contrapartida, o feminino surge como espaço de escuta, contenção, empatia. A psicóloga, a irmã, a mãe: todas representam zonas de verdade emocional. Esta oposição, além de simplista, revela uma lógica binária que contradiz o próprio realismo que a série reivindica. Não há contradição nos corpos, nem ambiguidade nos gestos.

    Cada personagem está condenada ao seu arquétipo. Não há voz que escape ao destino.Não é por acaso que quem mata é masculino e quem morre é feminino. A organização simbólica da série é clara: o masculino como ameaça, silêncio ou falência; o feminino como escuta, dor e verdade emocional. Jamie, o agressor, não tem agência — é um corpo mudo que activa a queda dos adultos. A vítima, ausente, torna-se presença moral. É uma configuração que parece natural, quase inevitável, mas que revela a escolha de alinhar-se com uma narrativa binária, afectiva e funcional. Ao não tornar mais complexa esta divisão, Adolescência não interroga o seu tempo , apenas o confirma, pelo menos na sua percepção estereotipada.

    Não deixa de ser curioso que a serie é muito masculina na sua autoria incluindo Brad Pitt que  aparece como produtor executivo.

    Esta moralização do enredo seria menos problemática se a estrutura dramática oferecesse zonas de fuga, de interrogação, de ambivalência. Mas não: a série opera como um tribunal sem apelação. Cada gesto é carregado de um subtexto que se quer politicamente correcto como se a culpa fosse definitivamente de Jamie ou da sua família que apesar de tudo aparece como estruturada. Mas o mal surge da normalidade e parece querer enfatizá-lo ao estilo de Hannah Arendt mas sem sentido crítico.

    Curioso e também um pouco incompreensível ou mesmo enigmático é a palavra “pedófilo” aparecer escrita na carrinha de trabalho do pai, mesmo sabendo quem a escreve — mais uma vez rapazes prontos a armar sarilho doa a quem doer. A filha boa e generosa é apenas espectadora quando o pai bate num dos rapazes. É a violência explicita a entrar pela família adentro.

    O aparato técnico é irrepreensível deixando no ar uma certa magia não sendo óbvio perceber o seu dispositivo perturbador, sobretudo no episódio em que passamos para um ponto de vista do céu como se fosse o de um drone. A fotografia é sóbria, neutra, quase hospitalar. Tudo contribui para uma estética da contenção. Nunca há um verdadeiro risco.

    O plano-sequência, que poderia ser um dispositivo de descoberta, torna-se um mecanismo de controlo. 

    Funcionou, tendo em conta as audiências e a critica especializada.

    Também o Dallas no seu tempo.

    A crítica parece unânime no Rotten Tomatoes, ou no Metacritic na critica positiva. 100 por cento. Mas esta unanimidade revela mais sobre o estado da crítica do que sobre a série.

    Vivemos um tempo em que a adesão emocional se tornou critério de valor. Se um produto cultural afirma uma causa justa, isso basta para legitimar todos os seus defeitos. A forma tornou-se irrelevante, desde que a intenção seja correcta. O problema é que a intenção, aqui é estranha. Dizer mal ou criticar boas acções moralizantes acarreta os seus riscos no planeta das duas terras. Uma estupidez tramada, que acarreta medo e desordem.

    A adolescência — enquanto conceito — é, por definição, uma zona de conflito, metamorfose, risco, transgressão.

    Nesta série, é convertida num campo de purificação moral. Em vez de corpo em transformação, temos corpos culpados ou redentores. Em vez de afectos desregulados, temos sintomatologias. Em vez de pulsões, temos discursos.

    Nada escapa ao algoritmo narrativo.

    Não é preciso pensar, mas empatizar. Não há abismo. Não há interrupção. Apenas a certeza de que estamos do lado certo. E isso, num objecto cultural que se pretende desafiante, é o maior dos fracassos.

    Adolescência é também um exemplo acabado da cultura da segurança simbólica. É um produto com vocação de arte. Mas a arte, quando se limita a imitar a virtude, torna-se apenas mais um ramo da indústria — agora com plano-sequência e paleta neutra.

    Adolescência é, no fundo, um bom exemplo do que acontece quando a televisão tenta mimetizar algum cinema sem aceitar o seu risco ontológico mas tudo está submetido a uma lógica de continuidade emocional e controlo narrativo.

    A televisão, enquanto forma, vive da fidelização e da retenção — e mesmo quando se aproxima formalmente do cinema, não abdica da sua função principal de manter o espectador dentro do regime da identificação, da empatia, do reconhecimento e da compreensão, tudo aquilo que Twin Peaks não tinha, não deixando por isso de ser um sucesso de público e da critica mas num tempo em que a internet era só uma miragem. O cinema, por oposição, pode fracassar e desorientar. Pode fazer o espectador sentir que não está no lugar certo — e, justamente por isso, transformá-lo, correndo sempre riscos ideológicos ou morais.

    Alguns episódios de Black Mirror conseguem-no e aqui com mais alguns pormenores e com a intromissão  “diabólica” da tecnologia quotidiana, o primeiro episódio seria magnifico e poderia inscrever-se nessa dimensão mais aberta de Black Mirror que na verdade nunca pretende ser cinema nem usa fluídos cinematográficos pretensiosos que faça a crítica rejubilar.

    No final, talvez Adolescência deva ser lida não como um falhanço formal ou conceptual, mas como uma espécie de diagnóstico involuntário da própria televisão contemporânea. Nesse sentido é uma série que tenta emular a densidade do cinema de autor, mas acaba por cristalizar, com rigor quase académico, os limites internos da sua matriz televisiva.

    E é aí que se torna interessante: na tensão entre aquilo que pretende ser e aquilo que efectivamente é, dando prazer assistir.

    Não se trata de perdoar as suas falhas narrativas, nem de celebrar as suas virtudes técnicas, trata-se de reconhecer que a obra, na sua incapacidade de produzir verdadeiro abismo, revela com clareza o modo como a televisão actual opera: por sedução estética, por empatia emocional, por alinhamento moral. A sua forma — o plano-sequência — que poderia ser instrumento de desorientação, converte-se num dispositivo de segurança.

    A sua narrativa que parte de um trauma, nunca arrisca o desconforto real. A sua dramaturgia que invoca o realismo, encena apenas a previsibilidade ética do seu tempo. Queríamos mais e aqui estava uma excelente oportunidade.

    Nesse sentido, Adolescência não é uma má série: é uma série transparente à sua maneira. Se tivesse de atribuir uma nota daria 7 (10).

    Expõe os mecanismos de contenção simbólica da televisão pós-Netflix, onde tudo é coreografado para parecer radical, mas nada escapa ao regime do reconhecimento. Quase como se quisesse redimir em certos momentos onde a câmara deveria ir para ver mas não vai ficando talvez a sugestão. É evidente que gostaríamos de a ver entrar noutros sítios mais incómodos para o poder. Imaginem Kubrick ou Bergman.

    E talvez seja este o seu mérito maior — e mais perturbador: mostrar, com precisão, o que a televisão contemporânea pode ou não pode ser. Mostrar que o risco está simulado, que a densidade está encenada, que a arte está subordinada ao algoritmo narrativo da plataforma.

    A Netflix é mais que uma plataforma. É um espaço contemporâneo em que a dislexia e a neurose se evidenciam de forma apesar de tudo transparente.

    Adolescência, assim lida, é um espelho: não do mundo, mas do próprio meio que a produz. E nessa revelação inusitada, torna-se politicamente relevante. Porque nos diz até onde a televisão é capaz de ir — e até onde jamais ousará chegar, fazendo assim serviço público de relevância, mostrando-nos o aeroporto onde se pode aterrar em segurança.

    E a vida continua… Talvez como nos filmes de Kiarostami.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações: Swimming Pool Project


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Dinamarca 5.2: um osso duro de roer

    Dinamarca 5.2: um osso duro de roer


    De varanda em varanda, ando aqui a cogitar se, em muitas situações, não seremos todos uns voyeurs futebolísticos, debruçados sobre uma espécie de miradouro privado onde assistimos ao desfile das esperanças, angústias e pequenas traições. Comecei pela “Da Varanda da Luz”, mas logo dei abertura para surgir, de quando em vez, uns “Da Varanda do Varandas”, que o Carlos Enes, com o seu desplante sportinguista, fez nascer por brincadeira – ou talvez por inveja –, para depois se multiplicarem outras varandas: já houve um no Jamor, no ano passado, numa final de Taça de Portugal em que o Benfica injustamente esteve ausente; e a surpreendente Varanda de Montjuïc, ainda este mês, em Barcelona.

    Agora, cá estou eu novamente à varanda, desta vez em Alvalade, a pensar numa fidelidade tantas vezes posta à prova, num amor estranho que se divide entre um clube e uma Selecção.

    É curioso como as varandas e a fidelidade têm em comum a possibilidade do abandono. Se as varandas são espaços híbridos, que ligam e desligam ao mesmo tempo, entre o interior e o exterior, também a fidelidade ao futebol é assim, sujeita às circunstâncias e aos resultados. Nem meto aqui o jornalismo, porque isto é uma crónica futebolística, logo tendenciosa.

    Mas há uma diferença clara, convenhamos: se as varandas, mesmo abandonadas, se mantêm erguidas, intactas na sua solidão, já a fidelidade futebolística abana ao sabor de cada derrota. Talvez não haja varanda que resista a muitos maus resultados, especialmente quando se fala da Selecção Nacional, uma espécie de clube de todos e de ninguém.

    É por isso que, sentado aqui nesta varanda de Alvalade, me pergunto que nome lhe hei-de dar. Já perdi o exclusivo das varandas, é certo, mas talvez seja tempo de pedir ajuda às inteligências artificiais. Não dizem que o futuro passa por aqui? E já que o ChatGPT se tornou uma moda – e esta semana li um artigo científico em que a Inteligência Artificial é declaradamente um dos co-autores –, pergunto-lhe agora: que nome dou a esta varanda de onde hoje vejo a Selecção jogar contra a Dinamarca?

    E ele dá-me três sugestões: ‘Varanda da Saudade’, ‘Varanda das Quinas’ e ‘Varanda do Cristiano’.

    (penalty!!!! E vai ser Cristiano Ronaldo a marcar: eis a oportunidade de ‘redenção’… e… e… falha!!!)

    Já estava decidido, mas sai agora reforçado por este falhanço. Fiquemos pela ‘Da Varanda das Cinco Quinas’, que me parece mais épico, evocando não os cinco reis mouros derrotados na Batalha de Ourique, mas as cinco mais relevantes vitórias futebolísticas nacionais: o Euro 2016, a Liga das Nações de 2019, o Campeonato do Mundo Sub-20 em 1989, o Campeonato do Mundo Sub-20 em 1991 e o Campeonato da Europa Sub-17 em 2003.

    Seja como for, sinto que o ambiente não está muito favorável para Portugal, sobretudo depois da exibição pavorosa da última quarta-feira em Copenhaga. Aquele jogo foi tão medíocre que a única figura a destacar acabou por ser o guarda-redes Diogo Costa, agravando ainda mais a exibição global. Um guarda-redes brilhar em demasia significa quase sempre que tudo o resto falhou em absoluto. E falhou.

    Como sucede nestas ocasiões de derrota ou exibição sofrível da Selecção Portuguesa, o Cristiano Ronaldo é imediatamente atirado para as feras, sem misericórdia nem respeito. Ainda mais agora que é quarentão e o Martinez o mantém de pedra e cal, apesar de ele, o Ronaldo, estar mais parecido com uma pedra.

    (entretanto, ali em baixo, depois do domínio português nos primeiros 20 minutos,)

    Quando se trata de Cristiano Ronaldo, não interessa que durante quase duas décadas tenha sido quase sempre bestial e único, porque o futebol, como a vida, é ingrato. Agora, se não marcar golos decisivos – e sobretudo se fizer falta aquele penalty –, será uma besta negra, como se o fado da Selecção dependesse exclusivamente dele.

    (e goloooooooo… Portugal!!! 1-1. Fantástico! Quer dizer: teve de ser um dinamarquês a marcar na própria baliza; mas conta para Portugal e isso é que interessa)

    Mas, pelo menos, Ronaldo tem agora um refúgio seguro na imprensa portuguesa. Bem pode jogar mal ou ficar em branco, porque há agora um jornal que nunca mais escreverá mal dele: o Correio da Manhã…

    (e chega o intervalo)

    Aproveito para vos revelar que hoje sinto-me um privilegiado aqui nesta varanda, porque, além de o farnel da Federação Portuguesa de Futebol não ser nada mau – uma sandes de carne, um sumo e uma água, um pacote de batatas fritas e um chocolate –, tenho aqui um relato radiofónico em directo, por via dos meus camaradas do lado direito, da FlashScore. Como sou algo pitosga, é uma vantagem saber quem passa e quem remata.

    (recomeça o jogo)

    De varanda em varanda, cá estou eu a assistir agora ao recomeço desta segunda parte, ainda desconfiado e com um pressentimento que não me agrada. É certo que chegámos ao intervalo empatados na eliminatória, ainda que com ajuda de um dinamarquês confuso e bem-intencionado, mas uma selecção que só marca golos por caridade adversária é uma equipa que vive perigosamente. Se nos últimos anos Portugal se habituou a ser melhor no sofrimento do que no espectáculo, parece-me que estamos hoje decididos a exagerar no sofrimento.

    (e dito e feito; golo da Dinamarca; marca, segundo diz o camarada do lado, Rasmus Nissen, que nem sei onde joga)

    Está lindo. Estava eu para escrever que o Cristiano Ronaldo ainda deveria estar a remoer o penalty falhado, e ainda acontece pior. Agora estamos bem pior: fantasmas trágicos pairam em Alvalade – e Portugal arrisca sair da Liga das Nações sem honra e glória. Bom, mas, na verdade, ainda falta muito, e eu confio no Cristiano Ronaldo. Ainda tenho memória daquele jogo contra a Espanha no Mundial da Rússia em 2018 ou na segunda mão do play-off de apuramento para o Mundial do Brasil em 2014.

    (é goloooooooooo: Cristiano Ronaldo!!!!! Eis a redenção! Remate de Bruno Fernandes ao poste esquerdo de Kasper Schmeichel, com o CR7 a facturar na recarga)

    Enquanto escrevo estas linhas, dou comigo a pensar que as varandas têm afinal outro traço comum com o futebol português: estão sempre à beira do precipício. Basta um ligeiro tropeção, um erro infantil, um passe errado, uma hesitação, para que esta varanda épica se transforme num miradouro de derrotas, lamentos e frustrações. É um risco que se repete jogo após jogo, varanda após varanda. E hoje, mais do que nunca, temo pela queda.

    E cá estou eu, entre o pessimismo crónico e uma réstia de esperança renascida por via da redenção de Cristiano Ronaldo. O homem é assim mesmo: sempre que o enterram vivo, regressa ainda mais teimoso, mais obstinado, quase como um Lázaro de chuteiras que insiste em desafiar a sua própria mortalidade futebolística.

    (e olhem: o Ruben Dias armado em António Silva, no Benfica, permite a intercepção de um dinamarquês para um cruzamento rasteiro e golo fácil de Eriksen)

    Estamos lindos. Com este resultado, Portugal está eliminado. Não há tempo para grandes devaneios filosóficos quando se está perto do abismo, faltando menos de 15 minutos para o final. Bastou mais um momento de desconcentração, um desentendimento defensivo, para que surja novo desespero.

    Em todo o caso, há algo em mim que recomenda calma – e sobretudo a mim próprio, que tenho o coração já habituado a sofrer –, porque esta varanda, que é a primeira nesta versão, não pode iniciar-se com um fracasso. Vou aqui debicando o farnel, bebericando mais um pouco de água, petiscando outro chocolate, mais para afastar o nervosismo do que a fome. E o relógio continua…

    (e golooooooooo! Trincão!!! Nunca imaginei gritar um golo em Alvalade marcado pelo sportinguista Trincão)

    Caramba! Temos mesmo jogo. Acho que, se isto for a prolongamento, vou ficar só a assistir, porque não dá para escrever com alguma graciosidade num jogo destes que parece uma montanha-russa.

    Como dizia eu: de varanda em varanda, vou-me dando conta de que o futebol português é exactamente como esta varanda das Cinco Quinas, frágil e instável, mas ainda assim capaz de nos proporcionar emoções inesperadas. Já nos vi eliminados duas vezes esta noite e cá estamos outra vez com a alma renovada. Parece um filme repetido, daqueles que sabemos sempre como acabam, mas não conseguimos deixar de ver até ao fim, porque temos esperança de que, desta vez, o final seja diferente.

    Entretanto, Cristiano Ronaldo é substituído pelo Gonçalo Ramos, certamente para dar mais fôlego para o prolongamento. O golo que marcou serviu de redenção para o penalty falhado. Se Portugal virar este resultado, amanhã não dirão que é bestial, mas pelo menos não o tratarão por besta. É assim o nosso futebol, e acho que o de todos: bipolar, imprevisível, incoerente. Tanto passamos da euforia à depressão como regressamos, sem escalas, ao sonho. No fundo, é também por isso que se continua fiel a esta varanda, porque, independentemente do sofrimento e dos tropeções, não há nada que supere o prazer de viver momentos como este, em que nos sentimos protagonistas de uma história épica escrita ao vivo e sem guião.

    Estou a exagerar, claro – e encerram-se os 90 minutos. Vai haver prolongamento e, se me permitem, vou estar mais atento ao jogo do que à crónica durante os 30 minutos do prolongamento.

    (golooooooooo. Trincão!!! Trincão!!! Bis do Trincão)

    Estamos à frente, finalmente!!!

    Agora sim, percebo plenamente a verdadeira natureza desta Varanda das Cinco Quinas: é uma varanda masoquista, feita à medida dos sofrimentos e das angústias que tão bem caracterizam o futebol português. Estamos, é certo, novamente em vantagem, e pela improvável figura de Trincão, cuja dupla façanha de marcar em Alvalade me deixa tão surpreendido quanto desconfortável. Mas já aprendi há muito tempo que não importa a cor da camisola que vestem os heróis quando a Selecção Nacional está em causa. Sobretudo num jogo tão bipolar como este.

    Agora, deixem-me desligar este portátil por alguns minutos. Há uma certa liturgia que exige respeito: nos instantes finais desta eliminatória, que Portugal agora parece controlar, não posso estar dividido entre a escrita e o jogo. Afinal, como se sabe, as varandas, mesmo as mais épicas, são lugares perigosos. Basta um passo em falso para que a alegria se transforme num voo trágico rumo ao abismo futebolístico. E a mim, hoje, não me apetece nada cair.

    (goloooooooooo…. Gonçalo Ramos!!! 5-2! Está resolvido pelo antigo benfiquista!)

    Assim termina esta noite surreal na nova Da Varanda das Cinco Quinas, numa partida digna dos melhores (ou piores) argumentos cinematográficos: o drama inicial deu lugar à euforia inesperada. Da angústia à alegria, do pessimismo à festa, do Ronaldo bestial ao Ronaldo besta e de novo a bestial — a bipolaridade do futebol é também a bipolaridade das lusas emoções, reflectida neste espaço precário, algures entre o sofrimento e o triunfo, onde tanto me agrada estar.

    E agora que tudo está resolvido, olho com serenidade e gratidão para esta varanda improvável em Alvalade, percebendo que, afinal, talvez o futebol seja o reflexo da vida: um lugar instável e contraditório – e que venham mais noites assim, porque, no fundo, ser adepto (e jornalista pouco objectivo quando se trata de futebol) é isto mesmo: não saber como começa, desconhecer como termina, mas desfrutar sempre, apaixonadamente, do caminho até lá chegar.

  • ‘Flooding the zone’: o regresso da censura

    ‘Flooding the zone’: o regresso da censura


    Antes de mais nada, é preciso entender que este meu grupo de amigos com quem eu percebi que a informação americana estava a ser cuidadosamente manipulada são todos professores universitários mais velhos do que eu, as pessoas inteligentes em quem eu confiava para discutir as minhas ideias e a minha forma de expor em público as questões mais controversas. São pessoas que ainda hoje seguem as notícias, que ainda hoje se indignam[1], e que ainda hoje me mandam clips dos newsgroups que subscrevem[2] sempre que lhes parece que é bom que eu saiba. À excepção do Jim, que é republicano e gosta de falar comigo não só para me picar, mas sobretudo porque se queixa de já não existirem republicanos inteligentes desde que apareceu o Trump[3], que ele abomina, os outros três são democratas. Um democrata americano é mais ou menos o equivalente de um social-democrata europeu, a palavra socialista nem se pronuncia, mas, sob a pressão da alarvidade desta presidência, estão os três a ficar cada vez mais liberais – sei lá, mais parecidos com o Mário Soares quando saiu do comboio depois do 25 de Abril.

    Na América nunca se diz de ninguém que é comunista. No tempo de Edgar J. Hoover, que fundou o FBI e o dirigiu durante 38 anos, houve muitas pessoas que foram perseguidas, sabotadas, assediadas, sabotadas, chantageadas, e presas, através de vigilância ilegal, ilegal, escutas telefónicas, e roubos, como parte da caça aos espiões e comunistas.  Morreram pessoas na cadeira eléctrica por causa de acusações destas, como o casal Rosenberg, vítima de um julgamento confuso entre os presidentes Truman e Eisenhower que culminou em 1953, quando Ethel Rosenberg tinha 37 anos e dois filhos pequenos, com o que é hoje considerado “uma história horrífica absolutamente bárbara[4]”. Também é extremamente perigoso seja quem for definir-se como radical. Foi este epíteto, sinónimo de anarquista no coração da democracia, que condenou à morte Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti em 1921, depois de um julgamento tão questionável que as testemunhas de defesa nunca chegaram a ser ouvidas[5]. Ou seja, a Land of the Free já passou por períodos terríveis de censura. E, de cada vez que a Sparky[6] disparava, o povo americano gritava de alegria. Só que isto aconteceu nos Estados Unidos do tempo de Estaline, quando se temia genuinamente que “os russos” deitassem bombas atómicas sobre a América – o tempo em que se vivia no medo, e o medo traz sempre consigo em grande potencial de histeria. Mas a censura caótica inventada por Trump é muitíssimo mais perversa do que todas as que o antecederam: consegue iludir até os seus adversários mais inteligentes.

    A Tracy chamou a si a tarefa ingrata de ensinar aos seus alunos de primeiro ano, acabados de sair do secundário, a arte de distinguir as notícias verdadeiras das fake news. Sabe que Trump tem vindo a impedir cada vez mais os jornalistas sérios de fazerem correctamente o seu trabalho: por exemplo, nunca responde às perguntas da CNN. Baniu a Associated Press das suas conferências de imprensa. Evita dize alguma coisa que faça qualquer espécie de sentido se as perguntas forem de órgãos dos media como o Washington Post, a Time Magazine, a NPR ou a PBS. Mas fala com gosto para os media próximos da direita republicana, pelo que são essas ideias que circulam com mais impacto entre o público americano. “Se quiseres ver notícias na televisão e estiveres a faze zapping,” diz-me a Tracy, “notas que muitas coisas não batem certo. Vezes e vezes sem conta, tens de ouvir o Presidente, que devia ser imparcial, dizer à CNN, ou a qualquer outro repórter com quem ele embirre, que se recusa a responder porque não gosta deles. O ALJAZEERA AMERICA[7], um excelente canal de notícias que se apanha com a maior facilidade em todo o mundo dado a quantidade de antenas que os seus fundadores puderam instalar no deserto, agora está permanentemente cheio de interferências. E depois, finalmente, aparecem aqueles debates, ou mesmo notícias, que tu já sabes que são da Fox[8]. E sabes logo, mesmo antes de ouvires, porque nestes canais todas as mulheres, sejam jornalistas sejam convidadas para opinar, são loiras. E este espectáculo das mulheres loiras – loiras e boazonas, como tu dizes – passa uma mensagem absolutamente tóxica ao público americano: sobre quem detém o poder, e quem detém a verdade. Agora experimenta explicar isto aos teus alunos, que são quase todos brancos, e maioritariamente loiros.”

    No entanto, naquela sexta-feira que vai ficar marcada a negro para sempre em todos os livros de História, nem a Tracy percebeu logo porque é que eu estava a vituperar com tanta raiva que – onde é que já se viu. Desde quando é que, num encontro de alto nível entre dois chefes de Estado, destinado a assinar ou não um tratado de colaboração cheio de cláusulas discutíveis, entram trinta jornalistas para a Sala Oval para assistir à conversa em directo? Desde quando é que esses jornalistas, que para já nem lá deviam estar, têm carta branca para interromper a conversa tensa dos Presidentes com perguntas parvas como a do fato e gravata? A Tracy interrompe-me, um bocado aflita: “Espera lá. Mas esse do fato e gravata não foi o Vance?”

    Em dois ou três minutos refazemos o puzzle. Nós vimos o que se passou. Os americanos viram o mesmo, mas filmado de um plano esquinado, e tão apertado que não permitia ver os jornalistas na sala. E agora já não podem ir tentar verificar porque a imagem integral já não está no ar: estão só meia dúzia de clips dos dois homens, com Trump a repetir que fez de Zelensky um homem muito poderoso, e assim como fez pode desfazer, até porque o outro nunca lhe agradeceu. E depois vê-se Zelensky a ser “expulso” da Casa Branca porque não agradeceu mesmo. E acabou. Há muitas maneiras de censurar a informação, e Trump foi o criador das fake news.

    O Jim foi o nosso Director de Projecto na época da clonagem de mamíferos, uns bons anos antes de nascer a Dolly, e nessa altura tivemos muito tempo para nos rirmos um do outro a respeito das nossas respectivas convicções. De cada vez que eu fazia toda a gente no laboratório rir-se às gargalhadas com mais uma belíssima descrição de grande detalhe ilustrativa de como os americanos eram uns parolos, ele tirava os olhos do microscópio onde estava a tirar os núcleos aos ovos e dizia-me, com um risinho maldoso, “Pois… se calhar devíamos ter pensado duas vezes antes de implementarmos o Plano Marshall[9], não é?”

    “Ó seu parolo, Portugal não entrou na Guerra, por isso não precisou do Plano Marshall.”

    Mas nesses tempos eu já nem ligava, porque tinha perdido a conta à quantidade de americanos, democratas ou republicanos, que quando eu os encostava à parede numa brincadeira qualquer me atiravam à cara com essa do Plano Marshall, como se a Guerra tivesse acabado ontem e o tempo a seguir ficasse parado. Aliás, a maior parte das pessoas nem nunca tinha ido a lugar nenhum da Europa porque diziam todos que era perigoso. Porquê? Foi o que me disseram. Há muitas doenças. Não há vacinas. Não se pode beber a água da torneira. Parolos. Eu já nem dizia mais nada. Ainda havia de ter que ouvir falar outra vez do Plano Marshall.

    Não estava à espera era que o Jim, na sexta à noite, pouco depois de me ver aparecer no Messenger, começasse a rir e dissesse, vindo de parte nenhuma,

    “Olha olha… o Plano Marshall!”

    Então o que era?

    Eu tinha começado a mandar vir sobre o Trump achar que a situação com a Ucrânia se resolvia directamente com o Putin, sem estarem presentes nem representantes da Ucrânia nem da União Europeia. E a graça toda, para o Jim, era a União Europeia. Não era só que o Trump, perante os americanos, não nos ligasse absolutamente nenhuma nem nos considerasse qualquer espécie de parceiros em qualquer espécie de frente, falando sempre como se nem sequer estivéssemos na NATO. Era pior. Era que, quando falava do armamento da União Europeia para apoiar a Ucrânia, a única coisa que o Trump dizia era que, assim como assim, o armamento que conseguíamos juntar para apoiar a Ucrânia era absolutamente ineficaz perante o poder do armamento russo. Mas, para nós, já estava a tornar-se, e ia tornar-se cada vez mais com o tempo, um dívida de tamanho tal que… que… que… (estas eram as partes em que o Jim parava para rir)… que no final nós não teríamos outro remédio senão virar-nos para a América para pedir, desesperados, que nos concedesse outro… outro… outro… (e agora o Jim ria cada vez mais)… “outro Plano Marshall, Clara! E sempre que eu oiço isto lembro-me de ti, e desato a rir. Pelo que te estou muito grato, porque aqui no South Dakota a pessoa não tem assim muitas razões para rir!”

    Jim, estás a gozar. Só podes.”

    Não estou. O gajo está sempre a dizer que a União Europeia vai acabar por ter que pedir-nos outro plano Marshall!”

    Lá acabámos por nos entender. O Trump diz isto ao povo americano mais do que uma vez por semana, é verdade. Aliás, ao que parece, é a única coisa que lhe diz sobre a União Europeia. Mas diz em entrevistas para pequenos jornais locais, para pequenas rádios estaduais que mal se detectam, os únicos microfones com maior audiência que lhe repetem essas palavras são os dos radio-shock jocks[10] como Howard Stern, todos assumidamente de direita, que toda a gente sabe que tanto poderiam estar a inventar aquilo como a repetir uma afirmação autêntica do Presidente – ou então são os dos Evangélicos, que até já falaram da Europa a implorar outro plano Marshall à América por causa das suas despesas com a defesa da Ucrânia num recente comício em Timber Lake, perto da propriedade do Jim.

    Finalmente, já muito tarde para mim, mas para eles não, consigo falar com o Dick.

    “Sabes o que é que isto tudo me lembra?”, pergunta-me ele, quando consegue, por fim, parar de bradar impropérios sobre a pouca-vergonha do espectáculo dessa tarde. “Lembra-me aquele filme de extra-terrestres que os nossos filhos adoravam quando eram adolescentes e que da primeira vez nós caímos no erro de ir os dois ao cinema ver com eles, acho… acho que se chamava só mesmo CHAOS, não estás a ver? Os Extra-terrestres alimentavam-se do caos para sobreviver e para procriar, só vinham à Terra pôr um ovo e depois iam-se embora, mas para que isso fosse possível precisavam de criar o caos a toda a sua volta… e iam criando cada vez mais caos, e destruíam tudo e absorviam o  caos por uma espécie de exoesqueleto e atrás deles não ficava nada… até que punham o tal ovo e partiam… e via-se a Terra da perspectiva deles, ao longe, toda dizimada mas ainda com grandes zonas azuis e verdes… e depois via-se o ovo a rachar e uma pata igual às outras a sair lá de dentro… que ia de certeza criar mais caos… e assim por diante. As pessoas tentavam tudo para resistir, mas era inútil, o mundo vivo não resistia ao caos.”

    “Que horror. Eu fui com vocês ver uma coisa dessas?”

    “Foste pois. Numa de Mãe, não é? Aquelas coisas que tu fazes.”

    “Tudo bem, osso ter ido. Mas não vi o filme. Devo ter estado quase todo o tempo de olhos fechados, porque não suporto esse género de porcarias. Já sabes como é. Depois tenho medo à noite.”

    “Pois, mas é o que o Trump anda a fazer. Deliberadamente. Diz uma coisa num dia, e o seu oposto no outro, e mente com quantos dentes tem na boca sempre que for preciso. Se calhar foi ele quem fez do Zelensky um homem muito forte? Alguma vez? Um homem que tomou posse no fim de Janeiro? Pelo amor de Deus, se alguém fez o Zelensky tão forte quanto possível foi o Joe Biden! Mas o Trump fala, sistematicamente, como se o Biden nunca tivesse existido. E é assim mesmo que os americanos começam a sentir-se. O homem faz batota em tudo, baralha tudo, já estamos a passar pela vergonha de ser a China a dizer que está a lutar pela sua grande prioridade de manter a ordem e a estabilidade no mundo, e as pessoas já nem percebem que estão a ser enganadas. Já pensaste bem nos minerais raros? O Trump fala deles como se fossem a coisa de que o americano médio mais precisa para melhorar a sua vida, e ainda por cima fala deles como se estivessem já para amanhã! A sério, Clarinha, eu sei, tu sabes: uma mina daquelas, em tempo de guerra, demora no mínimo dez anos a construir. Põe a América nas mãos da China, porque só os Chineses é que têm a tecnologia para exploração destas minas. E uma grande parte da mina vai acabar em território russo, e achas que os russos vão fazer o quê, colaborar… ou pilhar? E tudo isto é o sonho de um homem de 78 anos que adora exibir-se, pavonear-se, gritar, saltar, ou seja, parece que vai ter um enfarte a qualquer momento. E esta táctica do caos, da forma como ele a usa, vai enganá-las cada vez mais, porque já ninguém tem paciência para pensar.”

    “Olha lá, ao menos, logo a seguir à saída do Zelensky, houve um congressista republicano que escreveu no seu Facebook “I am ashamed of being na American today.” E recebeu logo dezenas de likes, todas de outros congressistas republicanos. Não foi?”

    “Foi?”

    A notícia não tinha passado em nenhum noticiário americano.

    “Mas pronto,” continuei eu. “Apesar de tudo, aquela indecência teve outras consequências positivas. Em vez de se limitar a ser neutro e a receber cimeiras, o Erdogan já anunciou que as Forças Armadas turcas estão prontas para patrulhar toda a extensão da fronteira Ucrânia/Rússia que ficar definida nestes acordos, no sentido de manter a paz, evitar abusos, e impedir mais transgressões invasivas. Certo? Era um papel muito chato que ainda ninguém se tinha oferecido para fazer, e olha: não me parece nada que o Putin queira meter-se com os turcos. Certo?”

    Esta notícia também não tinha passado nos noticiários americanos.

    “Também nós temos a nossa longa e feias história de censura,” suspira o Dick. “Basta pensar no Edgar J. Hoover e no Kennedy. Ah, pois, e na Marilyn. Estás a ver? Nós nunca saberemos quem matou estes dois, mas sabemos que a CIA sabe. Agora, com o Trump, a táctica principal é outra. Basicamente, chama-se FLOODING THE FIELD.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] A maior parte dos americanos não se indigna com nada desde a Guerra do Golfo. Os apoiantes de Trump acham tudo muito bem e não querem saber porquê, e os seus detractores já nem seguem as notícias para não se irritarem mais.

    [2] Isto, na América, é uma actividade absolutamente louvável. A maioria dos americanos engole pacificamente todas as fake news que possam aparecer nas redes sociais, enquanto outros tantos se informam do estado da nação seguindo o trabalho instável dos comediantes.

    [3] Eu e o Jim tínhamos alguns pontos de total acordo em comum. Éramos os dois únicos católicos do laboratório, o que fazia de nós as duas únicas aves raras que se manifestavam constantemente contra a pena de morte. Na segunda candidatura Clinton/Gore eu teria votado neles se fosse americana, obviamente – mas tanto o Jim como eu tínhamos um fascínio que só partilhávamos um com o outro pelo candidato republicano, um sujeito vindo do Kansas, como o Jim, exactamente com o mesmo sotaque que o Jim tinha, e ainda por cima com o mesmo sentido de humor. Depois de perder graciosamente para os democratas dedicou-se a ganhar imenso dinheiro em torno do lema “nunca consigo ganhar!”. Por exemplo, ia a guiar pelo meio do coração deserto do Kansas, parava para pôr gasolina, mas eles não aceitavam VISA, só aceitavam MASTERCARD. Dole virava-se para a câmara, encolhia os ombros, fazia o seu sorriso irónico, e repetia o estribilho “I just can’t win” – com o sotaque igualzinho ao do Jim. O Jim e eu desatávamos a rir, e os outros diziam-nos que não batíamos bem. Uns anos mais tarde, Bob Dole foi a figura de lançamento do VIAGRA na América – com a frase “So you thought I’d never win, huh?!” Eu já estava em Harvard, mas liguei logo ao Jim. Bastou-lhe ouvir a minha voz para nos desatarmos os dois a rir…

    [4] Anne Saba: “ETHEL ROSENBERG: A COLD WAR TRAGEDY”:

    [5] Os dos emigrantes italianos, chegados aos Estados Unidos em 1908, foram apanhados numa rusga subsequente a um assalto a uma fábrica e sapatos a 15 de Abril de 1920 no Massachusetts. Sempre protestaram a sua inocência. O filme SACCO AND VANZETI, com música de Enio Morricone e uma canção final imortalizada pela voz de Joan Baez, repõe a verdade sobre a manipulação do julgamento

    [6] Nome colloquial para a cadeira eléctrica.

    [7] Situado no Catar e com correspondents em todo o mundo, o canal tem dois escritórios principais, um em Doha e outro em Londres.

    [8] Todos os noticiários da Fox são de direita, e, portanto, amigos de Trump.

    [9] Baptizado com o nome do Secretário de Estado dos EUA George Marshall, o Plano Marshall foi o principal plano de apoio dos Estados Unidos para reconstrução dos países aliados da Europa depois da II Guerra Mundial. Em valores de 2020, teria correspondido a 132 bilhões de dólares.

    [10] Esta arte de chocar toda a gente pela radio tornou-se d tal forma popular que até já tem uma entrada própria no Cambridge Dictionary: “Um radio shock jock é uma pessoa que apresenta um programa de rádio em que frequentemente diz coisas que não são consideradas aceitáveis pela maioria das pessoas.” Howard Stern ganhou a sua coroa de gajo mais nojento da rádio depois e uma longa linhagem de percursores, como Rusty Humphries ou Mancow Muller. Ao pé deste género de gente, artistas de choque como Rush Linbaugh, vindos da extrema-direita para colonizarem a rádio, a televisão, e até a literatura, são apenas isso mesmo: verdadeiros artistas.

  • Notas do diário

    Notas do diário


    CERTIFICADOS I Todo o trabalho tem o seu saber. A certificação de um ofício (e o estudo com aproveitamento) é uma forma de arrumo. Se não houver batota, de separar o trigo do joio. Ora, exerci o ofício de jornalista entre 1991 e 2016 sem nenhum diploma, por tal não ser imperativo, letra de lei.

    Fiz o tirocínio com mestres (sem cursos de Jornalismo) e vali-me de uma vontade e à-vontade de contar histórias que me acompanham desde menino e moço. De então para cá sustento-me a guiar montadas e a pé a fazer o que sempre fiz: contar histórias. O critério é idêntico: seriedade e atenção plena ao interlocutor. Escrever livros é mais do mesmo. Podia ter cursado Letras ou Turismo. Poderei ser forçado a tal se assim me for exigido, tal como um dia tirei a certificação de técnico de exercício físico e uma especialidade em boxe, estas obrigatórias por lei para ser remunerado na actividade de PT.

    Não me encanitam os auto-didactas. Só me dá espasmos no esófago a concorrência desleal, a patranha, o cinismo do bom “colega” ou a exclusão boçal de quem dá o litro por fazer bem o Bem, que é justificar o valor recebido pelo serviço. Vale o raciocínio para os clientes, que sejam gratos pela dedicação ao que lhes é servido de bandeja.

    MIGRANTES I Lido todos os santos e profanos dias com migrantes. Ou melhor, imigrantes, pois são oriundos de lugares fora do burgo lusitano. No ramo dos tuks há marroquinos, argentinos, argelinos, bangladeshis, paquistaneses, indianos, brasileiros, angolanos, guineenses, cabo-verdianos, espanhóis de várias procedências, franceses e até um dissidente da América de Trump. Deve haver mais, mas não os contei. Também há famílias inteiras de ciganos no activo, sendo este um ramo da mercância de rua onde têm atávica experiência. Este melting pot dá um colorido ao já de si garrido andar das “carruagens”. O que leva os emigrantes a instalarem-se, dito por todos à uma, são os euros. E uma certa paz lusitana.

    No ramo paralelo dos carteiristas é esta mesma paz mansa que atrai. Afinal são detidos mas quase nunca deportados. Portugal acolhe e ao acolher sem crivo, encolhe. Aposto o dedo mindinho esquerdo em como no ramo dos tuks nem dez por cento dos habibis estudam a língua nativa, a História (onde também pulularam califas) e se convertem como apaixonados camonianos. Os camones e as suas carteiras aliviadas são o cânone. Pespegar um dichote qualquer e siga a Marinha. Ligar a estereofonia, o luzeiro e adejar as flores artificiais em troca de verdinhas. E ala pois Alá é grande. Por outro lado, deve ser tão mau o panorama de onde vêm que se sujeitam à diáspora. Um ou outro já emborca pastéis de bacalhau, bojecas e não arrota. Só postas de pescada, mas essas são toleradas porque o turista é pouco exigente e acha graça a passear por Lisboa como se andasse na Tailândia.

    OS DONOS DISTO TUDO I Quem manda no burgo? Vamos lá ver: Há o Estado e as suas instituições, corporações e companhias limitadas. Dado o passivo, o Estado obedece à UE, e aí mandam a Alemanha e a França. Costa late para a caravana passar. Voltemos ao burgo: Opus Dei, Maçonaria, Igreja, as sete famílias do grande capital e os seus contributos partidários. Os penetras novos ricos também ditam regras ao açambarcar o seu quinhão.

    A CS obedece ao Capital. Há que a comprar. Há as polícias e exércitos, a soldo e mando do Estado e das suas governações. Depois, há as ilusões dos outros mafiosos de que ao terem negócios obscuros e amealharem os seus milhões (lavados ou deslavados) mandam através da lei da bala e do suborno. Plata ou plombo. Há umas aves raras, Agostinhos da Silva e Joãos Césares, e um punhado de lúcidos insubmisos, que mandam sem mandar. Nem que seja pó caralho. A “melhor” forma de exercer e aplicar o poder é manter na ignorância, subjugar pela pobreza, esconder as verdades às marionetas e alimentá-las com circo e patranhas.

    PRÉ CAMPANHA I Estamos naquele impasse de venha o Diabo e escolha. Negar a existência do Mal, é imoral. Quanto ao Bem, entende-se o dar a mão à família e aos amigos. Que se o faça na Política é humano, mas não deixa de ser desfaçatez e abuso de poder. Entre a Camorra e qualquer organização mafiosa e os clubes, seitas e partidos a diferença está no método. Mata-se na mesma, se o inimigo faz dano. Recorre-se ao jogo sujo, à exposição de toda a sorte de actos e factos, com recurso à mentira, à coacção e agora à IA, esse recurso de cariz gótico. Valha-nos Deus se mais nada valer.

    POLÍTICOS I Hannah Arendt escreveu um ensaio sobre A Política e a Mentira. Como acreditar na política e em políticos? Ver para crer é um bom princípio. O que devia ser uma arte nobre é um lodaçal de falta de seriedade. A ideologia é de somenos (cada um vota e come o que gosta). Grave, gravíssimo, é o impacto da política na vida real e a dificuldade em encontrar bons políticos e políticos bons neste burgo mal frequentado. Um mau carácter pode ser um bom político, mas só para quem nele se filia, dele tira partido e lhe lambe as botas. O voto é o remédio da Democracia. É rara a Democracia que não redunde numa oligarquia. Tal como nenhuma Ditadura é boa. Que fazer? Estudar, estudar os programas, estudar os políticos, escrutinar e dar o voto em consciência. Mesmo em branco, o voto é relevante. Venham as eleições.

    COMUNS MORTAIS I No geral acho que sou um tipo porreiro. Por vezes, a roçar o ingénuo. Se me pisam os calos sou capaz de dizer qualquer coisa na justa medida do ataque. Porém, aceito criticas bem urdidas. Isto, a propósito de sacralizar os artistas. Exemplos comuns entre nós são as azias, as purgas e o comunismo do Nobel Saramago, que limpou o DN e as dedicatórias nos livros à esposa Isabel. Ou o cinismo e crueldades de Agustina. A arrogância de Lobo Antunes e de outros quinhentos. Os pavões e pavoas.

    A distinção entre o homem e a obra é um tema de peso. Neruda e a rejeição da filha macrocefala. Picasso, o misógino. Pelé, o promíscuo. Maradona, o drogado impostor e putanheiro. Celine e o anti-semitismo. Em todos os artistas há paradoxos, egos hipertrofiados e indomados, sobressaltos, causas por vezes radicais e injustas. O desgosto pode ser um laboratório para o mal. Virgínia dizia que não trocava um bom coração por uma cabeça dotada mas retorcida. Ou como dizia o tio do Peter Parker, com grandes poderes vêm grandes responsabilidades.

    CONTEÚDOS I Cada um de nós é uma consequência de aspectos, do mapa astral ao lugar (família, país) onde nasceu. Há aspectos marcantes como desaguar onde haja livros e o gosto por ler e dialogar. No meu caso uma avó professora e um pai alfarrabista.

    A minha avó era franciscana e purista com a expressão da linguagem. O meu maior orgulho era escrever redacções sem erros. A avó oferecia-me um docinho quando a redacção vinha limpinha. Fiquei como o cão de Pavlov. A salivar depois de dar ao gatilho. O meu pai já leu milhares de livros e tem o condão da filosofia. Quando falamos do rescaldo dos jogos de futebol é de xadrez e da arte da guerra que se trata. Um sistema de crenças deve ser revisto e rebatido. Embora defenda os Acratas, leio toda a sorte de ideologias, até o Mein Kampf e a cartilha de João de Deus. Há dias estóicos e outros tomado por Epicuro. Ou outros em que harmonizo o dever e o prazer. Ontem vi o filme sobre o George Foreman. O corpo pode ser forte, o coração de leão, mas as vitórias estão na cabeça.

    PAX, PAZ, PÁS I Levo 53 anos e alguns dias nas pernas, ou seja, tempo suficiente para dissertar sobre a paz como uma Miss Mundo. Desde o instante da inseminação na praia da Ursa até escorregar pra fora do loft uterino e ser instalado num par de berços entre a Coronel Marques Leitão e a Leite Vasconcelos conheci a paz da placenta. Talvez. Não sei nem nunca vou saber. Sei do dia em que realizei morar numa casa de possessos e na rua valer a lei do mais forte. O Cabanas, por exemplo, mais velho e mais encorpado, a jogar à bola dava cacetada de três em pipa. O Bernardo um dia espetou-me um soquete assim do nada durante uma jogatina (talvez por não dar tantos toques na chincha). Não reagi. Até porque gostava dele e da sua postura. O Joca, um puto estúpido, cravou-me um x-acto na palma da mão esquerda e quase me deixava deficiente. A ciganada andava sempre à coca dos nossos pertences e de nos aviar. Um dia, num raide, levei uma pedrada num olho. Hoje, dá para rir, eu aos gritos que tinha ficado cego. Durante anos comi mais do que aviei. Não entendia a violência. Em casa, por dá cá aquela palha, levava solhas, socos, carolos, insultos. Na rua, tinha que gramar com caceteiros e larápios.

    Tenho impressão que o trauma de ter partido o nariz num choque brutal me coibiu de pelejas mais acesas. A primeira vez que puxei da culatra foi à saída da catequese, quando um gajo me gozou e por instinto lhe preguei um directo. De tal ordem, que daí em diante passou a ser meu amigo ou coisa parecida. Na adolescência tive umas cegadas. Um dia, uns galfarros apalparam a Célia no comboio e inspirado no Balboa distribuí um arraial. Safei-me pelo inesperado de fazer frente a uma mão cheia de chico-espertos. Na faculdade repetiu-se a cena do conflito. Um idiota, que era o Artur, levou uma bolachada por conta de um rol de provocações. Em casa, levei carolos e insultos até quase à idade adulta. Depois, havia a violência psicológica. A rejeição e o rebaixamento. Imagino ser judeu, preto, cigano ou outra coisa qualquer. Ter ido à guerra. A escrita cedo ocupou o lugar da revolta. Meti-me no boxe para saber bater em caso de. Tudo dava azo a uma certa agressividade. Ser do Sporting, por exemplo. A paz é uma miragem. Depende de como reagimos ou não.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

    N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • Barcelona 1.3

    Barcelona 1.3


    Em Barcelona estou — e me confesso. Disseram-me, certo dia, que a cidade é uma festa contínua de Cultura e Futebol, e não duvidei. Tirei uns dias, como quem suspende o tempo entre trabalho e férias, com o fito de fazer Cultura — da verdadeira, a que se procura sem patrocínios nem favores — e, claro está, de ver futebol, esse último teatro das multidões.

    Agora mesmo, escrevo-vos sentado no Estadi Olímpic Lluís Companys, em Montjuïc, onde joga provisoriamente o Barça, que ficou sem Camp Nou enquanto o velho colosso se refaz, como se em Espanha até os estádios precisassem de renascimentos cíclicos. Aviso já que foi tudo pago pelo meu bolso, avião e estadia – que isso de viagens pagas para ver a bola, já sem falar em avenças, são coisas para o Montenegro.

    E foi justamente nesta bancada da imprensa, depois de ter visto a correr a ala gótica, medieval e barroca do Museu de Arte da Catalunha, entre turistas que não percebem a diferença entre um fora-de-jogo e um Lucas Cranach el Viejo, que me ocorreu uma ideia que se me afigura menos absurda do que parece à primeira vista: Portugal deve muito à Catalunha. Mais concretamente, devemos aos catalães a nossa Restauração de 1640. Se não fosse a revolta catalã que rebentou em Maio de 1640 — a dita Guerra dels Segadors, que os historiadores portugueses tão pouco lembram —, Portugal teria tido enormes dificuldades em sacudir o jugo da monarquia dual dos Filipes.

    (E começa o jogo; tive de contornar o cordão de adeptos benfiquistas, ladeados por duras colunas de guardas pretorianos da polícia de choque, e lá me enfiei estádio adentro, não sem dificuldade de encontrar o meu lugar; em todo o caso, encontrei o Lucas, o brasileiro que, no Barcelona, se dedica a escrever sobre as façanhas do Raphinha.)

    Continuemos com a História. Enquanto os exércitos castelhanos tentavam domar os rebeldes catalães, a conspiração em Lisboa aproveitou esta janela aberta. E lá se mandou um sicário às ordens dos Filipes, o Miguel de Vasconcelos, janela abaixo, e como um exército castelhano andava ocupado em manter Barcelona sob controlo, nas lusitanas terras pôde João IV ser proclamado rei e organizar a defesa.

    (Pronto! E por falar em defesa: a do Benfica já levou o primeiro, logo aos 11 minutos, pelo inevitável Raphinha, o desgraçado ex-sportinguista que, de repente, começou a meter bolas umas atrás das outras ao Trubin.)

    Enfim, sem aquela revolta catalã, os catalães estariam agora a falar catalão, uma língua que ninguém entende, a não ser eles — e eu estaria a escrever esta crónica em castelhano, que desconfio que, ao longo dos séculos, ficando o território de Portugal integrado em Espanha, o português acabaria reduzido a uma espécie de mirandês. E os brasileiros, como o Raphinha ali em baixo, em vez de ‘oi’ andariam a dizer “hola”.

    Mas a História é uma grande mestra de ironias, e não dá sem depois cobrar. A Catalunha ficou presa à Espanha, renegociou autonomias, foi castigada, renasceu, tornou-se a mais rica das regiões espanholas, depois tentou a independência e falhou, mas sempre com a altivez de quem se crê melhor do que o vizinho. Já Portugal, que fez do Atlântico o seu caminho, arrisca-se agora a não ser mais do que uma Galiza com nome próprio, ou uma Estremadura com praias. Digo-o sem despeito, mas com inquietação: há algo na comparação entre a Catalunha e Portugal que me obriga a reflectir.

    (GOLOOOOOOO! Otamendi, na marcação de um canto: renasce a esperança…)

    Este golo — e mesmo uma improvável, nesta altura, reviravolta na eliminatória — não nega uma evidência: a Catalunha, sendo uma região, perdeu a esperança de ser um país; e Portugal, sendo um país quase milenar, arrisca sempre a ser uma mera região, quase ultraperiférica numa Europa de burocratas.

    Vejam-se Lisboa e Barcelona: as infra-estruturas, os projectos económicos, a ambição industrial, a cultura, os majestosos espaços públicos, a dinâmica social — aliás, logo que cheguei, no domingo passado, o dinamismo das manifestações fez-se sentir, pela noite adentro. Mesmo sabendo-se que Barcelona é um ponto turístico de excelência e de abusos — que se há-de fazer se se tem Cultura, monumentos, gastronomia, praias, variedade de espaços, rede de transportes eficiente? —, a capital da Catalunha projecta-se como uma cidade global.

    Já Lisboa cinge-se a disputar com o Porto o título de melhor cenário para selfies e pacotes turísticos. E se os catalães olham para Madrid com desconfiança, os portugueses parecem olhar para Bruxelas com submissão, como se fosse ela a nova corte filipina, de onde se esperam verbas em vez de se afirmar soberania.

    (Olha-me esta! Golo do Barcelona, com a defesa do Benfica a deixar que o miúdo Lamine Yamal apanhe uma bola de um livre mal marcado, flicta para a esquerda e atire a contar para o cantinho do Trubin…)

    Resta-me, portanto, conformar-me com este resultado. Ou resultados: o do futebol e o de Barcelona se impor a Lisboa — que o fair play não deve existir somente na ludopédia.

    Mas vamos lá equilibrar isto, embora tenham sido os nossos antepassados a legarem-nos essa vantagem. Os catalães, coitados, têm um idioma próprio que ninguém entende, enquanto a língua portuguesa é um império cultural de 265 milhões de viventes, se bem que quase sempre alheios à origem da fala. Mas, confesso: falta-nos agora aquela pulsão de querer ser maiores do que parecemos ser, sem pedir licença a ninguém. Até no futebol sinto isso, quanto mais na vida social e política de Portugal. Aqui, por exemplo, em Montjuïc, sinto um estádio velho, como o Estádio Nacional no Jamor, remendado para servir de casa temporária ao Barcelona, mas cheio de orgulho catalão. Em Portugal, quantas vezes parece que nem casa há?

    (Mais um do Raphinha! Mas que é isto? 3-1 e nem sequer chegámos ao intervalo. Agora, nem com um milagre…)

    E todavia, não quero esquecer 1640, porque aí vencemos: eles tentaram largar Madrid, e falharam; nós largámos e ganhámos em definitivo esse direito depois da estrondosa vitória na Batalha dos Montes Claros em 1665. Foram precisos 25 anos, mas vencemos!

    (Intervalo… descansemos.)

    Portanto, a Catalunha falhou, e Portugal conseguiu, embora ache que estejamos a perder a soberania aos poucos com uma Europa de políticos oligarcas que se perpetuam em torres de marfim em Bruxelas. Mas o relógio não pára…

    E assim aqui estou com esta Da Varanda de Barcelona, especialíssima, não como quem disseca e profetiza desgraças, mas como quem regista o que vê: no relvado, os jogadores do Benfica mostram-se sobretudo resignados, como quem já só cumpre um protocolo diplomático antes da rendição. Há um corpo presente em campo, é verdade, mas falta a alma.

    Esta talvez seja a mais dolorosa metáfora para Portugal, enquanto, lendo as notícias de Lisboa, o Governo de Montenegro definha no Parlamento. Estamos, existimos, marcamos presença no concerto das nações — e na Liga dos Campeões —, fazemos discursos e chutamos umas bolas, mas, no fim, parecemos ter perdido a capacidade de ganhar ou, pelo menos, de lutar por algo mais além do aceitável ou do confortável.

    Bem se pode dizer que a Catalunha e Barcelona estão sempre a falhar, mas não desistem; e isso é, talvez, o que os faz serem vencedores no futebol. Não desistiram em 1714, quando a cidade caiu às mãos dos Bourbons; não desistiram em 1939, quando o franquismo sufocou os seus gritos de autonomia; não desistiram em 2017, quando os tribunais e a polícia impediram o seu referendo de independência. Há, aqui, uma persistência que impressiona, e que só se explica por uma auto-estima colectiva que, mesmo na derrota, os mantém de cabeça erguida.

    E nós, portugueses? A nossa auto-estima arrumou-se na gaveta dos Descobrimentos, e nem sequer se encontra num museu, porque nos envergonhamos de um passado colonialista, como se não tivéssemos nascido de povos colonizados e colonizadores. Nem o nosso passado nos vale no presente.

    (Lá em baixo, o Barça desacelerou, e o Benfica porfia, mas sem grande garra; a eliminatória está decidida.)

    Mas não se pense que esta crónica é um manifesto catalanista. É, antes, um manifesto português, escrito a partir de Montjuïc, numa bancada fria, a olhar para um jogo já perdido. Mas se há coisa que aprendemos em 1640 é que há momentos em que, mesmo sem recursos, sem apoios externos e com probabilidades mínimas, é possível mudar o rumo. Mas não será hoje… Ou melhor, não foi hoje, porque o árbitro acaba de dar a partida por terminada após dois minutos de descontos. Valeu pela visita…

    Barcelona continuará a fazer o seu caminho, com ambição e orgulho. Lisboa — e o Benfica — precisam de acordar, de uma vez por todas, para o facto de que não basta viver da memória, dos discursos ou das verbas europeias. Um país e um clube não se sustentam apenas com boas intenções e cartões-postais. E se quisermos, como em 1640, ser donos do nosso destino, talvez seja tempo de voltarmos a acreditar que o impossível não é uma sentença, mas um desafio. E trabalhar um bocadinho com mais afinco e determinação.