Categoria: Crónica

  • O cabelo dos futebolistas como espelho da masculinidade mediática

    O cabelo dos futebolistas como espelho da masculinidade mediática


    Fade in

    Ao contrário do que gostariam os cronistas desportivos, os cabeleireiros de bairro e os comentadores que ainda dizem “à homem”, o cabelo dos jogadores de futebol nunca foi apenas cabelo. Foi sempre mais: disfarce, bandeira, extensão da psique ou mesmo assinatura visual. E, por vezes, tudo isso ao mesmo tempo — dependendo da década, da câmara e da audiência.

    Num jogo onde a cabeça serve tanto para pensar como para marcar golos e fazer cortes, o cabelo tornou-se palco, cortejo e camuflagem. Nunca inocente nem neutro. Porque a verdadeira disputa, como se sabe, já não é apenas com os pés. O cabelo a todos os níveis e em qualquer circunstância é sempre importante. Então no futebol…

    Durante muito tempo, a cabeça do jogador era um território em teoria disciplinado. Sóbrio, previsível e funcional. Cortes curtos, milimetricamente higiénicos, que cumpriam o código de uma masculinidade silenciosa, sem adornos nem desvios. Era uma ética do cabelo contido — como se uma madeixa fora do lugar pudesse pôr em risco o equilíbrio táctico da equipa.

    Bobby Moore, Beckenbauer, Eusébio: homens cuja relação com o cabelo era a de um técnico de equipamentos com a gravidade. Nada se arriscava. O corte era um contrato com a virilidade operária. Nenhum deles diria a palavra “estilo” sem tossir.

    Até que veio a explosão laranja — e com ela, o primeiro cabelo verdadeiramente subversivo. A selecção holandesa dos anos 70 levou ao relvado não apenas um novo sistema táctico, mas também uma estética que parecia saída de uma sala de ensaios da Island Records. Cruyff e os seus companheiros jogavam como se filosofassem e penteavam-se como se fossem sair numa capa dos Pink Floyd. A primeira equipa sem duvida a funcionar no colectivo a esse nível.

    Cabelos compridos, franjas despreocupadas, um toque de boémia estudada. Ali, a revolução já não se fazia apenas nos pés: fazia-se nas cabeças. Jogar bem e parecer alguém que podia recitar Rimbaud. A franja como armadilha conceptual. Não era apenas uma equipa com cabelos compridos: era uma estética colectiva em revolta contra o formalismo higiénico do futebol europeu da época.

    O cabelo era parte do sistema: a fluidez táctica do “futebol total” encontrava eco nessa fluidez  dos penteados que pareciam só fazer raccord com as micto revoluções de costumes da época mas o futebol até aí era visto como conservador e paladino dos regimes políticos.

    Enquanto os alemães tinham um Paul Breitner arrojado e os ingleses um George Best bêbedo e amalucado mais uma ou outra excepção, a laranja mecânica sem dúvida era também laranja psicadélica. Um movimento capilar táctico que antecedeu em décadas o conceito de branding visual, só que com charme, irreverência e zero gel, influenciando alguns jogadores portugueses como Victor Baptista do Benfica— o do brinco.

    Mas talvez o primeiro a fazer do seu cabelo e penteado um freak show  tenha sido mesmo George Best, que disse um dia que só tinha estado umas horas sóbrio na vida, mas que foram as piores da vida dele. Uma personagem especial.

    Já nos anos 80, o cabelo passou para outro plano. O futebol, transformado por televisões omnipresentes e contratos publicitários obscenos, descobriu o seu lado performativo — e o cabelo, outrora submisso, tornou-se símbolo de identidade mediática. Maradona foi o ícone perfeito dessa transição.

    A sua cabeleira não era penteada, era mais desalinhada ainda que certinha no arco. Um animal capilar, indomável, denso, insolente. Aquilo não era cabelo, era um manifesto com pernas e cocaína. Um acto de insubmissão. A cabeça de Maradona jogava o seu próprio jogo: um jogo de desobediência estética, de desordem gloriosa, de caos coreografado com talento de um anjo caído. Em Barcelona era conhecido como Pelusa Maradona.

    Os anos 80 foram também a década da franja curta à frente e do cabelo comprido atrás — o famoso mullet, corte de dualidade esquizofrénica.  Um penteado de fronteiras instáveis, muito usado por futebolistas sul-americanos e europeus, como se o pescoço tivesse vontade própria. Era o início de uma relação mais marcada entre masculinidade e estilo.                       

    Foi também a era do bigode e cabelo espesso, dos caracóis controlados a custo de mousse e dos cortes geometricamente desalinhados. A televisão a cores e os replays aproximaram as cabeças dos espectadores — e o cabelo teve de reagir, criar presença. Ainda não havia redes sociais, mas já havia replay em câmara lenta. E o penteado tinha de aguentar essa exposição a 24 frames por segundo

    A estética era uma mistura de virilidade televisiva e boémia moderada. Os penteados jogavam com alguma irreverência, mas sempre dentro de uma certa contenção: ousavam, mas não colapsavam. Paolo Maldini exibia um cabelo que oscilava entre o guerreiro grego e o galã de novela brasileira. Hugo Sánchez parecia aplicar laca com régua. O futebolista dos 80s ainda era, no fundo, um homem que queria parecer sério — mesmo quando se penteava como cantor de casino.

    Havia estilo, mas ainda não havia branding. Havia também vaidade, mas ainda não era bem um produto. O cabelo dos 80s era identidade, não se tratava ainda de mercadoria. A rebeldia vinha do estilo de vida — não do contrato publicitário. Era o último suspiro do jogador como ser humano quase privado.

    Depois os anos 90 aceleraram tudo. Aí é que foi um a ver se te avias  

    O cabelo dos futebolistas tornou-se uma espécie de carnaval forever, laboratório de estilos, catálogo de experiências com final infeliz. O futebolista já não se limitava a marcar presença no jogo: precisava de marcar posição na estética do tempo. Era preciso aparecer. E o cabelo passou a ser prova de vida, território de invenção e, muitas vezes, desastre programado. O ridículo deixou de ser risco: passou a ser método. Nunca a Isabel Queiroz do Vale tivera tanto trabalho, já para não falar do disparo de vendas do shampoo Vidal Sassoon tal a influência que começavam a exercer nos media.

    David Beckham elevou o processo capilar à categoria de fenómeno. Cada corte seu era um comunicado oficial. Da cabeça rapada ao moicano simétrico, do loiro platinado à franja calculadamente desalinhada, Beckham transformou a cabeça num outdoor rotativo.

    Era jogador, sim, mas também produto e figura de desejo. E o cabelo, respondia às exigências da indústria. A cada corte, um novo contrato com a fama. Beckham percebeu que, no futebol moderno, o talento dura 90 minutos. Mas a imagem, joga um prolongamento permanente. O estilo dandy choninhas estava na moda e agora já eram as séries tipo Marés Vivas a copiar o estilo visual de futebolistas. 

    David Beckham preconizou e encaixou no termo metrossexual que nem ginjas. Até parece que o termo usado pela primeira vez pelo jornalista Mark Simpson fora inventado para ele. Hoje é um termo pouco usado e substituído por muitos outros possíveis e cada vez mais refinados.

    O colombiano Valderrama será talvez o caso mais desafiante dessa estética que eleva os cabelos á condição de actor principal. Manteve sempre ao longo dos anos o mesmo estilo de cabeleira longa encaracolada mas estranha, sobretudo durante os democráticos anos 90. Uma loucura!

    Já no novo milénio, o cabelo tornou-se uma linguagem global. Uma mercadoria visual com gramática própria. Cristiano Ronaldo, Neymar, Pogba, Arturo Vidal: cada um com a sua assinatura capilar e com a sua identidade estrategicamente desenhada acompanharam a revolução chamada Internet que finalmente já era acessível a toda a gente. E aí a loucura foi total. Cabelos geometricamente rasgados, dégradés que pareciam obras de engenharia, colorações de laboratório. O futebolista já não era apenas jogador: era influencer, modelo, avatar. O cabelo deixou de ser natural — passou a ser curadoria.

    Neste cenário, jogadores africanos e latino-americanos transformaram o cabelo em afirmação cultural e política. Não era apenas estilo: era identidade em alta resolução. Das tranças fluorescentes de Taribo West às cristas neo-tribais de Cuauhtémoc Blanco, os cabelos tornaram-se gestos de presença. Contra a invisibilidade europeia, o excesso como resposta.

    O relvado tornou-se espaço de disputa simbólica. Havia uma rebeldia codificada em cada risco, em cada cor, ou em cada provocação capilar. Era também aí que se jogava o jogo — longe da bola, mas perto da história.

    Zidane, claro, fez o movimento inverso. A cabeça rapada talvez como recusa muçulmana. Um silêncio estético. Um apagamento deliberado da vaidade. A austeridade como posição ética. Não queria ser visto — queria ser compreendido. Mas foi com essa mesma cabeça, limpa de ornamentos, que desferiu a cabeçada mais célebre da história recente em Materazzi. Como quem diz: o cabelo pode não dizer tudo, mas a cabeça ainda pode falar. Um gesto como ruptura com o sistema da imagem?

    E ainda há o caso do Ronaldo Fenómeno — o único jogador que conseguiu fazer do cabelo uma piada internacional.

    No Mundial de 2002, deixou na testa um triângulo minúsculo e absurdo, uma provocação sem legenda, uma sabotagem simbólica que desafiou toda a lógica publicitária. Esse penteado ou lá o que era aquilo, não era bonito, nem coerente, muito menos prático e não fez moda. Era simplesmente um acto de nonsense. Um corte que parecia escrito por um surrealista bêbado sem dormir há dias. Um gesto dadaísta emitido em directo para três mil milhões de espectadores. E ninguém esqueceu porque a inutilidade, quando bem feita, é inesquecível. O filósofo espanhol António Escohotado disse um dia antes de morrer há três anos, referindo-se ao Fenómeno que já era presidente do Valladolid,  tratar-se sem dúvida de uma das pessoas mais inteligentes que tinha conhecido em vida.

    Foi uma surpresa agradável.

    Mas se os jogadores jogam com o cabelo, os treinadores jogam com a cabeça — literalmente. A estética  do treinador obedece a outra lógica: não quer bem seduzir, quer respeito. O jogador procura desejo, o treinador exige autoridade. E o cabelo, ou a sua ausência, é parte da táctica. Mesmo agora que são cada vez mais novos.

    Durante décadas, os treinadores preferiram a sobriedade capilar. Cabeças nuas, calvícies assumidas, riscas laterais discretas. A autoridade era incompatível com a vaidade. Guardiola, Sarri, Spalletti: carecas não por destino, mas por escolha estratégica. A superfície lisa como extensão de um cérebro onde a vaidade foi substituída pela geometria do pressing.

    Mourinho, por outro lado, criou um corte blindado à entropia. Cabelo sempre igual, sempre calibrado. Uma espécie de colete táctico para a cabeça — nem uma ponta fora de sítio, como se uma franja desalinhada pudesse pôr em causa a linha de quatro defesas. Muito militar. O seu cabelo diz muito do seu jogo.

    Mas nem sempre foi assim.

    César Luis Menotti que nos deixou à pouco, foi não só o arquitecto do futebol ofensivo argentino como o primeiro treinador rock’n’roll da história moderna do desporto. E foi campeão do mundo em 1978 com a Argentina, ainda que a jogar em casa e com uma vitória muito suspeita por 6 golos sobre o Peru sob uma ditadura militar de Videla. Mas isso é lance para outro penálti como dizem os filipinos.

    No entanto, via-se logo na cabeleira que o menino era diferente.

    Longe da austeridade militar dos seus pares, Menotti trazia um cabelo pop-glam ‘setentista’, comprido, ondulado, com entradas dramáticas mas sem abdicar do volume — como se tivesse saído directamente de uma jam session  dos Rolling Stones .

    Sempre com cigarro na mão, o seu estilo era uma antítese dos treinadores-furriel da época. Mais próximo de um poeta boémio do que de um gestor de balneário, Menotti fez do cabelo uma declaração de princípios. Um elogio à liberdade.

    O treinador que também havia sido jogador era magro, alto, desgrenhado e carismático — um pensador político do futebol com aspecto de guitarrista new age. E isso contagiava o jogo. Para ele, o futebol tinha de ser bonito, criativo, desobediente — e o cabelo, claro, dançava essa música.

    E há o caso do argentino Passarela que já nos anos 90 proibiu mesmo os jogadores da selecção de ostentarem cortes arrojados e instigava-os a não fazer a barba acreditando que assim a testosterona necessária para ganhar o jogo viria para o relvado sem passar pelo balneário. 

    Não resultou. 

    Hoje, com a moda dos transplantes capilares, o cabelo dos jogadores entrou na era da ficção clínica. Não se trata de questões de genética, mas talvez de investimento. Não é bem biologia. É mais tecnologia aplicada ao ego.

    De Istambul a Braga, de clínicas discretas a viagens com hashtag, os folículos são comprados como se fossem cláusulas de rescisão. O cabelo tornou-se prótese emocional. Uma negação da finitude. Até a calvície é agora opcional. O jogador moderno tem de ser completo: veloz, adaptável, resiliente  e esteticamente confiável até à ultima selfie.

    No fundo, o cabelo dos futebolistas é um campo de batalha simbólica, um espelho das ansiedades do tempo. É onde se negoceia o desejo, se encena a masculinidade, se mede o capital de atenção. Porque a cabeça, no futebol e na vida, está sempre em jogo. Quem controla o cabelo, controla o clique das câmaras. Quem domina a imagem, escreve o relato.

    Mas estranhamente o cabelo dos futebolistas nos últimos anos voltou a parecer-se com o dos primórdios. São quase todos iguais, rapado na zona da orelhas e do pescoço e depois um cabelo curto normalmente com risco ao lado a dar o volume. Eu diria, militarizado. Estranho. Provavelmente, tenha sido substituído pelas tatuagens e disso pouco sei.

    E talvez, em breve, vejamos o primeiro jogador com cabelo renderizado por inteligência artificial. Um penteado dinâmico, que muda conforme a intensidade do jogo, a emoção do público, ou a vontade do patrocinador. A cabeça como interface.

    E nesse dia pixelizado talvez percebamos que o último cabelo verdadeiramente livre num corpo aprisionado foi o de Maradona. Até aí o argentino foi diferente.

    Corte para fade

    Ruy Otero é artista media


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Artérias de Liberdade

    Artérias de Liberdade


    GUETOS FELIZES I Um libertário defende a LIBERDADE como valor supremo. A LIBERDADE termina onde começa a dos outros. Há um erro crasso na análise de um libertário. Anarquia não é rebaldaria. Simplesmente, o Acrata não aceita um Sistema só porque ele existe. Se existe e se revela disfuncional há que ser derrubado. O problema da eficácia da anarquia está na pobre harmonia de vontades (ineficiência da comunhão e comunicação) e de entre quem a defenda haja sempre um ou outro mais vaidoso, impetuoso e autoritário que queira sobressair. Mandar nos outros. Ora, eu não quero mandar nos outros, nem que mandem em mim. É como numa relação amorosa: só resulta se houver igualdade, bem como verdade e vontade de cooperar. Um amante do fascismo aprecia pôr a pata em cima. Ama a palavra conjugal que é pôr jugo. Nem tudo se resolve com o bom uso da palavra justa. Mas se porventura não há coincidência de pontos de vista, o caminho libertário é seguir a viagem solitário. Há guetos felizes.

    OS RUSSOS I Quando era chavalito dizem que um dia me apanharam a dizer spasiba e pajalsta e outras palavras em russo. O meu livro favorito era As Aventuras do Miguel Strogoff, o carteiro do Czar Nicolau. Antes dos vinte anos, li Pushkin, Yevtushenko, Gogol, Tolstoi, Dostoiévski, Tchecov, Ribakov, Bulgakov entre outros. Nunca os abandonei. Um dia, um bruxo vidente disse-me que antes desta reencarnação andei pelas estepes como médico de campanha. Gosto de casacos à cossaco. Tive duas filhas na Rússia tal como tenho agora. A minha primeira viagem foi à URSS. Estudei a fundo o comunismo e o anarquismo para me situar, tal como os liberais e fascistas e toda a sorte de ismos. Acrata fiquei, muito em parte graças ao meu preclaro tio Filipe. A mãe Rússia é fértil de prodígios. Nem vou nomear os músicos, compositores, escultores ou o Aranha-Negra. Estes são os russos que me interessam. Prefiro-os aos cobóis.

    1991 I Escapa-me o dia exacto, mas foi em Outubro de 1991 que desaguei na redacção do extinto Semanário com uma carta de Adelino Alves, meu vizinho de patamar do terceiro piso na Rua Coronel Marques Leitão, número 25, na altura professor jubilado e ex-director de O Dia. Tudo começou a ganhar forma no ano de 1990, quando no dia do meu aniversário me vi posto ao fresco da casa materna por ter atingido a maturidade. Fui recambiado para casa da minha avó Vessadas. Ou melhor, depois de andar uns dias a fazer contas à vida, foi na casa da minha avó Vessadas que encontrei refúgio até ter capital próprio para a independência. Tinha feito uns biscates nas vindimas e como estafeta de uma empresa de transporte marítimo, mas o Jornalismo chamava por mim. Avô materno jornalista, apesar de nunca o ter conhecido por ter morrido nos anos 50, infância e parte da adolescência a conviver com jornalistas (o prédio era habitado por jornalistas), mais o apelo inato de contar histórias, ditaram a escolha. Uns meses antes de recorrer a Adelino Alves, ainda fui bater ao ferrolho do tio Balsemão, o Rupert Murdoch lusitano, meu conhecido da Quinta da Marinha e dos fairways do golfe, na esperança deste todo poderoso me arranjar trabalho no Expresso ou outro dos seus títulos. Procurava trabalho de estafeta, antes de me abalançar a estagiar nos jornais. É preciso dizer que podia ter feito carreira de desportista, quer no futebol, quer no golfe. Haverá quem o ateste por aqui. Sem que o tio Balsemão me desse guia de marcha, fui assim parar ao Semanário, de carta de recomendação entregue ao chefe Adriano Oliveira. Não sabia o teor da carta, deduzindo apenas que me recomendava para o cargo de estafeta. Afinal, e sem o saber até ser enviado ao primeiro serviço (no Júlio de Matos), tinha sido recrutado para estagiário de jornalismo. Vi-me assim entregue a mim próprio, sabendo apenas ler e escrever (redacções). Tinha publicado uns contos no DN-Jovem e ganho uns prémios. Achava-me capaz de dar conta do recado. Nesses primeiros meses devo ao Eurico de Barros, ao Nuno Henrique Luz e à Sofia Barrocas os ensinamentos, que se prolongaram no DN, para onde fui e encontrei a Maria Augusta Silva, a grande mestra do ofício a par do Moutinho António José M. Pereira, cuja amizade e conselho duram até hoje. 34 anos já lá vão. Fiz tudo o que quis no Jornalismo. Só não entrevistei um par de figuras por quem nutria estima. De resto, fui à fala com nomes como José Cardoso Pires ou Maria Velho da Costa, Agustina e Luiz Pacheco, entre outros ilustres. Foi no jornalismo que ganhei calo. Aprendi onde estão as rugas na prosa. Vi o Jornalismo dar lugar à promiscuidade dos negócios. Fora as desilusões próprias da vida como ela é. Sem jornalismo livre não há democracia. Tal como sem mestres não há como afirmar uma voz. O mestre está em cada um. As boas influências são uma ajuda.

    FRACTURAS I Morei uns tempos em Chelas. Tinha amigos dealers, carochos e da barra prezada. Uns faleceram de overdoses. Outros foram de cana. Havia alcunhas como “Rambo” e “Comando”. A esperança de vida era limitada e desprovida de sonhos. Ou se vendia ou se consumia. O Jordão só vendia. O Jordão gostava de atestar o meu depósito e ir pela estrada fora, de cabelos compridos encaracolados de carapinha ao vento. Tinha um Talbot Samba descapotável e o Jordão gramava o ar livre. Foi de cana uns anos e quando saiu fui buscá-lo para rodarmos pelo asfalto até gastar o petróleo. A polícia volta e meia entrava por ali adentro a distribuir cacetada. Era a forma de educação. Rusgas, porrada e insultos. Pedagogia fascista. Afinal, era um bairro de bardamerdas. A palavra bardamerdas ouvi-a da boca de um policial com cara de cu à paisana. Tal como “cambada de merdas”. Ia dar ao mesmo. Quem não se metia nas drogas, na compra e consumo ou na venda, ia jogar à bola ou para o boxe. A nobre arte salvou e salva muitos da raiva incontida. Querem um exemplo actual? O Paulo Seco, da Quinta do Loureiro. Vou lá, e ninguém me faz mal. Sou recebido como um do bairro. Sabem o que leva à revolta dos excluídos? Haver poltronas de políticos a incitar a matança dos desalinhados. Aqueles que atiram para os guetos e escravizam com salários africanos. Aqueles que são párias para eliminar.

    GRITA LIBERDADE I Quando nasci, enquanto a minha mãe chamava putas às parteiras eu gritava o meu primeiro tropo de indignação. Ou talvez berrasse por me terem roubado o aconchego uterino, a piscina morna da placenta. Os males da garganta, nos adultos, advêm de protestos contidos. Não se trata de dizer tudo como os malucos, mas de exercer a comunicação assertiva. Há que desembuchar os pedaços entalados. De preferência cara a cara com os provocadores das moléstias, no lugar de guardar as aflições no buraco escuro e cinzento do crânio. Tal serve de igual modo para declarar o amor a quem se ama sem reservas tímidas ou receios de rejeição. As cordas vocais são artérias de liberdade.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

    As ilustrações foram elaboradas com recurso a inteligência artificial.

  • Os actores

    Os actores


    1. Formação e Ideologia: A Representação como Resto

    A figura do actor, historicamente associada à mediação entre o real e o simbólico, entre o gesto e a palavra, encontra-se hoje num ponto de inflexão estrutural que ultrapassa em muito as transformações estéticas do teatro ou do cinema, revelando um processo mais vasto de reconfiguração da subjectividade artística no seio de um ecossistema mediático que se alimenta da exposição, da performatividade do eu e da substituição progressiva da experiência pela aparência.

    E isso é também comum a muitas outras áreas.

    Mas nesta em particular sobre a qual me debruçarei, o actor tornou-se, simultaneamente, o último elo da cadeia de produção artística — profundamente dependente de estruturas externas de validação e selecção e tirando todo o ecossistema técnico que também envolve a profissão — sendo o mais visível, precisamente por se encontrar exposto num mercado simbólico no qual a presença se confunde com existência e a visibilidade com legitimidade.

    O corpo é o seu produto também e o grau de exposição ao qual é sujeito é brutal, distinguindo-se assim de artistas plásticos, por exemplo.

    Esta condição paradoxal manifesta-se desde logo no processo formativo. Cada vez mais, os actores saem das escolas — sejam conservatórios ou cursos profissionais — com uma formação técnica fragmentada, fortemente voltada para a adaptação funcional ao mercado (castings, self tapes, agências, networking), mas muitas vezes desprovida de pensamento crítico, de base teórica ou de referências estruturantes sobre a história e a filosofia do teatro, do corpo, da cena e da linguagem. Nalgumas escolas as cadeiras teóricas são até opcionais.

    Claro que haverá excepções, que até conheço, de professores que fazem de outra forma — e serão certamente bastantes, quero acreditar — mas há limites para a docência, porque obedecem a programas.

    O desconhecimento de nomes fundamentais como Stanislawski, Brecht, Meyerhold, Grotowski, Ionescu, Beckett ou mesmo Shakespeare e muitos outros protagonistas da História, nos mais jovens não é apenas um sintoma de ignorância histórica; é um reflexo de uma pedagogia que favorece a operacionalidade à consciência e a repetição ao questionamento, que muitas vezes cede ao imperativo do entretenimento como valor absoluto, apagando o papel do actor enquanto sujeito pensante e realmente critico.

    Olhando para trás, parece que isso já foi mais efectivo, durante o século XX, sobretudo nas transições políticas ou mesmo com o fim de regimes totalitários, não sendo porém evidente. Precisaria certamente de outro estudo mas isso é texto para outra coluna.

    Nas estruturas, tanto espontâneas como oficiais ou paralelas, o pensamento prêt-à-porter “humanista” já lhes está intrinsecamente associado.

    As ideias de Gramsci venceram.

    A hegemonia cultural que antes era projecto estratégico tornou-se norma pedagógica. As escolas de arte, teatro e ciências sociais transformaram-se em templos do progressismo automático, onde a linguagem da inclusão, da representatividade e da resistência simbólica se tornou dogma — um novo catecismo afectivo travestido de crítica.

    Os alunos já são de “esquerda” sem saberem porquê, já são “anti-capitalistas” por reflexo, já operam dentro de uma matriz moral que confunde empatia com pensamento.

    E o actor, outrora sujeito trágico da cena, agente de tensão, de contradição e de gesto simbólico, é agora mascote ideológica de um sistema que lhe alimenta o ego enquanto esvazia o corpo. Substitui-se a crítica pelo posicionamento, a ética pela performatividade e a arte pelo simulacro bem-intencionado do que supostamente devia ser perigoso.

    Enquanto isso “as direitas” afastaram-se completamente de uma arte contemporânea em que não percebem a complexidade, apesar de tudo, do efeito Duchamp ou da conceptualidade por exemplo, e deixaram o papel da operacionalidade artística para outras zonas de mercados mais ambíguos e recicláveis conforme as ondas e marés.

    Mas direita e esquerda já não são para aqui chamadas, numa era em que uma existe para representar e ser o negativo da outra, como que por falência e graças ao meta-capitalismo estruturante desta nova dimensão (a)política.

    A maioria dos agentes culturais ainda vive nessa velha dicotomia capitalismo versus socialismo, como que por magia.

    O delay já faz eco.

    2. Tipologias e Fragilidades: O Actor na Era da Exposição

    Por outro lado, a profissão do actor tornou-se um campo especialmente vulnerável à lógica de mercantilização das emoções e das identidades, sobretudo numa época em que a representação não se limita ao palco ou ao ecrã, estendendo-se a todas as esferas da vida quotidiana através da auto-exposição digital e da contínua construção de avatares nas redes sociais.

    Neste contexto, o actor profissional deixou de ser o único a representar: todos representam, todos actuam, todos encenam versões de si mesmos para consumo público.

    Esta contaminação entre representação artística e performance social, esvazia o gesto do actor do seu potencial simbólico, na medida em que já não se distingue, com clareza, entre a arte de representar e a compulsão de se mostrar — sendo certo que o guião a seguir muitas vezes coincide.

    O que pode ser cómico para os cómicos.

    Acresce que o lugar do actor nas estruturas de produção cultural se tornou profundamente condicionado por factores extrínsecos ao seu ofício — critérios de representatividade, políticas de quotas, discursos identitários ou agendas de financiamento — que, embora tenham tido origem em reivindicações bastante legítimas e até urgentes, vão tendo um efeito boomerang e tendem hoje a reduzir a complexidade da arte à função ilustrativa ou pedagógica, transformando o actor num funcionário do afecto e da correcção simbólica aliando essa vertente a uma hipocrisia conhecida no meio artístico.

    Dando para rir entre o que é dito no público e no privado. 

    Mas este novo paradigma acentua a fragilidade estrutural do actor enquanto trabalhador precário, obrigando-o a adaptar-se constantemente às exigências de um mercado cada vez mais sensível à performance política do corpo e à sua legibilidade dentro dos discursos dominantes — muitas vezes em detrimento da qualidade estética, da ética artística ou da exigência crítica.

    É neste cruzamento entre fragilidade laboral, hiperexposição mediática e instrumentalização ideológica que o actor contemporâneo se encontra — e é precisamente aí que deverá ser repensado o seu “papel”.

    Há que distinguir entre os vários estilos e práticas de representação, sem cair na caricatura, mas também sem iludir os problemas.

    Existem inúmeros tipos de actores, entre eles destaco: o actor intuitivo, que depende exclusivamente do impulso emocional, frequentemente carece de ferramentas críticas para intervir sobre o material que trabalha, e é normalmente muito inseguro e emocionalmente dependente — a carência supera e ofusca o desejo, podendo torná-lo ridículo na sua prática.

    O actor técnico, que por sua vez tende a encarar o corpo como um dispositivo executável, desprovido de pulsão e de risco, funcionando normalmente por compensação económica. Pode ter ou não personalidade e conhecimento fora da sua zona de acção , mas normalmente conhece bem o sector e é calculista.

    Ainda existe, noutra geração, o actor do método, que mergulha perigosamente na biografia das suas personagens — mesmo que tenham sido escritas por uns tarefeiros de serviço — como se a experiência pessoal pudesse substituir a dramaturgia. Aqui dependem da experiência dos realizadores de televisão ou dos encenadores para moldar o seu conhecimento às exigências do produto em que normalmente não há tempo para experiências psicanaliticas.

    Para além de outros géneros existentes , sem dúvida, (não é para ser exaustivo), tanto que as gerações também são muito distintas em conhecimento, devo destacar ainda aquele que parece ser o mais problemático e vítima número um do deslumbre do fenómeno da Desconstrução: o actor pós-dramático.

    Este género bastante permissivo ao sabor do tempo, dissolve-se num formalismo estéril que abdica da construção simbólica em nome da presença imediata e da intuição, aliada a uma história muitas vezes inverosímil e distorcida da performance nas Artes Plásticas — sempre associada aos impulsos do corpo e dos sentidos — para normalmente cair num vazio pouco sustentado e frágil do ponto de vista argumentativo.

    Adora Marina Abramovich mas nunca viu.

    Esta tipologia pode ter tido origem no Living Theatre (é discutível) e tomou muitos caminhos, passando pelos efervescentes e oitentões La Fura Dels Baus — que foram depois muito criticados por abrirem os Jogos Olímpicos de Barcelona, na altura por se terem vendido ao capitalismo, segundo a esquerda dominante nas artes, numa era menos obscura, pré-internet, em que o discurso anti capitalista e anti americano moldava muitas cabeças, ainda que os actores nunca deixassem de pensar em Hollywood como um sonho a atingir. Não todos, claro.

    Um paradoxo de sonho… Ou pesadelo.

    Nenhum destes modelos é inválido, mas todos se tornam limitadores quando não acompanhados por um pensamento que os interpele, que os questione, ou que os coloque em relação com o mundo e com a história da representação enquanto acto político, ético e estético.

    Importa ainda afirmar que esta crise do actor é, também, uma crise do público.

    Um público deseducado, emocionalmente condicionado pelas narrativas audiovisuais dominantes e treinado para consumir identificação em vez de complexidade, já não reconhece o valor da representação como distanciamento, nem entende o artifício como linguagem. Sempre com excepções como é evidente. Falo também de Portugal, desconhecendo propriamente outros países. Mas não me parecem muito diferentes no seu modelo ocidental.

    A confusão entre arte e vida, tão promovida pelas culturas de massas e pelos dispositivos algorítmicos de selecção simbólica, transforma o actor num espelho vazio: reflecte aquilo que o público quer ver, não aquilo que precisa de pensar.

    Não é que o publico já tenha sido mais culto, mas com a fragmentação e o excesso cada vez mais evidente, já não são só os agentes da cultura e representação que desconstroem mas até o publico o está a fazer sem saber.

    Desconstruir até cair para o lado, parece ser essa a ordem crescente pregada de moral para consumo interno, sempre com a cumplicidade das indústrias farmacêuticas e psiquiátricas com homeopatias e acupuncturas pelo meio. Não é possível desconstruir mais sem depressões associadas, para ser irónico.

    Mas não é por isto que deixamos, como que por magia, de ver grandes “representações” e performances dos actores, tanto em televisão como no cinema ou no teatro.

    Nem tudo tem explicação. E o mundo não acabou.

    3. Narcisismo, Crise Simbólica e a Possibilidade de Representar

    A crise da representação não se exprime apenas em termos de condições externas, mas atinge directamente o núcleo da prática actoral: a sua relação com o eu, com o corpo e com o mundo.

    A figura do actor tornou-se, no contexto contemporâneo, uma das expressões mais visíveis do paradigma narcisista dominante, que transforma a arte da representação numa gestão contínua da própria imagem e da própria emocionalidade. Esta mutação arrasta consigo o esvaziamento simbólico da prática artística e a sua conversão em performance afectiva para consumo imediato.

    O actor, já não apenas como intérprete de papéis, mas como figura pública e marca pessoal, é chamado a sustentar uma identidade coerente, exposta, emocionalmente legível e esteticamente consistente.

    A distinção entre o espaço do trabalho artístico e o da auto-representação quotidiana dissolve-se num regime de visibilidade permanente. As redes sociais, ao exigirem uma narrativa constante do eu, impõem ao actor uma representação contínua, muitas vezes sem conteúdo, onde a vulnerabilidade se torna valor e a autenticidade é convertida em capital simbólico.

    As práticas performativas dominantes são reflexo desta transformação. Para voltar às tipologias anteriores: o actor intuitivo representa a valorização do afecto imediato em detrimento da construção simbólica; o técnico revela a conversão do corpo em dispositivo funcional e programável; o do método indica a fusão entre biografia e ficção, que compromete a mediação crítica; o pós-dramático manifesta a desmaterialização da linguagem e a aposta numa presença que, muitas vezes, abdica da significação.

    Talvez fosse bom de quando em vez voltar-se a penetrar Brecht ou imergir no livro de Robert Bresson com as suas insinuações sobre o actor, para não falar em Peter Brook, todos sempre actuais e pertinentes nas suas linhas, ainda que dogmáticas.

    Estas tipologias, apesar de distintas, convergem na recusa — ou na perda — da representação enquanto acto mediado ou mesmo construído e pensado — logo, por isso, político.

    Esta configuração é reforçada por um ecossistema simbólico que desvaloriza a crítica em nome do apoio emocional, que confunde empatia com complacência e que romantiza a precariedade como forma de resistência criativa. Até ver.

    O elogio constante e a ausência de exigência transformam o campo artístico num espaço de validação afectiva, impedindo o confronto com os limites e a profundidade do gesto artístico. O actor, nesse ambiente, é infantilizado enquanto trabalhador e idealizado enquanto figura pública — sem espaço real para errar, questionar ou resistir.

    O resultado é a conversão da arte da representação num espelho do desejo social, num reflexo imediato das expectativas afectivas do público e das lógicas algorítmicas de visibilidade.

    O actor, em vez de intervir simbolicamente sobre o real, é convocado a reproduzir narrativas emocionalmente aceitáveis, facilmente partilháveis e alinhadas com os códigos dominantes de sensibilidade.

    A arte deixa de distanciar para reflectir; o corpo deixa de significar para agradar.

    Repensar o lugar do actor, hoje, exige muito mais do que mudar práticas pedagógicas ou modelos de produção. Terá de vir dos próprios.

    Serão certamente os actores quem reagirá mais tarde ou mais cedo ao “cataclismo asséptico”, até provavelmente o poder detectar a convulsão. Ou não. Talvez a História ao rimar novamente encontre novas terminologias e o feitiço se vá voltando contra o feiticeiro. O mundo é um lugar dinâmico… Como sempre.

    Estou optimista.

    Exige é uma redefinição profunda do que significa representar, numa época em que todos performam. Significará sem dúvida devolver ao actor a sua dimensão crítica, simbólica, política.

    Dever-se-à quanto a mim, voltar a valorizar a linguagem, a narrativa e inscrever o corpo no pensamento e a sua presença num mundo que precisa de mais autonomia. Sobretudo autonomia, o que não é fácil, certo.

    E, sobretudo, recusar a transformação do actor em produto emocional de um mercado simbólico disfarçado de “humanista” totalmente em colapso, em que os “actores” principais  desta era também não sabem nada de Beckett , Ionescu ou Shakespeare, quer-me parecer.

    Daí o optimismo.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações: Ruy Otero


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Arouca 2.2

    Arouca 2.2


    Perguntou-me o director do PÁGINA UM se eu estaria interessado em começar a escrever crónicas a cada jogo do Benfica. Depois de chatear activamente os leitores da Extrema-direita, Pedro Almeida Vieira escolhe agora aborrecer os adeptos dos outros clubes.

    Vamos partir deste princípio basilar nesta que será a minha primeira crónica. Eu não sou jornalista, sou adepto benfiquista, gosto de futebol e, portanto, tudo o que podem esperar ler aqui é a minha opinião. Com alguma sorte teremos momentos de triângulos invertidos e basculação no meio-campo.

    Ainda a bola não tinha começado a rolar e já os adeptos da minha cor me envergonhavam. Sim, eu sou benfiquista, mas não sou cego. Durante o minuto de homenagem a Aurélio Pereira, uma figura ímpar do desporto português, um conjunto de acéfalos resolveu imitar o fatídico som do very light que matou um adepto sportinguista na final do Jamor. Um dia alguém me explicará como é que há um benfiquista — seja ele quem for — orgulhoso com um dos momentos mais negros da nossa centenária história.

    Quando entramos na recta final do campeonato, tudo o que não nos interessa é ver um Benfica-Arouca. São jogos que me fazem lembrar as derrocadas finais nos tempos de Jorge Jesus. A vitória é certa no papel, a equipa acredita que a bola, cedo ou tarde, entrará, e o pouco espectáculo arrasta-se penosamente por longos noventa minutos. O Arouca é uma equipa cuja classificação não reflecte o futebol jogado. Não se limitam ao clássico bloco baixo esperando um contra-ataque milagroso, sabem ter a bola no pé e apresentam um plantel com jogadores interessantes.

    A primeira parte teve quase sentido único, com o Benfica, no seu onze habitual, a dominar o meio-campo e a controlar as operações. Ainda assim, essa posse de bola não se reflectiu em oportunidades de golo. As poucas que aconteceram foram quase sempre cortadas por defesas em lugar do guarda-redes. O Estádio da Luz, cheio como é habitual, demonstrava algum nervosismo com a ineficácia e o ritmo baixo.

    A asa esquerda do Benfica foi, como de costume, o abono de família do ataque, com Carreras, especialmente, em bom plano. Do outro lado, Tomás Araújo continuou preso por arames, a fazer o que pode. Di María, ou GOAT, como é conhecido cá em casa, insistiu nos lances individuais que já não consegue fazer, deixando as recuperações para o norueguês amigo. Ainda assim, há sempre aquele momento em que descobre uma linha de passe que mais ninguém vê e obriga qualquer comentador de sofá, como eu, a meter a viola no saco.

    É estranho pensar na profundidade do plantel do Benfica para disputar um jogo com o Arouca. Mas foi exactamente isso que fiz ao intervalo.

    Rezei para que Bruno Lage pedisse autorização ao Di María para o deixar no balneário, na companhia de Tomás Araújo. A minha expectativa era que a ala direita carregasse jogo com mais eficácia na segunda parte. Opções no banco parecem não faltar.
    A segunda parte começou com um três para três na área do Benfica, sacudido por Trubin, seguido de mais um ataque desperdiçado por Di María. Bruno Lage não viu nada de errado na primeira parte e apostou, tal Marcello Caetano, na transição da continuidade. Aos cinquenta minutos de jogo, já eu fazia contas à vida depois do Arouca ter chegado com perigo à baliza do Benfica.

    Passava a hora de jogo quando comecei a ver nuvens negras e a lembrar-me de um campeonato perdido contra o Estoril. Por esta altura, até um penálti à Diomandé se aceitava. Carreras percebeu o sofrimento da classe operária, que precisa de motivação para trabalhar amanhã, e desatou a ultrapassar gente pelo lado esquerdo. A bola desaguou no pé direito de Kokçu e o turco fez arte, colocando a dita onde a coruja faz o ninho.

    Di María, logo de seguida, falhou um golo cantado e Jason, o melhor jogador do Arouca, tentou trazer um Geny para o Estádio da Luz. O mergulho foi bom, a entrada na água fez pouco espalhafato e o VAR fez o que se espera dele em Portugal: marcou.

    Há uma tendência neste final de época para se ver a mais nalgumas latitudes e fechar os olhos noutras. Dizem-me que é azar. Do Benfica, obviamente. Azar esse que se prolongou do VAR para a inoperância de Bruno Lage que, aos 75 minutos, ainda não tinha visto necessidade de mudar fosse o que fosse.

    Quando Belotti e Schjelderup entraram, já o Arouca estava na opção do bloco baixo e o espaço para jogar se reduzira a um T1 de meio milhão em Arroios. Esperava-se que o norueguês ganhasse os duelos que Di María não conseguiu.

    As substituições, tardias, tiveram efeito quase imediato. Kokçu, o tal rapaz com um pé direito que daria jeito ao Florentino, descobriu Pavlidis sozinho, enquanto Belotti arrastava os centrais. São aquelas dinâmicas, como lhes chamam os entendidos da bola, que acontecem quando dois rapazes, com a mesma camisola, estacionam permanentemente na área alheia.

    O Arouca não reagiu ao segundo golo porque o Benfica não tirou o pé do acelerador. Seguiram-se algumas hipóteses de golo desperdiçadas, um golo anulado e mais uma dose de nervos até ao fim.

    O prolongamento chegou com 7 minutos que ninguém percebeu e o Arouca, vendo que o jogo não era sentenciado, apostou tudo nos instantes finais, conseguindo marcar já depois dos 95 minutos.

    O campeonato volta a dar mais uma volta e, pela segunda vez, o Benfica não aguenta a liderança mais do que uma semana.
    Tal como disse no início desta crónica, gosto pouco destes jogos em que pouco se ganha e tudo, ou quase, se perde.

    Fotos de Pedro Almeida Vieira (no estádio)

  • Ainda de olho ao peito

    Ainda de olho ao peito


    Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, dizia Camões — e, valha a verdade, se o nosso épico não tivesse perdido um olho, talvez visse com mais nitidez o que esta crónica, de visão ainda turva, tem vindo a confirmar: a tradição já não é o que era, e quem de costume observa a bola da Varanda da Luz, anda mais dado a filosofias e quejandos do que à redondinha propriamente dita, aqui o garante.

    De facto, nos últimos jogos do Benfica na Liga, este vosso cronista habitual fez gazeta, primeiro porque foi lourear a pevide para Espanha, depois porque um bisturi decidiu meter-se em campo e substituí-lo sem aviso prévio. Ou seja, perdeu dois jogos no conforto da Luz, mas vá-se lá saber como, no último mês e meio, apareceu em Montjuic, foi a Alvalade ver a selecção e ainda teve a ousadia de ir ao antro do Dragão, onde o Benfica deu uma coça ao Porto.

    E tudo isto, nas últimas duas semanas, com um olho que vê mal ao perto e só agora começa a distinguir camisolas ao longe. E o outro está como estava: mal. Ja consigo ver os números nas costas dos jogadores, o que é um progresso — antes disso, via os jogos como quem lê prescrições médicas: de longe, com desconfiança e a torcer para não me enganar.

    Mas como o bom filho à casa retorna (ainda que tropeçando nos degraus e piscando os olhos ao ecrã como quem faz sinal à torre de controlo), eis que esta crónica volta à vida. Ou melhor, ressuscita com ajuda: o relato de hoje é da pena do Tiago Franco, que além de ver bem (ao que consta) ainda escreve com propriedade sobre futebol. Ficam mais bem servidos, não duvidem — porque se fosse eu a escrever, acabava-se a falar da teoria do caos, da filosofia dos penáltis, ou da geopolítica dos fora-de-jogo.

  • ‘People are strange’: e eles nem sequer estão malucos

    ‘People are strange’: e eles nem sequer estão malucos


    É noite; o astro saudoso
    Rompe a custo um plúmbeo céu,
    Tolda-lhe o rosto formoso
    Alvacento, húmido véu:
    Traz perdida a cor de prata,
    Nas águas não se retrata,
    Não beija no campo a flor,
    Não traz cortejo de estrelas,
    Não fala d’amor às belas,
    Não fala aos homens d’amor.

    João de Lemos

    LUA DE LONDRES (1872)

    Para compreender melhor o título[1]


    A pessoa já quase não se lembra do tempo em que existiam em Portugal verdadeiros políticos dignos desse nome. Esta gente que nos governa agora é para lá de má. É pior que decepcionante. É mais desaconchegante do que este inverno que começou em catapultas de chuva em pleno Outono e se manteve assim, gélido e encharcado, até à Primavera. Dentro dos seus sobretudos azuis, com os seus sapatos pretos, repetindo em toda a parte os mesmos sorrisos sobranceiros e as mesmas palavras de quem não tem absolutamente nada para dizer, esta gente que nos governa debaixo de uma profusão cansativa de chapéus de chuva escuros transportados por vassalos silenciosos é profundamente triste. Ainda por cima, sai-nos cada vez mais cara com os seus dares e tomares que cada vez parecem menos ir dar seja onde for. Estará tudo completamente perdido?

    A verdade é que o povo português já foi espantosamente sensato e paciente antes.

    Mas este é um desafio sem precedentes.


    De repente, olha-se para toda aquela marabunta[2], ouve-se toda aquela gente mandar vir, e alguma coisa em nós faz clic a braços com um fenómeno muito estranho. É que, embora saibamos que representam ideias e ideais diferentes, começou a parecer-nos que são todos iguais. Ainda por cima, parece cada vez mais que estão todos a dizer a mesma coisa, falando exactamente da mesma maneira. O fenómeno é insuportável, mas depois de detectado é como o poço da Alice: estamos a cair lentamente lá dentro sem sabermos onde nos leva, desesperadamente incapazes de voltar à superfície, que era o sítio onde estava a realidade que estávamos habituados a conhecer. Tentamos racicionar, mas é inútil: nem sequer sabemos que latitude e que longitude é que já percorremos[3]. E então dá vontade de tapar os ouvidos com as mãos e chamar pela mãezinha[4], porque parece mesmo que está tudo maluco.

    Depois percebe-se que isto é o que parece porque esta é a versão mais simplista dos acontecimentos, e, ao fim do dia, a Comunicação Social gosta sempre de apontar os microfones ao bobo da corte, que a presenteia com as afirmações mais pobres de espírito, mais francamente tontas, mais descaradamente insultuosas, e portanto mais divertidas. Por isso somos obrigados a seguir a política portuguesa com comentários finais a cargo de André Ventura, a única pessoa vestida de político que é capaz de concluir um bloco informativo com a declaração “na minha opinião, um polícia branco que mata um gajo preto depois do anoitecer não é nenhum psicopata, é mas é um herói, a quem deviam fazer um busto de homenagem, e nunca na vida abrir um processo de investigação,[5]” e sair imune.

    E sair imune, caraças[6] – mas há que entender que saiu imune exactamente porque é o bobo.

    Enquanto bobo, a criatura tem um direito ao microfone nunca antes visto. E, enquanto homem-espectáculo, basta-lhe apanhar um microfone desses pela frente para desatar a espingardar qualquer uma dessas javardices sem fundamento nem conteúdo que um homem gosta de ouvir quando está profundamente revoltado ou se sente muito perdido. Isso, hoje em dia, são quase todos os homens portugueses, e os media sabem isto muito bem. Em resultado, todos os dias temos que gramar com o palhaço. E, de facto, quando nos servem o País visto pelos olhos dele, parece mesmo que está tudo completamente maluco. Quem gosta de circo, e gosta de palhaços, sabe que é a isso mesmo que os palhaços se destinam: estão ali para convencer os espectadores que foram antes eles, todos eles, que enlouqueceram colectivamente. E entretanto, no seu mundo à parte, os palhaços continuam cheios de razão, como sempre estiveram. Não é por acaso que há tanta gente com fobia a palhaços. Quando os meus filhos eram pequeninos trepavam de pânico por mim a cima de cada vez que entravam palhaços na arena. Depois lá se habituaram a ficar quietinhos no seu lugar, mas todos a tremer e de olhos fechados.

    Com estas memórias simpáticas do Circo Chen nos Natais de Lisboa recordamo-nos de que os olhos de André Ventura não veem o mundo como os olhos das pessoas normais, caímos em nós, e o caso torna-se mais sério. A triste figura que têm andado a fazer todos aqueles funcionários públicos sem um único lampejo de inspiração que são hoje em dia os nossos políticos não têm propriamente a ver com, por alguma razão que nos transcende, todos ficarem malucos, cada um para seu lado.

    Tem antes a ver com padecerem todos é de uma angustiante falta de qualidade.

    E comportam-se como se lhes fosse completamente indiferente o que o comportamento medíocre deles faz aos portugueses.

    Vamos lá ver. Um bom político governa. Uma boa oposição impõe-lhe mudanças de rumo. E, supostamente, os eleitores ficam a ganhar com tudo isto. Mas, neste caso, a governação trocou insultos, e pelo meio foi descendo cada vez mais baixo até bater mesmo no fundo da Fossa das Marianas – sem que os portugueses ganhassem absolutamente nada com isso. Nos últimos tempos, em vez de tratar de todo e qualquer assunto que seja verdadeiramente importante para a qualidade de vida das pessoas, aquelas aves[7] passaram dias, semanas, meses, a espiolhar o escândalo das empresas do primeiro-ministro e da sua família. O primeiro-ministro não explicou nada que tornasse a situação menos escandalosa, e a partir daí fez toda a gente perder ainda mais tempo repetindo ad nauseum que não tinha absolutamente mais nada a dizer uma vez que já tinha feito da sua vida um livro aberto. Seguem-se episódios dignos de uma telenovela brasileira, daquelas que se passam no século XIX numa cidade no meio do mato onde a única lei que vigora é a do mais forte ou a do mais pérfido, que se arrastam durante um ano com detalhes tortuosos que ainda não tínhamos sonhado possíveis, e no entanto esta democracia já leva atrás de si um lastro considerável de péssimos políticos.

    Mas é que estes são piores.

    Primeiro, numa fuga para a frente de estupidez nunca vista, o governo, apoiado por todo o partido no poder, passa uma moção de confiança a si próprio. Em resultado óbvio, a oposição em peso passa uma moção de censura ao governo. Em decorrência inevitável, o Presidente da República dissolve a Assembleia e convoca novas eleições para amanhã. Reiterando imediatamente o seu pé de chumbo, o partido que estava no poder volta a pôr à cabeça da sua lista o mesmo primeiro-ministro altamente suspeito de grandes trafulhices com as suas empresas familiares. À falta de alternativas excitantes, e como simples factor decorrente de um enorme cansaço, até é possível que o povo português decida manifestar-se numa espécie de triste vingança poética[8] e faça com que este ex-primeiro-ministro ainda volte a ser primeiro-ministro.

    Em tudo isto gasta-se imenso dinheiro, perde-se imenso tempo, e talvez nenhuma destas duas coisas muito más seja a pior.

    Eu digo que a coisa pior, mas pior mesmo, é que, assim, vamos ser obrigados a viver com quatro eleições ensanduichadas em pouco mais de um semestre. Ainda nem estamos recompostos da telenovela do século XIX no meio do mato e já vamos ser obrigados a votar para legislativas em Maio; e depois seguem-se votos para autárquicas em Outubro, e para presidenciais em Janeiro[9], imediatamente seguidas da segunda volta dessas mesmas presidenciais se ainda alguém estiver vivo. Ora, a precisar de digerir três campanhas de seguida com toda a interferência que as campanhas causam na vida quotidiana, com imensa a gente a dizer-lhes “vota em mim” de dezenas de diferentes formas por centenas de razões diferentes – têm a certeza de que o pessoal consegue manter-se concentrado? Às tantas ainda saberemos para que serviço público é que aquela ave[10] específica nos pede que votemos nela? Estão a imaginar bem quantas pessoas vão aparecer a apertar-vos a mão quando vocês estão cheios de pressa, a dar-vos papelinhos que ninguém vai ler e que são, todos eles, árvores deitadas abaixo para nada? E quantas vezes seguidas, desta vez, é que vão ter gente que não conhecem de lado nenhum tratar-vos carinhosamente por Amigos, Companheiros, Camaradas, e aquele Portuguesas e Portugueses muito melífluo em que as senhoras passam sempre primeiro, para depois começarem todos a gritar-vos aos ouvidos em mais um comício que a certa altura começa mesmo a ser impossível manter nota de quem é e para que é? E o pior é que tudo isto acontece enquanto aqueles carros com música e alguém a bradar qualquer coisa pelo megafone, que parecem sempre anunciar uma tourada, não param de correr pelas ruas como baratas do inferno. E nós também já não sabemos o que é que anunciam ou defendem – mesmo descontando a possibilidade de estarem a chamar o povo à tourada dessa tarde.

    Há mais.

    A total falta de visão dos políticos que desencadearam este canhão gigante de exercício eleitoral foi tão grande que ainda há mais.

    Preparem-se para oito meses que vão passar por nós como um sonho estranho[11].

    Durante todo este tempo, mas todo este tempo, todo este tempo mesmo[12], hão de ser arruadas, atrás de arruadas, atrás de arruadas. Hão de ser imensas, porque dão nas vistas, não requerem grande preparação, reciclam-se, e, desde que o Candidato consiga caminhar, não há nada mais simples de fazer do que uma arruada.

    O que, antes de mais nada, quer dizer que vamos esbarrar com imensos momentos imprevisíveis, e não necessariamente agradáveis, em que de repente não se pode passar na rua.

    Ainda piores são aquelas alturas em que passar na rua é perigoso, porque – uma vez mais – o cidadão incauto corre sempre o risco de ser encostado à parede por um Candidato a Qualquer Coisa seguido pelos seus seguidores, que ainda é capaz de lhe perguntar “Olá Amigo, sabe quem eu sou?” – e o cidadão, tão evasivo quanto possível, já sem saber se há de ser abrupto[13] ou se há de manter o que ainda lhe resta de compostura eleitoral: “Bem, eu conheço a sua cara da televisão, claro, mas agora de repente estou com uma branca, não me lembro do seu nome” – o Candidato sorri e aproxima-se ainda mais arregaçando melhor as mangas, várias mãos estendem brochuras e panfletos, até um cartaz, e ainda um cravo vermelho, como aliás todos eles têm na lapela, mas para o pobre cidadão assim acossado isso não quer dizer absolutamente nada porque com cravos andam todos, no outro dia até na comitiva do Ventura iam umas miúdas muito giras a oferecer cravos vermelhos, suspeita-se que eram manequins contratadas à hora mas de qualquer maneira a intenção é que conta – “Deixe-nos informá-lo sobre o meu projecto para Portugal, antes de mais nada eu sou”– o cidadão ouviu o singular seguido por “Portugal” e bastou-lhe, o nome de uma única pessoa associado ao nome do País por inteiro revela-lhe que estão em causa as Presidenciais, ele está saturado de campanhas em geral e de arruadas em particular[14] porque as ruas ali são todas muito estreitinhas, só quer é despachar o assunto e então agarra naquelas árvores mortas que lhe estendem, livra-se dos seguidores com o ombro e acena seriamente ao Candidato enquanto inicia a fuga: “Ah mas eu sei, eu sei, o senhor é o Almirante que salvou o País do COVID, é um Herói, e conte comigo, eu vou votar em si.” – e desaparece, tirando partido da sua vantagem sobre a comitiva de conhecer muito melhor aquele dédalo de ruelas.

    O Candidato, que na realidade era o Vitorino das Rãs, não desanima, como nunca desanimou. Diz aos seus seguidores que já se viu que a disponibilidade das pessoas que vão a passar nas rua estreitinhas daquele lugar não é grande coisa, melhor será entrar num tasco, pagar umas rodadas, confraternizar, deixar por ali os materiais de propaganda como quem não quer a coisa, contar ao pessoal histórias verdadeiras e muito sentidas das suas lutas regionais, e deixar as gentes dali daquelas ruelas ver bem as filhas de vários seguidores que vieram hoje na camioneta, estão excitadíssimas com a sua estreia na política[15], desfazem-se em risinhos, e são boas como o milho[16]. Daí a uma hora, visitarão outro tasco. Daí a três horas, até aproveitam o tasco para ver o jogo. Nesse dia a estratégia foi um sucesso. Mas há quem diga que foi só porque nesse dia nós ainda tínhamos aquele treinador pouco dotado mas mesmo assim ganhámos o jogo, que por acaso era contra a Inglaterra e passem bem que o País está ao rubro.

    Bem contados são oito meses disto, e muita gente a candidatar-se a muita coisa, sobretudo tendo em conta a quantidade de estranhos personagens[17] que já se candidataram ou ameaçam vir a candidatar-se à Presidência da República. Uma eleição a nível nacional é sempre um fenómeno extremamente interessante, e não é só pelos resultados. Os programas que os candidatos apresentam, os tópicos onde põem a sílaba tónica, a escolha de slogans e de frases-feitas, a forma como se vão desenrolando os acontecimentos à medida que os autocarros das campanhas cruzam o País, as cabeças de cartaz que fazem concertos para cada facção, os debates, tudo é um dedo no pulso do País que tanto pode ser deprimente como hilariante, mas uma coisa é sempre certa, está cheio de vida. Agora – Três grandes eleições a contra-relógio e a seguir ainda um desempate? Alguém acha que isto vai correr bem? Será realmente preciso um sujeito ser especialista em análise política, ou em sociologia, ou em comentário jornalístico, para explicar ao País e ao mundo por que é que a abstenção em Portugal não para de subir e as eleições se saldam por resultados bastante bizarros?

    Epá, não gozem comigo[18].

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora



    [1] Para todos aqueles que não chegaram a este mundo a tempo de identificar imediatamente a referência, aqui vão aos primeiros acordes da imorredoira canção dos THE DOORS, PEOPLE ARE STRANGE: people are strange/ when you’re a stranger/ faces look ugly / when you’re alone/ women seem wicked/ when you’re unwanted/ streets are uneven/ when you’re down… e vários outros desenvolvimentos igualmente deprimentes.

    [2] Figura de estilo. Em Angola aplicava-se a tudo o que metesse muitas criaturas sempre em movimento, das formigas brancas às crianças. No entanto, a aplicação do termo às crianças já era, em si mesma, uma figura de estilo. Culpa delas. Nunca paravam quietas. De onde a expressão, também angolana, e também metafórica, “criança ferra.” Como é evidente, as crianças não possuem ferrão, pelo que no sentido literal não podem ferrar. Mas o uso do termo dispensa explicações.

    [3]Que estranho,” pensa a Alice logo na segunda página da história, algum tempo depois de ter caído no buraco do coelho, não ter conseguido voltar para cima, e por muito que dê aos braços continuar perpetuamente a cair, muito devagar. “Sempre gostava de saber que latitude e que longitude é que já percorri.”

    [4] Não necessariamente uma figura de estilo. Eu, como vivo sozinha com o Sebastião, posso dar-me ao luxo de fazer isso mesmo com os meus horrores de estimação. Ele põe a cabeça de lado a olhar para mim e arrebita as orelhas com o seu arzinho de cachorrinho amoroso. O que me faz passar logo a irritação, porque um cachorrinho amoroso com 54 kg é uma imagem absolutamente hilariante.

    [5] Versão literariamente melhorada das declarações originais do actual candidato à Presidência da República, que acha mesmo que os polícias que resolvem as coisas matando as pessoas são os verdadeiros heróis do dia.

    [6] Talvez aqui viesse a calhar um ponto de exclamação se essa não fosse a pontuação que eu mais detesto. Desculpem. Já tenho um certo direito a ter as minhas manias.

    [7] Parafraseando Aristófanes, 445-386AC

    [8] É mesmo. Toda a situação é tão triste que até as vinganças poéticas, completamente destituídas de fulgor e de garra e de sangue na guelra, são apenas isso mesmo – tristes. Tristes assim mais ou menos como a LUA DE LONDRES do João de Lemos.

    [9] De nada. É sempre um prazer googlar factoides interessantes como este para vossa informação como quem não quer a coisa.

    [10] Não há como aprender com os Clássicos, que já sabiam tudo – no caso dos Gregos, até sobre o funcionamento das democracias. Chega a ser frustrante.

    [11] Em sinal de respeito pela democracia omite-se aqui a hipérbole “pesadelo”, por muito que apeteça usá-la.

    [12] Recorde-se: pelo menos oito meses.

    [13] Eufemismo.

    [14] Note-se que, se vamos nas Presidenciais, já estamos na terceira campanha em programas ininterruptos.

    [15] Estas meninas andam todas no secundário e já votam. Estudaram o programa do Amigo do Pai com a dedicação com que estudam para os exames. Passaram a noite em claro a fazer perguntas umas às outras para se certificarem de que sabiam responder a tudo. Foi muito proveitoso, porque durante o tour do Candidato foram abordadas por numerosos jovens interessados em conviver saudavelmente em termos socio-políticos, mostrando-lhes também a noite da sua terra.

    [16] Claro que o Candidato não diz “boas como o milho” diante dos pais das meninas, nem que mais não seja porque um Candidato tem que ter Tacto. Mas a ideia é essa, e elas sabem-no melhor do que ninguém. Mais aperaltada, só mesmo a Shakira antes de entrar em cena.

    [17] Havia, já há muitos anos, um programa de televisão em todos os visados tinham alcunhas, e a do Marques Mendes era “O Anãozinho Pérfido.” Só para dar um exemplo.

    [18] Por acaso é a conclusão de uma das minhas anedotas preferidas. É pena toda esta história não ser uma anedota, no entanto.

  • Benfica 1.4

    Benfica 1.4


    O Pedro Almeida Vieira foi operado aos olhos e não consegue ver ao perto. Inicialmente, pensei que me estava a dizer que tinha entrado no curso de iniciação a VAR, onde, como se sabe, é requisito essencial ver mal. Mas enganei-me… era uma forma de me cravar para escrever a crónica do jogo. Logo a mim, um rapaz tão isento em matéria futebolística.

    Ainda não tinha decidido se ia buscar uma cerveja ou começava a preparar o corpo para o Verão quando, poucos segundos depois do apito inicial, já Pavlidis tinha deixado Diogo Costa a pensar na transferência de Verão.

    Foto: PÁGINA UM

    Os primeiros 20 minutos de jogo foram de sentido único, com o Benfica a controlar o meio-campo e a criar várias oportunidades. O Porto acordou a partir do minuto 25 e o Benfica baixou o bloco, apostando nas recuperações de Aursnes para lançar o contra-ataque.

    Nesta fase, as oportunidades do Porto eram criadas essencialmente por quatro jogadores: Rodrigo Mora, de longe o mais inconformado e talentoso portista; António Silva, um rapaz que se tenta descobrir desde aquele fatídico Portugal-Geórgia; Florentino, com o habitual brinde de jogo grande; e, claro, Di María, o meu favorito do plantel, que resolveu perder quase todas as bolas em que tocou.

    Depois de algumas bolas ao poste por parte dos jogadores do Benfica, Florentino ensaiou algo que não é a sua praia — o remate — e fez uma assistência primorosa. Pavlidis agradeceu, sentou um defesa e voltou a dar pensamentos futuros a Diogo Costa.

    Ao intervalo, pensei que Bruno Lage deixaria Di María no balneário, por estar a ser a maior fragilidade, mas enganei-me. Deve ser por isso que o treinador é ele e não eu. O Porto também não mexeu, mas no caso de Anselmi nem é bem pela falta de vontade — é mesmo falta de matéria-prima.

    O início da segunda parte foi uma repetição da primeira. O Benfica jogou e o Porto assistiu. Di María faz-me lembrar o meu avô: falava pouco, mas falava bem. Apareceu uma única vez, antes de ser substituído, para fazer uma assistência boa — mas tão boa — que até o Samu marcaria. E marcou mesmo.

    António Silva, que insiste em adormecer nestes jogos, ficou a observar o movimento técnico de Samu na recarga a um remate de um colega. Deu-lhe nota 10 pela execução e depois abriu os braços, como que a perguntar aos colegas: sabem quem é que deu outra casa?

    O Porto aproveitou o embalo e criou nova oportunidade, aproveitando a péssima adaptação de Dahl à lateral direita. Foram minutos de excepção à tendência do jogo.

    O Benfica mostrou superioridade do início ao fim e teve a vitória mais tranquila que alguma vez me lembro de ver no estádio do Dragão. A imprensa dirá que Pavlidis foi o homem do jogo. Eu acho que a perfeição, esta noite, teve outro nome: Aursnes. O norueguês que não treme nem complica. Defende, ataca, cobre o lado de Di María, compensa as falhas de Florentino, faz a dobra ao António Silva. É um daqueles jogadores que, discretamente e sem controvérsias, conquista a plateia.

    O Pedro disse-me, antes do jogo, que isto ia acabar 1-4. Nada mau, para um homem que vê tudo desfocado.

    Foto: PÁGINA UM
  • O Dragão e o Lobo

    O Dragão e o Lobo


    Já percorri muitas varandas futebolísticas nos últimos dois anos, mais como um turista excêntrico — daquele tipo que percorre mosteiros barrocos — do que como jornalista. Escrevo crónicas que, em certa medida, compensem os meus poucos atributos sobre tácticas e estilos. Daí que houve, neste ínterim, dezenas de Varandas da Luz, umas Varandas do Varandas (com e sem Carlos Enes), uma do Jamor, outra em Montjuic — com vista para a nostalgia catalã — e até uma Varanda das Cinco Quinas, que soa mais a chá com bolinhos e um fora-de-jogo. Começava, pois, a ambientar-me à doce vida de cronista da bola: ver sem ver, escrever sem ver muito, e opinar com aquele à-vontade próprio de quem nunca treinou sequer um grupo de escuteiros e nunca calçou chuteiras, apesar de, como jornalista, dar muitas caneladas.

    Foto: PÁGINA UM

    Até que, no esplendor de uma convalescença ocular, desembarquei no Dragão. Não num cavalo branco, mas com a garantia de o Tiago Franco — benfiquista militante e erudito da táctica invertida com carapaus — me escrever a crónica, e assim, de smartphone em punho, dispus-me apenas a fazer o que qualquer jornalista faz quando não tem de escrever: tirar fotografias.

    Eis senão quando, surge uma senhora. Não uma senhora qualquer, mas uma zelosa representante da FC Porto Média, que em vez de um crachá trazia, presume-se, um faro treinado para detectar crimes audiovisuais. “Está a filmar o jogo?”, pergunta-me com a doçura de um fiscal tributário. “Deixe-me ver o seu crachá”, remata. Pasmo. Não estava a filmar. E digo-o. E repito. E entro, vá, numa altercação ligeiramente furibunda (com a suavidade de um cronista que só vê com um olho e mesmo assim vê demais) sobre que raio de coisa era aquela de estar a querer saber o que um jornalista em funções estava a fazer ou deixava de fazer. Não gravo a conversa, mas tirei fotografia ao seu crachá para memória futura…

    Foto: PÁGINA UM

    É verdade, confesso, dei demasiado nas vistas: quase gritei golo do Benfica ao primeiro minuto. Mea culpa. Não bati palmas a jurar fidelidade ao dragão nem entoei o hino com reverência litúrgica antes do apito inicial. Mas daí até ser tratado como um espião de bancada vai um salto… de vara.

    Enfim, se querem afastar o mito de que o FCP é um clube dado a tiques inquisitoriais, talvez não seja má ideia dispensarem o papel de Santo Ofício às suas zeladoras. Afinal, quem não quer parecer lobo talvez devesse reconsiderar o uso insistente de pele lupina.

  • Tuks

    Tuks


    Na véspera de eleições, para satisfazer os munícipes dos bairros históricos, arreliados com os enxames de tuks e afins, Dom Moedas ordenou mais uma leva de interdições à circulação de ruas cruciais para a execução do serviço de embaixada cultural. Bem feito, é disto que se trata.

    Como moeda de troca aumentou o número de lugares de estacionamento autorizado e ordenou a vigilância sistemática de quem se posiciona indevidamente em segunda, terceira ou sexta fila. Tá certo.

    Foto: D.R.

    Quanto ao escrutínio de competências bastaria certificar obrigatoriamente quem presta tal serviço, no lugar de ser uma opção aleatória. Queres ser guia? Tens paixão por contar histórias? Sabes línguas estrangeiras? Articulas sujeitos, predicados e complementos directos sem engasgos? És empático e simpático? Então estuda e obtém aproveitamento. Não um cursozeco qualquer, mas uma licenciatura ou no mínimo um bacharelato. Depois, como em qualquer lugar organizado e civilizado, haverá quem igualmente certificado se incumba de verificar a certidão profissional. Quem não o tenha, ala.

    De outro modo, tal como é há 14 anos, e continuará a ser, qualquer atrevido se fará ao piso. Estou a fazer um curso de 76 horas no Turismo de Portugal para ver o que se ensina e quem o faz. Os formadores sabem da fruta. Interessam-me em particular os módulos com as polícias.

    Dom Moedas destacou um batalhão tipo SWAT para dar caça aos tuks. Para reforçar o acto musculado, o edil juntou a famigerada EMEL, onde desagua todo aquele que não tem capacidade para mais nada a não ser dar ao dedo e apertar bloqueadores. Alguns são armários das artes marciais e do MMA, para intimidar o condutor.

    Foto: D.R.

    No lugar de ir à raiz da questão — como é possível haver uma actividade económica sem controle de facturação —, não, ataca-se com os gendarmes.

    A AT, se quisesse, apertaria os calos aos enriquecimentos ilícitos. Tem uma arma digna de um criminoso: os métodos indirectos de correção fiscal, além das penhoras e execuções. Isto não sucede, e mesmo quem foi alvo de inspeções e processos de fraude e evasão fiscal, goza com recurso ao móbil de nada ter em seu nome (recorre a família e amigos) ou se tem, ninguém lhes pergunta como obteve o capital para aumentar o património. Não lhes fodem a vida. Talvez até os corrompam.

    Há uma ou outra empresa que trabalha com marcações através de sites e plataformas e lá vai pagando, mesmo que empregue sem grande respeito pelo trabalhador, nomeadamente no vínculo que o une à empresa. A maioria é tarefeiro ou trabalha por conta própria e risco.

    Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa. / Foto: D.R.

    Outra forma de asseio seria determinar quantos veículos cabem sem estorvar. Já agora, estabelecer critérios de ordem nas filas e preços fixos. No dia em que se fizer um documentário, ensaio ou investigação séria, este ramo cairá de maduro. Mas isso será no dia de S. Nunca à Tarde. Até lá, será o que sempre foi: a selva, lugar do mais forte e adaptado. Até lá, assiste-se ao espectáculo do mundo. Da sobrevivência a quanto obrigas.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

  • Medo, suor, lágrimas… e um kit de sobrevivência

    Medo, suor, lágrimas… e um kit de sobrevivência


    Estou no carro e ouço pela rádio que, nos últimos dias, a União Europeia lançou mais uma recomendação digna de Independence Day: a criação de um kit de sobrevivência para 72 horas, destinado a preparar os cidadãos para cenários de emergência, incluindo desastres climáticos, guerras e pandemias… Ou (digo eu) a aterragem de um OVNI com “bonecada” lá dentro perigosíssima. Nada que os terraplanistas não tenham avisado.

    As 72 horas parecem uma versão reciclada dos 15 dias para aplanar a curva. Soa a briefing de um reality show: Survivor – União Europeia Edition.

    O alerta chega com um tom grave, quase apocalíptico, como se estivéssemos a entrar numa nova era de catástrofes permanentes. Segundo um amigo meu, já não é a excepção permanente, mas sim a sketchização permanente, como se nunca mais saíssemos de dentro de um episódio do Flying Circus.

    A questão que se impõe, porém, não é a necessidade de precaução – que sempre existiu – mas sim a insistência numa narrativa que reforça o medo como instrumento de governação. Nada de novo na frente ocidental.

    Mas estes ocidentais querem a guerra, ajudando a Ucrânia. E paz não?

    Sai mais barato.

    Bolas, ainda ontem vi O Herói de Hacksaw Ridge, um filme curioso e a guerra é assustadora.

    Que vá para lá o Macron ou o António Costa. Já não basta terem de arranjar 800 mil milhões de euros para a financiar?

    Agora a von der Leyen anda a brincar aos porta-aviões? Vendem-te a guerra e depois o kit. Gostava de saber o que é que a BlackRock acha disto. Senão pergunto à Vanguard.

    Antes de mais, convém recordar que a ideia de kits de emergência não é nova. Países como o Japão, habituados a desastres naturais, há muito que promovem medidas desse género.

    Antes da pandemia, a única catástrofe natural da nossa geração tinha sido umas horas sem luz. E pronto… A Grécia do Euro 2004 também.


    Ultimamente, é um ver se te avias infinito. Agora, a UE quer que tenhamos comida, água e mantimentos para 72 horas. Basicamente, um festival de música sem concertos e sem drogas.

    Mas, no caso europeu, a novidade está na amplitude do alerta, na conjugação de múltiplos riscos e, sobretudo, no subtexto da comunicação: uma sociedade em permanente estado de ameaça.

    A mensagem é clara: o cidadão deve estar preparado para sobreviver sozinho, pelo menos por três dias, porque não pode confiar que o Estado o proteja de imediato.

    Se estiverem 40 graus, o Estado não tem culpa. As pessoas é que consomem demais. Agora olha… três dias a ver o sol aos quadradinhos. O nosso dióxido de carbono dá cabo da floresta. Este é o oxigénio que a União Europeia amassou.

    De cortar a respiração…

    E nesses três dias de reclusão, haverá Wi-Fi? Aí, sim, em caso de corte haverá rebelião de certeza.

    Ao invés de um debate sério sobre resiliência social e infraestruturas de emergência, o que temos é um apelo individualizado à autossuficiência.

    A responsabilidade de garantir um mínimo de segurança desloca-se para o cidadão comum, que deve agora assegurar reservas de água, alimentos, medicamentos essenciais e até fontes alternativas de energia para ver na Netflix filmes sobre… catástrofes naturais, claro!

    O sossego devia ser uma palavra retirada do dicionário. Já não se usa.

    Na notícia, não há qualquer menção a reforços significativos nos serviços públicos ou a investimentos estruturais que tornem estas medidas desnecessárias. Apenas a exigência de um pequeno bunker portátil. Provavelmente feito na China. Outro inimigo.

    Haverá um kit premium? Com ostras champanhe e abacate?

    O que mais impressiona nesta narrativa é a sua lógica de escalada. Não falamos apenas de kits de emergência para inundações ou incêndios, problemas há muito reconhecidos e já integrados em planos de proteção civil. Agora, o espectro do risco é alargado para incluir cenários de guerra e novas pandemias.

    As gripes andam aí. É fácil um morcego enganar-se e comer um pintassilgo para depois o Rodrigo Guedes de Carvalho nos dar umas prédicas com kit completo incluído.

    Depois de uma crise sanitária global que serviu de ensaio para um controlo social em larga escala e em plena guerra na Ucrânia, a UE parece querer que todos os cidadãos se comportem como pequenos sobreviventes urbanos, preparando-se para um futuro incerto e perigoso que faz The Day After parecer o D’Artacão.

    Não será de estranhar que, em breve, surjam “packs certificados pela União Europeia” disponíveis no mercado, promovidos como itens essenciais para qualquer lar europeu consciente. O meu kit vou comprá-lo à feira do relógio. Traz de certeza uma bifana de bónus.

    As oportunidades económicas são evidentes: de fabricantes de alimentos liofilizados a empresas de purificadores de água, há toda uma nova indústria à espreita. No fim de contas, o medo é sempre um excelente negócio.

    Mas quem é que inventou esta palhaçada? Coitados dos miúdos que deixaram de jogar com a Intel e passaram a ser Incel. Se foi um palhaço, era do antigo Circo Mariano, de certeza.

    Não querendo com isto defender criminosos, claro. Mas generalizar?

    É legítimo questionar se este tipo de recomendações são realmente necessárias ou se fazem parte de uma estratégia política mais ampla.

    Num continente onde a confiança nas instituições tem vindo a deteriorar-se, fomentar o medo pode ser uma forma eficaz de manter a população numa espécie de obediência preventiva. A sensação de crise permanente reduz a capacidade crítica e fomenta um conformismo passivo: se a ameaça é inevitável, então resta apenas seguir as diretrizes das autoridades.

    Esta abordagem não é inédita. Durante a pandemia de covid-19, as mensagens institucionais oscilaram entre a necessidade de controlo social e a culpabilização individual, com a tentativa de venda do StayAway Covid pelo Paulo Portas na TVI sem grande sucesso.

    Agora, com o foco alargado para as alterações climáticas e conflitos geopolíticos, a fórmula repete-se. O cidadão não deve apenas ser responsável pela sua saúde pública, mas também pela sua própria sobrevivência em caso de colapso temporário dos serviços essenciais. O Estado não tem culpa nenhuma.

    Peçam o livro de reclamações à Rússia.

    O problema deste tipo de discurso não é a falta de fundamento, mas a ausência de soluções estruturais para lidar com os desafios que nos são apresentados.

    Não se trata de um jogo de Paintball em Belas, em que nos podemos safar sozinhos. Agora, trata-se mesmo de perigos que levam à morte. Aqui, a haver humor, é mesmo negro.

    Negro escuro.

    O Estado, em vez de garantir sistemas de saúde robustos, redes de abastecimento resistentes e uma política energética coerente, aposta na lógica do “faça você mesmo”.

    Ficou punk.

    Em última análise, esta narrativa de autossuficiência não é apenas um reflexo das preocupações com um futuro incerto, mas também um sintoma de um modelo político que se demite de certas responsabilidades.

    Na pandemia, muitos políticos (e pessoas) – como veio a saber-se depois – não cumpriram regras e divertiram-se à grande em festarolas de arromba. Daqui a uns anos, já não se verá o 24 Hour Party People, mas sim o 72-Hour Party People. E, em vez de ser na Hacienda, será em Buckingham.

    Em vez de roqueiros a cair para o lado, teremos chefes de Estado.

    Esta abordagem, além de criar ansiedade desnecessária, legitima políticas de desresponsabilização.

    O resultado sem duvida é um progressivo enfraquecimento da ideia de comunidade e de solidariedade social, substituída por uma lógica quase empresarial de gestão de risco individual. O famoso neo-liberalismo de esquerda. Estou já a ver a esquerda caviar a pedir kits para 100 horas em vez de 72, com o alto patrocínio do Infarmed.

    Fogo, quem não gostaria de estar fechado 100 horas com o Louçã era eu. Só de imaginá-lo a dizer piadas… Preferia 50 do Fernando Rocha contando com as mais estúpidas, que 2 do Louçã.

    Em suma, não se trata de ignorar a necessidade de precaução – porque, claro que desastres acontecem e a preparação é útil –, mas sim de questionar por que motivo as respostas políticas se centram cada vez mais na lógica do medo em vez da prevenção sistémica.

    Concluindo. O mais engraçado disto tudo é a transparência do modelo: primeiro criam-se as condições para o colapso – cortes na saúde, privatizações, precariedade energética – depois vendem-se soluções individuais para problemas colectivos.

    É um meta-capitalismo de desastre gourmet, agora numa versão mais higiénica, com selo europeu e talvez até uma estrela Michelin, se fores VIP. 

    A classe média já era. E agora fica só com 72 horas para apertar o cinto. Tipo jogo de computador.

    Mas vejam lá o Wi-Fi. Depois ficamos sem saber como é que o Gerard Depardieu sobreviveu numa cave sem Confit de Canard.

    Enfim, mais uma vez o Flying Circus encontra-se com o 1984 na Feira Popular para celebrar este admirável mundo novo que está a ficar velho.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações: Swimming Pool Project


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.