RODRIGUES DOS SANTOS I Certa vez entrevistei o grande masturbador JRS. As perguntas nausearam-no e pôs-se com apartes de seresma, debitando teorias literatas, achando-me um neófito a quem podia dar baile. Não piscou o olho. Saiu de cena com a minha deixa de mandar cumprimentos ao Boris Vian.
Na promoção em curso, o grande masturbador deu uma entrevista à Sábado onde se arvorou como um pioneiro do romance factual sobre Auschwitz ao contar a história do mágico e dos rituais ocultos do Fuhrer. Este cagão, desonesto intelectual, prosador medíocre, não teve réplica da jornalista Rita Bertrand ao dizer tal dislate. Bastava nomear Primo Levi para lhe dar com o esfregão na tromba de boneco da Maconde. Quem pode ler esta criatura a não ser para o remeter para o chão dos escrevinhadores oportunistas?
PAPA I A Humanidade precisa de iniciados. De exemplos virtuosos e coerentes de Amor, Paz, Compaixão, Humildade e Sabedoria. Um Papa ou qualquer mentor de qualquer procedência deve reunir este quinhão de virtudes. Passar do estado animal ao degrau da cooperação abnegada. A fé é além de igrejas e egrégoras. Implica remover as guerras do binómio da Vida.
ESCLARECIMENTOS I Antes de ter os jornalistas e o povo à perna cumpre-me dizer dos meus pecadilhos: comprei uma casa aos 22 anos com recurso ao crédito jovem bonificado. Por insistência da minha segunda esposa, vendi a casa que estava em meu nome e era eu que a pagava, e comprei outra a meias, que mais tarde, em virtude do divórcio, vendi ao desbarato, mas que a senhora teve a decência de não me ficar com a parte do lucro que havia reinvestido. Uma senhora como deve ser. Depois, comprei outra, também a meias, com outra esposa, aplicando a totalidade das mais-valias, sendo que graças a um descuido na gestão do seu IRS, a terceira e última esposa me fez perder a totalidade do que tinha investido, bem como a casa. Coisas do romantismo e da falta de prudência a assinar o contrato. Fiquei de mãos a abanar. Hoje, não tenho outro remédio senão arrendar ao preço de mercado. Noutros domínios, do corpo e espírito, não fui santo e tive aventuras a dar com um pau, que me deram apenas o ensejo de não mais ir por aí. Não tive nem terei heranças, tal como não tive semanadas e mesadas. Tive avós generosos mas cuja maior riqueza estava nos afectos e no respeito por uma criança. Não tenho contas na Suiça. No meu ramo, sou como todos: vivo da generosidade dos estrangeiros. Ganho dez por cento de direitos de autor e em vinte anos e vinte livros editados, tudo junto o pecúlio dá para comprar uma caixa de Cohibas. Senhores imperialistas, não vos tenho absolutamente nenhum medo. Nem de nenhuma espécie de chibos ou detractores. Confesso que …i.
CASOS I Sou daqueles líricos que acha o seguinte: casa, educação, saúde e trabalho são bens essenciais cujo acesso deve ser acessível a todos sem excepção. Segundo uma abécula de uma associação de senhorios a habitação não é um problema nacional. Diz o proprietário que a maioria dos portugueses possui uma casa, pelo menos. Deve estar a referir-se a uma casinha de bonecas. Por outro lado, quem arrenda tem muito por onde escolher, diz a cavalgadura. Deve estar a referir-se aos estrangeiros abonados que se instalam por cá como turistas. Basta pesquisar sites de alojamento para ver que abaixo de 800€ não se arrenda népia, a não ser um quarto ou um buraco na Buraca. 200 mil euros é o preço de base para aspirar a ter casa própria. Ter filhos é um luxo. A educação é um milagre da dedicação de professores extenuados e mal pagos. A saúde um acaso da sorte. O trabalho é de quem mais ordena. O salário mínimo é dos mais baixos na Europa e assim será. Os níveis de literacia espelham-se na abstenção e no número de livros comprados e lidos. Mais depressa um português se indigna com as arbitragens da bola do que se a vida é um exercício de sobrevivência em vez de um combate às reais injustiças.
OS MEUS LIVROS I Fico feliz quando me perguntam por um novo livro. Mais ficarei se forem às livrarias encomendar um par ou mesmo uma dúzia, dos 17 editados. A minha editora é a Leya/Oficina do Livro, mas quem está por detrás dos romances é a Maria Do Rosário Pedreira, porventura a referência máxima na edição em Português, além de poeta de fino recorte, letrista de fados e um ser humano de Exa. O mais importante na vida é a amizade, de onde brotam conselhos de abrir a pestana. Editei livros com a A23, do meu amigo Ricardo Paulouro, na Escritório, do Miguel Neto, na Nova Delphi, com o grande poeta e amigo Vítor Sousa, e na Âncora. Livros bonitos. Gosto de todos os meus livros, uns mais conseguidos do que outros. Graças à MRP aprendo muito sobre o cuidado, a confecção e a congruência. Tal como há dois ou três leitores cujo parecer me é fundamental. Quanto a vendas, não posso competir com o marketing. Por outro lado, não temos falta de autores de qualidade. A maioria não pode viver em exclusivo dos direitos de autor. É uma sina de antanho. Sem leitores e compradores não há autores a tempo inteiro.
P.S. Em Maio há novo romance. O Judeu de Santa Engrácia. Um thriller histórico
Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)
As ilustrações foram elaboradas com recurso a inteligência artificial.
Cristiano Ronaldo, melhor jogador do Mundo desde a extinção dos dinossauros, que da pedra poliam jogadas de força — e um dos melhores da Academia de Alcochete —, é tão bom profissional que depois dos treinos mergulha numa banheira de gelo.
Eduardo Quaresma, melhor animador do balneário e dessa prestigiada Academia desde os tempos de Bruno de Carvalho, é tão irresponsável e ligado à corrente que quando chega a casa atira-se à namorada.
— Ai, Edu, se continuas assim qualquer dia dá golo!
Quando o ovo estrelado lhe rebentou no prato, ao comer uma alheira de frango por causa da dieta, o treinador Rui Borges teve um estranho pressentimento sobre o jogo com o Gil Vicente. Sem Ousmane Diomande, castigado por preconceito religioso do Conselho de Disciplina, teria de colocar no centro da defesa o holandês com nome de Santo Justo. Em tempos de comoção pela morte do Papa, poderia a equipa de arbitragem aproveitar as correrias dele, como na final da Taça do ano passado, para pilhar galinhas em terra relvada, a fim de animar a prima delas que se exibe pelos ares no Estádio da Luz em troca de uma ração de minhocas.
— Ana Luísa, isto não está a saber-me bem. A minha avó já dizia que a alheira é como a verdade desportiva: na nossa terra só se faz com carne de porco.
Com 11 batatas fritas no lugar das caricas dos tempos de Mirandela, o treinador transmontano desenhou na toalha de riscas verdes e brancas um plano para, em caso de necessidade, dar a volta ao resultado. Colocou Eduardo Quaresma de início, ao lado direito do Justo, com o objectivo estratégico de compensar as corridas em profundidade com fintas e piadas enervantes a toda a largura do campo.
— Vai lá e manga com eles, rapaz. Não lhes dês vagar!
E o Eduardo assim subiu ao relvado, de camisola às riscas, disposto a espalhar a mostarda no nariz dos adversários. Para reprimir as saudades de casa, durante 90 minutos mais tempo de sobremesa, aproveitou os pontapés de canto para lhes contar que o galo de Barcelos tem pele de galinha da segunda circular e provavelmente é transgénico. Em lugar de se rirem com uma piada tão sofisticada, provavelmente de Dijon, eles só se atiravam para a relva em lágrimas. E assim foram passando o tempo, para contentamento culinário do treinador que tinha prometido dar o título ao do outro lado.
— Chorem e rebolem muito, rapazes. Isto está quase!
Com o jogo a dar as últimas, Eduardo mudou de táctica: calou-se muito caladinho e enfiou-se de surra na meia-lua. Aos 93 minutos, num derradeiro pontapé de canto, a bola veio ter com ele, redonda como a maçã com que Eva tentou Adão, para nossa eterna perdição e pecado diário de concupiscência. Cheio de saudades, o rapaz lembrou-se do último treino em casa. Sentiu-se como o marinheiro Popeye a comer espinafres, depois de um prolongado jejum no mar alto. Tirou as medidas aos postes, que lhe pareceram tão familiares como tentadores, e deu à bola uma cacetada carinhosa, com selo de amor e de golo.
— Golo, golo, golo! Eduzinho, Eduzinho, eu não te dizia? Toma banho depressa, que eu já te preparei o jantar de que tu mais gostas.
E foi assim que o derby decisivo ficou resolvido, por antecipação e com dois resultados possíveis. A descarga eléctrica no estádio, do relvado às bancadas, foi tamanha que poucos dias depois provocou um apagão na Península Ibérica, que deixou às escuras todos os grandes estádios, do Riazor ao Mestalla. O inesperado fenómeno inspirou Bruno Lage a fazer, à luz das velas, uma reza a São Narciso e uma premonição histórica.
— Vai ser o jogo do Século.
Pelo sim pelo não, realizou-se ainda de dia e às claras, com os comboios parados e o metro outra vez avariado. Como se tem visto em muito clubes, não é fácil recuperar de um apagão. Victor Gyökeres, que é uma turbina nuclear, apresentou-se ao guarda-redes Trubin a meio gás. Já o capitão Morten Hjulmand, em compensação nórdica de potência, rolou sobre a relva como eólicas em noite de tempestade, com energia para dar e vender caro, quer os clientes queiram ou não.
Retrato ao estilo de Caravaggio (‘pintado’ pelo ChatGPT) alusiva à (suposta) falta de um jogador do Benfica contra o Gyökeres, belíssimamente fotografada por Tiago Petinga para a Lusa.
O árbitro também beneficiou o espectáculo, com intervenções intermitentes, a tentar disfarçar para que lado lhe soprou sempre o vento durante o campeonato. Calhou um jogador do Benfica, em acção de legítima defesa, ficar de braço enrolado ao pescoço do melhor marcador da Europa civilizada. João Pinheiro perdoou a falta e o correspondente cartão vermelho ao avançado, apesar dele, com as cordas vocais, ter agredido em flagrante o cotovelo adversário.
Quanto ao VAR, parecia escondido numa caverna do estádio, à procura de lítio ou outros minérios preciosos. Aos 17 minutos, Nicolás Otamendi aplicou um castigo às canelas do Trincão, dentro da área. Compreensivelmente, o ancião argentino agiu cego de raiva, mas com toda a justiça, porque o craque do Sporting marcou um golo quando ele ainda estava no tempo de aquecimento adequado a esta fase da carreira.
São Narciso não aguentou mais: desligou a televisão, com receio de apagar a luz por sobrecarrega de golos na rede de baliza da casa. Foi uma atitude meritória: poupou electricidade, vai animar a economia mais uma semana e muda a festa para o local certo.
— Juízo, malta. Vocês merecem ser felizes e o Eduardo Mãos Marotas tem de ganhar dois campeonatos seguidos, que está na idade.
Portugal é, em muitos dias, um país soalheiro e tranquilo — pelo menos na aparência. Este sábado foi um desses dias mornos de primavera citadina, sem tempestade, sem alerta da Protecção Civil, sem o Rui Fonseca e Castro a querer fazer bifanas no Martim Moniz — mas revelou-se, afinal, um perfeito retrato da crónica inépcia lusitana.
Em dia de campeonato ao rubro, com a possibilidade de se coroar o campeão nacional, eis que o Metropolitano de Lisboa decide… fechar. Encerrar. Trancar quatro estações mais de duas horas antes do apito final de um jogo que faria pulsar a capital. Dir-me-ão que foi uma questão de segurança. Pois sim. Mas de quem? Do bom senso? Mas que dizer, então, de uma falha de electricidade que parou o dito metropolitano em quase todas as estações logo às cinco da tarde? Já foi segurança ou incompetência? Portanto, ficámos, eu e o sportinguista Carlos Enes — cuja teimosia clubística já granjeou lugar nos anais da fé cega — à porta da estação dos Anjos, ou do Intendente, já não sei. Se foi do Intendente, bem que os administradores do Metropolitano de Lisboa mereciam levar com o Pina Manique, o verdadeiro.
Enfim, a menos de uma hora do jogo do título e nós, dois homens feitos, jornalistas prevenidos, encontrávamo-nos a mendigar mobilidade. Valeu-nos o Uber, esse milagre pago a peso de ouro, malgrado a espera. Fomos levados pelo Malkit, classificação de 4,91 em 5, num Renault com uma curiosa matrícula iniciada por AD. Vinte minutos de jogo foram perdidos. Um pecado em dia de epifania futebolística.
Mas a irritação, como se sabe, é uma erva daninha que se alastra. E o Carlos Enes, fiel ao seu evangelho leonino, não tardou em começar a vociferar contra o árbitro João Pinheiro ainda no Uber. Que ele era isto, que era aquilo, que o homem só via vermelho quando era para os verdes, que só marcava penáltis quando era contra Alvalade. Já ouvira tais lamúrias antes, mas ontem, confesso, o tom de queixa parecia vir com lastro estatístico.
Apeteceu-me calar-lhe os protestos, mas decidi, em nome da paz do Uber e do método científico, consultar a inteligência artificial. Talvez a frieza algorítmica nos trouxesse alguma claridade. E assim foi. Lancei a pergunta com as estatísticas que cirandaram na semana passada pelas redes sociais: “Haverá razões estatísticas para desconfiar de João Pinheiro?” O ChatGPT, que já me havia esclarecido questões de Economia, Meteorologia e História, respondeu com inesperada contundência.
Estatística ‘enxertou’ durante uma semana João Pinheiro.
Disse-me que sim, a disparidade nos penáltis aplicados por João Pinheiro contra o Sporting (7 contra apenas 1 contra o Benfica) era improvável sob uma distribuição equitativa. Acrescentou que os cartões vermelhos (9 vs. 1) revelavam uma assimetria preocupante. E rematou: a percentagem de vitórias do Benfica com João Pinheiro (68%) superava em muito a sua média histórica em provas nacionais. Conclusão? O Sporting tinha razões fundadas para desconfiar. Nada disto prova dolo — sublinhava o algoritmo —, mas justifica uma auditoria independente. Uma espécie de VAR científico.
Disse isto ao Carlos Enes, que rejubilou com a validação estatística do seu calvário. E, porque o destino gosta de ironias, vaticinei logo: “Então hoje vai compensar. A pressão é tanta que vai inclinar o campo… mas para o outro lado.” Não sendo versado em Psicologia, está nos livros. E não me enganei.
É certo que perdemos os primeiros 20 minutos — entre os quais uma alegada falta do Otamendi sobre o Pote, aos 17 minutos, que Carlos Enes jurou depois ser penálti claro. Mas aquilo que vimos — quer dizer, eu vi; eles não — a seguir foi um festival. Um Pinheiro tão zeloso que parecia ter sido regado, adubado e podado pelos deuses de Alvalade durante a semana. Uma exibição tão florida que, mesmo sem rega ao intervalo, a todos espantaria pela exuberância botânica.
Veja-se:
Minuto 25: após canto de Di María, Otamendi cai na área e queixa-se de empurrão de Debast. O Pinheiro, sereno como um carvalho, ignora o VAR e resolve premiar o banco do Benfica com um amarelo pedagógico.
Minuto 44: nova queixa do Benfica por mão na bola de Debast. Pinheiro, inflexível como uma sequoia, decide que o melhor é expulsar mais um elemento da equipa técnica encarnada. Didáctica com pulso.
Minuto 60: Hjulmand deixa Aktürkoglu no relvado. O árbitro, talvez confuso pela brisa primaveril, interrompe o jogo e penaliza… Florentino, por uma falta anterior. Nada como viver em tempo elástico.
Minuto 83: falta de Hjulmand sobre Kokçu. Os encarnados pedem o segundo amarelo. Pinheiro abana a cabeça como um salgueiro zen e prossegue, tranquilo, rumo à eternidade.
Mas o mais notável nem esteve nestes lances, esteve nos sopros. Nos pequenos toques. Nas brisas que abanavam os gémeos dos jogadores leoninos. João Pinheiro via tudo. Sentia tudo. Apitava cada lamento dos sportinguistas como se escutasse a alma dos médios. E enquanto o guardião leonino Rui Silva se deitava, espreguiçava e perdia tempo com mais arte do que o cronómetro do Coliseu de Roma, Pinheiro deixava correr. A relva da Luz, então, parecia um relvado de piquenique para os lagartos que estiveram mais tempo deitados de barriga para cima do que com os dois pés no chão. E no fim, sete escassos minutos de desconto, como quem oferece um rebuçado a uma criança que perdeu o almoço.
Não sou dado a falar de arbitragens. A maioria das vezes, os erros compensam-se ou desculpam-se com o factor humano. Mas neste jogo, neste particular sábado, viu-se algo raro. Um milagre agronómico. Sempre me disseram, nas aulas de Biologia do secundário, que as angiospérmicas não podiam ser enxertadas de modo a mudar de fisiologia. Mas ontem, caro leitor, assistimos a uma revolução científica. Um Pinheiro, árvore robusta, vertical e previsivelmente imune a enxertos, transformou-se. Enxertaram-lhe tantas durante a semana passada que João Pinheiro ganhou raízes de acácia. Sim, aquela árvore de copa larga, onde os leões descansam na savana, à sombra do vento e da complacência. No estádio da Luz, os leões tiveram um abrigo botânico único: João Pinacácia.
De resto, ganhe quem ganhar o campeonato — e digo-o com o respeito clubístico que me é próprio —, o país precisa de mais do que árbitros compensadores. Precisa de transportes que transportem. De horários que se cumpram. De decisões que não nasçam da burocracia, mas do bom senso. Porque um país onde os jogos decisivos não se jogam de forma decente, os metropolitanos não andam ao sábado e os pinheiros ganham folhas de acácia… é um país que, mesmo ao sol, continua às escuras. Não nos admiremos pelos apagões eléctricos, mas sim por acharmos normal a anormalidade.
Porque é que ver sofrer nos sabe tão bem – ainda que o neguemos? Esta pergunta, desconfortável mas inevitável, percorre silenciosamente a história da Humanidade. A resposta não se encontra nos tribunais, sob as suas mais diversas formas desde a Antiguidade até ao sistema judicial actual, mas sim no cérebro humano, devido aos atalhos emocionais que utilizamos, e na estranha satisfação que sentimos quando o “outro” sofre aquilo que “julgamos” que merece.
Do Coliseu romano (morte por lançamento às feras) à forca de Owensboro, no Kentucky, onde em 1936 ocorreu o último enforcamento público da história dos Estados Unidos da América (em Portugal foi em 22 de Abril de 1846, na Praça d’Armas, em Lagos, e o executado foi José Joaquim Grande); da guilhotina francesa – proposta pelo médico parisiense Joseph-Ignace Guillotin, tendo em vista acabar com a tortura dos executados e, por uma questão de igualdade, submeter todos os condenados à mesma forma de execução, tendo sido utilizada pela primeira vez em 1792 – à cadeira eléctrica da Florida, onde em 1989 Ted Bundy foi executado; da fogueira inquisitorial à câmara de injecção letal em Terre Haute, Indiana, onde em 2001 Timothy McVeigh deu o seu último suspiro. Ao longo dos séculos, a execução de criminosos foi mais do que justiça: foi espectáculo. E o que se celebrava não era apenas a lei — era o prazer socialmente aceite de ver o outro sofrer: a schadenfreude.
Em 1321, em França, a população acreditou que os leprosos estavam a contaminar os poços com veneno. Sob tortura, confessaram a existência de uma conspiração diabólica com judeus e muçulmanos, tendo tudo culminado com massacres — sobretudo de leprosos e judeus — que ficaram conhecidos como a “Trama dos Leprosos”. A população, mais do que tolerar os castigos, regozijou-se com eles.
O mesmo aconteceu no caso de Robert-François Damiens, o último homem a ser esquartejado em França, em 1757. A sua execução foi um grande evento social. Alugaram-se apartamentos com vista privilegiada, houve venda antecipada de lugares, e entre a aristocracia encontravam-se figuras como Casanova, que inclusive relatou a execução como uma experiência quase erótica.
Em Owensboro, mais de 20 mil pessoas apareceram para assistir ao enforcamento de um jovem afro-americano, Rainey Bethea, acusado de violar uma mulher branca. A maioria das pessoas dormiu ao relento para garantir um bom lugar. Houve comida de rua, bebidas, diversões, apostas. Euforia. Tudo para ver um corpo cair.
A execução de Ted Bundy foi recebida com churrascos temáticos e a multidão a gritar fora da prisão: “Frita, Bundy, frita!”. Com Timothy McVeigh, organizaram-se eventos mediáticos e existiram zonas VIP para jornalistas com serviço de catering.
Nenhuma destas execuções foi apenas justiça: eram um grande espectáculo!
E se hoje as execuções perderam alguma visibilidade pública, existem menos e o sofrimento ocorre dentro das prisões, fora dos olhares do público, não significa que o impulso popular tenha desaparecido. Transferiu-se para outros palcos: as redes sociais, os tribunais mediáticos com os seus juízos paralelos a tentar interferir (e a conseguir) na realização da justiça, os reality shows da indignação. A propósito de um episódio recente, em que se viu agentes da PSP a “carregar” sobre determinados manifestantes com bastões, foi possível ler vários comentários nas redes sociais: “Soube mesmo bem”! A schadenfreude modernizou-se, mas continua bastante activa. Cancelamos. Expomos. Punimos.
Eventualmente, o mais difícil não será explicarmos porque nos juntávamos para ver morrer. Talvez o mais inquietante seja perguntar: porque ainda o fazemos, ainda que com outras ferramentas?
O prazer de punir, ou de ver punir, continua a saber bem. A diferença é que agora, por vezes, tendemos a negar esse prazer a nós mesmos.
Schadenfreude é uma palavra de origem alemã que combina duas ideias: Schaden (dano, prejuízo) e Freude (alegria, prazer). Em resumo, refere-se ao sentimento de prazer ou satisfação diante do infortúnio de outra pessoa. Embora esse sentimento seja frequentemente considerado socialmente inaceitável ou moralmente questionável, ele é mais comum do que muitas vezes admitimos — e possui raízes psicológicas e sociais bastante profundas.
Estudos com neuroimagem (fMRI) mostram que a schadenfreude activa áreas do cérebro ligadas ao prazer, como o estriado ventral, a mesma região activada por recompensas como comida ou dinheiro. Ou seja, o cérebro literalmente recompensa-nos com uma sensação prazerosa quando testemunhamos o fracasso de alguém que invejamos ou não gostamos.
Um estudo clássico (Takahashi et al., 2009) demonstrou que os participantes experimentavam mais schadenfreude ao ver pessoas que invejavam sofrerem dor, e essa resposta era maior quando sentiam inveja activa. Isto reforça a ideia de que a emoção está interligada a sentimentos como inveja, comparação e justiça.
Efectivamente, essa emoção “prazerosa”, directamente relacionada com o infortúnio alheio, é quase sempre acompanhada por uma micro-expressão de franzir de cenho involuntário, realizado em simultâneo com as agressões a que assistimos, a par de um sorriso. Nas situações em que o castigado é alguém que vemos como tendo tido um comportamento anti-social, e como tal merecedor de castigo, esse acto involuntário pode aumentar exponencialmente, para cerca de quatro vezes.
Este prazer não surge de forma isolada. Está relacionado com vieses cognitivos profundos: o viés da justiça, consubstanciado na crença de que o mundo deve ser justo e de que os maus devem ser punidos exemplarmente. Por exemplo, quando vemos alguém que acreditamos ter enriquecido de forma duvidosa ser preso, a sensação é de prazer moralizado, como se a ordem tivesse sido restaurada. A schadenfreude, neste caso, é a emoção que reforça este viés.
O viés da comparação social decorre da tendência do ser humano em comparar-se constantemente com os outros, de modo a avaliar o seu próprio valor ou sucesso. Numa situação em que um colega, que está sempre a gabar-se de ser mais competente do que nós, é repreendido, sentimos um alívio quase satisfatório. A schadenfreude, neste caso, é a emoção que sentimos na redução da distância percebida entre nós e o nosso colega, melhorando a nossa auto-estima.
O viés da aversão à perda é a circunstância de sofrermos mais ao perder algo que possuímos do que temos prazer em ganhar algo de valor equivalente. Se sentirmos que estamos a perder por comparação com outros (estatuto, oportunidades, atenção, etc.), ver esses outros a sofrerem uma perda mitiga a nossa sensação de perda. Existe como que um reequilíbrio, actuando aqui a schadenfreude como a emoção que faz a compensação emocional.
O viés endogrupal/exogrupal concretiza-se na tendência para favorecer os membros do nosso grupo e olhar os membros de outros grupos com mais desconfiança ou hostilidade. Sentimos prazer quando um grupo rival sofre uma perda, porque isso reforça a superioridade e identidade do nosso grupo. Um bom exemplo é o adepto de futebol sentir alegria quando o clube rival é eliminado, mesmo que o próprio clube tenha perdido. A schadenfreude é a emoção colectiva partilhada socialmente.
O viés de confirmação é a tendência de procurar, interpretar e lembrar informações que confirmam as nossas crenças prévias. Temos uma opinião negativa sobre alguém; vê-lo fracassar não só confirma a nossa visão como gera prazer. A schadenfreude funciona como uma espécie de recompensa emocional por estarmos certos.
O prazer que sentimos ao ver um “culpado” sofrer tem explicação neurológica. O nosso sistema mesolímbico dopaminérgico, responsável pelo processamento de “recompensas” no nosso cérebro, é activado perante o sentimento de que a “justiça” foi feita. Os estudos de neuroimagem demonstram que o núcleo accumbens, associado ao prazer, reage à punição de quem percepcionamos como tendo tido um comportamento anti-social, ou mesmo de quem julgamos ser anti-social, mesmo que não exista nenhum comportamento associado (por exemplo, em situações de racismo e xenofobia).
O sistema mesolímbico dopaminérgico envolve a área tegmental ventral (VTA), onde se inicia a libertação de dopamina; o núcleo accumbens (NAcc), que é o principal centro de recompensa e motivação; a amígdala, o hipocampo e a zona do córtex pré-frontal, que são responsáveis pela emoção, memória e regulação cognitiva.
Este circuito mesolímbico dopaminérgico é activado por experiências gratificantes: comida, sexo, cocaína, sucesso social, elogios, etc., e surpreendentemente (ou não), também pelo sofrimento alheio, na medida em que esse sofrimento nos satisfaça um desejo psicológico, como ver restaurada a justiça, superar a inveja ou reduzir a frustração. Em situações em que o terceiro nos tenha feito algo directamente que consideremos injusto, a ínsula, o córtex cingulado anterior e a amígdala activam-se, configurando um quadro de repulsa, sofrimento e raiva, o que poderá originar um aumento de prazer pelo infortúnio alheio.
Ou seja, em contextos de schadenfreude, o sistema mesolímbico dopaminérgico interpreta a queda do outro como uma “vitória relativa”, mesmo que inconsciente, activando o núcleo accumbens responsável pela sensação de prazer, libertando dopamina (de forma mais ou menos prolongada, consoante a intensidade do prazer) — o neurotransmissor da recompensa e da motivação.
Acrescendo a tudo isto, tornando-o mais interessante e até inquietante, está o efeito cumulativo da via dopaminérgica, porque a dopamina não só é um sinal de prazer momentâneo como condiciona e refina os nossos comportamentos futuros, através de reforço positivo, criando rotinas mentais e predispondo-nos a buscar experiências semelhantes.
Em casos extremos, pode reforçar padrões malévolos ou gerar insensibilidade, se o prazer em ver os outros “falhar” for constantemente recompensado. Nestas situações, o cérebro pode associar automaticamente o fracasso alheio à sensação de alívio ou de prazer, moldando uma tendência emocional condicionada inconsciente.
O juiz e académico (também ao nível da neurociência) Morris Hoffman argumenta, em The Punisher’s Brain, de 2014, que o impulso para punir é tão natural quanto o impulso para cooperar — são ambos faces da mesma moeda evolutiva. António Damásio tem defendido que as emoções são centrais na tomada de decisões morais, sendo a punição social uma dessas decisões moldadas por afectos.
Alguns autores, como Robert Sapolsky, explicam que este tipo de respostas socioemocionais está enraizado num complexo cruzamento entre neurobiologia e contexto. Em Determined (2023), vai ainda mais adiante, defendendo que o livre-arbítrio é uma ilusão e que os comportamentos humanos, incluindo o impulso de punir, resultam de causas neurobiológicas e ambientais.
Segundo esta visão determinista, até o prazer que sentimos com o sofrimento alheio não é escolha nossa, mas sim consequência de uma cadeia causal complexa, onde não existe margem para o livre-arbítrio — ou, pelo menos, ele é muito mais reduzido do que pensamos.
Punimos, muitas vezes, não por justiça — mas por prazer. A questão não é se isso é humano. A questão é: o que fazemos com esse facto?
Miguel Santos Pereira é advogado.
Referências:
António Damásio, O Erro de Descartes (2011, Temas e Debates).
Helmut Ortner, Uma Breve História da Pena de Morte (2024, Alma dos Livros).
Leach, C. W. et al. (2003). Malicious Pleasure: Schadenfreude at the Suffering of Another Group.
Morris Hoffman, The Punisher’s Brain: The Evolution of Judge and Jury (2014, Cambridge University Press).
Robert Sapolsky, Comportamento (2018, Temas e Debates) e Determinado (2023, Temas e Debates).
Takahashi, H. et al. (2009). When Your Gain Is My Pain and Your Pain Is My Gain: Neural Correlates of Envy and Schadenfreude.
Quando Mohammed veio ao mundo, no beco do Surra, em Al-Hamma, governava Al-Hushbuna o Califa Saladino. Durante a reza da aurora, antes de começar o dia de trabalho, o profeta Arafat anunciou a boa-nova.
Está para nascer um cavalo que terá o dom de falar. Será hoje, quando o sol estiver a pino.
Os devotos, ajoelhados nos tapetes, soltaram um coro de inxalás. A profecia cumpriu-se e assim veio ao mundo Mohammed, no exacto momento do sol atingir o zénite.
O parto decorreu sem embaraços e pouco depois de ver a luz do dia já Mohammed dava pinotes e relinchava alto e bom-som com a particularidade de a cada saltinho dizer allahu akbar.
O meu nome é Sal-Azar e assisti a tudo, pois morava nas redondezas. A fama de Mohammed depressa chegou aos ouvidos do Califa e este ordenou a sua incorporação nos estábulos da Alcáçova. Coube-me a tarefa de escrever a história de Mohammed, sendo eu o responsável pelas narrativas de tudo o que se passava e se passa em Al-Hushbuna. Tudo teria decorrido sem grandes sobressaltos na vida de Mohammed não fora haver uma revolta no ano de 1492, que para os infiéis dominados era o ano de 2052.
Morava algures na terra de Chelas um agitador infiel de seu nome Geraldes conhecido por furar pneus com uma navalha afiada e pintar nas paredes a figura de um santo padroeiro com cara de anjo, que, segundo os seus seguidores, viria destronar os muçulmanos. Saladino, um homem supersticioso, temia estes rebeldes e pusera a cabeça de Geraldes a prémio. Encarregara o seu mais temível general, Ali, o Africano, de varrer a cidade a pente fino e procurar o infame Geraldes e a sua milícia. Noite e dia, montado em Mohammed, Ali vasculhava cada recanto de Chelas sem nunca lograr dar com Geraldes que devia ser esperto o suficiente para se disfarçar de árabe e andar por aí de barba comprida e jelaba.
Foi pois num dia como outro qualquer que Mohammed cheirou o esturro ao dar com um tuk tuk abandonado numa viela de Al-Hamma. Diz-se, pois eu não vi e só o soube por me terem contado as gentes que sobreviveram para contar, que o tuk tuk estava armadilhado e não fora as narinas de Mohammed serem prodigiosas, e ter este a capacidade de falar, e nem ele, nem o general Ali teriam escapado a esse dia e à explosão que se seguiu.
Saladino viu naquele incidente um motivo para reforçar as suas tropas e condecorar Mohammed pela sua façanha. Desde então quando os guias passam nos seus tuk tuks contam aos estrangeiros que nos visitam a razão de haver uma estátua de um cavalo preto como a fuligem num lugar de destaque, que é a praça mais bela de Al-Hamma, junto à velha cisterna e à amena enseada.
Parece que a história termina por aqui, mas muitas coisas se sucederam desde então. Mohammed está vivo, tal como eu Sal-Azar, e Geraldes continua a monte.
Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)
As ilustrações foram elaboradas com recurso a inteligência artificial.
Foi preciso descer, ou lateralizar, até à Linha de Cascais para confirmar que nem tudo no Estoril são mansões com vista para o mar — até há um estádio que, enfim, me fez recuar aos tempos em que assistia a jogos do Moitense na terceira ou quarta divisão dos distritais de Aveiro, nos anos 80. Exagero. Aquilo era um pelado, nem bancadas havia, e o mais entusiasmante era ver as cacetadas nas canelas e a ousadia dos guarda-redes a lançarem-se e a esfolarem-se todos na pedra solta.
Mas enfim, a minha visita ao estádio do Estoril-Praia deu para saber duas coisas. A primeira foi que, pobre de mim, sou um desgraçado frequentador da Varanda da Luz — e, nos últimos tempos, com passagem pela Varanda do Varandas, uma ida ao Dragão, outra ao Montjuïc, em Barcelona, e uma outra (que terá repetição este ano) ao Jamor. Portanto, sou frequentador de estádios com História, ignorando as vicissitudes dos pequenos clubes, mesmo em regiões onde o metro quadrado de construção ultrapassa, em certos sítios, os dez mil euros.
Por outro lado, fiquei finalmente a saber — mesmo se pouco — quem foi o António Coimbra da Mota. Pesquisei na Internet enquanto as equipas ainda aqueciam. Consta que terá sido um benemérito, cujos herdeiros devem estar agora a lamentar a doação — ou, pelo menos, a ponderar se o nome não merecia um estádio menos propenso a servir de abrigo ao vento e às sevícias meteorológicas do Guincho. Brincadeira, claro.
Não me posso queixar da experiência. A começar por pensar, ingénuo de mim, que seria rápida e fácil a viagem até ao estádio: comboio até ao Monte Estoril e depois um breve passeio até ao recinto. Porém, o progresso em Portugal é daquelas coisas que complicam sempre a vida a quem tem planos simples — e, assim sendo, a modernização da Linha de Cascais, mais a expansão da rede de metro, levou à suspensão dos comboios entre o Cais do Sodré e Algés durante este fim-de-semana. Resultado: acabei por recorrer aos serviços ‘uberianos’ da Elisabete — e lá fiquei às portas do estádio, bem a tempo de sacar a acreditação e entrar logo ali, com passagem pelo relvado para uma fotografia que, aliás, nunca consegui tirar na Luz.
Do jogo, verdadeiramente, pouco há a dizer. Ou melhor: o essencial foi dito pelo Tiago Franco. Acrescento, ainda assim, que nesta senda final de um dos campeonatos mais renhidos de que há memória (pelo menos desde que a memória dos benfiquistas se reduz à última jornada), procuro também disfarçar o meu nervosismo escrevendo sobre tudo e sobre nada.
Vai-se, pois, destacando a arquitectura do estádio, adequado a adeptos à moda antiga, que aguentam as intempéries da chuva, do sol e do vento — porque está quase tudo destapado, ao contrário do que sucede com os jornalistas da imprensa escrita, enclausurados numa espécie de aquário envidraçado que, embora os proteja dos elementos, também os impede de sentir o ambiente dos adeptos. De resto, quase todos benfiquistas. E como se não bastasse, ficam acantonados na ala norte, o que significa que só vêem bem um dos ataques.
No caso, porém, a sorte protegeu os envidraçados: tendo o jogo terminado com uma vitória por 2-1 do Benfica, e tendo o Estoril marcado na segunda parte, muito bem se viram todos os golos, mais a defesa salvífica de um penálti pelo ucraniano Trubin, que começa a ganhar lugar no coração dos adeptos.
Não foi uma vitória fácil — no Dragão, há um mês, foi canja. Aliás, foi um daqueles triunfos que envelhece os treinadores cinco anos em noventa minutos e que obriga os adeptos a roerem as unhas até ao sabugo. Ao intervalo, tudo parecia encaminhado para mais um jogo de gestão: primeiro golo, de Aursnes, saído dos manuais de boas práticas da UEFA; o segundo golo, em mais uma bola parada — onde, milagrosamente, agora o Benfica começa a parecer equipa grande —, deu uma falsa sensação de tranquilidade. Mas, como já se vai tornando hábito, a segunda parte trouxe o lado B: o recuo inexplicável, o golo do Estoril e a sensação de que o Benfica joga contra o cronómetro, contra si próprio e contra a inevitabilidade da ansiedade.
O Estoril, que é equipa bem orientada e com vontade de fazer mossa, cresceu. Os adeptos — ou, pelo menos, eu — sofrem, imploram que o tempo passe, e há sempre aquela sensação de que o árbitro irá dar sete, oito ou nove minutos de compensação. Mas tudo terminou em bem.
Para a semana, é o jogo do título. É isso que se diz. Mas antes do jogo do título, é preciso que esta equipa perceba que ainda não ganhou nada. Que não basta marcar dois golos em trinta minutos e depois entregar o controlo do jogo como se estivesse tudo decidido. O futebol é implacável para quem dorme cedo demais. E o campeonato português tem essa virtude: castiga os distraídos e glorifica os persistentes.
Por esta altura do campeonato, fazemos todos contas para que o derby chegue. Até lá — pelo menos na parte que me toca — desejo apenas jornadas calmas e com um onze que não trema das pernas.
O mistério de Prestianni e Schjelderup continua, sem que se perceba, a olho nu, como é que, na ausência de Di María, Amdouni é a opção mais natural.
A primeira parte não teve grande história, com o Benfica a dominar em ritmo de treino. O primeiro golo é de manual, com metade da equipa a jogar ao primeiro toque. O segundo começa a tornar-se um clássico no aproveitamento das bolas paradas. É particularmente estimulante perceber isso quando, ainda há poucos meses, a maior parte destes jogadores, com Roger Schmidt, não sabia que um canto ou um livre podiam ser ocasiões de golo.
Na segunda parte, o Estoril — uma das boas equipas do campeonato — veio com outra vontade e subiu as linhas. O penálti apareceu com alguma naturalidade, dada a pressão dos canarinhos. Pensei, ingenuamente, que depois da defesa de Trubin, Bruno Lage trataria de acordar as tropas, mas não: foi exactamente o contrário que aconteceu. O Estoril motivou-se e o Benfica deixou de ter a bola. Aliás, durante dez ou quinze minutos, os encarnados nem sequer passaram do meio-campo, e foi com alguma naturalidade que o golo do Estoril surgiu.
A luta no meio-campo intensificou-se, com muitos lances divididos e Florentino, sozinho, entregue a essa batalha. Samuel Dahl é um corpo estranho na lateral esquerda e lembro-me, na semana passada, de ter escrito que “descansar” Carreras contra o Estoril era um risco. Estes são os jogos que valem campeonato.
Schjelderup não entrou particularmente bem e os últimos vinte minutos foram de sufoco total por parte do Estoril. Lage tem as substituições escritas num papel que todos já conhecemos. Imagino que os treinadores adversários também as antecipem.
O Benfica meteu-se a jeito para ter um daqueles desgostos aos 98 minutos. Sim, porque, num jogo sem grandes paragens, tivemos todos direito a quase uma primeira parte de prolongamento.
Sobraram casos que serão discutidos durante a semana, mas o que se confirma é que, para a semana, o fraquíssimo campeonato português será decidido num jogo que se prevê de faca nos dentes.
Há domingos que começam com bom presságio. E não falo das promessas rotineiras de sol ou da esperança vaga de que as escadas rolantes do metro da Baixa-Chiado estivessem a funcionar — que não estavam. Não, falo de presságios a sério, daqueles que, se o mundo fosse mais honesto, fariam correr tinta nas páginas de astrologia e nas crónicas sérias, aquelas onde se desvendam as tramas tácticas que escapam ao comum dos mortais.
Pois bem, o meu bom presságio começou — pasme-se! — com o relógio a anunciar um atraso de oito minutos. Dir-me-ão que isso é hábito, e é. Mas este atraso, meus caros, foi providencial. Ainda não me instalara na Varanda da Luz, ainda nem resfolegara com o farnel na mão, e já Tomás Araújo punha a bola lá dentro. Golos assim, com a emoção concentrada sem o prévio suplício das primeiras hesitações, são dádivas dos céus, e não fosse eu um homem de pouca fé, acreditaria em milagres.
Mas vamos ao que interessa. Este texto, meus amigos, é um hino à liberdade. Mais uma vez, hoje não preciso de dissertar sobre as incidências e ‘conjunturas’ tácticas — sim, escrevo à antiga, como se deve —, porque para a ‘crónica da bola’, propriamente dita, há quem o faça com sapiência e com talento. O Tiago Franco decifra melhor do que ninguém as movimentações labirínticas do Aursnes, que para mim continua a ser um mistério nórdico, mas um mistério útil, daqueles que não se questionam, apenas se agradecem. Vê-lo ali, careca reluzente, varrendo o meio-campo com a elegância de quem passou a vida entre fiordes e relvados, é uma satisfação estética. Não entendo bem o que ele faz, mas sei que, sempre que joga, o meio-campo adversário se desfaz, como se tivesse sido devastado por uma tempestade escandinava.
E se há coisa que também me deixa em paz com a minha ignorância táctica é saber que temos agora o Pavlidis. Um nome que soa a promessa de golos, e que, sem ofensa, se parece cada vez mais com um Goykeres grego — se é que me entendem. Há quem diga que os gregos nos deram a democracia, a filosofia e o drama, pois então nos deram também o Pavlidis, que marca com a consistência de quem sabe que, no futebol moderno, a beleza está no simples acto de mandar a bola para dentro da baliza. E com ele, meus caros, já não se deve sofrer daquela ansiedade benfiquista do “será que é hoje?”. Não. Com Pavlidis, o golo é uma inevitabilidade que me tranquiliza. Isto sou eu agora a dizer, que já me esqueci do empate a duas bolas contra o Arouca!
Mas a razão maior desta crónica não está apenas nas quatro batatas bem aviadas ainda na primeira parte, e em mais duas na segunda – e deveram ter sido mais. A razão está num triplo contentamento que não posso deixar de partilhar. Primeiro, este prazer de escrever sem me perder em tácticas que me ultrapassam, num jornal onde a liberdade é mais sagrada do que qualquer VAR. Depois, a dita cuja cirurgia ao olho esquerdo, que finalmente me devolveu a capacidade de perceber que, afinal, daqui do alto, a diferença física mais visível entre o Prestianni e o Aursnes é que o primeiro tem cabelo. E, por fim, a cereja no topo da águia: tenho finalmente uma fotografia ao lado da Glória.
Sim, senhoras e senhores, depois de tantos olhares furtivos, de tantas tentativas frustradas, consegui. Um instante imortalizado ao lado da rapina-mor, augúrio maior de vitórias e, quem sabe, de títulos. E, deixem-me dizer, com a Glória ao lado, até me senti mais benfiquista. É como se, por um momento, partilhasse com ela a visão sobre o estádio, sobre a equipa e sobre este destino glorioso que, todos os anos, tentamos agarrar com unhas e dentes.
Enfim, há quem veja no futebol apenas um jogo. Outros vêem tácticas, números, percentagens. Eu, confesso, vejo mais. Vejo histórias. Vejo a liberdade de escrever sem as amarras da estatística. Vejo o Aursnes como um daqueles personagens de banda desenhada que resolve tudo com uma vassoura invisível. Vejo o Pavlidis agora como um semi-deus grego, que desceu à Luz para nos garantir domingos felizes. E vejo, com os meus olhos renovados, cada lance, cada corrida, cada golo, com a nitidez que antes só imaginava.
O próximo jogo aqui não será, certamente, tão descontraído. Em todo o caso, ainda haverá, entretanto, com grande probabilidade, uma varanda especial, ali para os lados da Linha… do Estoril.
Quando a equipa subiu ao relvado, lembrei-me do João Mário na era de Roger Schmidt. Por mais passes para o lado que fizesse, jogava sempre. Em tom de brincadeira, dizia-se, no terceiro anel, que o bom do João deveria ter “nudes” do treinador para o chantagear.
Vou por aqui, mas ao contrário, para tentar compreender a relação entre Schjelderup e o banco. Que mais terá o rapaz de fazer para entrar no onze de forma regular? Terá ele dito que choco frito não presta e ofendido o treinador?
Aos 10 segundos apareceu o primeiro e último susto na baliza de Trubin. António Silva perdeu-se na marcação e Trubin foi abalroado. Decididamente, não consigo compreender como é que António Silva, que tão novo se afirmou, treme constantemente perante qualquer adversário e parece estar sempre a sofrer de um défice de confiança. Terminou aos 2 minutos a entrada forte do AVS e começou um jogo de sentido único.
Numa liga tão desequilibrada como a portuguesa, e com um plantel com tantas opções, custa-me um pouco a perceber como é que o Benfica corre o risco de perder o campeonato até, por curiosidade, com dois pontos perdidos contra este fraquíssimo AVS.
Ochoa passou a primeira parte a fazer o que podia para evitar um descalabro maior, e a linha defensiva dos visitantes, com mérito, ainda conseguiu anular um par de ataques, colocando os avançados benfiquistas repetidamente em posição de fora-de-jogo. Ochoa é um daqueles jogadores conhecidos mundialmente sem que alguma vez, em 20 anos de carreira, tivesse jogado num clube de primeira linha. Mas participou em cinco mundiais, normalmente com algum destaque, na boa selecção do México. Um caso único na liga portuguesa.
Com Pavlidis e Akturkoglu em excelente plano – o turco parece estar de volta à boa forma dos seus primeiros jogos de águia ao peito –, os ataques foram-se sucedendo sem que o AVS conseguisse oferecer qualquer réplica. E deu para tudo. Jogadas de laboratório ao primeiro toque, bolas paradas, dribles, golos anulados. Ao intervalo, a diferença de golos marcados para o Sporting estava reposta.
Belotti entrou para marcar, Otamendi apareceu no poste que mais gosta para cilindrar Ochoa. Num jogo sem grande história, o Benfica não repetiu o erro de esperar pelo resultado como tinha feito contra o Arouca, e tratou de resolver a vida bem cedo.
Neste que será um dos campeonatos com um dos piores campeões de sempre (em termos pontuais), a emoção parece estar garantida até ao fim e, tudo indica, o canto da sereia acontecerá no derby da Luz. Tem a palavra o Sporting, daqui a pouco no Bessa.
Ao contrário do que gostariam os cronistas desportivos, os cabeleireiros de bairro e os comentadores que ainda dizem “à homem”, o cabelo dos jogadores de futebol nunca foi apenas cabelo. Foi sempre mais: disfarce, bandeira, extensão da psique ou mesmo assinatura visual. E, por vezes, tudo isso ao mesmo tempo — dependendo da década, da câmara e da audiência.
Num jogo onde a cabeça serve tanto para pensar como para marcar golos e fazer cortes, o cabelo tornou-se palco, cortejo e camuflagem. Nunca inocente nem neutro. Porque a verdadeira disputa, como se sabe, já não é apenas com os pés. O cabelo a todos os níveis e em qualquer circunstância é sempre importante. Então no futebol…
Durante muito tempo, a cabeça do jogador era um território em teoria disciplinado. Sóbrio, previsível e funcional. Cortes curtos, milimetricamente higiénicos, que cumpriam o código de uma masculinidade silenciosa, sem adornos nem desvios. Era uma ética do cabelo contido — como se uma madeixa fora do lugar pudesse pôr em risco o equilíbrio táctico da equipa.
Bobby Moore, Beckenbauer, Eusébio: homens cuja relação com o cabelo era a de um técnico de equipamentos com a gravidade. Nada se arriscava. O corte era um contrato com a virilidade operária. Nenhum deles diria a palavra “estilo” sem tossir.
Até que veio a explosão laranja — e com ela, o primeiro cabelo verdadeiramente subversivo. A selecção holandesa dos anos 70 levou ao relvado não apenas um novo sistema táctico, mas também uma estética que parecia saída de uma sala de ensaios da Island Records. Cruyff e os seus companheiros jogavam como se filosofassem e penteavam-se como se fossem sair numa capa dos Pink Floyd. A primeira equipa sem duvida a funcionar no colectivo a esse nível.
Cabelos compridos, franjas despreocupadas, um toque de boémia estudada. Ali, a revolução já não se fazia apenas nos pés: fazia-se nas cabeças. Jogar bem e parecer alguém que podia recitar Rimbaud. A franja como armadilha conceptual. Não era apenas uma equipa com cabelos compridos: era uma estética colectiva em revolta contra o formalismo higiénico do futebol europeu da época.
O cabelo era parte do sistema: a fluidez táctica do “futebol total” encontrava eco nessa fluidez dos penteados que pareciam só fazer raccord com as micto revoluções de costumes da época mas o futebol até aí era visto como conservador e paladino dos regimes políticos.
Enquanto os alemães tinham um Paul Breitner arrojado e os ingleses um George Best bêbedo e amalucado mais uma ou outra excepção, a laranja mecânica sem dúvida era também laranja psicadélica. Um movimento capilar táctico que antecedeu em décadas o conceito de branding visual, só que com charme, irreverência e zero gel, influenciando alguns jogadores portugueses como Victor Baptista do Benfica— o do brinco.
Mas talvez o primeiro a fazer do seu cabelo e penteado um freak show tenha sido mesmo George Best, que disse um dia que só tinha estado umas horas sóbrio na vida, mas que foram as piores da vida dele. Uma personagem especial.
Já nos anos 80, o cabelo passou para outro plano. O futebol, transformado por televisões omnipresentes e contratos publicitários obscenos, descobriu o seu lado performativo — e o cabelo, outrora submisso, tornou-se símbolo de identidade mediática. Maradona foi o ícone perfeito dessa transição.
A sua cabeleira não era penteada, era mais desalinhada ainda que certinha no arco. Um animal capilar, indomável, denso, insolente. Aquilo não era cabelo, era um manifesto com pernas e cocaína. Um acto de insubmissão. A cabeça de Maradona jogava o seu próprio jogo: um jogo de desobediência estética, de desordem gloriosa, de caos coreografado com talento de um anjo caído. Em Barcelona era conhecido como Pelusa Maradona.
Os anos 80 foram também a década da franja curta à frente e do cabelo comprido atrás — o famoso mullet, corte de dualidade esquizofrénica. Um penteado de fronteiras instáveis, muito usado por futebolistas sul-americanos e europeus, como se o pescoço tivesse vontade própria. Era o início de uma relação mais marcada entre masculinidade e estilo.
Foi também a era do bigode e cabelo espesso, dos caracóis controlados a custo de mousse e dos cortes geometricamente desalinhados. A televisão a cores e os replays aproximaram as cabeças dos espectadores — e o cabelo teve de reagir, criar presença. Ainda não havia redes sociais, mas já havia replay em câmara lenta. E o penteado tinha de aguentar essa exposição a 24 frames por segundo
A estética era uma mistura de virilidade televisiva e boémia moderada. Os penteados jogavam com alguma irreverência, mas sempre dentro de uma certa contenção: ousavam, mas não colapsavam. Paolo Maldini exibia um cabelo que oscilava entre o guerreiro grego e o galã de novela brasileira. Hugo Sánchez parecia aplicar laca com régua. O futebolista dos 80s ainda era, no fundo, um homem que queria parecer sério — mesmo quando se penteava como cantor de casino.
Havia estilo, mas ainda não havia branding. Havia também vaidade, mas ainda não era bem um produto. O cabelo dos 80s era identidade, não se tratava ainda de mercadoria. A rebeldia vinha do estilo de vida — não do contrato publicitário. Era o último suspiro do jogador como ser humano quase privado.
Depois os anos 90 aceleraram tudo. Aí é que foi um a ver se te avias
O cabelo dos futebolistas tornou-se uma espécie de carnaval forever, laboratório de estilos, catálogo de experiências com final infeliz. O futebolista já não se limitava a marcar presença no jogo: precisava de marcar posição na estética do tempo. Era preciso aparecer. E o cabelo passou a ser prova de vida, território de invenção e, muitas vezes, desastre programado. O ridículo deixou de ser risco: passou a ser método. Nunca a Isabel Queiroz do Vale tivera tanto trabalho, já para não falar do disparo de vendas do shampoo Vidal Sassoon tal a influência que começavam a exercer nos media.
David Beckham elevou o processo capilar à categoria de fenómeno. Cada corte seu era um comunicado oficial. Da cabeça rapada ao moicano simétrico, do loiro platinado à franja calculadamente desalinhada, Beckham transformou a cabeça num outdoor rotativo.
Era jogador, sim, mas também produto e figura de desejo. E o cabelo, respondia às exigências da indústria. A cada corte, um novo contrato com a fama. Beckham percebeu que, no futebol moderno, o talento dura 90 minutos. Mas a imagem, joga um prolongamento permanente. O estilo dandy choninhas estava na moda e agora já eram as séries tipo Marés Vivas a copiar o estilo visual de futebolistas.
David Beckham preconizou e encaixou no termo metrossexual que nem ginjas. Até parece que o termo usado pela primeira vez pelo jornalista Mark Simpson fora inventado para ele. Hoje é um termo pouco usado e substituído por muitos outros possíveis e cada vez mais refinados.
O colombiano Valderrama será talvez o caso mais desafiante dessa estética que eleva os cabelos á condição de actor principal. Manteve sempre ao longo dos anos o mesmo estilo de cabeleira longa encaracolada mas estranha, sobretudo durante os democráticos anos 90. Uma loucura!
Já no novo milénio, o cabelo tornou-se uma linguagem global. Uma mercadoria visual com gramática própria. Cristiano Ronaldo, Neymar, Pogba, Arturo Vidal: cada um com a sua assinatura capilar e com a sua identidade estrategicamente desenhada acompanharam a revolução chamada Internet que finalmente já era acessível a toda a gente. E aí a loucura foi total. Cabelos geometricamente rasgados, dégradés que pareciam obras de engenharia, colorações de laboratório. O futebolista já não era apenas jogador: era influencer, modelo, avatar. O cabelo deixou de ser natural — passou a ser curadoria.
Neste cenário, jogadores africanos e latino-americanos transformaram o cabelo em afirmação cultural e política. Não era apenas estilo: era identidade em alta resolução. Das tranças fluorescentes de Taribo West às cristas neo-tribais de Cuauhtémoc Blanco, os cabelos tornaram-se gestos de presença. Contra a invisibilidade europeia, o excesso como resposta.
O relvado tornou-se espaço de disputa simbólica. Havia uma rebeldia codificada em cada risco, em cada cor, ou em cada provocação capilar. Era também aí que se jogava o jogo — longe da bola, mas perto da história.
Zidane, claro, fez o movimento inverso. A cabeça rapada talvez como recusa muçulmana. Um silêncio estético. Um apagamento deliberado da vaidade. A austeridade como posição ética. Não queria ser visto — queria ser compreendido. Mas foi com essa mesma cabeça, limpa de ornamentos, que desferiu a cabeçada mais célebre da história recente em Materazzi. Como quem diz: o cabelo pode não dizer tudo, mas a cabeça ainda pode falar. Um gesto como ruptura com o sistema da imagem?
E ainda há o caso do Ronaldo Fenómeno — o único jogador que conseguiu fazer do cabelo uma piada internacional.
No Mundial de 2002, deixou na testa um triângulo minúsculo e absurdo, uma provocação sem legenda, uma sabotagem simbólica que desafiou toda a lógica publicitária. Esse penteado ou lá o que era aquilo, não era bonito, nem coerente, muito menos prático e não fez moda. Era simplesmente um acto de nonsense. Um corte que parecia escrito por um surrealista bêbado sem dormir há dias. Um gesto dadaísta emitido em directo para três mil milhões de espectadores. E ninguém esqueceu porque a inutilidade, quando bem feita, é inesquecível. O filósofo espanhol António Escohotado disse um dia antes de morrer há três anos, referindo-se ao Fenómeno que já era presidente do Valladolid, tratar-se sem dúvida de uma das pessoas mais inteligentes que tinha conhecido em vida.
Foi uma surpresa agradável.
Mas se os jogadores jogam com o cabelo, os treinadores jogam com a cabeça — literalmente. A estética do treinador obedece a outra lógica: não quer bem seduzir, quer respeito. O jogador procura desejo, o treinador exige autoridade. E o cabelo, ou a sua ausência, é parte da táctica. Mesmo agora que são cada vez mais novos.
Durante décadas, os treinadores preferiram a sobriedade capilar. Cabeças nuas, calvícies assumidas, riscas laterais discretas. A autoridade era incompatível com a vaidade. Guardiola, Sarri, Spalletti: carecas não por destino, mas por escolha estratégica. A superfície lisa como extensão de um cérebro onde a vaidade foi substituída pela geometria do pressing.
Mourinho, por outro lado, criou um corte blindado à entropia. Cabelo sempre igual, sempre calibrado. Uma espécie de colete táctico para a cabeça — nem uma ponta fora de sítio, como se uma franja desalinhada pudesse pôr em causa a linha de quatro defesas. Muito militar. O seu cabelo diz muito do seu jogo.
Mas nem sempre foi assim.
César Luis Menotti que nos deixou à pouco, foi não só o arquitecto do futebol ofensivo argentino como o primeiro treinador rock’n’roll da história moderna do desporto. E foi campeão do mundo em 1978 com a Argentina, ainda que a jogar em casa e com uma vitória muito suspeita por 6 golos sobre o Peru sob uma ditadura militar de Videla. Mas isso é lance para outro penálti como dizem os filipinos.
No entanto, via-se logo na cabeleira que o menino era diferente.
Longe da austeridade militar dos seus pares, Menotti trazia um cabelo pop-glam ‘setentista’, comprido, ondulado, com entradas dramáticas mas sem abdicar do volume — como se tivesse saído directamente de uma jam session dos Rolling Stones .
Sempre com cigarro na mão, o seu estilo era uma antítese dos treinadores-furriel da época. Mais próximo de um poeta boémio do que de um gestor de balneário, Menotti fez do cabelo uma declaração de princípios. Um elogio à liberdade.
O treinador que também havia sido jogador era magro, alto, desgrenhado e carismático — um pensador político do futebol com aspecto de guitarrista new age. E isso contagiava o jogo. Para ele, o futebol tinha de ser bonito, criativo, desobediente — e o cabelo, claro, dançava essa música.
E há o caso do argentino Passarela que já nos anos 90 proibiu mesmo os jogadores da selecção de ostentarem cortes arrojados e instigava-os a não fazer a barba acreditando que assim a testosterona necessária para ganhar o jogo viria para o relvado sem passar pelo balneário.
Não resultou.
Hoje, com a moda dos transplantes capilares, o cabelo dos jogadores entrou na era da ficção clínica. Não se trata de questões de genética, mas talvez de investimento. Não é bem biologia. É mais tecnologia aplicada ao ego.
De Istambul a Braga, de clínicas discretas a viagens com hashtag, os folículos são comprados como se fossem cláusulas de rescisão. O cabelo tornou-se prótese emocional. Uma negação da finitude. Até a calvície é agora opcional. O jogador moderno tem de ser completo: veloz, adaptável, resiliente e esteticamente confiável até à ultima selfie.
No fundo, o cabelo dos futebolistas é um campo de batalha simbólica, um espelho das ansiedades do tempo. É onde se negoceia o desejo, se encena a masculinidade, se mede o capital de atenção. Porque a cabeça, no futebol e na vida, está sempre em jogo. Quem controla o cabelo, controla o cliquedas câmaras. Quem domina a imagem, escreve o relato.
Mas estranhamente o cabelo dos futebolistas nos últimos anos voltou a parecer-se com o dos primórdios. São quase todos iguais, rapado na zona da orelhas e do pescoço e depois um cabelo curto normalmente com risco ao lado a dar o volume. Eu diria, militarizado. Estranho. Provavelmente, tenha sido substituído pelas tatuagens e disso pouco sei.
E talvez, em breve, vejamos o primeiro jogador com cabelo renderizado por inteligência artificial. Um penteado dinâmico, que muda conforme a intensidade do jogo, a emoção do público, ou a vontade do patrocinador. A cabeça como interface.
E nesse dia pixelizado talvez percebamos que o último cabelo verdadeiramente livre num corpo aprisionado foi o de Maradona. Até aí o argentino foi diferente.
Corte para fade.
Ruy Otero é artista media
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