Etiqueta: Imprensa

  • SIC: Família Balsemão esconde da CMVM que está em negociações com a família Berlusconi

    SIC: Família Balsemão esconde da CMVM que está em negociações com a família Berlusconi


    A Impresa ainda não comunicou à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) estar em negociações com a MFE-MediaForEurope – a megaholding italiana de comunicação anteriormente denominada Mediaset Group, controlada pelos herdeiros do antigo primeiro-ministro Sílvio Berlusconi através do Fininvest Group.

    O grupo detém operações de televisão privada, bem como cinemas, produtoras e editoras em Itália, Espanha e Alemanha, país onde passou este mês a controlar a ProSiebenSat.1.

    Foto: D.R.

    Segundo o jornal italiano Il Messaggero, no conselho de administração da MFE que aprovou as contas semestrais na passada quarta-feira, o CFO Marco Giordani informou sobre a retoma das negociações para uma entrada na Impresa, o grupo de media fundado por Francisco Pinto Balsemão e actualmente em situação financeira fragilizada.

    A Impresa detém, entre outros activos, a SIC e o semanário Expresso (através da Impresa Publishing). A existência de negociações configura um facto relevante para os accionistas – ou, mais precisamente, “informação privilegiada” no quadro das regras aplicáveis às empresas cotadas.

    Até ao momento, porém, a Impresa não comunicou ao mercado quaisquer negociações com a MFE, alegando que “não existe informação privilegiada” a reportar, segundo fonte oficial do grupo contactada pelo PÁGINA UM.

    Foto: D.R.

    De acordo com essa fonte – na verdade, a agência de comunicação JLMA, que representa a empresa – a Impresa não nega conversações, mas sublinha que, “como no passado, não deixará de analisar parcerias que contribuam para o crescimento e cumprimento dos [seus] objectivos estratégicos”, acrescentando ainda que “mantém, há alguns anos, uma relação de cooperação comercial com o grupo MFE”.

    A mesma fonte garante que “não há, no entanto, qualquer acordo ou compromisso vinculativo entre a Impresa e a MFE”, afirmação contrariada pelas informações avançadas pelo jornal italiano.

    Importa recordar que, de acordo com o Regulamento Abuso de Mercado da União Europeia, as empresas cotadas ou emitentes de dívida têm a obrigação de esclarecer o mercado sempre que circulem rumores ou notícias susceptíveis de influenciar a cotação dos seus títulos.

    Foto: Mediaset Itália

    Isto significa que, mesmo que não existam negociações em curso, a empresa deve confirmar ou desmentir publicamente tais informações, de modo a assegurar que os investidores não são induzidos em erro e a preservar a integridade e transparência do mercado.

    O Il Messaggero acrescenta que as negociações entre a MFE, sediada em Cologno Monzese, e a Impresa tiveram início no Verão de 2024, embora já tivessem existido contactos em 2019. A nova fase de negociações incide sobretudo sobre a SIC, subsidiária da Impresa que mantém resultados operacionais positivos, ainda que em queda devido ao peso da dívida acumulada pela casa-mãe nos últimos anos.

    O jornal italiano refere ainda que vários pontos permanecem em aberto, estando a MFE a avaliar se avança para a compra de todo o grupo Impresa ou apenas de activos específicos, como a SIC. O fecho das negociações é apontado para o final do ano, com a nota de que “o preço não será elevado, mas terá de contemplar a eventual OPA”, uma vez que a dívida a ser assumida pela MFE será significativa.

    Pier Silvio Berlusconi, presidente-executivo do grupo MFE. / Foto: D.R.

    A MFE tem prosseguido uma estratégia agressiva de expansão e não esconde as suas ambições. No final do ano passado, o presidente-executivo, Pier Silvio Berlusconi, afirmou ter garantido o apoio de bancos para um empréstimo de 3,4 mil milhões de euros destinado a financiar o crescimento do grupo na Europa. “Queremos estar prontos para avaliar o que, se é que há algo, poderá ser a decisão certa a tomar na Alemanha, mas também relativamente a quaisquer outras oportunidades”, afirmou então Berlusconi, citado pela Reuters, acrescentando esperar que o ano em curso fosse de consolidação.

    N.D. O PÁGINA UM contactou, pelas 17h43 desta tarde, o consultor Daniel Vaz, da agência de comunicação JLMA, solicitando comentários sobre as negociações entre a MFE e o Grupo Impresa. Contudo, a JLMA apenas nos remeteu a resposta oficial da Impresa às 20h04, mais de uma hora depois de já a ter distribuído a vários outros órgãos de comunicação social — numa evidente tentativa de boicotar o trabalho do PÁGINA UM. Declara-se, por isso, que este jornal não voltará a contactar nem a aceitar comunicados da JLMA em qualquer representação empresarial. Naturalmente, se o assunto noticioso for a própria JLMA, o PÁGINA UM dirigirá os pedidos de informação directamente à gerência da empresa.

  • Onda de desinformação diaboliza Charlie Kirk e glorifica o homicida  como um “jovem anti-fascista”

    Onda de desinformação diaboliza Charlie Kirk e glorifica o homicida como um “jovem anti-fascista”


    Charlie Kirk, o jovem conservador norte-americano de 31 anos que foi assassinado no passado dia 10 de Setembro, promovia debates com estudantes pelo menos desde 2012. Foi assassinado quando participava em mais um evento numa Universidade em que debatia com estudantes. Mas, mesmo depois da sua morte, o jovem continua a ser alvo de uma onda de desinformação em alguma imprensa e nas redes sociais, tanto sobre o seu trabalho como sobre as suas posições.

    Para a generalidade da imprensa, Kirk é retratado como um “radical” de direita, ou mesmo da “extrema-direita”. Já o seu alegado assassino, que se encontra detido, está a ser quase glorificado por utilizadores de redes sociais e até alguns órgãos de comunicação social, incluindo em Portugal, que o descrevem como um “jovem anti-fascista”. Isto apesar de ter assassinado um outro jovem apenas por ter ideias diferentes das suas.

    Charlie Kirk (à esquerda na foto), era um jovem conservador moderado e cristão devoto que promovia o debate de ideias. Casado e pai de dois filhos pequenos, fundou a organização Turning Point USA, que organizava eventos em que Kirk debatia com estudantes com diferentes pontos de vista. Nos debates, Kirk convidava alunos para a troca de ideias usando o ‘slogan‘ “prove me wrong” (prova que estou errado). / Foto: D.R.

    Em Portugal, diversos meios de comunicação social têm mostrado falta de rigor na descrição de Kirk mas também do seu alegado assassino. Por exemplo, numa notícia publicada ontem no Jornal de Notícias, assinada pela jornalista Rita Salcedas (CP 7547) — que tem um número de carteira profissional recente —, o título escolhido foi “Tyler Robinson: o jovem anti-fascista que quis calar o conservador Charlie Kirk”.

    Este título tem gerado polémica e nas redes sociais o jornal não tem sido poupado a críticas. Por exemplo, na rede X, a publicação que publicita a notícia tem apenas 55 ‘gostos’ mas recebeu já 154 comentários. “Este título é simplesmente deplorável”, refere um dos comentários. “Que nojo de artigo… Não é um anti-fascista, é um assassino”, lê-se num outro comentário que tem 133 ‘gostos’.

    A notícia começa por fazer um branqueamento do perfil do suspeito, descrevendo-o como um bom aluno criado numa boa família, omitindo as evidências de que sofreu uma radicalização ideológica e política nos últimos anos, levando ao homicídio. A jornalista aproveita ainda para sublinhar que o alegado assassino é “branco, não é imigrante, não é transgénero”. Num dos subtítulos, descreve o alegado assassino como um “crítico do conservadorismo apregoado por Kirk”, apesar de assumir que o suspeito nem sequer terá votado nas duas últimas eleições no país.

    Notícia do Jornal de Notícias publicada ontem que retrata o alegado assassino de Kirk como um “jovem anti-fascista”, apesar de ter morto um jovem conservador que promovia o debate de ideias. / Foto: Captura de ecrã da página do Jornal de Notícias na Internet.

    Por outro lado, a notícia omite que Kirk era um cristão devoto e que os valores cristãos e a promoção da tolerância eram presença constante nos debates. Também omite que Kirk era casado e pai de dois filhos pequenos, retirando intencionalmente a possibilidade de o leitor sentir empatia com a vítima. Por outro lado, descreve Kirk como um “ultraliberal”, procurando “colar” o jovem conservador a uma direita fundamentalista.

    Outros meios de comunicação optaram por destacar em título que as balas encontradas na arma usada no homicídio continham expressões “anti-fascistas”, passando a ideia aos leitores de que o suspeito pretendeu assassinar Kirk por este ser “fascista”, o que é falso.

    Depois, alguns media chegaram mesmo a procurar atribuir culpas ao próprio Kirk pela sua morte, mencionando que era a favor da Constituição norte-americana que permite o porte de armas. Numa notícia publicada no dia 11 de Setembro, a BBC escreveu que Kirk disse “há alguns meses: vale a pena ter o custo de haver, infelizmente, algumas mortes por armas de fogo todos os anos para que possamos manter a Segunda Emenda”.

    Nesta notícia não assinada por nenhum jornalista, publicada no dia do assassinato de Charlie Kirk, a TSF classificou o jovem cristão e conservador como sendo de “extrema-direita”, o que é falso. / Foto: D.R.

    De resto, na cobertura deste atentado contra o conhecido jovem conservador norte-americano, vários meios de comunicação social têm erradamente classificado Kirk como sendo da “direita radical” e até da “extrema-direita. Por outro lado, alguma imprensa tem também optado por diminuir o trabalho que foi desenvolvido pelo jovem conservador, ao classificá-lo como se fosse um mero “apoiante de Trump” ou um “porta-voz da juventude que apoia Trump”.

    Também comentadores, incluindo em Portugal, têm difamado Charlie Kirk atribuindo-lhe posições que não defendia — em temas como os direitos das mulheres e das pessoas LGBT ao tema do racismo — ou classificando-o como sendo extremista e radical, com alguns quase a querer transparecer a ideia de que o jovem conservador mereceu ter sido assassinado. Alguns comentadores, incluindo jornalistas, ao invés de criticarem claramente o homicídio, também têm aproveitado para lançar a ideia de que este homicídio hediondo vai servir para “alimentar Trump” e a “extrema-direita” — que para estes comentadores são todos os conservadores — nos Estados Unidos.

    De resto, não é só nas notícias que tem havido desinformação sobre Kirk ou enviesamento no tratamento deste homicídio. É frequente encontrar publicações em que, por exemplo, frases de Kirk são usadas fora de contexto. E proliferam acusações difamatórias em relação a Kirk. Por exemplo, o famoso autor Stephen King, que na rede social X tem 6,8 milhões de seguidores, veio pedir desculpa por ter escrito numa publicação que Charlie Kirk “defendia o apedrejamento até à morte de pessoas gay”, o que é totalmente falso.

    O autor Stephen King foi uma das personalidades que difundiu acusações difamatórias falsas sobre Charlie Kirk. Algumas têm-se propagado também na imprensa. / Foto: Foto: Captura de ecrã da publicação rede X

    O autor apagou a publicação onde difundia a mentira e tem vindo a desdobrar-se em pedidos de desculpa sucessivos na rede X.

    Já a popular escritora J.K. Rowling, autora de Harry Potter, que tem 14,4 milhões de seguidores na rede X, fez uma publicação no dia 11 de Setembro contra a violência e em defesa do debate, da democracia e da liberdade de expressão. “Se acredita que a liberdade de expressão é para si, mas não para os seus opositores políticos, você é anti-liberal. Se nenhuma evidência contrária puder mudar as suas crenças, você é um fundamentalista. Se acredita que o Estado deve punir aqueles com opiniões contrárias, você é um totalitário. Se acredita que opositores políticos devem ser punidos com violência ou morte, você é um terrorista.”

    A popular autora de Harry Potter, que também é uma defensora dos direitos das mulheres, escreveu no X em defesa da tolerância, da democracia e da liberdade de expressão. / Foto: Captura de ecrã da publicação rede X

    Além de desinformação, também tem havido quem celebre o homicídio do jovem conservador, com vídeos e publicações nas redes sociais. Em Portugal, um dos que festejou o homicídio foi o argumentista João Quadros que escreveu várias publicações na rede X, uma das quais teve cerca de 500 ‘gostos’.

    Numa das publicações, João Quadros escreveu: “vou buscar uma almofada, preciso de espaço para dormir com este sorriso”.

    Nos Estados Unidos, algumas das pessoas que celebraram a morte de Kirk nas redes sociais foram despedidas, depois de os seus empregadores terem tido conhecimento do que publicaram online. Vários vídeos e publicações com festejos têm vindo a ser apagados.

    Também a empresa Office Depôt fez um comunicado onde anunciou despediu um dos seus funcionários que recusou imprimir um poster para anunciar uma vigília em nome de Kirk. Disse ainda que tinha contacto o cliente para resolver a situação, mas entretanto emergiram publicações na rede X indicando que um concorrente, a FedEx Office, tinha avançado com a impressão do poster gratuitamente.

    Foto: Captura de ecrã de publicações na rede social X

    Contudo, a onda de desinformação sobre Kirk deverá continuar nos media e também nas redes sociais. Para a imprensa, este caso de má conduta surge depois de uma outra polémica envolvendo a cobertura que os media fizeram do homicídio de uma jovem refugiada ucraniana, quando regressava a casa de metro vinda do seu emprego.

    Apesar de ter sido divulgado o vídeo do homicídio, que foi cometido por um criminoso reincidente 14 vezes, os media em geral ignoraram o acontecimento e fizeram um ‘blackout‘, não noticiando o crime. Só quando o vídeo e as críticas aos media se tornaram virais na Internet é que a imprensa começou a noticiar o crime. Por detrás do ‘blackout‘ dos media ao caso terá estado o facto de a jovem assassinada ser branca e o criminoso não.

    A forma como a imprensa em geral cobriu estes dois homicídios tem gerado uma onda de críticas e exposto um sector de media que faz as notícias com carga ideológica e que se afastou dos deveres éticos e de rigor e isenção, que são pilares do Jornalismo.

    a television screen with a blue background
    Foto: D.R.

    Nesta altura, há quem questione mesmo como teria sido a cobertura mediática destes dois homicídios se o jovem conservador assassinado fosse antes um democrata ou um devoto muçulmano e se a jovem ucraniana tivesse outro tom de pele.

    Em termos mediáticos, o que transparece destas duas polémicas é que, para alguma imprensa, o tratamento noticioso de acontecimentos tem dois pesos e duas medidas consoante a religião, a cor de pele e a preferência política dos envolvidos. Algo que contraria as boas práticas jornalísticas e, em Portugal, constitui uma violação do Estatuto do Jornalista e do Código Deontológico.

    No caso de Charlie Kirk, a forma como alguma imprensa norte-americana diabolizou o jovem leva que críticos da sua cobertura de Kirk lhe estejam a atribuir uma parte da responsabilidade pelo ódio criado em torno do jovem conservador, que levou a que se tornasse num alvo de um extremista.

  • Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge previu uma catástrofe, falhou e calou-se… o PÁGINA UM mostra-lhe o que aconteceu

    Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge previu uma catástrofe, falhou e calou-se… o PÁGINA UM mostra-lhe o que aconteceu

    O Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) voltou esta semana a dar um exemplo paradigmático de como não se deve comunicar Saúde Pública. No início desta semana, o organismo tutelado pelo Ministério da Saúde, mas integrado na Universidade Nova de Lisboa, decidiu accionar o seu modelo Índice ÍCARO — esse acrónimo sonante, mas que, na prática, fez descambar a credibilidade do seu presidente Fernando Almeida — para prever uma alegada “catástrofe” de mortalidade.

    Para os dias 4 a 6 de Agosto, o INSA projectou mais do que uma duplicação do número normal de mortes, conforme noticiou o PÁGINA UM na segunda-feira, sugerindo um cenário quase apocalíptico com mais de 700 óbitos por dia. Em três dias, o excesso de mortalidade estaria acima dos 1.100 óbitos? E o que aconteceu? Simples: a mortalidade real ficou a rondar pouco mais de 300 óbitos por dia, valores que, embora ligeiramente elevados para esta altura do ano, estão longe das profecias descontroladas. E pior: pela calada, o INSA modificou os valores do índice ICARO para ‘consertar’ o desacerto. Mas mesmo com esses valores ‘corrigidos’ à socapa, o instituto público previu 1.824 óbitos em três dias, ou seja, um excesso de 900 óbitos.

    brown grass during sunrise
    Foto: D.R.

    Mais uma vez, o problema nem foi apenas o erro (grosseiro, acrescido do silêncio), mas a histeria mediática que lhe seguiu.

    Mas, no PÁGINA UM, preferimos fazer o que o jornalismo deve fazer: olhar para os dados, analisá-los e contextualizá-los.

    É um facto que as temperaturas nas últimas duas semanas estiveram elevadas, com valores que, em alguns dias, se mantiveram persistentemente acima das médias climatológicas, sobretudo nas regiões do interior. Isso justifica uma análise estatística rigorosa para verificar se este calor se traduziu num excesso de mortalidade relevante. Fizemo-lo, concentrando-nos no período entre 25 de Julho e 7 de Agosto, através da informação do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), acrescentando duas componentes essenciais que o INSA e, muito provavelmente, o Governo e a Direcção-Geral da Saúde continuam a querer ignorar.

    A primeira componente é óbvia para qualquer demógrafo: a mortalidade em termos absolutos tem aumentado nos últimos anos, não apenas devido a episódios excepcionais como a pandemia, mas por causa do envelhecimento acelerado da população portuguesa. Há mais pessoas em idades avançadas e, por consequência, mais mortes por causas naturais, mesmo sem qualquer evento extremo relevante. Comparar, por exemplo, a mortalidade diária de 2025 com a de 2015, ou usar uma simples comparação com a média dos últimos cinco ou 10 anos, sem qualquer ajuste à estrutura etária, é receita certa para inflacionar artificialmente qualquer “excesso”.

    Previsões catastrofistas inicialmente apontadas para os dias 4 a 6 de Agosto…
    … foram alteradas poucas horas depois de uma notícia do PÁGINA UM que indicava que aparentavam seriam catastrofistas (e exageradas). Fonte: Portal da Transparência do SNS.

    Importa, contudo, acrescentar uma ressalva: a leitura desta tendência nos próximos anos será mais difícil devido ao ruído introduzido pelos anos pandémicos de 2020 a 2022, em que a mortalidade esteve anormalmente elevada. Se esses anos não forem devidamente atenuados ou ajustados nos modelos, os valores de referência tenderão a ficar artificialmente altos, podendo mascarar excessos reais ou gerar falsos défices. Este será um desafio inevitável para qualquer análise séria da mortalidade nos próximos anos.

    A segunda componente é mais subtil, mas igualmente importante: o chamado efeito harvesting, ou deslocamento de mortalidade. Este fenómeno traduz-se no seguinte: se num período anterior (como o Inverno) a mortalidade é mais baixa do que o esperado, isso significa que houve uma “poupança” de pessoas vulneráveis que, noutras condições, teriam morrido mais cedo.

    Quando surge um episódio adverso — como uma vaga de calor, mesmo que não demasiado intensa — parte destas pessoas acaba por falecer num curto espaço de tempo, gerando um pico de mortalidade que não reflecte necessariamente um aumento anual líquido. É um efeito de compensação temporal. O inverso também se aplica: um Inverno com surtos gripais mortíferos desencadeará previsivelmente uma menor quantidade de óbitos no Verão, mesmo perante condições adversas.

    Fernando Almeida, presidente do INSA: muda previsões catastrofistas e acha que não tem de dar satisfações quando se manipula os números originais. / Foto: D.R.

    Em todo o caso, convém referir que mesmo em meses com ondas de calor, o Verão é, actualmente, a época do ano de menor letalidade, sendo que Setembro costuma ser invariavelmente o mês de menor mortalidade.

    Assim, aplicando um modelo estatístico robusto, calibrado com dados diários de mortalidade entre 2014 e 2024 e ajustado a dois factores essenciais — sazonalidade e tendência demográfica de envelhecimento — o PÁGINA UM construiu um referencial fiável do que seria expectável para cada dia de 2025.

    A sazonalidade foi modelada com harmónicos anuais que captam os padrões repetitivos ao longo do ano — como os picos habituais no inverno ou no verão. A tendência de longo prazo foi incorporada através de uma variável anual contínua, captando o aumento gradual da mortalidade absoluta resultante do envelhecimento populacional. O modelo foi estimado com regressão de Poisson, apropriada para contagens de eventos diários, garantindo que a variabilidade natural dos óbitos é tida em conta. Adicionalmente, o intervalo de confiança a 95% foi calculado para cada previsão, permitindo identificar dias com mortalidade significativamente acima ou abaixo do esperado.

    Ana Paula Martins, ministra da Saúde: INSA falha previsões, corrige e volta a falhar. E cala-se. E siga-se para a próxima narrativa. Foto: D.R.

    A partir deste referencial, compararam-se os óbitos observados entre 25 de Julho e 7 de Agosto de 2025 com os valores esperados para o mesmo período. A análise considerou ainda o possível efeito de harvesting — fenómeno em que um pico de mortalidade numa altura pode ser parcialmente “compensado” por défices de mortalidade noutras semanas, quando as vítimas prováveis já faleceram antes do previsto.

    Este método permite, assim, distinguir se há um verdadeiro excesso de mortalidade ou se os números recentes apenas reflectem uma redistribuição temporal dos óbitos.

    E, deste modo, entre 25 de Julho e 7 de Agosto de 2025, em 14 dias, registaram-se 4.601 mortes, contra um valor previsto de 4.373. Ou seja, houve um excesso de 228 óbitos, equivalente a +5,2%. Não é um valor irrelevante, mas está a anos-luz das duplicações anunciadas pelo Índice ÍCARO. E, convém sublinhar, 11 desses 14 dias ficaram acima do intervalo de confiança estatístico, o que indica um padrão consistente e não um mero acaso.

    Evolução diária da mortalidade em Portugal em 2025 (linha preta), comparada com o valor esperado ajustado à sazonalidade e à tendência demográfica (linha azul tracejada) e respetivo intervalo de confiança a 95% (faixa azul). O período de 25 de Julho a 7 de Agosto, assinalado a vermelho, corresponde à janela analisada pelo PÁGINA UM para avaliar um eventual excesso de mortalidade. Análise: PÁGINA UM.

    No entanto, este pico de mortalidade não ocorreu no vazio. Entre 1 de Janeiro e 24 de Julho deste ano, a mortalidade observada foi cerca de 3.698 óbitos inferior à esperada, porque os recentes surtos gripais foram anormalmente fracos. Com efeito, no inverno, a diferença foi ainda mais marcada: menos 1.401 mortes em Dezembro de 2024 e menos 2.979 entre Janeiro e Março de 2025.

    No total, o ‘défice invernal’ foi de 4.380 óbitos. É precisamente este contexto que sugere a acção do efeito harvesting: o calor do final de Julho terá “adiantado” o desfecho para parte das pessoas poupadas ao inverno benigno, mas sem inverter a tendência anual.

    Certo é que até 7 de Agosto, e mesmo contabilizando o excesso do período analisado, Portugal mantém um saldo anual negativo de 3.414 óbitos face ao esperado (ajustado ao envelhecimento). Ou seja, o ano de 2025, até agora, continua a ser menos letal do que a média ajustada dos últimos dez anos. É por isso enganador, e até intelectualmente desonesto, apresentar estes 14 dias como uma “catástrofe” sem explicar o pano de fundo.

    Mortalidade observada (linha azul) e esperada ajustada à sazonalidade e ao envelhecimento populacional (linha laranja) em Portugal, entre 25 de Julho e 7 de Agosto de 2025. A faixa sombreada representa o intervalo de confiança de 95% da previsão. Apesar de se registar um pico pontual no início de Agosto, a mortalidade global do período mantém-se apenas ligeiramente acima do esperado. Análise: PAV.

    A nossa análise confirma que o calor teve impacto real na mortalidade — e isso não deve ser minimizado. Mas também confirma que este impacto está inserido num padrão mais vasto, onde um défice prévio e prolongado de mortes condiciona a leitura do excesso pontual.

    É aqui que a diferença entre o alarmismo do INSA – que, depois, de forma altiva e presunçosa, não se digna explicar-se – e a análise contextualizada do PÁGINA UM se torna evidente. Um organismo público, pago pelos contribuintes, tem a obrigação de explicar, com rigor e sobriedade, que um pico de mortalidade no Verão pode ser estatisticamente significativo e, ao mesmo tempo, compatível com um saldo anual em défice. E aquilo que não pode nem deve é continuar a alimentar, com petulância, narrativas de emergência através de modelos opacos e previsões erráticas. Já nos chegou a pandemia…

  • Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge manipula índice de calor extremo após prever catástrofe (que não aconteceu)

    Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge manipula índice de calor extremo após prever catástrofe (que não aconteceu)

    O Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), tutelado pelo Ministério da Saúde, recusa justificar por que motivo manipulou esta terça-feira os valores do Índice ÍCARO — um modelo estatístico usado para estimar o excesso de mortalidade provocada por calor — e também se escusa a explicar os pressupostos científicos, técnicos e metodológicos que sustentam os números publicados.

    A alteração dos dados, feita sem qualquer nota explicativa, foi realizada poucas horas depois de o PÁGINA UM ter divulgado, na noite de segunda-feira, as previsões inéditas — e alarmantes — que o próprio INSA tinha publicado horas antes no portal oficial da Transparência do Serviço Nacional de Saúde.

    Fernando Almeida, presidente do INSA: muda previsões catastrofistas e acha que não tem de dar satisfações quando se manipula os números originais. / Foto: D.R.

    Segundo os dados então disponíveis, o valor previsto para amanhã, dia 6, atingia 1,57 — o mais elevado alguma vez registado desde que o Índice ÍCARO consta do portal da Transparência do SNS. De acordo com a definição estatística do modelo, tal valor correspondia a um aumento de 157% na mortalidade diária face a condições meteorológicas normais. Traduzido em números absolutos: sendo a média de mortes diárias no Verão de cerca de 280 óbitos, o índice implicaria mais de 720 mortes num só dia, ou seja, mais 440 do que o habitual.

    As previsões apresentadas pelas previsões desta segunda-feira também se revelavam extraordinariamente elevadas para ontem (1,21) e para hoje (1,30), o que corresponderia, respectivamente, a 619 e 644 óbitos por dia. Assim, só com base no Índice ÍCARO e nas suas estimativas, o total de mortes para estes três dias seria próximo das duas mil, representando um alegado excesso de mais de 1.100 mortes face à média esperada. Se o modelo estivesse minimamente calibrado, tal cenário equivaleria a uma das maiores crises de saúde pública das últimas décadas.

    Contudo, os dados reais rapidamente desmentiram este alarmismo. Segundo os números do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), o total de óbitos registados nesta segunda-feira (307), e até às 20h30 de hoje o número de mortes era de 244, sendo previsível que o valor final fique próximo de ontem. Aliás, convém referir que, do ponto de vista estatístico, só se pode falar de excesso de mortalidade nesta época do ano quando os valores diários ultrapassam os 350 óbitos. Não só tal não se verificou, como os valores se mantêm dentro da normalidade.

    Previsões catastrofistas (divulgadas ontem) para os dias 5 e 6 de Agosto…
    … foram alteradas poucas horas depois de uma notícia do PÁGINA UM (na manhã de hoje) que indicava que aparentavam ser catastrofistas (e exageradas).

    Mesmo assim, ainda antes de qualquer indício de anomalia, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) e a Direcção Executiva do SNS emitiram um comunicado no final da tarde de ontem com um vasto conjunto de recomendações públicas, partindo como ponto de partida das previsões do Índice ICARO. Saliente-se que existe um interesse político para criar uma narrativa de uma onda de calor inédita para justificar a crise dos incêndios que lavram no país desde a semana passada.

    O mais grave, porém, nem é o falhanço do modelo, mas sim a facilidade com que se alteram os números originais do Índice ÍCARO sem justificação. De facto, foi apenas na manhã de hoje que os valores do Índice ÍCARO para o início desta semana foram alterados na base de dados pública do SNS. Sem aviso, sem explicação, sem referência a erro. O valor de 1,57 desapareceu, dando lugar a um mais ‘modesto’ 1,01 – que mesmo assim falhará, porque implicaria cerca de 600 óbitos. Para hoje, o valor de 1,30, na previsão de ontem, mudou para 1,07, para a previsão de hoje.

    Parece algo irrelevante, mas mesmo sabendo que o INSA não teve coragem para mudar a previsão de ontem para o próprio dia (1,21), fica patente que o índice ÍCARO serve para pouco. De facto, se o modelo de aproximasse da realidade, o valor de 1,21 significaria que 619 óbitos, mas o valor ficou pela metade — e dentro da normalidade.

    Ana Paula Martins, ministra da Saúde, tutela o INSA. / Foto: D.R.

    Durante esta tarde, o PÁGINA UM contactou três responsáveis públicos, que têm também a incumbência de credibilizarem a Ciência: Fernando Almeida, presidente do INSA; Rita Sá Machado, directora-geral da Saúde; e António Amaral, director-executivo do SNS. Apenas este último respondeu, através do seu gabinete de comunicação, remetendo toda a responsabilidade para o INSA. Os dois primeiros — os directamente responsáveis — mantiveram-se em absoluto silêncio.

    O PÁGINA UM colocou questões objectivas e transparentes, como: quais os critérios e variáveis usados na construção do Índice ÍCARO? Que variáveis meteorológicas ou ambientais estão incluídas? Existe alguma componente subjectiva ou ajustável manualmente? Qual o valor considerado no denominador da fórmula de cálculo (isto é, o número de óbitos esperados sem calor)? Como se calcula o numerador (óbitos previstos sob efeito térmico)? A fórmula é fixa ou sofre adaptações semanais? Por que razão os valores previstos foram revistos em poucas horas? Houve erro de cálculo, actualização de dados meteorológicos ou intervenção discricionária? Existe histórico de revisões abruptas? Com que frequência? Qual o impacto prático das previsões? São comunicadas a outras entidades? Que planos públicos são desencadeados com base nestes números e que entidades são avisadas?

    A ausência de resposta a todas estas perguntas não é apenas uma falha de comunicação: é um sintoma de opacidade e de irresponsabilidade institucional. O Índice ÍCARO, recorde-se, foi criado em 1999 pelo Observatório Nacional de Saúde do INSA, em colaboração com o IPMA, e baseia-se numa equação simples: estima-se a diferença entre o número de óbitos esperados com efeito do calor e o número médio de óbitos sem calor, com base em séries de temperatura máxima observada e prevista. O elemento central é a chamada “sobrecarga térmica acumulada”, isto é, o número de dias em que a temperatura ultrapassa os 32 graus, ponderado pelo grau de excesso acima desse limiar.

    brown grass during sunrise
    Foto: D.R.

    O modelo, pioneiro no contexto europeu, tinha méritos técnicos, mas assumia desde o início uma lógica catastrofista. No artigo científico que lhe deu origem, publicado na Revista Portuguesa de Saúde Pública, os autores afirmavam já de forma explícita que o sistema foi desenhado para privilegiar a sensibilidade (ou seja, detectar qualquer situação de risco), mesmo à custa da especificidade (evitar alarmes falsos). Citando literalmente: “Num sistema de alerta, não pode sacrificar-se a sensibilidade à especificidade”. Traduzido: o modelo foi concebido para tocar o alarme o mais cedo possível, mesmo que isso signifique errar frequentemente.

    Nos últimos anos, o Índice ÍCARO tem sido utilizado como instrumento de apoio à comunicação institucional em saúde pública, mas sem ajustamento às novas realidades clínicas, demográficas ou epidemiológicas. Os valores mais recentes resultam exclusivamente de previsões meteorológicas a três dias e não cruzam qualquer dado com registos de saúde, mortalidade real ou factores sociais de risco.

    Além disso, o modelo é opaco: ninguém fora do INSA sabe como funciona em detalhe, nem que peso têm as variáveis, nem como se tratam os dados. E, como agora se comprova, os valores podem ser alterados em poucas horas sem qualquer nota de rodapé — como se não tivessem existido.

    Definir medidas de Saúde Pública com base em modelos sem rigor é meio caminho andado para descredibilizar a confiança da população. / Foto: D.R.

    Este episódio, em que uma previsão recorde é discretamente apagada e substituída por outra sem explicação, é um grave sinal de degradação da confiança científica e institucional. Quando uma entidade pública altera dados sensíveis sem prestar contas, compromete não apenas a credibilidade do índice, mas a do próprio sistema de saúde pública. E quando jornalistas ou cidadãos pedem explicações e recebem silêncio, o problema já não é apenas estatístico — é democrático.

    Num país que em tempos teve Ricardo Jorge como referência de rigor e serviço público, ver o seu nome hoje associado a um sistema opaco e errático é uma ironia amarga. E, mais do que isso, um alerta. Porque há um risco maior do que o calor: o da erosão silenciosa da confiança pública — essa sim, irreversível quando se perde.

  • Publicidade: Imprensa vai ser obrigada a mostrar quanto recebe do Estado e de entidades públicas  estrangeiras

    Publicidade: Imprensa vai ser obrigada a mostrar quanto recebe do Estado e de entidades públicas estrangeiras

    As empresas de media nacionais vão ter de divulgar de forma clara quanto recebem de entidades públicas nacionais e estrangeiras, nomeadamente de instituições da União Europeia, através de contratos de publicidade.

    O aviso da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) já foi enviada esta tarde às diversas empresas que detêm órgãos de comunicação social, numa altura em que o regulador prepara a adaptação das leis nacionais ao novo quadro legal europeu para o sector, o European Media Freedom Act (EMFA).

    Foto: PÁGINA UM

    No seu aviso, o regulador explica que “o Conselho Regulador da ERC, em reunião datada de 30 de julho de 2025, deliberou dar início ao processo de revisão do Regulamento n.º 835/2020, de 2 de Outubro”, que define as normas para disponibilização de elementos societários e financeiros das empresas de media. O regulador adianta ainda que “esta alteração visa essencialmente reforçar os deveres de transparência das entidades que detêm órgãos de comunicação social, assegurando que a informação sobre o financiamento público através de publicidade institucional seja disponibilizada de forma clara, acessível e atualizada”.

    A ERC salienta que estas alterações se inserem nas exigências do novo quadro europeu “ditadas pelo EMFA, nomeadamente o disposto no seu artigo 6.º, relativo à divulgação obrigatória do montante total anual de receitas provenientes de publicidade institucional atribuída por autoridades ou entidades públicas nacionais e estrangeiras”.

    Assim, será colocado “em consulta pública o projecto de alteração ao Regulamento n.º 835/2020, de 2 de outubro, previsivelmente no último trimestre de 2025”.

    No aviso, a ERC destaca que “a participação activa das entidades reguladas é fundamental para assegurar que o novo regime responda de forma eficaz às exigências europeias e às especificidades do sector nacional”.

    Sede da ERC, em Lisboa. / Foto: PÁGINA UM

    Resta saber se a ERC vai mesmo obrigar as empresas de media em Portugal a divulgar quanto recebem, no total e de forma discriminada, de contratos publicitários com entidades públicas nacionais e estrangeiras ou se o regulador vai fechar os olhos a alguns contratos de prestação de serviços para promoção de entidades – e que se devem encaixar no conceito de publicidade –, como são o caso das parcerias comerciais, que trazem receitas chorudas aos órgãos de comunicação social, levantando questões de promiscuidade e opacidade.

    Já os contratos publicitários com entidades privadas vão continuar toldados por opacidade, já que a nova legislação europeia não obriga a que haja transparência nos relacionamentos comerciais entre grupos de media e órgãos de comunicação social e empresas privadas.

    A excepção, em Portugal, vai para a publicidade e contratos de parceria comercial feitos entre farmacêuticas e empresas de media, os quais devem constar no Portal da Transparência do Infarmed. Contudo, as farmacêuticas têm escondido esses contratos e não os registam na plataforma do Infarmed, não se sabendo quanto pagam a órgãos de comunicação social para organizar conferências, podcasts, ou publicar artigos.

    Rui Santos Ivo; presidente do Infarmed, tem fechado os olhos ao incumprimento das regras por parte das farmacêuticas que escondem do Portal da Transparência os contratos comerciais feitos com órgãos de comunicação social. Pior do que isso, Rui Santos Ivo ainda participa em eventos organizados por órgãos de comunicação social e pagos por farmacêuticas. / Foto: D.R.

    O Infarmed também tem optado por fechar os olhos à promiscuidade entre empresas farmacêuticas e grupos de media, não actuando para cumprir a legislação e garantir a transparência.

    Assim, apesar de a adaptação da legislação nacional a novas regras de transparência nos media trazer uma melhoria em matéria de financiamento dos media por parte de entidades públicas, resta saber se a ERC vai exigir total transparência ou se vai ser um novo ‘Infarmed’ e fechar os olhos à opacidade nas parcerias comerciais promíscuas que danificam a credibilidade do jornalismo e do sector em Portugal.

  • Polígrafo oferece secções de ‘verificação de factos’ a quem pagar

    Polígrafo oferece secções de ‘verificação de factos’ a quem pagar


    É comum dizer-se que todos têm um preço. No jornalismo, esse preço raramente se traduz num envelope recheado ou num jantar de gala: surge, mais frequentemente, sob formas subtis — uma parceria, um patrocínio, ou a criação generosa de uma secção temática. Desde que haja dinheiro, tudo se justifica. E é isso mesmo que agora se começa a ‘verificar’ com o principal verificador de factos português: o Polígrafo.

    Criado em 2018 como órgão de comunicação social vocacionado para o fact checking — e que soube aproveitar a pandemia e a cruzada contra a desinformação para engordar as suas contas —, o Polígrafo acaba de abrir uma nova frente editorial, desta vez dedicada ao futebol. E porquê agora? Por amor ao desporto-rei? Nada disso. Por amor ao dinheiro. Concretamente, ao dinheiro da Bem Operations Limited, uma empresa de apostas desportivas e jogos de fortuna e azar registada em Malta, e que em Portugal sob a marca Betclic.

    Fernando Esteves, director do Polígrafo e gerente da Inevitável e Fundamental: a arte de comercialização do fact checking.

    Desde esta semana, através de uma “parceira exclusiva”, o principal verificador de facto em Portugal criou o Polígrafo Futebol, fruto declarado de uma parceria comercial. Confrontado com questões do PÁGINA UM, o director do Polígrafo e gerente da empresa Inevitável e Fundamental, Fernando Esteves, recusou esclarecer os termos da parceria com a Betclic, incluindo os montantes envolvidos.

    Certo é que numa consulta realizada esta tarde, entre os 25 conteúdos mais recentes de fact checking assinados por jornalistas do Polígrafo, seis (cerca de 25%) incidem sobre futebol, com destaque para o rescaldo da Supertaça.

    Aquilo que até há poucos dias era um interesse marginal por declarações duvidosas no universo futebolístico converteu-se subitamente num zelo factual sobre jogadores, clubes, árbitros e boatos de balneário. Não porque a verdade desportiva se tenha tornado mais nobre, mas porque a Betclic decidiu abrir os cordões à bolsa.

    Parceria comercial entre a empresa de Malta e o Polígrafo foi anunciada esta semana, mas é apresentada como uma nova secção de futebol “Powered by Betclic”.

    Apresentado com entusiasmo como um “projecto pioneiro” — aliás, “o primeiro no Mundo” —, o Polígrafo Futebol visa agora verificar rumores, exageros e inverdades que circulam nas redes sociais sobre futebol. Em tudo semelhante à verificação de factos na política ou na economia, não fora a inovação — ou melhor dizendo, a ilegalidade — residir no facto de a Lei da Publicidade e a Lei de Imprensa não permitirem que uma entidade pública ou privada, especialmente quando opera no sector em causa, patrocine conteúdos editoriais. A criação de secções editoriais motivadas por contratos comerciais representa, em si, uma forma de dependência e condicionamento editorial.

    Além da já preocupante promiscuidade entre jornalismo e financiamento, a forma como o Polígrafo apresenta esta nova secção levanta fundadas dúvidas legais. Em vez de assumir frontalmente o patrocínio, optou também por mascará-lo através da fórmula ambígua “Powered by Betclic”, que surge na página agregadora da secção. Herdada do jargão tecnológico, esta expressão não permite ao leitor perceber sequer que os conteúdos ali publicados são, em última análise, financiados por uma casa de apostas — e muito menos que os mesmos decorrem de uma parceria comercial.

    Mais grave: os artigos da secção Polígrafo Futebol — assinados por jornalistas e com aparência formal de conteúdos editoriais semelhantes aos outros fact checkings— não contêm qualquer menção à Betclic, embora os leitores comecem a ser bombardeados com publicidade dinâmica da empresa. O leitor comum não tem forma de saber que a peça que lê resulta de uma parceria paga, mas é exposto, sem aviso, a anúncios da marca patrocinadora.

    selective focus photography of Pinocchio puppet

    Estamos, pois, perante um caso claro de publicidade encapotada, violando não apenas a Lei da Publicidade como também o Estatuto do Jornalista, que proíbe os jornalistas de colaborarem em acções de marketing ou de subscreverem conteúdos que decorrem de contratos comerciais celebrados pelos seus empregadores. Qualquer jornalista está obrigado a recusar tarefas que comprometam a sua independência — e difícil será imaginar tarefa mais comprometedora do que escrever sobre futebol sob a égide de uma empresa cujo negócio depende da emoção, do rumor e do erro.

    Quando confrontada com este caso, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), presidida por Helena Sousa, reagiu com uma fuga burocrática: “não se pronuncia sobre casos concretos sem que tenha sido realizada a respectiva análise”. O problema é que essas análises costumam tardar — ou simplesmente não ocorrem. O regulador tem o hábito, cada vez mais enraizado, de não ver o que não quer ver, sobretudo quando os visados pertencem ao sistema mediático.

    Este novo caso de promiscuidade entre imprensa e financiadores públicos ou privados mina ainda mais os alicerces da independência editorial. A prática de criar secções à medida do patrocinador não é inédita — o jornal Público mantém, por exemplo, a secção de ambiente Azul, financiada por entidades públicas — mas é a primeira vez que um órgão dedicado à verificação de factos assume, de forma tão explícita, a criação de uma secção a pedido de uma casa de apostas. E, aliás, aparenta não ficar por aqui.

    Helena Sousa, presidente da ERC: um regulador que tudo anda a permitir para descrédito do jornalismo.

    Já numa fase final da redacção deste artigo, o Polígrafo anunciou esta tarde mais uma secção temática — agora dedicada ao cancro. A razão? Uma parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian. Estará, porventura, o jornalismo de verificação a tornar-se num balcão temático ao serviço de patrocinadores?

    Se amanhã a Pfizer, a Sanofi, a MSD, a AstraZeneca ou qualquer outro gigante farmacêutico decidir propor (e pagar) ao Polígrafo uma secção sobre medicamentos, “powered by Pharma”, é seguro presumir que será apenas a Ciência a garantir que todos os fármacos são eficazes, seguros e sem efeitos secundários.

    Ou se for a Nestlé, a Danone, a PepsiCo ou a Unilever a sugerir uma rubrica sobre alimentação, “powered by Alimentação Saudável”, será com entusiasmo nutricional que o Polígrafo verificará que os cereais açucarados e aditivados fortalecem os ossos, os refrigerantes com gás prolongam a esperança de vida e os caldos Knorr são melhores do que as ervas aromáticas.

    close-up photo of assorted coins

    E se um dia a Liga Portuguesa de Criadores de Galináceos desejar patrocinar uma secção sobre bem-estar animal, “powered by Frangos Felizes”, o Polígrafo não hesitará em assegurar, no limite, que os pintainhos passam férias no Algarve com ar condicionado quando o tempo estiver demasiado quente para viverem felizes ao ar livre.

    No limite, em tese, e ao invés, poderá existir uma empresa ou grupo de um determinado sector económico que imponha uma cláusula de exclusão temática, isto é, uma garantia de que certos assuntos não serão objecto de verificação por parte do Polígrafo. A caixa de Pandora agora aberta tudo permite.

  • Negócio da desinformação: Polígrafo alimenta-se do Facebook e do TikTok para sacar receitas de 1,1 milhões em 2024

    Negócio da desinformação: Polígrafo alimenta-se do Facebook e do TikTok para sacar receitas de 1,1 milhões em 2024


    Nos antigos bestiários medievais, a hiena era representada como um animal dúbio, de comportamento ambíguo: dizia-se que emitia sons semelhantes a lamentos humanos enquanto devorava cadáveres. Essa imagem simbólica atravessou os séculos como metáfora da hipocrisia — o fingimento de compaixão no exacto momento em que se aproveita da desgraça alheia.

    No universo mediático português, o Polígrafo parece ajustar-se com rigor a essa alegoria: denuncia as redes sociais como promotoras de desinformação, mas sustenta-se — e prospera — graças ao financiamento directo das mesmas plataformas que critica.

    selective focus photography of Pinocchio puppet
    Foto: D.R.

    Entre os muitos paradoxos do jornalismo contemporâneo, poucos atingem o nível de ironia — ou de hipocrisia — do percurso recente do Polígrafo. Nascido em Novembro de 2018 como sentinela do fact-checking — esse novo sacerdócio jornalístico —, o projecto liderado por Fernando Esteves, através da empresa Inevitável e Fundamental, Lda., cujo capital social de 5.000 euros pertence em 60% ao próprio e em 40% à Emerald Group, encontrou nas redes sociais não o inimigo a combater, mas o manancial que lhe garante, ano após ano, um robusto e improvável lucro.

    Se é certo que muitos apontam as plataformas digitais como a principal causa da crise financeira do jornalismo, pode-se dizer, para usar uma analogia da Natureza, que o Polígrafo é hoje o exemplo perfeito de quem chora por dentro, mas engorda por fora: uma hiena mediática que ladra à carcaça da desinformação enquanto devora, faminta, os subsídios das redes que se diz a propalarem. Se há quem se alegre com a desinformação, o Polígrafo está, paradoxalmente, na primeira fila.

    De facto, em 2024, a empresa Inevitável e Fundamental, detentora do Polígrafo e da plataforma Viral Check (dedicada à área da saúde), ultrapassou pela primeira vez a barreira simbólica do milhão de euros de facturação: 1.097.756 euros de receitas e 396.789 euros de lucro líquido, o que corresponde a uma margem de rentabilidade de 36,1% — absolutamente anómala para qualquer órgão de comunicação social, nacional ou internacional. E não se trata de um acaso estatístico: em 2023, já havia registado 242.786 euros de lucro, com uma margem ainda mais obscena de 40,9%.

    Além do jornal digital, o Polígrafo tem uma parceria semanal com a SIC, do grupo Impresa. / Foto: D.R.

    Em dois anos, com a produção de fact-checking, a empresa soma quase 640 mil euros de lucros líquidos. E não foi graças a assinantes, nem a publicidade tradicional, nem à criatividade editorial. Foi graças às redes sociais.

    Mais precisamente à gigante Meta (Facebook e Instagram) e, mais recentemente, ao TikTok, que nos últimos cinco anos financiaram directa e consistentemente o projecto. Em 2020, 87% das receitas da empresa vieram da Facebook Ireland Limited. Em 2021 e 2022, essa proporção subiu para 96%, tornando o Polígrafo, na prática, uma empresa de um só cliente. Em 2023, a dependência manteve-se elevada: 77% das receitas continuaram a vir da Meta Platforms. Já em 2024, apesar de alguma diversificação aparente, a dependência estrutural permanece: segundo dados do Portal da Transparência dos Media, 48% das receitas vieram da Meta, 22% da TikTok UK e 14% da SIC. Estas três entidades foram responsáveis por 84% do volume de negócios da empresa em 2024.

    Mas considerando os valores absolutos os financiamento do Facebook até aumentou no último ano, superando pela primeira vez a fasquia do meio milhão de euros. Se se juntar agora o montante do TikToK, em 2024 a empresa do Polígrafo recebeu dos gigantes tecnológicos mais de 768 mil euros.

    Evolução das receitas e lucros da Inevitável e Fundamental desde 2019 até 2024, identificando os principais clientes. Fonte: Portal da Transparência dos Media. / Análise: PÁGINA UM.

    Assim, entre 2020 e 2024, a Meta terá transferido para a Inevitável e Fundamental mais de 2,3 milhões de euros, entre contratos directos e financiamentos — um valor sem paralelo no ecossistema mediático português. Importa, aliás, recordar que, nos primeiros anos do projecto, antes da pandemia da covid-19 e sem o “sugar baby” do Facebook, os resultados da empresa eram modestos: em 2019, registou 230.855 euros de receitas e apenas 17.742 euros de lucro líquido — números que contrastam brutalmente com o desempenho posterior. Em cinco anos, as receitas da empresa de Fernando Esteves mais que quadruplicaram e os lucros cresceram 23 vezes.

    Num sector marcado em Portugal por uma crise financeira sem precedentes — com o colapso recente da Trust in News —, o Polígrafo é uma excepção estatística. Mas não pelo mérito do seu modelo editorial: é pelo conforto do seu modelo de negócio, sustentado em contratos com grandes plataformas tecnológicas. Além da Meta, TikTok e SIC, a restante facturação advém de entidades como a Fundação Calouste Gulbenkian e a European Fact-Checking Standards Network. Apesar de apregoar a transparência quanto ao financiamento, a empresa não divulga os montantes concretos nem os termos das parcerias. E até omite a verdade ao divulgar apenas o balanço patrimonial (activo, capital próprio e passivo), designando-o erradamente como demonstrações financeiras.

    space gray iPhone 6 with Facebook log-in display near Social Media scrabble tiles
    Foto: D.R.

    Ora, e isto fica mal num verificador de factos: as demonstrações financeiras principais incluem o Balanço Patrimonial, que mostra os activos, passivos e capitais próprios; a Demonstração de Resultados, que apresenta lucros, prejuízos, receitas e gastos; a Demonstração de Fluxos de Caixa, que detalha entradas e saídas de dinheiro por actividade; a Demonstração das Alterações no Capital Próprio, que regista as variações nos fundos próprios; e o Anexo, que fornece notas explicativas e complementares a todas as anteriores. São estes os documentos contabilísticos essenciais para credibilizar um fact-checker que, num sector em crise, multiplicou os lucros por 23 vezes com um investimento inicial de apenas 5.000 euros.

    Note-se que a margem de lucro de 36% alcançada pela empresa do Polígrafo é não só anormal, mas reveladora de um modelo assente mais em conveniências comerciais do que em jornalismo. Com baixos custos operacionais, salários reduzidos e uma elevada concentração de receitas em entidades que também são objecto de análise editorial, a independência e pluralidade estão comprometidas.

    Mesmo a Medialivre — detentora do Correio da Manhã, da CMTV e do Now —, considerada o grupo privado de comunicação social mais saudável em Portugal, registou em 2023 uma margem de lucro inferior a 6%. A TVI, que regressou aos lucros nesse ano, obteve apenas 0,8%. Os restantes grupos — descontando o já extinto Trust in News — enfrentam sérias dificuldades: a Impresa acumula perdas pesadas; o jornal Público perdeu 9,5 milhões de euros em apenas dois anos; e nem o Observador alguma vez registou lucro.

    a computer screen with the word tiktok on it
    Foto: D.R.

    A nível internacional, o contraste também é flagrante. O New York Times, caso raro de sucesso global no jornalismo digital, apresenta margens líquidas entre 5% e 10%, com mais de 10 milhões de assinantes. O britânico Guardian Media Group sobrevive com prejuízos frequentes, sustentado por fundos fiduciários.

    E mesmo plataformas internacionais especializadas em fact-checking não operam com tal desafogo. Pelo contrário. Por exemplo, a congénere espanhola Maldita.es acumula prejuízos sucessivos: de mais de 95 mil euros em 2023 e de quase 152 mil em 2022 e de perto de 99 mil euros em 2021, não tendo ainda apresentado as contas do ano passado.

  • Público a caminho dos cuidados intensivos financeiros

    Público a caminho dos cuidados intensivos financeiros

    Com o sector dos media tradicionais à beira de um colapso sistémico, o jornal Público, histórico título fundado em 1990 pelo Grupo Sonae, parece encaminhar-se a passos largos para os cuidados intensivos financeiros.

    Os resultados de 2024 confirmam o agravamento da situação: mais de 5,1 milhões de euros de prejuízo, um novo recorde negativo que supera mesmo os já alarmantes resultados de 2023. Em apenas dois anos, as perdas acumuladas ascendem a 9,6 milhões de euros, o que corresponde a cerca de um terço dos 29,3 milhões de prejuízos acumulados desde 2017.

    Foto: PÁGINA UM

    O Público nunca foi um jornal lucrativo. Desde a sua fundação, pautou-se por um compromisso pessoal de Belmiro de Azevedo — fundador do império Sonae — que aceitava suportar até dois milhões de euros de perdas anuais, numa lógica de serviço cívico e reputacional. No entanto, desde a morte do empresário, e com a profissionalização mais crua da gestão da Sonaecom, a tolerância ao insucesso tem diminuído. E o jornal, que chegou a ser um símbolo de jornalismo moderno e cosmopolita no pós-cavaquismo, tornou-se uma espécie de fardo ideológico com retorno empresarial e reputacional nulo.

    Hoje, o Público vende menos de 10 mil exemplares por dia em banca — número que o próprio jornal esconde ou relativiza, enquanto promove campanhas de assinaturas digitais inflacionadas, muitas delas associadas a parcerias pouco transparentes com instituições públicas e privadas. A ilusão de crescimento digital sustenta-se, em parte, em contas de acesso gratuito por protocolos com escolas, universidades e autarquias, sem que tal se traduza em rentabilidade ou fidelização efectiva de leitores.

    Mas não é apenas o modelo de negócio que está a colapsar. A credibilidade editorial do jornal também tem sido posta em causa. Desde a direcção de Manuel Carvalho — marcada por alinhamentos ideológicos e uma crescente promiscuidade entre jornalismo e negócios — que a redacção vive momentos de tensão. A liderança de David Pontes não só manteve esse rumo como o agravou, multiplicando as participações do Público em eventos comerciais com contornos duvidosos, como são exemplo as secções Azul, Terroir e Fugas.

    Vendas em banca e assinaturas digitais do jornal Público no primeiro trimestre de cada ano.
    / Fonte: APCT; análise PÁGINA UM

    Um dos episódios mais embaraçosos foi recentemente sancionado pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC): a participação de David Pontes como moderador em debates pagos pela autarquia de Penafiel e a Ordem dos Médicos Dentistas. A erosão da independência editorial em troca de sobrevivência financeira arrisca um colapso total.

    A situação do Público espelha o afundamento generalizado da imprensa tradicional em Portugal, fruto, em muitos casos, de péssima gestão, como é o caso da Impresa (como holding), ou de problemas de credibilidade.

    Depois da queda estrepitosa do grupo Trust in News — que ameaça o fim de publicações como a Visão, a Exame ou o Jornal de Letras — seguem-se dificuldades visíveis no grupo Impresa, apesar dos lucros ainda registados pela SIC e pela Impresa Publishing em 2024. A venda falhada da sede da Impresa em Paço de Arcos foi mais um sinal de alarme: uma tentativa de alienação imobiliária abortada por irregularidades na cadeia de IVA, que colocou a nu os limites do recurso à engenharia financeira para mascarar os desfalques operacionais.

    Cláudia Azevedo, presidente-executiva da Sonae SGPS e administradora da empresa Público-Comunicação Social. / Foto: D.R.

    Mas o colapso pode não ficar por aqui. Nas próximas semanas, dois grupos estarão sob especial atenção: a Global Notícias, que detém o Diário de Notícias, e a novel empresa Notícias Ilimitadas, que adquiriu o Jornal de Notícias, O Jogo e a TSF. Apesar de obrigadas por lei a entregar os relatórios e contas de 2024 até ao final de Junho, ambas as sociedades falharam esse dever, com a desculpa, durante semanas, de “problemas técnicos” no envio de informação ao Portal da Transparência dos Media da ERC.

    Confrontada com o silêncio financeiro de várias empresas do sector, a ERC admitiu ao Página Um que, de entre os principais grupos de média, a Trust in News, a empresa gestora do Observador, a Global Notícias e a Notícias Ilimitadas não enviaram ainda os seus dados contabilísticos de 2024. O regulador promete agora tomar “diligências” para assegurar o cumprimento da lei, embora o histórico da instituição não inspire grande confiança na sua capacidade de fazer respeitar prazos ou princípios.

    Neste contexto de degradação acelerada, com empresas em incumprimento, direcções editoriais em deriva e modelos de negócio cada vez mais dependentes de fundos públicos ou favores institucionais, o jornalismo dito de referência parece caminhar para o abismo — mas não culpando os seus erros: antes, as redes sociais e a dita desinformação.

  • Impresa: Edifício-sede ‘fiscalmente sujo’ foi motivo invocado para anular negócio

    Impresa: Edifício-sede ‘fiscalmente sujo’ foi motivo invocado para anular negócio

    A transacção parecia fechada, o valor anunciado, a dívida em vias de ser aliviada. Mas uma expressão técnica — de ressonância quase policial — acabou por arruinar um negócio de milhões: o edifício-sede da Impresa, em Paço de Arcos, estava, segundo apurou o PÁGINA UM, “fiscalmente sujo”.

    O termo, usado nos bastidores para designar imóveis com irregularidades fiscais latentes, surgiu na análise feita por uma consultora especializada, contratada pela sociedade gestora do BPI Imofomento – Fundo de Investimento Imobiliário Aberto para a habitual ‘due diligence’ — uma análise prévia e aprofundada para avaliar os riscos e oportunidades de um negócio.

    O edifício-sede da Impresa tem estado no centro de estranhos negócios. Foi vendido ao Novo Banco em 2018 e recomprado secretamente pela Impresa em 2022. Em Junho, o grupo de Balsemão anunciou estar em “negociações avançadas” para revender o edifício, por 37 milhões de euros, a um fundo de investimento do BPI, grupo do qual foi administrador, até 2024, o actual vice-presidente da Impresa, Pedro Barreto. / Foto: D.R.

    O problema — identificado como uma quebra na cadeia de IVA durante a fase de construção e posterior ampliação do imóvel — terá levado o potencial comprador a recuar subitamente, mesmo depois de semanas de negociações com a administração da Impresa, que foi assessorada pela sociedade de advogados PLMJ neste processo.

    Em termos técnicos, a “quebra da cadeia de IVA” traduz-se numa falha documental ou contabilística que compromete a regularidade fiscal do imóvel. Embora a transacção estivesse isenta de IVA e não envolvesse qualquer dedução por parte do comprador, as irregularidades acumuladas em operações anteriores poderiam dar origem a rectificações ou correcções fiscais que poderiam ser reclamadas ao novo proprietário, nomeadamente por via da reversão de benefícios fiscais ou exigências da Autoridade Tributária.

    Ainda que os montantes em causa não fossem elevados – e até pudessem ser sanados junto da própria Autoridade Tributária –, os gestores do fundo terão considerado que o risco era suficiente para colocar em causa a operação. O cancelamento do negócio foi feito sem sequer antes ter sido assinado qualquer contrato-promessa.

    Francisco Pedro Balsemão, presidente-executivo da Impresa. / Foto: D.R.

    Recorde-se que a Impresa tinha anunciado no dia 20 de Junho que estava em “negociações avançadas” com a BPI – Gestão de Activos, que gere o fundo BPI Imofomento, para a ‘revenda’ do seu edifício-sede, com posterior arrendamento. A BPI-Gestão de Activos, liderada por Jorge Teixeira, pertence ao grupo BPI, do qual foi administrador, até 2024, Pedro Barreto, actual vice-presidente da Impresa.

    A decisão apanhou a administração da Impresa completamente desprevenida. A operação era vista como fundamental para equilibrar as contas do grupo dono da SIC e do Expresso, pressionado por uma dívida elevada, que consome cerca de um milhão de euros por ano apenas em juros e obrigações. O encaixe de 37 milhões de euros permitiria, segundo os planos internos, reduzir significativamente esse encargo e libertar liquidez imediata para despesas operacionais, incluindo salários.

    Mais do que uma venda simples com arrendamento posterior, — como foi publicamente anunciado pela Impresa em Junho — o negócio configurava na verdade um típico ‘leaseback‘ — ou seja, a empresa vendia o edifício e passava a arrendá-lo ao novo proprietário.

    Pedro Barreto foi administrador do BPI até 2024. É actualmente o vice-presidente da Impresa. / Foto: D.R.

    No final de Maio, Francisco Pedro Balsemão chegou a explicitar este modelo em reuniões com accionistas, destacando os efeitos positivos esperados nos indicadores financeiros. Contudo, fontes contactadas pelo PÁGINA UM indicam que, ao contrário do que sucedeu com o anterior ‘leaseback’ celebrado com o Novo Banco, o modelo em negociação com o BPI Imofomento era ainda mais desfavorável para o comprador.

    O valor pedido pela Impresa — 37 milhões de euros — representava um excesso de cerca de 17,4 milhões de euros face ao valor da recompra em 2022 junto do Novo Banco, o que fazia prever que a rentabilidade do investimento teria de ser assegurada através de um arrendamento muito acima do valor de mercado — cenário de elevado risco para um fundo de investimento conservador e que vive da confiança institucional.

    Além disso, estranhamente, o fundo BPI Imofomento, antes do negócio ser rasgado, até estava disponível para aceitar que a Impresa subarrendasse parte do imóvel: três pisos do lado A do edifício-sede, com cerca de 500 metros quadrados cada.

    Interior do edifício-sede da Impresa, em Paço De Arcos. / Foto: D.R.

    A descoberta da “fiscalidade suja” — embora sanável — forneceu ao fundo o pretexto ideal para travar o negócio. A gestora do fundo BPI Imofomento terá concluído que o risco era desproporcionado, sobretudo face a um investimento claramente sobrevalorizado. E a ausência de qualquer contrato vinculativo permitiu-lhe sair sem custos.

    O facto é que existiam diversos factores que ensombravam a compra do imóvel por parte do fundo do BPI. O valor do negócio era considerado excessivo, sobretudo face ao montante a que foi vendido ao Novo Banco em 2018. Além disso, o facto de o actual vice-presidente da Impresa ser um ex-administrador do BPI, colocava dúvidas sobre os contornos em que o negócio tinha surgido.

    Acresce que, este ano, os negócios entre a Impresa e o Novo Banco foram alvo de escrutínio por parte do Ministério Público. Numa investigação estranhamente célere, o Ministério Público não encontrou provas de corrupção passiva nos negócios que envolveram o edifício-sede da Impresa e um empréstimo ruinoso que o Novo Banco concedeu à Trust in News para a compra de um portfólio de publicações ao grupo de Balsemão. O certo é que esta investigação permitiu ‘limpar’ os negócios passados envolvendo o edifício-sede da Impresa.

    Jorge Sousa Teixeira, presidente-executivo da BPI-Gestão de Activos. / Foto: Captura de ecrã de vídeo do grupo BPI.

    Para o BPI e para o seu fundo, o negócio com a Impresa começou a tornar-se numa grande “dor de cabeça” que ameaçava colocar em causa a credibilidade e a confiança nos critérios seguidos pela BPI-Gestão de Activos para a escolha dos investimentos.

    Para a Impresa, a não concretização da venda é um golpe brutal. O grupo registou prejuízos de 5,1 milhões de euros apenas no primeiro semestre de 2025, e as receitas publicitárias mantêm-se em queda, tanto no canal SIC como no semanário Expresso.

    Sem a injecção financeira prevista, a situação de tesouraria degrada-se rapidamente. Há já relatos de atrasos nos pagamentos a fornecedores e receios crescentes sobre a capacidade de cumprir atempadamente com os salários dos trabalhadores nos próximos meses.

    Foto: D.R.

    Além do impacto financeiro directo, o falhanço do negócio compromete a credibilidade da gestão da Impresa. A operação fora comunicada à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) como estando praticamente fechada — uma afirmação que agora se prova precipitada, senão enganosa. Para investidores e credores da Impresa, a quebra de confiança pode ser mais danosa do que o próprio falhanço do encaixe.

    A administração liderada por Francisco Pedro Balsemão, filho de Pinto Balsemão, enfrenta, assim, uma crise que não é apenas patrimonial, mas institucional. Sem o “balão de oxigénio” do negócio imobiliário, resta-lhe pouco fôlego para manter à tona um grupo de media cuja marca de prestígio não basta, por si só, para pagar contas. E não é apenas a cadeia de IVA do seu edifício-sede que se partiu. É a própria Impresa que começa a “ruir”, agora sem comprador para o imóvel, sem liquidez e sem soluções à vista.

  • Já nem o imobiliário corre bem: Impresa falha negócio e afunda-se nas contas

    Já nem o imobiliário corre bem: Impresa falha negócio e afunda-se nas contas

    Parecia que se estava perante uma galinha dos ovos de ouro, mas afinal saiu um garnisé depenado. Depois de ter sido anunciada como praticamente certa, a venda do edifício-sede da Impresa, em Paço de Arcos, ao fundo BPI Imofomento foi cancelada, de acordo com um comunicado transmitido à Comissão doMercado de Valores Mobiliários. O grupo de media, dono da SIC e do Expresso, informou o mercado de que não chegou a acordo com o comprador, pondo termo a uma operação envolta em contornos peculiares — e, para muitos investidores, potencialmente lesivos.

    A transacção, com um valor total de 37 milhões de euros, permitiria à Impresa obter um novo balão de oxigénio financeiro, aliviando temporariamente o peso da dívida, mas à custa de encargos futuros crescentes. Mais do que um simples negócio imobiliário, o caso tornou-se um compêndio de “engenharia financeira” num grupo de comunicação social em acelerado declínio.

    Interior do edifício-sede da Impresa. Em 2018, o imóvel foi vendido ao Novo Banco, mas no final de 2022 a Impresa recomprou o edifício numa operação discreta que não foi comunicada ao mercado. / D.R.

    Embora o comunicado na CMVM não identifique os motivos do recuo, o PÁGINA UM sabe que o valor que estava a ser acordado acabou por ser considerado excessivo e que as ligações entre o BPI e a Impresa estariam a afectar a credibilidade do fundo imobiliário, que vive sobretudo da confiança dos investidores. Recorde-se que Pedro Barreto, que foi administrador do Banco BPI até 2024, é o actual vice-presidente da Impresa. 

    Mas esta não foi a única má notícia transmitida hoje pelo grupo que detém a SIC e o Expresso. Também as contas do primeiro trimestre de 2025 foram divulgadas, apresentando um prejuízo de 5,1 milhões de euros. Apesar de pequenas oscilações nas receitas e custos, as receitas operacionais diminuíram face ao ano passado, embora tenham permanecido em terreno positivo. O ‘problema’, que começa a ser crónico e insustentável para o grupo fundado por Pinto Balsemão, reside na elevada dívida: só em custos de financiamento, a Impresa gastou seis milhões de euros nos primeiros meses deste ano, o que explica o prejuízo do trimestre. A situação ainda piorará mais no próximo semestre, porque só o nível de endividamento remunerado subiu 3,8%, face a Junho do ano passado, para os 148,2 milhões de euros.

    Com um prejuízo recorde de 66,2 milhões de euros em 2024 e um passivo global de 250 milhões — dos quais 150 milhões são empréstimos bancários —, a Impresa vive sob o peso de juros que ultrapassam um milhão de euros por mês. O seu negócio principal — a comunicação social — não tem sustentado a estrutura financeira do grupo. Mas foi no imobiliário que tentou encontrar um inesperado maná: o edifício-sede, construído de raiz para alojar os canais da SIC e a redacção do Expresso, converteu-se numa fonte de lucros improváveis, através de três transacções consecutivas, num vaivém de vendas e recompras.

    O primeiro capítulo desta história começou em 2018, quando a Impresa vendeu o edifício ao Novo Banco por 24,2 milhões de euros, ficando com o direito de arrendamento por dez anos e opção de recompra. A operação, feita quando António Ramalho presidia ao banco e este recebia injecções do Fundo de Resolução, contrariava o suposto esforço de desinvestimento em activos imobiliários da banca. O edifício, concebido à medida das operações da Impresa, pouco valor teria fora do grupo. Ainda assim, o Novo Banco avançou com a compra.

    Cinco anos depois, em Dezembro de 2022, a Impresa recompra o edifício por apenas 19,6 milhões de euros, ou seja, menos 4,6 milhões do que o preço da venda inicial. A operação foi discreta e nunca comunicada ao mercado. Beneficiando das rendas entretanto pagas e de possíveis vantagens fiscais — como a contabilização das rendas como despesas e a manutenção do imóvel como activo sujeito a depreciação —, o grupo de Balsemão saiu largamente beneficiado. Mais: a recompra foi financiada pelo próprio Novo Banco, que assim sustentou financeiramente uma operação contra os seus próprios interesses. E a CMVM, notificada de anteriores transacções, manteve-se silenciosa.

    O último episódio, agora gorado, previa a venda do mesmo edifício ao fundo BPI Imofomento – Fundo de Investimento Imobiliário Aberto, por 37 milhões de euros. O fundo pertence à BPI Gestão de Activos, liderada por Jorge Teixeira, e é gerido pelo grupo BPI, controlado desde 2016 pelo catalão Caixabank. A ligação adquiria contornos delicados quando se sabe que o actual vice-presidente da Impresa, Pedro Barreto, foi administrador do BPI até 2024.

    Pedro Barreto, foi administrador do Banco BPI até 2024 e é o actual vice-presidente da Impresa. O grupo BPI detém a BPI-Gestão de Activos, que gere o fundo que vai ser o novo dono do edifício-sede da Impresa. / Foto: Captura de ecrã de vídeo do BPI | D.R.

    Com um património avaliado em mais de 800 milhões de euros, o fundo BPI Imofomento detém activos como o Centro Comercial Vasco da Gama e investe sobretudo em imóveis comerciais em Lisboa e no Porto. O edifício da Impresa, representando menos de 5% da carteira do fundo, não é dos mais atractivos em termos de liquidez. Sendo construído à medida da Impresa, dificilmente servirá outro inquilino — o que, para os subscritores do fundo, pode configurar um risco relevante. O próprio fundo assume que “não garante rendimentos” e destina-se a investidores dispostos a “assumir perdas de capital” e a “imobilizar poupanças por um período mínimo recomendado de cinco anos”.

    Se o negócio tivesse avançado, o grupo Impresa amortizaria os 14,9 milhões de euros em dívida ao Novo Banco e ficaria com 22,1 milhões líquidos, dos quais 10,1 milhões entrariam de imediato e 12 milhões seriam pagos num prazo de até dois anos. A transacção permitiria à Impresa repetir, em menos de três anos, uma operação de valorização relâmpago: comprar por 19,6 milhões e revender por 37 milhões, gerando um ganho de 17,4 milhões de euros. Somando aos cerca de cinco milhões obtidos com a primeira venda ao Novo Banco, o negócio do edifício-sede já teria rendido ao grupo Balsemão 22 milhões de euros.

    Em contrapartida, a Impresa tornar-se-ia arrendatária de um imóvel que já foi seu — e que desenhou para si — pagando rendas que, para garantir uma rentabilidade entre 3% e 4% ao fundo do BPI, teriam de variar entre 1,11 milhões e 1,48 milhões de euros anuais. Ou seja, entre 92.500 e 123.300 euros por mês. Um encargo fixo que, numa estrutura já deficitária, representa um fardo adicional.

    Jorge Sousa Teixeira, presidente-executivo da BPI-Gestão de Activos. / Foto: Captura de ecrã de vídeo do grupo BPI.

    A origem desta terceira venda falhada remonta às contas de 2024 da Impresa, em que o grupo admitiu recorrer à operação de “venda e subsequente arrendamento” como forma de libertar liquidez. Esta antecipação parecia confirmar-se no comunicado enviado à CMVM a 20 de Junho último. Mas algo correu mal nas semanas seguintes. E, esta quarta-feira, a galinha dos ovos de ouro saiu pela porta dos fundos.

    Para os investidores do fundo do BPI, a notícia pode ser recebida como um alívio. O imóvel, embora oferecesse rendas regulares, carregava riscos evidentes de liquidez e adequação ao mercado. Para a Impresa, trata-se de uma oportunidade perdida de encaixe imediato e redução de dívida — mas também da manutenção de um activo simbólico. Com um passivo de 250 milhões, uma actividade em declínio e uma marca cada vez menos relevante, o grupo de Balsemão volta ao ponto de partida, que é financeiramente desastroso.