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  • Pivot da CNN Portugal solicitou que o Ministério Público encerre o PÁGINA UM

    Pivot da CNN Portugal solicitou que o Ministério Público encerre o PÁGINA UM


    O jornalista José Gabriel Quaresma, também pivot da CNN Portugal, apresentou um pedido ao Ministério Público para “encerramento do jornal PÁGINA UM, em virtude”, diz, “das graves irregularidades e da disseminação de notícias falsas”. O pedido foi também comunicado à Entidade Reguladora para a Comunicação Social – que entretanto abriu um processo sem qualquer análise prévia das acusações –, à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) e ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.

    Em causa estão diversos artigos do PÁGINA UM – e mesmo uma crónica satírica assinada por Brás Cubas – que incidem, em partes ou na globalidade, na actividade do jornalista da CNN Portugal que se mostra incompatível com o Estatuto do Jornalista.

    José Gabriel Quaresma é pivot da CNN Portugal. Foto: Printscreen de uma das emissões.

    Esta solicitação de encerramento de um jornal é inédita em Portugal no período da democracia, ainda mais por ser exigida por um jornalista de um importante órgão de comunicação social – a CNN, detida pela Media Capital  e controlada pelo empresário Mário Ferreira – contra um jornal independente que não tem, até agora, qualquer condenação nos tribunais sobre qualquer matéria nem cometeu qualquer infracção de carácter sancionatório pelos reguladores, quer pela ERC quer pela CCPJ.

    Quaresma, que detém a carteira profissional de jornalista número 1713, reage assim depois de terem sido denunciadas as suas actividades de formador (media training ), coach e consultor de comunicação claramente incompatíveis com o Estatuto do Jornalista. De acordo com este diploma legal, o exercício da profissão de jornalista é incompatível com o desempenho de, entre outras, “funções remuneradas de marketing, relações públicas, assessoria de imprensa e consultoria em comunicação ou imagem, bem como de orientação e execução de estratégias comerciais”.

    Ora, José Gabriel Quaresma tem vindo, sobretudo nos últimos anos, e à boleia do seu estatuto de pivot da CNN, a desenvolver actividade intensa de formação e de coaching na área da comunicação, sobretudo através da empresa que criou em 2023, a Sardine Conjugation, e que nem sequer divulga as suas contas anuais, incumprindo a lei. Tem, além disso, conhecidas ligações maçónicas. Ainda recentemente foi ‘apanhado’ num vídeo de um ritual da Maçonaria ao lado de António Pinto Pereira, antigo deputado do Chega e candidato à autarquia de Cascais pela Nova Direita.

    Apresentação de José Gabriel Quaresma no seu site, detido pela sua empresa de comunicação Sardine Conjugation, e onde oferece uma panóplia de serviços. Quaresma considera que expor estas situações, usando imagens públicas viola a sua privacidade e direitos de autor.

    Quaresma detém 70% do capital social da empresa, sendo também seu gerente. No objecto social da empresa estão actividades incompatíveis com o jornalismo: “consultadoria em comunicação, formação, media training e consultadoria online”. No site da Sardine Conjugation, onde José Gabriel Quaresma se apresenta como “um especialista reconhecido, em comunicação, com experiência e capacidades técnicas e humanas que o posicionam como um guia essencial para quem procura aperfeiçoar as suas competências em comunicação”, há uma panóplia de serviços que colocam em causa a isenção de um jornalista – além da ilegalidade.

    Com efeito, o pivot da CNN Portugal – que quer encerrar o PÁGINA UM – oferece um portefólio diversificado de serviços na área da comunicação, combinando formação, mentoria e apresentações públicas. Inclui programas de mentoria personalizada para desenvolvimento de competências estratégicas de comunicação; masterclasses sobre saúde mental nas organizações e sobre “Comunicar com Impacto”; workshops práticos que vão desde falar em público, escrita de discursos e storytelling até técnicas para enfrentar câmaras e criar conteúdos para redes sociais; apresentação e moderação de eventos, com ênfase na gestão da comunicação e no envolvimento de diferentes públicos; e actuação como keynote speaker em empresas, escolas e universidades, transmitindo experiências e técnicas que, segundo o próprio, visam gerar impacto e resultados tangíveis.

    Aparentemente, não lhe têm faltado clientes – embora não se saiba a facturação, porque a Sardine Conjugation não apresentou as demonstrações financeiras de 2023 e de 2024 na Base de Dados das Contas Anuais. Nos últimos meses, e já depois das notícias do PÁGINA UM, José Gabriel Quaresma acrescentou, a par da sua actividade de jornalista na CNN Portugal, a função de “Coach de Comunicação” na Turim Hotel Group e na Centralmed, como freelancer, e ainda de formador em cursos (não académicos) de comunicação na Universidade de Aveiro. Além disso, desde 2012 treina a Força Aérea a comunicar com a imprensa – tudo isto actividades incompatíveis.

    José Gabriel Quaresma faz publicidade activa dos seus serviços de serviços de “treinamento corporativo”, de coaching, consultoria e redacção. No LinkedIn, a última vez foi há uma semana.

    Mas, apesar destas evidências, Quaresma – que aparentemente não foi escrutinado nem pela sua entidade empregadora nem da CCPJ por acumular actividades de consultor de comunicação com o jornalismo – sentiu-se encorajado a lançar um chorrilho de acusações contra o PÁGINA UM, não apenas reputando de falsas as notícias – que apresentam provas e evidências – como garantindo que foram usados “documentos de carácter privado”.

    Note-se que o PÁGINA UM apenas usou printscreens (capturas de ecrã) de imagens das redes sociais e do site de José Gabriel Quaresma, de acesso público, exactamente para demonstrar as suas actividades incompatíveis, não havendo, pelo contrário, qualquer violação legal.

    Mas Quaresma vai mais longe e acusa o PÁGINA UM de usar “conteúdos” da sua autoria e lança a suspeita de que o jornal até tenha tido acesso a documentos privados que estavam guardados no seu computador.

    Na sua página do LinkedIn, Quaresma revela, por vezes, clientes satisfeitos com as suas formações em comunicação.

    Para compor o ramalhete, o pivot da CNN Portugal aponta ainda a existência de alegadas irregularidades na ficha técnica do PÁGINA UM, entre as quais destaca a inclusão do Serafim como mascote.

    Quaresma, que nem sequer terá entendido a ironia desta inclusão (permitida pelas interpretações da ERC, uma vez que, segundo o regulador, a Lei de Imprensa não impede que outros elementos, para além dos que discrimina, integrem a ficha técnica, pelo que não existe violação de lei), diz que o Serafim é um cão – uma ultrajante falsidade, uma vez que o Serafim é um verdadeiro gato com a provecta idade de 17 anos, e que dá o seu nome à rubrica satírica Arranhadelas’. Quaresma – que se intitula de Chief Magic Officer [Director-Chefe de Magia, em tradução livre] da Sardine Conjugation – diz que a existência de uma mascote pelo PÁGINA UM aparenta “descompensação psíquica, sem qualquer ironia e alegadamente”.

    O pivot da CNN Portugal e gerente de uma empresa de treino em comunicação defende ainda que o modelo de financiamento do PÁGINA UM é “irregular”, por ser, diz, “o único órgão de comunicação social registado na ERC, que eu tenha conhecimento, que solicita doações directas aos leitores”, algo que, na sua opinião, “pode condicionar a linha editorial e a independência do jornal”.

    José Gabriel Quaresma acusa o PÁGINA UM de não o ouvir, mas vedou o acesso ao jornal á sua página do LinkedIn. Em todo o caso, até já comunicou com o PÁGINA UM, sendo as suas declarações integralmente transcritas. Jocosamente fez também um donativo de 50 cêntimos ao PÁGINA UM, através da sua empresa de comunicação Sardine Conjugation.

    A acusação da eventual ocorrência de influências externas sobre a direcção editorial do PÁGINA UM, um jornal de acesso livre, por via de se financiar através dos seus leitores – e que teve 595 donativos no mês passado e contabilizou receitas de 63 mil euros em 2024 e ostenta um passivo virtualmente nulo – não deixa de ser curiosa, sobretudo por vir de um jornalista da CNN Portugal.

    Com efeito, a empresa que detém a TVI (dona da CNN Portugal), e que paga o salário de jornalista de José Gabriel Quaresma, contabiliza um passivo de 91 milhões de euros e o seu detentor, o Grupo Media Capital, tem como accionistas uma sociedade por quotas (Zenithodissey) e quatro sociedades anónimas (Pluris Investments, Trium, Biz Partners e CIN), além de outras entidades minoritárias, estando assim muitíssimo mais dependente de influência externa. Acrescente-se ainda que a prática de donativos por leitores tem sido vista, mesmo internacionalmente, como um selo de independência, sendo usado nomeadamente pelo Guardian e Associated Press.

    Em todo o caso, isso pouco interessa para José Gabriel Quaresma que, nas suas denúncias, além de requerer o encerramento do PÁGINA UM – justificando que “a democracia não pode permitir que se tente manchar uma carreira intocável (a minha) sem que uma única coisa afirmada seja verdade, nem uma. É intolerável, a democracia, assim”, conclui –, exige também a “adopção de medidas sancionatórias fortes e definitivas”.

    Extracto da queixa de José Gabriel Quaresma ao Ministério Público, à ERC, à CCPJ e ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas onde se solicita o encerramento do jornal PÁGINA UM.

    E acrescenta ainda que “a existência destas plataformas [referindo-se ao PÁGINA UM], com o aval da ERC, apenas servem para destruir o já a definhar jornalismo, porque nestes casos não existe jornalismo”.

    Quaresma acusa o PÁGINA UM de nunca ter sido contactado para exercer o contraditório, o que é falso. Na verdade, o pivot da CNN Portugal até bloqueou o acesso ao seu perfil do LinkedIn numa tentativa de esconder as suas actividades mercantilistas apoiadas no jornalismo.

  • Fraude científica: como a Ordem dos Médicos se deixa usar para manter uma narrativa falsa

    Fraude científica: como a Ordem dos Médicos se deixa usar para manter uma narrativa falsa


    Este é um exemplo perfeito — e por isso alarmante — de como a Ciência pode ser instrumentalizada para fins políticos e narrativos, ainda por cima com o selo de uma instituição centenária. Um artigo publicado esta semana na (suposta) revista científica Acta Médica Portuguesa, detida pela Ordem dos Médicos (e dirigida pelo seu bastonário, Carlos Cortes), assinado por Filipe Froes e dois co-autores — um dos quais uma antiga jornalista do Sol , Marta Reis que, durante a pandemia, promoveu ‘médicos influencers‘, incluindo o próprio Froes — constitui um caso acabado de fraude científica por omissão, por manipulação retórica e por abuso da autoridade institucional.

    O seu objectivo é claro: manter viva a ideia de que a pandemia de covid-19 foi, em Portugal, uma tragédia sanitária sem precedentes — mesmo que os dados, se bem analisados, desmintam essa tese. A fraude torna-se ainda mais grave quando se percebe que este texto foi redigido sem qualquer rigor metodológico e com laivos panfletários, sendo usado para alimentar peças na comunicação social, nomeadamente no Expresso, sem qualquer escrutínio jornalístico ou científico. A promiscuidade está à vista.

    Filipe Froes (ao meio) foi mandatário de Carlos Cortes (segundo a contar da direita) nas (duas últimas) eleições para bastonário da Ordem dos Médicos.

    Sob o título “Janeiro de 2021 e a COVID-19 em Portugal: o mês mais mortal desde 1919”, o artigo pretende convencer-nos, numa sucessão de frases vagas e comparações grotescas, de que o impacto da pandemia em Portugal rivaliza com o da gripe espanhola, que teve o seu auge em 1919. A narrativa começa pela cronologia: 1.150 dias de pandemia, de Março de 2020 a Maio de 2023, 26.655 mortos atribuídos à COVID-19, com um pico de 5.805 óbitos em Janeiro de 2021.

    Estes números até poderiam ser discutidos — e devem sê-lo —, mas o problema fundamental reside noutro ponto: o artigo carece por completo de metodologia científica minimamente exigível para uma publicação académica. Não houve análise estatística, não houve padronização etária, não houve controlo por variáveis confundentes, não houve enquadramento comparativo internacional, não houve sequer uma discussão crítica sobre causalidade. Se em Ciência isto não é aceitável, andar ainda com estes simplismos enviesados em 2025 nem sequer é admissível como panfleto.

    Pior ainda: o texto exibe uma retórica inflamada, de tom quase propagandístico, tentando ligar de forma forçada os números de Janeiro de 2021 à “introdução da variante Alfa” e ao “período pós-festas”, numa tentativa artificial de justificar os dados brutos. Mas estes números, mesmo em termos absolutos, não são contextualizados.

    Filipe Froes e António Diniz foram activos médicos influencers durante a pandemia. Marta Reis, licenciada em Comunicação Social, foi jornalista do i e do Sol durante o período pandémico, passando para a assessoria do Ministério da Saúde em Setembro de 2022, antes de passar para a comunicação da ULS de Lisboa Ocidental.

    O país, em 2021, tinha mais do dobro da população de 1918, muitíssimos mais idosos e, como é sabido, uma estrutura etária profundamente envelhecida. Jamais se pode comparar mortalidade total entre dois anos tão longínquos sem o devido enquadramento. Aos autores não lhes interessou analisar as taxas de mortalidade por grupo etário, porque verificariam que mesmo em 2021 — no ano de maior incidência da covid-19 — a taxa de mortalidade até nos maiores de 85 anos foi inferior à que se registava, para o mesmo grupo etário, em 2010. Se a mortalidade absoluta foi elevada, foi porque aumentou a esperança média de vida ao longo das últimas décadas — e tivemos uma nova doença a atingir uma população idosa nunca antes tão numerosa.

    Ainda assim, os autores proclamam e insistem, sem vergonha, que “Janeiro de 2021 foi o mês mais mortal desde 1919”, como se uma contagem absoluta de óbitos, sem qualquer ajustamento demográfico, pudesse ser levada a sério num artigo científico. Num panfleto mediático de 2021, até aceito que sim. Agora, numa revista que se quer científica, em 2025, isto é uma inqualificável vergonha para qualquer bastonário que queira apagar os anos de Inquisição do Miguel “Torquemada” Guimarães. Uma revista científica aceitar um título destes é desprestigiante.

    Note-se, aliás, que a única taxa apresentada no suposto artigo de Froes & Ca. — 1.216 óbitos por 100 mil habitantes em 2021 (e usar essa unidade é descaradamente populista e nada científica, porque a norma é utilizar-se óbitos por mil habitantes, o que daria 12,16) — é, de facto, a mais elevada desde 1957. Mas este valor, sendo relevante, não demonstra qualquer singularidade catastrófica, nem permite associar de forma directa a mortalidade à covid-19. A generalidade da mortalidade de 2021 resulta de múltiplos factores: idade da população, adiamentos de tratamentos, colapsos hospitalares, atrasos em diagnósticos e assistência médica não-covid. Nenhum destes elementos é sequer mencionado no artigo.

    Filipe Froes, um dos médicos portugueses com mais ligações à indústria farmacêutica.

    Além disso, um qualquer epidemiologista decente não trabalha jamais apenas com taxas de mortalidade total, porque sabe, ao contrário do inefável Froes & Ca., que em Epidemiologia facilmente se observa o chamado efeito de Simpson, ou paradoxo de Simpson. Este é um fenómeno estatístico em que uma tendência observada no total de um conjunto contraria as tendências verificadas nas suas partes.

    Em termos simples, pode acontecer que a mortalidade global de uma população aumente, ao longo de um determinado período, mesmo quando as taxas de mortalidade de todos os grupos etários — incluindo os mais vulneráveis — estão a diminuir. Esta inversão aparente resulta de mudanças na composição interna da população: se, por exemplo, aumenta significativamente o número de pessoas idosas, que apresentam naturalmente maior risco de morte, o total de óbitos tenderá a subir (e a taxa global também), mesmo que o risco individual em cada faixa etária esteja a baixar.

    Este fenómeno é particularmente visível em países com envelhecimento demográfico acelerado, como Portugal. Nas últimas décadas, apesar de se registarem reduções consistentes das taxas de mortalidade específicas em todos os grupos etários, incluindo nos maiores de 85 anos, a mortalidade total anual tem vindo a crescer. Assim, sem uma leitura desagregada por idades ou sem o uso de taxas de mortalidade padronizadas, corre-se o risco de interpretar como agravamento aquilo que, na verdade, é um progresso disfarçado por uma ilusão estatística.

    A única virtude do artigo é mostrar a quantidade de conflito de interesses de Filipe Froes e de António Diniz com a indústria farmacêutica da pandemia. Curiosamente, quando esteve nas sucessivas intervenções televisivas, Froes jamais falou destas ligações. Nem ninguém na comunicação social ‘mainstream’ lhe perguntou.

    A manipulação mais grave, no entanto, reside na forma como os autores seleccionam e interpretam os dados de internamento hospitalar. O artigo apresenta longas tabelas com o número diário de camas ocupadas por “internamentos covid”, em enfermaria e em cuidados intensivos, no período entre Dezembro de 2020 e Fevereiro de 2021. Froes & Ca. sugerem que estes dados ilustram uma pressão sem precedentes sobre o Serviço Nacional de Saúde.

    Mas omitiram — de forma deliberada — um dos paradoxos mais reveladores de toda a pandemia: os dados do Instituto Nacional de Estatística mostram que, entre 2020 e 2022, o número total de internamentos hospitalares em Portugal foi inferior ao registado em anos anteriores, bem como o número global de dias de internamento. Ou seja, o sistema hospitalar teve, em termos agregados, menos actividade assistencial do que em anos pré-pandemia.

    Esta contradição factual — que qualquer investigação científica séria teria de abordar — é ignorada sem pudor. Pior ainda, os autores falham também em referir o que é hoje reconhecido até por instituições oficiais: muitos dos internamentos classificados como covid foram internamentos por outras patologias, com teste positivo para SARS-CoV-2. Assim, a classificação “internamento covid” inclui, sem distinção, situações clínicas muito diversas mas com teste positivo ao SARS-CoV, mesmo que assintomático.

    Mas no artigo da Acta Médica Portuguesa, todos estes casos são apresentados como prova de uma alegada “pressão pandémica” — sem qualquer validação clínica ou segmentação por gravidade. Esta é mais uma omissão grave. Na prática, o que se apresenta como “carga pandémica” pode ter sido, em larga medida, uma reclassificação administrativa de internamentos ordinários, inflacionando os números e alimentando o alarme público.

    Carlos Cortes, bastinário da Ordem dos Médicos, é também director da Acta Medica.

    A ausência de dados sobre o número total de camas hospitalares disponíveis no SNS, ou sobre o número de camas convertidas temporariamente em unidades de cuidados intensivos, é assumida no artigo como limitação — mas essa mesma limitação não impede os autores de fazer afirmações categóricas e de grande peso político e mediático. Isto não é ciência, é retórica institucional disfarçada de artigo científico.

    Mais inquietante é a forma como os autores rejeitam todo o escrutínio científico, escudando-se em “dados oficiais” como se isso lhes conferisse imunidade epistemológica.

    Um dos autores, Filipe Froes, conhecido pelo seu papel mediático durante a pandemia, declara — vá lá! — abertamente ter recebido pagamentos, honorários e colaborações com mais de uma dezena de farmacêuticas, incluindo as principais promotoras de vacinas e de antigripais de eficácia questionável. Não é ilegal, mas torna-se eticamente insustentável que um artigo sobre o impacto da pandemia — coincidente com o início da vacinação em massa — seja publicado sem qualquer crítica ao papel da vacinação, sem referência a efeitos adversos ou à mortalidade em vacinados, ou sem cruzamento com dados de cobertura vacinal. A omissão é gritante e reveladora.

    E a quem cabe a responsabilidade por validar este artigo? À Acta Médica Portuguesa, a revista científica da própria Ordem dos Médicos, dirigida por Carlos Cortes que teve Filipe Froes como seu mandatário nas duas eleições. A revista aceita, publica e legitima um texto curto, como se fosse científico, sem qualquer revisão metodológica visível, sem discussão científica substantiva e, pior ainda, com um objectivo claro de reforçar uma narrativa já amplamente desacreditada na literatura internacional.

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    Trata-se pois de um uso impróprio de uma plataforma institucional, e uma revista científica, para validar politicamente uma leitura histórica enviesada dos anos pandémicos. A revista da Ordem dos Médicos deveria ser um bastião da integridade científica — mas, neste caso, foi cúmplice de (mais) uma operação de propaganda.

    E, mais uma vez, a comunicação social desempenha aqui um papel vergonhoso: o Expresso, jornal generalista e membro activo do circuito mediático da pandemia, noticiou o artigo sem qualquer filtro crítico, transformando-o em mais um tijolo no edifício da desinformação institucional. Não se perguntou pela ausência de revisão estatística. Não se questionou o conflito de interesses. Não se inquiriu a Ordem dos Médicos sobre a razão de aceitar um artigo tão frágil. Ao contrário: publicou-se com o mesmo entusiasmo reverente com que, em tempos, se noticiavam previsões alarmistas do Imperial College ou números de testes da DGS, sem verificação nem contraditório. O jornalismo falhou — de novo. E os “anos loucos da pandemia” já passaram: convém elevar os padrõezinhos!

    Aquilo que este caso demonstra, em toda a sua crueza, é que a pandemia criou um circuito fechado entre Ciência, política e comunicação social, onde os papéis de validação se sobrepõem e confundem. A autoridade da Ordem dos Médicos é usada para garantir o verniz científico; os autores coniventes (por vezes mercantilmente ligados a farmacêuticas) continuam a fornecer uma narrativa conveniente; os media amplificam sem questionar; e a opinião pública é conduzida como gado bem-comportado. Não há Ciência nisto — apenas um simulacro dela.

    Num país sério, este artigo seria motivo de inquérito interno por parte da Ordem dos Médicos, e a revista Acta Médica Portuguesa teria de rever os seus critérios editoriais. Num país sério, jornalistas confrontariam os autores com as omissões metodológicas e os conflitos de interesse. Num país sério, os dados oficiais seriam cruzados com outras fontes, com análises independentes e com dúvidas saudáveis. Mas Portugal, neste campo, não tem sido um país sério.

    Sem análise crítica, o jornal que se arroga de referência publica tudo como se houvesse novidade e sem contexto crítico. Hoje, é fácil meter uma ‘notícia’ no Expresso.

    A fraude científica não se faz apenas com dados falsos. Faz-se também com dados verdadeiros apresentados de forma enviesada, com omissões de outros dados por causas intencionais e estratégicas, com gráficos sugestivos, com títulos sensacionalistas — e, sobretudo, com a complacência das instituições. É este o caso. E é preciso dizê-lo com todas as letras.

    A pandemia acabou, mas a manipulação continua perene. E quem deveria defender a verdade científica, neste caso, quer ainda enterrá-la — de bata branca e logótipo ao peito.

  • Há um juiz que quer saber como um jornalista passa os tempos livres

    Há um juiz que quer saber como um jornalista passa os tempos livres


    Portugal atravessa um momento de inquietante regressão democrática. Meio século depois da Revolução dos Cravos, os mecanismos institucionais que deveriam salvaguardar os direitos fundamentais começam a tornar-se os seus principais agressores – tudo sob o manto morno da normalidade administrativa. Já não se trata de actos excepcionais. Trata-se da institucionalização do abuso sob a forma de rotina. Do automatismo inquisitório que devora, com papéis timbrados e formulários absurdos, o que resta da dignidade dos cidadãos.

    Falo, sim, na primeira pessoa. Não por vaidade – mas porque o que está em causa é mais do que um processo judicial. É o sintoma de um sistema que já não reconhece os seus próprios limites. Em Setembro começa o meu julgamento no Porto, após ter sido acusado pelo médico Gustavo Carona de 31 crimes de difamação. Um processo movido contra mim, por ter exercido a crítica pública, por ter respondido, por ter escrito. Por não me ter calado.

    Editorial

    Gustavo Carona, médico durante a pandemia, protagonizou momentos de exaltação pública, incentivando um clima de alarme e de exclusão dos que divergiam da narrativa oficial. Empurrou o discurso para a hostilidade e mesmo para o ódio. O meu “crime” foi recusar-me a alinhar com essa moral sanitária de palanque, e exercer, como cidadão e depois como jornalista e director do PÁGINA UM, o dever de contraditório e de sátira. A liberdade de expressão, de que tantos gostam de se apropriar quando lhes convém, parece ser, para certos sectores, uma licença condicional: vale para a militância, mas não para a crítica.

    Não solicitei abertura de instrução. Porque, desde o início, vi neste processo não apenas uma tentativa de intimidação, mas também uma oportunidade. Ser julgado – de forma pública e transparente – é o que desejo. Porque a absolvição será o meu selo de razão, de liberdade de expressão e de compromisso com a verdade jornalística.

    Aquilo que nunca esperei, no entanto, foi o que se passou a seguir.

    Sem qualquer condenação prévia, sem cadastro, nem sequer uma multa de trânsito ou uma dívida fiscal ou à Segurança Social de um cêntimo, e tratando-se de um processo por alegada difamação em contexto escrito, fui surpreendido por um despacho judicial que ordena à Direcção-Geral da Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) a realização de um relatório social sobre mim – como se de um recluso em transição penal se tratasse.

    Esse relatório inclui, entre outros pontos, a investigação sobre, “em especial“, conforme despacho do juiz:

    • o ambiente familiar em que se formou a minha personalidade;
    • as minhas habilitações literárias e o nível de aproveitamento;
    • o ambiente social em que me insiro;
    • a minha situação familiar e profissional;
    • a ocupação dos meus tempos livres;
    • e, claro, a minha situação económica.

    Repito: trata-se de um processo por difamação, por palavras escritas. E já me vejo reduzido a objecto de vigilância institucional, como se a Justiça estivesse mais interessada na arquitectura do meu lar do que na substância dos meus argumentos.

    Fui convocado pela DGRSP para uma “entrevista”, precedida da entrega de um inquérito em papel que roça o grotesco. É um formulário que parece saído de uma casa de correção do século XIX, onde se confundem necessidades sociais com devassidão institucional. A técnica que me atendeu – de forma correcta, apesar de tudo – apresentou-se com a naturalidade mecânica de quem cumpre ordens superiores. O problema não era ela. Era o que representava.

    Instalações da DGRSP na Avenida Almirante Reis, em Lisboa: onde a dignidade fica à porta.

    O questionário, com o selo da DGRSP, começa por perguntar se sou solteiro, casado, divorciado ou em união de facto. Quer saber a composição do meu agregado familiar, o nome e a idade de cada elemento, o rendimento de cada um. Pergunta se vivo em moradia ou apartamento, se tenho casa-de-banho com água canalizada, rede de esgotos e electricidade. Quer saber se os vizinhos me respeitam, se tenho desentendimentos, e se me ocupo de “tarefas domésticas”. E quer o meu contrato de trabalho, se o tiver. Sim, em 2025, o Estado português ainda pergunta se os vizinhos respeitam o arguido.

    Pergunta também se tenho médico de família – e se sim, o seu nome –, se estou doente, se frequento algum tratamento médico, se já tive contactos – não explicita de que género – com os tribunais, a polícia, os serviços prisionais e os serviços de reinserção.

    Mas mais escandaloso ainda foi o que a técnica me solicitou na entrevista: que apresentasse, um por um, comprovativos de abertura de actividade nas Finanças, os certificados das minhas três licenciaturas e do meu mestrado, e o diabo a quatro. Como se o meu currículo – público, acessível, auditável – não valesse nada para o Estado. Como se o jornalista, para ser tratado com respeito, tivesse de provar por escrito o que o seu trabalho demonstra há décadas. Quiseram-me ali para um ritual de humilhação burocrática. Não uma avaliação social – mas uma suspeição ontológica.

    Inquérito da DGSRP para elaboração do relatório social para cumprimento do despacho do juiz.

    E quando recusei responder a certas perguntas – como a da composição do meu agregado ou a descrição do meu ambiente familiar –, fui informado de que isso poderia ser entendido como “falta de colaboração”. Ora, isto é precisamente o reverso do Estado de Direito. Porque exercer o direito à reserva da vida privada (artigo 26.º da Constituição), à liberdade de expressão (artigo 37.º) e à presunção de inocência (artigo 32.º) nunca poderá ser considerado um sinal de rebeldia. Pelo contrário: é um acto de resistência legal.

    Aliás, só quase uma hora depois de ‘debate’, acabei por conseguir que aceitassem o documento que previamente tinha redigido sobre esta matéria. Mas até isso foi difícil.

    Hoje, observa-se uma perigosa tendência para a normalização do abuso. Quando um arguido, ainda mais sendo jornalista, acusado de difamação, é escrutinado ao nível da intimidade, como se estivesse já condenado, e fosse por homicídio, por violência doméstica ou por tráfico de droga, é porque os juízes perderam o senso da proporcionalidade.

    Quando um inquérito social nem sequer tem previsto, na parte da Escolaridade / Formação, a inclusão da alternativas sobre a frequência (e conclusão) de ensino superior, mas já questiona as minudências da residência (água canalizada, electricidade, redes de esgotos, conforto e privacidade), demonstra que o modelo subjacente não visa avaliar com rigor o percurso ou a posição social do arguido, mas antes reduzi-lo a um perfil de carência presumida, como se todo e qualquer acusado fosse, à partida, um desadaptado social em vias de reintegração.

    a wooden judge's hammer sitting on top of a table

    É a inversão perversa da lógica do Direito — e a consagração de um estigma institucionalizado —, onde se apaga a fronteira entre a justiça e o assistencialismo punitivo.

    E quando o aparelho do Estado exige provas documentais para tudo – até para diplomas que são do (re)conhecimento público – é porque o sistema deixou de confiar na sua própria transparência.

    O PÁGINA UM, que dirijo, já demonstrou – em tribunal – que o poder judicial, por vezes, se arroga acima da lei. Um dos processos administrativos que movemos contra o Conselho Superior da Magistratura levou o próprio presidente (e simultaneamente presidente do Supremo Tribunal de Justiça) a ser advertido pessoalmente com multa por incumprimento de uma decisão judicial. Se isto sucede ao topo do sistema, o que esperar das suas ramificações?

    Não está aqui apenas em causa a minha defesa pessoal. É a defesa de todos os que ainda acreditam que ser jornalista em Portugal é mais do que ser porta-voz do sistema. Que ainda acreditam que o contraditório, a sátira e a exposição do poder são parte da seiva da liberdade. Que não aceitam ser classificados, anotados e arquivados como potenciais réus morais por opinarem de forma incómoda.

    Aquilo que está em causa não é a minha vida privada. É a nossa liberdade pública. E se a justiça continuar neste caminho, amanhã o formulário será para todos.

    Espero que haja reacções e que não reine um silêncio cúmplice no meio jornalístico como em outras situações. Um silêncio que lembra — com ironia amarga — a antiga fórmula usada nos tribunais portugueses: “aos costumes, disse nada.”

    Dita por réus sem passado criminal, esta frase era um acto de defesa; mas dita hoje por cidadãos e instituições perante o avanço de uma justiça que tudo quer vigiar e tudo quer devassar, transformando uma democracia num simulacro, é um acto de rendição. Tornou-se símbolo de uma sociedade que aceita os atropelos da autoridade com a mesma passividade com que um arguido habituado à sala de audiências responde ao oficial de diligências.

    woman holding sword statue during daytime

    Mas eu, como jornalista, como cidadão e como homem livre, não digo nada aos costumes — por uma razão simples: é precisamente contra esses costumes que levanto a voz. Não se deve aceitar que o silêncio se transforme em regra e a humilhação em norma. Não se deve aceitar que a liberdade de expressão, de crítica e de privacidade seja degradada a favor de um sistema que, disfarçado de legalidade, anda desejoso de reprimeir o espírito livre.

    Se este meu julgamento — e um seguinte, que este ano, ainda me há-de colocar defronte das acusações da Gouveia e Melo, da Ordem dos Médicos, do ex-bastonário Miguel Guimarães e de dois médicos sem coluna’ (Filipe Froes e Luís Varanda)— servir para alguma coisa, que sirva para isto: não disse nada aos costumes. Mas direi tudo contra os abusos que deles derivam — porque é essa, afinal, a função do jornalista numa democracia: falar quando o poder preferia que se calasse.

  • Moderna: o colapso de um Ícaro que tocou o sol pandémico

    Moderna: o colapso de um Ícaro que tocou o sol pandémico


    Durante os anos febris da pandemia, o mundo assistiu a um espectáculo farmacêutico de proporções inéditas. Como na antiga fábula de Ícaro, e aproveitando a ideia de que eram empresas beneméritas e salvadoras, diversas farmacêuticas alçaram voo tão alto que chegaram a roçar o sol — ou, mais propriamente, a embater na razão e na prudência, escudadas numa narrativa de urgência que legitimava tudo, até o inadmissível.

    Entre estas, a norte-americana Moderna destacou-se como símbolo maior da fortuna repentina, empoleirada sobre uma tecnologia experimental — o mRNA — promovida com ares de milagre científico e embalada por contratos estatais que dispensavam responsabilidades e multiplicavam os lucros.

    Os lucros foram, aliás, de uma obscenidade quase teológica. Em 2021 e 2022, sustentada quase exclusivamente pela vacina Spikevax, a Moderna arrecadou lucros de mais de 20,5 mil milhões de dólares, o equivalente a cerca de 18,6 mil milhões de euros — ou 6,7% do PIB português. Antes de 2021, a Moderna apresentava prejuízos sistemáticos.

    Este sucesso com um só produto — e a Moderna nem sequer foi a farmacêutica que mais vendeu vacinas contra a covid-19 — teve como base uma vacina que, apesar de alegadamente segura e eficaz, foi testada a correr, aprovada sob regimes excepcionais e vendida a governos com cláusulas de exclusão de indemnização em caso de efeitos adversos.

    Tratava-se, dizia-se, de uma emergência — e, como em todas as emergências, os que correm depressa e com bons contactos institucionais colhem primeiro. A Ciência — ou o que dela restava, ou pelo menos a parte que preserva os princípios da prudência — foi empurrada para segundo plano, dando lugar à logística, à política e ao marketing biomédico.

    O frenesim chegou também à bolsa. As acções da Moderna, cotadas no índice Nasdaq sob o irónico símbolo MRNA, que antes da pandemia valiam cerca de 25 dólares, atingiram o seu pico histórico a 10 de Setembro de 2021, quando chegaram aos 449,38 dólares — uma subida de cerca de 1.700% num ano e meio. Foi a glória absoluta, o zénite do voo de Ícaro.

    Mas desde então a queda tem sido vertiginosa. A 1 de Agosto de 2025, a cotação era de apenas 27,60 dólares — uma queda de 94% face ao pico —, levando a empresa a perder quase toda a valorização obtida durante a pandemia. A capitalização bolsista, que em 2021 superava os 180 mil milhões de dólares, ronda agora os 10,7 mil milhões. Um desmoronamento de proporções mitológicas.

    Com o fim do entusiasmo pelos reforços — e a crescente ocultação dos efeitos adversos —, as vendas decaíram. E os prejuízos da Moderna regressaram: 4,7 mil milhões de dólares em 2023 e quase 3,6 mil milhões no ano passado, acompanhados por queda de receitas e poucos sucessos noutras terapias de mRNA.

    Evolução da cotação da Moderna com indicação do máximo (449,38 dólares em 10 de Setembro de 2021) e cotação em 1 de Agosto de 2025 (27,60 dólares). Fonte: Google Finance.

    O tempo do marketing biomédico terminou com estrondo. A Moderna, que em tempos não sabia como gastar o dinheiro que entrava em catadupa — investindo em laboratórios, fábricas, campanhas, contratações —, tenta hoje salvar-se de um declínio que é estrutural. No segundo trimestre de 2025, a empresa anunciou receitas de apenas 142 milhões de dólares, uma queda de 41% face ao período homólogo, e um prejuízo ajustado de 2,13 dólares por acção — ainda assim, melhor que os 2,97 dólares de prejuízo esperados pelos analistas.

    Piores, contudo, são as expectativas para o futuro. James Mock, director financeiro da farmacêutica, procurou suavizar a notícia: parte significativa da receita será reconhecida no terceiro e quarto trimestres, disse. Haverá um pico no outono, sugeriu. Mas reconheceu que o impulso recente veio sobretudo dos reforços de primavera nos EUA e dos cortes de 800 milhões de dólares em custos — um sinal claro de emagrecimento forçado.

    Não por acaso, Stéphane Bancel, CEO da Moderna, anunciou na semana passada a dispensa de cerca de 10% da força laboral. A empresa, que no final de 2024 empregava 5.800 trabalhadores, terá menos de cinco mil até ao fim deste ano.

    Não se trata apenas de reduzir gordura: é uma amputação cauterizada. E, tal como nas narrativas mitológicas, depois do voo de glória vem a queda abrupta. Bancel justificou a decisão com a necessidade de “disciplinar financeiramente” a empresa e preparar o caminho até 2027. Certo é que as milagrosas vacinas de mRNA — outrora apresentadas como o futuro inevitável da Medicina — já não se vendem como dantes.

    O novo produto da empresa — a mRESVIA, dirigida ao vírus sincicial respiratório — está longe de fazer grande sucesso. Até a nova versão da vacina contra a COVID-19, a mNEXSPIKE, obteve apenas uma aprovação restrita: nos Estados Unidos, apenas para maiores de 65 anos ou pessoas com comorbilidades, como sucede com as vacinas sazonais contra a gripe ou a pneumonia. Nada que se aproxime do mercado universal que se quis impor durante a pandemia — com fins meramente mercantilistas.

    Perante este cenário, a Moderna volta-se para o futuro — ou melhor, para a promessa do futuro. Fala de vacinas combinadas, de terapias para doenças raras, de oncologia personalizada, de vírus latentes. Projecta investimentos, anuncia regulações em curso, convoca uma visão estratégica. Mas, por mais que se empunhem termos como “disrupção”, “inovação” e “resiliência”, os dados impõem um regresso à realidade: sem uma nova emergência sanitária (fabricada ou não), dificilmente se repetirá o contexto político, mediático e regulatório que permitiu os lucros faraónicos da era pandémica.

    A crise da Moderna é, pois, paradigmática. Mostra que a transição do modelo de vacina de emergência para o mercado endémico — isto é, concorrencial, previsível e regulado — é dolorosa para quem apenas aprendeu a prosperar com o tapete vermelho estendido pelos governos e pelo alarmismo mediático, assessorado por cientistas mercantilistas.

    Hoje, até os governos que outrora assinaram contratos multimilionários sem pestanejar — muitas vezes sob sigilo — mostram-se menos generosos. E os cidadãos, vacinados em série, começam a questionar se não foram enganados e usados por uma hipérbole institucionalizada.

    Na verdade, aquilo que está a suceder à Moderna não é apenas um estrondo económico: é simbólico. Representa a falência de um modelo que confundiu biotecnologia com salvação, urgência com imunidade, marketing com saúde pública. Representa o ocaso de uma época em que os CEOs das farmacêuticas eram tratados como visionários e não como gestores de interesses corporativos. Representa, em última instância, o regresso de Ícaro ao chão — com as asas derretidas pela luz crua do escrutínio.

    Por isso se impõe uma reflexão mais ampla. O episódio da Moderna deve ser lido não como uma simples travessia empresarial num ciclo de mercado, mas como uma lição civilizacional: de que a Ciência, quando subordinada à lógica do lucro e do pânico, torna-se uma caricatura de si própria; de que a Política Pública, quando abdica do escrutínio, alimenta monstros económicos de pés de barro; e de que o jornalismo, quando abdica do contraditório, ajuda a construir mitos que mais tarde se desfazem em silêncio.

    A Moderna foi, como tantas outras, uma das beneficiárias de uma era de excepções. Mas o seu colapso poderá significar que os tempos da prevenção, da proporcionalidade e da transparência estão de regresso. E com eles, o sol da racionalidade — algo a que as asas de cera não resistem.

  • Dois marcos em Julho: 595 donativos e 687.454 leituras

    Dois marcos em Julho: 595 donativos e 687.454 leituras


    Julho foi um mês marcante na história ainda curta, mas já intensa, do PÁGINA UM. Atingimos um novo recorde: 687.454 leituras, o que equivale a uma média superior a 22 mil visitas por dia. Um número que nos enche de alegria – e de responsabilidade. A cada leitura, a cada partilha, a cada comentário, confirmamos que este projecto faz sentido. Que vale a pena. Que há leitores atentos, exigentes e livres.

    Como sabem, não temos publicidade. Não temos patrocínios. Não temos “secções powered by”. E, ao contrário de muitos que se dizem independentes, nós somos verdadeiramente independentes – na origem, na prática e na essência. Essa liberdade absoluta tem um custo, e por isso optámos desde o início por um modelo de acesso aberto a todos, sem barreiras, sem subscrições obrigatórias, sem engodos. Qualquer pessoa pode ler o PÁGINA UM, seja ou não apoiante.

    MacBook Pro near white open book

    É aqui que entram os nossos leitores mais fiéis. Em Julho, 595 pessoas apoiaram o PÁGINA UM – com donativos únicos, regulares ou recorrentes, através das várias plataformas (Steady, Paypal, transferência bancária, e agora uma nova plataforma que criámos no mês passado para facilitar ainda mais este processo). Estes apoios são distintos no valor, mas iguais na importância. São todos eles sinais de confiança e de compromisso.

    O nosso modelo assenta numa lógica de “willingness to pay” – ou seja, de pagar voluntariamente por algo que se considera valioso, mesmo quando esse algo é gratuito. É uma aposta na consciência e na liberdade de quem nos lê. Não impomos nada. Apenas mostramos que, se queremos manter um jornalismo sem amarras, precisamos de uma comunidade de leitores que o sustente com convicção.

    Temos, por isso, motivos para estar gratos. Quase seis centenas de pessoas a apoiar regularmente um jornal digital que recusa concessões, que recusa modas, que recusa a linguagem institucionalizada do politicamente correcto, é um pequeno milagre. Mas queremos mais. O nosso objectivo a curto prazo é alcançar os 1.000 apoiantes. Sabemos que é possível.

    Julho também foi importante porque algumas das nossas reportagens e investigações tiveram impacto real – nos leitores, nos protagonistas e, às vezes, até nas instituições. Mesmo que muitos dos outros órgãos de comunicação social continuem a ignorar ou a fingir que não existimos, os leitores sabem que existimos. E isso basta.

    Por enquanto, a redacção do PÁGINA UM é formada por duas pessoas apenas – eu e a Elisabete Tavares, com o apoio inestimável dos nossos colaboradores. Mas, com o crescimento da base de apoio, esperamos reforçar a equipa em breve. Há novidades a caminho.

    A todos os que estão connosco – diariamente ou pontualmente, com palavras ou com apoio financeiro –, o nosso sincero obrigado. Continuaremos, como sempre, a trabalhar com rigor, com liberdade e sem ideologia. Não podia ser de outra forma. Não há verdadeiro jornalismo de outra forma.

  • Inquisição e redes sociais, ou a estupidez de Rui Moreira

    Inquisição e redes sociais, ou a estupidez de Rui Moreira


    Na pulsação apressada do mundo contemporâneo, onde os fluxos informativos são tão líquidos quanto voláteis, é tentador recorrer a imagens fortes para adquirir uma sensação de domínio explicativo. Rui Moreira, presidente da Câmara do Porto em fim de mandato — e putativo candidato a Presidente da República —, lançou num podcast do jornal Eco uma dessas imagens — poderosa, sim, mas também grosseiramente equívoca.

    Afirmou ele que “Portugal foi o último país a abolir a Inquisição e, portanto, vamos seguramente ser o último a abolir as redes sociais, que hoje são uma forma de inquisição”.

    a woman standing in front of a lighted cross

    Poder-se-ia dispensar o exagero retórico — e a falta de rigor sobre Portugal ter sido, ou não, o último país a extinguir a Inquisição —, não fosse o peso institucional e simbólico da figura que o proferiu. Mas já que a analogia foi feita, convém destroçá-la com o mesmo ou maior vigor com que foi propagada. Não porque as redes sociais sejam oásis de virtude — estão longe disso —, mas porque a comparação com a Inquisição não é apenas lamentavelmente desonesta: é historicamente ignorante, politicamente oportunista e, mais grave, intelectualmente preguiçosa.

    A Inquisição — essa sim — foi um sistema institucional de controlo dogmático, sustentado pelo poder eclesiástico e laico, com tribunais secretos, denúncias anónimas, censura oficial, tortura sancionada, autos-de-fé e penas de morte reais. Funcionou durante três séculos e servia os interesses conjugados do trono e do altar. Era uma máquina silenciosa e implacável de sufocar dissidência, pensamento herético, irreverência científica ou religiosa. As vítimas não escolhiam estar sob o seu escrutínio. Eram silenciadas, não amplificadas. Punidas, não ouvidas. Desaparecidas, não partilhadas.

    Comparar isto — este período sombrio da nossa História — às redes sociais é mais do que um ultraje: é, francamente, uma estupidez.

    As redes sociais, com todos os seus excessos e disfunções, são o oposto dessa lógica. São desordeiras, indomáveis, abertas, imprevisíveis — um espelho ampliado da democracia em estado bruto, com a cacofonia inevitável da liberdade. Permitem o insulto, sim — como qualquer taberna política sempre permitiu. Mas também permitem o contraditório imediato, a exposição de abusos, a mobilização cívica espontânea e a articulação de vozes que os media convencionais tantas vezes filtram ou ignoram.

    É precisamente isso que incomoda certos políticos e elites administrativas: não poderem controlar o discurso, como controlam ou influenciam — directa ou indirectamente — muitos jornais, rádios, televisões ou agências noticiosas. Antes era fácil: onde havia um director de informação, havia um jantar; onde havia um editorial corporativo, havia uma rede de cumplicidades que nem precisava de ser declarada. Nas redes sociais, o “director de informação” somos todos nós — com os nossos vícios, sim, mas também com a nossa insubmissão.

    E essa insubmissão — esse ruído, essa desordem incontrolável — tem sido, em não poucos casos, uma arma de libertação real. Quem não se recorda da Primavera Árabe, quando regimes autoritários do Norte de África foram desafiados e, nalguns casos, derrubados, graças à articulação de protestos através do Facebook e do Twitter?

    Foi pelas redes sociais que se viram, em tempo real, as praças ocupadas, os manifestantes reprimidos, as esperanças acesas por palavras partilhadas. No Irão, em 2009 e em 2022, quando as ruas eram interditadas e os jornalistas impedidos de reportar, foram vídeos de telemóvel — difundidos no Instagram ou Telegram — que mostraram ao mundo as violações dos direitos humanos.

    Em Hong Kong, em 2019, os jovens recorreram às redes para organizar protestos em tempo real, driblando a censura do Partido Comunista Chinês. Mesmo em democracias consolidadas, como os Estados Unidos, foi um vídeo filmado por um cidadão e viralizado no Twitter que denunciou o assassinato de George Floyd, mobilizando milhões contra o abuso policial.

    As redes sociais não são a nova censura. São, em muitos momentos históricos, o único canal de expressão onde o poder não chega primeiro. São desreguladas? Sim. São manipuláveis? Também. Mas são, sobretudo, incontroláveis — e é isso que as torna perigosas para quem se habituou a falar sem ser contestado.

    people using phone while standing

    Não duvido de que haja perseguições morais nas redes, indignações em fúria, cancelamentos momentâneos — por vezes histéricos ou orquestrados. Mas isso não faz das redes um novo Santo Ofício. E para problemas novos, criem-se instrumentos de Justiça; não mecanismos informais que silenciem vozes incómodas, incluindo as de jornalistas.

    As redes sociais serão sempre, em muitos casos, ferramentas espontâneas de denúncia popular que, embora imperfeitas, lançam luz sobre zonas anteriormente protegidas por silêncios convenientes. Quantos escândalos de abuso, corrupção ou hipocrisia política só se tornaram visíveis graças à pressão social do espaço digital? Quantos interesses instalados foram forçados a responder a perguntas que os jornalistas de microfone complacente nunca ousaram formular?

    O incómodo que certas figuras públicas sentem com as redes sociais tem menos a ver com as redes em si do que com a perda do seu monopólio sobre o discurso público. Durante décadas, bastava uma boa relação com um grupo de editores ou com um partido de poder para moldar narrativas, ocultar dissensões ou fabricar consensos. Hoje, esse controlo está fragmentado. A plebe tem voz — e não pede licença para falar. E isso assusta.

    Rui Moreira usa redes sociais para se promover, mas poucos lhe ligam: 13 horas depois de divulgar a sua conversa para a Eco contava apenas com 63 likes, dois comentários e quatro partilhas, Compreende-se porque não as aprecia.

    Seria intelectualmente honesto que Rui Moreira — homem que se diz culto, informado, com vivência do espaço público — reconhecesse que não é a “inquisitorialidade” das redes que o incomoda. Antes, é a impossibilidade de as domesticar. Aquilo que ele diz ser uma “forma de inquisição” é, afinal, uma forma de libertação — com os seus excessos naturais, mas também com virtudes inegáveis. Este é o custo da liberdade — e a liberdade, como sabemos desde os gregos antigos, implica ruído, risco e conflito.

    Mas se os políticos querem abolir as redes sociais, sejam coerentes: comecem por fechar as suas contas institucionais, cancelar as campanhas digitais, recusar os likes e os follows. Mas não venham depois lamentar que ninguém os ouve, porque — gostem ou não — hoje o espaço público já não se limita aos salões de poder nem às colunas de opinião dos jornais amigos. O poder vive — e ferve — nas redes. E é precisamente aí que os cidadãos, com os seus defeitos e contradições, recuperaram uma fatia da soberania que lhes era negada. E a isto chama-se amadurecimento da democracia — acabar com as redes sociais seria apodrecer a democracia.

  • Ó Mário Centeno, como chega um tipo com média (só) de 16 a governador do Banco de Portugal?

    Ó Mário Centeno, como chega um tipo com média (só) de 16 a governador do Banco de Portugal?


    Deambulando num misto de férias e trabalho pelos países bálticos, apenas ontem me chegaram ecos da entrevista de Mário Centeno, afastado de governador do Banco de Portugal, concedida a Vítor Gonçalves, o novo director da RTP.

    Manifestamente, viu-se um Mário Centeno ferido no orgulho, desiludido pela não recondução, talvez vítima de uma “cabala” para o encostar com o contrato da nova sede desta instituição que mereceria maior escrutínio. Na verdade, com menos competências do que tinha há 20 anos, qual a razão para tamanha megalomania em Entrecampos?

    Porém, o seu acinte — sim, o termo é apropriado — não justifica o ataque rasteiro aos jornalistas que noticiaram a renovação do contrato do seu chefe de gabinete, Álvaro Novo, e a promoção ao cargo de directora-adjunta do Departamento de Estatística de Rita Poiares (casada com Ricardo Mourinho Félix, que foi secretário de Estado quando Centeno era ministro das Finanças). Até porque, essencialmente, estava em causa o timing. Se tais decisões tivessem sido tomadas com recato e distanciamento, talvez não se levantassem sobrancelhas.

    Mas a coincidência entre a véspera da sua saída e os despachos que beneficiam directa ou indirectamente amigos e conhecidos é, no mínimo, questionável. Infelizmente, não fui eu quem deu essa notícia — outros chegaram primeiro. Mas, se tivesse sido — e o PÁGINA UM revelou muitos contratos estranhos no período de Centeno, sobretudo com sociedades de advogados e gastos supérfluos com as instalações provisórias —, as palavras do ainda governador teriam sido ainda mais ofensivas.

    Com efeito, Centeno, em vez de se explicar, disparou — e não argumentos, mas desdém. Duas vezes — e sem que Vítor Gonçalves reagisse, como deveria — passou um atestado de menoridade à classe jornalística, ao afirmar: “As pessoas [jornalistas] que fizeram essas notícias, provavelmente não têm currículo para entrar no Banco de Portugal, porque o Banco de Portugal é muito exigente […]. Para entrar no Banco de Portugal não se pode ter média de 10.” Repare-se: não disse isto num momento de exaltação ou improviso. Foi uma munição preparada de casa, como quem carrega cartucheira para caçar pardais com calibre de javali.

    Ora, eu conheço bem o currículo académico de Mário Centeno. E sei que, por mais doutoramentos em Harvard que se acumulem (o que não é pouca coisa), as skills — perdoe-se-me a anglicização para dar um toque de Management — de um governador do banco central não se medem por médias finais de licenciatura nem por decibéis de vaidade. Um governador mede-se por outras métricas: rigor, isenção, sentido de Estado, independência face ao poder político, ética nas nomeações e contenção na arquitectura das vaidades. Não é por ter média elevada que se está acima da suspeita.

    E também não é por não se trabalhar no Banco de Portugal que se tem, necessariamente, uma média baixa. E mesmo que essa média não seja extraordinária, não é por isso que se deve ser afastado da mesa das decisões públicas ou da observação crítica. A História mostra que alguns dos mais brilhantes jornalistas, escritores, pensadores e reformadores nunca tiveram grande nota nos exames, mas passaram com distinção os testes da lucidez, da coragem e da integridade.

    E aqui entro eu, inevitavelmente, na arena do argumentário ad hominem que Centeno tão habilmente sugeriu. Já que foi ele quem puxou das médias para tourear jornalistas, meto-me na lide. Mário Centeno terminou a sua licenciatura em Economia em 1990 no centenário Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) com uma média de 16. É obra: consta do Quadro de Honra. Já eu, pobre jornalista — sim, dessa classe que ele considera indigna, por demérito, de entrar no Banco de Portugal e de revelar criticamente as suas doutas decisões — sou, salvo erro, o único aluno do ISEG a integrar, ao mesmo tempo, o Quadro de Honra de Economia e de Gestão. E, em ambos os casos, com média final de 17 valores.

    Detalhe do Quadro de Honra do ISEG com os registos relativos a Mário Centeno e a Pedro Almeida Vieira.

    Quer isto dizer que, pela bitola de Centeno, estarei mais qualificado para o Banco de Portugal do que ele próprio? À luz do seu argumento, poderia eu, um simplório jornalista (para ele), perguntar-lhe afinal, com a legitimidade da minha média de 17 na mesma alma mater: “Ó Mário Centeno, como é possível alguém ser governador do Banco de Portugal só com média de 16?” À luz do bom senso, evidentemente, isso não faz sentido — e muito menos fazem sentido as palavras acintosas de Centeno contra os jornalistas.

    Na verdade, esta lógica das médias é, além de pateticamente arrogante, profundamente perigosa — até porque todos sabemos as razões da ida de Centeno para o Banco de Portugal. Em poucos anos, Centeno foi infectado pela lógica da tecnocracia vaidosa: julga-se membro de uma elite que se crê ungida por um destino académico que a legitima para mandar sem prestar contas, sem ser escrutinada.

    Esta é a lógica que confunde mérito com titulatura, inteligência com colecção de diplomas, competência com circuito de nomeações entre amigos. Uma lógica que desumaniza, que reduz as pessoas a números — e que, não por acaso, é a mesma lógica que levou Centeno a defender, com frieza estatística, medidas de austeridade sob o pretexto da consolidação orçamental.

    Centeno, que ascendeu ao topo do Banco de Portugal por ter sido ministro das Finanças de um Governo socialista, veio agora dar-nos lições de mérito por ter sido afastado por um Governo social-democrata, numa zanga de “comadres” da escola do ISEG. E nem disfarça.

    Enfim, se alguma coisa se aprende com este episódio, é isto: o desprezo pelas profissões alheias revela mais sobre o carácter de quem fala do que sobre o mérito de quem é atacado. E se Mário Centeno queria mesmo sair com dignidade, bastava-lhe ter ficado calado. Porque, às vezes, a última nota que se deixa — e não falo da média de licenciatura — é aquela por que verdadeiramente se será lembrado.

  • O dogmatismo ‘científico’ e a desinformação: o paradigma David Marçal

    O dogmatismo ‘científico’ e a desinformação: o paradigma David Marçal


    Nos últimos anos, poucos conceitos foram tão martelados no espaço mediático e político como o da “desinformação”. Tornou-se uma espécie de fetiche moral, uma nova lepra simbólica que se cola a tudo o que contraria o consenso hegemónico — ainda que esse consenso seja, com frequência, volátil, interesseiro ou simplesmente errado.

    A palavra “desinformação” passou, aliás, a ter uma dupla função: por um lado, denunciar falsidades objectivas — o que é legítimo e necessário; mas, por outro, tornou-se um instrumento de exclusão retórica, um selo de infâmia aplicado a tudo o que destoa do discurso dominante. Serviu para calar vozes críticas no plano político, silenciar dissidentes no plano social e descredibilizar minorias epistémicas no plano científico. O que antes se combatia com argumentos, combate-se agora com rótulos. E um dos mais eficazes é precisamente este: “desinformador”.

    Curiosamente — ou não —, raramente se discute que a desinformação, em sentido lato, é uma externalidade negativa de algo positivo: a liberdade de expressão e a democracia. Tal como a poluição é uma consequência indesejada da industrialização — cuja mitigação exige tecnologia, investimento e ética —, também a desinformação é um subproduto inevitável da liberdade. Só em ditaduras se impõe uma visão única das coisas. E num regime democrático, a única resposta legítima à mentira é a palavra, não a mordaça.

    Pretender erradicar a desinformação sem pôr em causa a liberdade de expressão é como pretender eliminar o ruído urbano sem tocar no tráfego automóvel: uma ilusão autoritária mascarada de boa intenção.

    Mais grave do que essa simplificação é a tentação crescente — e perigosamente institucionalizada — de se combater a desinformação com censura. Pior ainda: com a Ciência, erigida a nova instância de verdade absoluta. Como se os cientistas fossem missionários, como se os consensos científicos fossem dogmas, como se a discordância fosse uma forma de heresia e os dissidentes, uns leprosos cognitivos.

    Mas a Ciência — e é trágico ter de repetir o óbvio — não é um corpo de verdades eternas: é um método. Ora, esse método vive de questionar, de duvidar, de admitir a possibilidade de estar errado. E também de ser paciente em refutar hipóteses absurdas ou erradas, mas sempre com espírito aberto e tolerante. Não se combate erros ou teorias da conspiração proibindo que sejam faladas — combate-se deixando que sejam faladas, para que caiam em descrédito.

    Não há, na verdade, Ciência sem dissenso, sem controvérsia, sem revisão de pressupostos. A História da Ciência está repleta de consensos quebrados — e foi sempre por aí que ela mais cresceu.

    Por isso, se há figuras públicas que me causam um fastio particular são aquelas que se colocam no pedestal da racionalidade, nos ombros da Ciência, para anatematizar os debates públicos — sejam estes travados por especialistas ou por leigos. Um desses exemplos, que se tornou uma espécie de mascote nacional da “Ciência Certa”, dá pelo nome de David Marçal, conhecido como colunista do Público e autor de vários livros de “divulgação científica”.

    David Marçal

    Essa minha irritação não decorre da falta de inteligência de David Marçal, nem da ausência de capacidade argumentativa. É precisamente o contrário: é por ser tão fluente na retórica falaciosa, tão hábil na omissão do que o incomoda, tão moralista nas suas inferências, que o seu discurso me parece perigosamente eficaz. E, claro, por ser tão ostensivamente aplaudido por aqueles que se julgam mais esclarecidos — os zelotas do racionalismo domesticado.

    No seu mais recente texto, publicado na passada sexta-feira no Público e intitulado As nossas percepções estão quase sempre erradas, David Marçal exemplifica esse seu modus operandi de forma lapidar. De início, parece apenas um ensaio sobre as nossas falhas cognitivas e erros de percepção, com base em autores credíveis como Daniel Kahneman, Bobby Duffy ou Hans Rosling. Nada contra.

    A exposição da dualidade entre pensamento rápido (Sistema 1) e pensamento lento (Sistema 2) é sólida, didáctica e reconhecida no campo da psicologia cognitiva. Também não é falso que, em muitos domínios da vida social, as percepções das pessoas estão erradas — como demonstram inquéritos sobre imigração, sexualidade, religião ou vacinas. Estamos na área da Psicologia, que é uma ciência humana e comportamental, não propriamente uma ciência exacta.

    ‘Ensaio’ desta sexta-feira de David Marçal no Público.

    Mas o problema de Marçal começa na selecção e no tratamento dos exemplos. O texto pratica, com notável perícia, aquilo que em Ciência se designa por cherry picking: seleccionar apenas os casos que confirmam a tese que se pretende sustentar. Aponta com severidade os erros do cidadão comum, mas omite olimpicamente os erros das instituições científicas, dos especialistas mediáticos e dos organismos internacionais — como se estes fossem infalíveis ou, no mínimo, irrelevantes para o debate sobre desinformação. Isso é desonestidade por omissão. E, como se sabe, a meia-verdade é mais perigosa do que a mentira.

    Por exemplo: onde está, no seu ensaio, qualquer referência aos consensos científicos errados da história recente? Onde está a autocrítica às previsões apocalípticas da pandemia da covid-19, em que se comparou a doença à gripe espanhola, se promoveram confinamentos com base em modelizações especulativas, se fecharam escolas sem base empírica sólida e se censuraram vozes discordantes que, com o tempo, se revelaram prudentes e certeiras? Onde está a reflexão sobre o papel das farmacêuticas na produção científica durante a pandemia, ou sobre a falência da revisão por pares como garante de fiabilidade?

    Não está. E não está porque esse tipo de crítica não serve o propósito do texto: reforçar que o problema está nos outros — os desinformados, os ignorantes, os simplórios. Nunca no clero científico.

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    O mais espantoso — e inquietante — é que, no momento em que a Ciência estava mais bem equipada do que nunca para enfrentar uma pandemia, com sistemas de vigilância epidemiológica, ferramentas estatísticas, equipas interdisciplinares e capacidade tecnológica sem precedentes, muitos dos seus representantes se comportaram como profetas do pânico, influenciando péssimas decisões políticas. Num cenário que exigia prudência, proporcionalidade e avaliação de risco baseada em dados desagregados, optou-se por uma retórica apocalíptica, convertendo incertezas legítimas em certezas absolutas e alimentando o medo como instrumento de mobilização social.

    Suspender consultas, diagnósticos e cirurgias; encerrar escolas e confinar crianças à telescola; impedir que se andasse ao ar livre; internar idosos em “covidários”; tudo isto foi sustentado por cientistas que se deslumbraram com o poder de uma distopia.

    E o paradoxo é este: o pico de mortalidade em 2020 e 2021 — não apenas pela covid-19 — deu-se quando havia menos visitas às urgências, menos camas hospitalares ocupadas e menos dias de internamento. E depois a Ciência recusou-se a avaliar seriamente as mortes em excesso em 2022, com temor em descobrir causas politicamente sensíveis. Mas note-se: mesmo entre os grupos mais vulneráveis — os idosos com múltiplas comorbilidades —, as taxas de mortalidade em Portugal durante a pandemia foram, por vezes, inferiores às de há vinte anos. Na primeira década deste século, a mortalidade relativa (taxa) entre maiores de 85 anos foi mais elevada do que nos picos pandémicos de 2020 ou 2021. Isto — goste-se ou não — é uma factualidade científica.

    E, no entanto, a percepção mediática e institucional — alimentada por divulgadores como David Marçal — insistiu na ideia de uma catástrofe sanitária sem paralelo. Não por força dos dados, mas por imposição de uma narrativa.

    Narrativa essa que foi promovida com zelo quase religioso por cientistas e divulgadores que confundiram pedagogia com propaganda, muitas vezes em promiscuidade ideológica, financeira ou simbólica com a indústria farmacêutica e com os centros de decisão político-mediáticos. A “Ciência” — essa entidade abstracta que tantos invocam — serviu de escudo retórico para justificar medidas que, em muitos casos, não resistiram ao escrutínio retrospectivo. E quem ousava colocar perguntas incómodas era imediatamente rotulado como “negacionista”, “desinformador” ou “anticiência”.

    Aliás, a ideia de que se combate a desinformação com “mais Ciência” é, por si só, uma armadilha lógica. Que Ciência? A de que momento? Publicada onde? Financiada por quem? Promovida por que canais? A Ciência não é um bloco monolítico. É feita por humanos, com os seus interesses, limitações, enviesamentos e alinhamentos institucionais. O verdadeiro cientista não teme o dissenso — estimula-o. Não silencia dados desconfortáveis — investiga-os. Não exclui outliers — problematiza-os. Quando um divulgador científico se comporta como censor ou paladino do dogma, deixa de ser defensor da Ciência e passa a ser apóstolo de uma fé travestida de método.

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    O mais irónico — e preocupante — é que essa retórica ilustrada, desse círculo de Marçal, que despreza o senso comum e endeusa a tecnociência, tem efeitos sociais contraproducentes. Em vez de promover confiança na Ciência, fomenta a suspeita. Em vez de combater os extremismos, alimenta-os. Quando o público se apercebe de que há censura de opiniões divergentes, de que só certas narrativas têm direito à luz do dia, de que os consensos mudam ao sabor do vento político, tende a desconfiar de tudo — até do que está bem fundado. A verdade não se impõe com silenciadores. A confiança constrói-se com transparência, humildade epistémica e coragem para admitir os erros do passado.

    Marçal termina o seu ensaio com uma referência ao Brexit como exemplo de erro colectivo baseado em percepções erradas. Pode até ser. Mas pergunto: quantas decisões políticas foram moldadas por dados distorcidos promovidos por instituições ditas credíveis? Onde está a crítica às projecções falhadas do FMI, do BCE ou da OCDE, que erraram sistematicamente durante anos sem qualquer responsabilização? O critério de Marçal é invariável: criticar a irracionalidade das massas, mas nunca a manipulação das elites.

    man in black crew neck shirt wearing black face mask

    Talvez a pergunta que hoje mais importa não seja “como combater a desinformação?”, mas sim “quem define o que é desinformação?”. Porque a História está cheia de ideias que foram rotuladas de perigosas ou absurdas — e que se tornaram, mais tarde, pilares do conhecimento. Galileu, Lavoisier, Semmelweis, Barry Marshall, Alfred Wegener: todos foram dissidentes. Todos foram perseguidos ou ignorados. Todos foram, a seu tempo, justificados pelos dados. Nenhum deles teria tido espaço nos palcos bem-pensantes da “Ciência Oficial” onde hoje David Marçal actua com os favores de uma certa academia e da imprensa.

    Na verdade, ao propor que a Ciência funcione como instrumento de silenciamento — erguendo-a a tribunal moral e a gendarme da verdade —, David Marçal não está a defendê-la: está a traí-la. Porque a Ciência, por definição, só respira em ambientes de liberdade crítica, de permanente revisão, de dúvida metódica. Quando alguém a invoca para calar em vez de para debater, para excluir em vez de para esclarecer, transforma-a numa paródia autoritária do seu próprio ideal.

    E se Marçal ainda acredita que esse é o papel legítimo da Ciência — o de censurar o dissenso e filtrar o que merece ou não ser discutido —, então estará perigosamente próximo de cometer aquilo que mais proclama combater: a desinformação. E mesmo que, em nome da liberdade, lhe reconheça o direito de o fazer, não posso deixar de assinalar a ironia: é que o homem que se arroga paladino da razão parece ter esquecido que a dúvida, e não a certeza, é a verdadeira alma do conhecimento.

  • Trust in News: o fim de um (mau) cadáver adiado

    Trust in News: o fim de um (mau) cadáver adiado


    Na próxima quinta-feira, 24 de Julho de 2025, cumprem-se exactamente dois anos sobre a publicação no PÁGINA UM de uma investigação que — por muito que alguns quisessem ridicularizar, desprezar ou silenciar — expunha, com base nas demonstrações financeiras da própria empresa, a ruína anunciada da Trust in News. O título era inequívoco: “Dona da revista Visão com dívida astronómica ao Estado. E Governo esconde.” Não se tratava de conjecturas nem de insinuações, mas de números, factos e documentos oficiais. Era jornalismo, e dos mais incómodos.

    Na altura, escrevi: “Na aparência, ninguém se apercebeu no Governo, mas a Trust in News – a empresa proprietária da revista Visão e de outras publicações como a Exame, a Caras e o Jornal de Letras – apresenta já, alegremente, uma dívida de 11,4 milhões ao Estado. A sua cobrança, a atender à situação financeira da empresa, mostra-se cada vez mais complexa.”

    Luís Delgado e Francisco Pedro Balsemão: um negócio ainda por explicar que termina sete anos depois numa ‘bancarrota’ absoluta e dívidas de mais de 30 milhões de euros.

    Era o retrato de um calote fiscal que crescia a mais de 12 mil euros por dia, com a complacência do poder político, a aparente indiferença da autoridade tributária e o silêncio cúmplice da Segurança Social. E o regulador – a Entidade Reguladora para a Comunicação Social – aos costumes disse nada.

    Apesar da clareza dos factos, a então directora da revista Visão, Mafalda Anjos — que acumulou durante anos o cargo de publisher do grupo — preferiu insultar a inteligência alheia, classificando as notícias do PÁGINA UM como “fantasiosas”. Talvez lhe parecesse fantasia que uma empresa de capital social de 10 mil euros, criada por Luís Delgado, tivesse adquirido à Impresa de Pinto Balsemão um portefólio de 16 títulos de imprensa escrita. Talvez lhe parecesse fantasia que a ERC, mesmo após a criação do Portal da Transparência, nunca tivesse analisado seriamente nem o negócio de 2018 nem a contabilidade anual da Trust in News, onde ano após ano as dívidas ao Estado cresciam, mas eram escondidas, enquanto se acumulavam “outras contas a receber” de natureza inexplicada.

    Durante mais de um ano, o PÁGINA UM foi o único órgão de comunicação social a acompanhar, com independência e persistência, este caso que só poderia ser descrito como um escândalo de gestão e de regulação. E mesmo quando a restante imprensa começou a abordar o tema, houve desresponsabilização de Luís Delgado – ainda hoje, as notícias omitem a condenação de Luís Delgado por abuso de confiança fiscal agravado.

    Mafalda Anjos, em Novembro do ano passado no Porto, a apresentar o seu livro (ironicamente) intitulado ‘Carta a um jovem decente‘.

    Entretanto, desde o ano passado, tudo aquilo que suceder em redor da Trust in News foi um circo para atirar areia para os olhos e salvar o ‘coiro’ de Luís Delgado, que, com a compra dos títulos à Impresa em 2018, ‘salvou’ a família Balsemão de mais agruras. O Processo Especial de Revitalização(PER), que Luís Delgado usou para congelar os seus compromissos fiscais e sociais, era na verdade um expediente para evitar novos processos judiciais por abuso de confiança fiscal.

    O mesmo sucedeu com o plano de insolvência que tinha um único propósito pessoal recusado – e bem – pela juíza: proteger o proprietário, e não os credores, e muito menos o interesse público.

    Em 2023, o silêncio do então ministro das Finanças, Fernando Medina, foi ensurdecedor – e foi para mim evidente que as revistas da Trust in News estavam agradecidas ao Governo socialista. Com efeito, causa estranheza que a Trust in News, apesar de ter processos executivos instaurados, e ter começado as dívidas ao Estado logo a partir de 2018, nunca ter figurado na lista de devedores fiscais nem da Segurança Social.

    Primeira notícia do PÁGINA UM de 24 de Julho de 2023 sobre a crise financeira insustentável (e escondida) da Trust in News.

    A pergunta impõe-se: por que razão foi esta empresa poupada à humilhação pública a que tantos outros contribuintes são sujeitos? E por que motivo os seus trabalhadores — especialmente os directores, que segundo a Lei de Imprensa têm o direito de aceder à situação financeira detalhada das suas empresas — permaneceram ignorantes ou resignados perante tamanha evidência de naufrágio?

    O encerramento hoje decretado judicialmente é, por muito que custe a assumir, “um choque saudável”, uma moralização tardia mas necessária no sector da comunicação social em Portugal. Mas não nos iludamos: não foi a Entidade Reguladora para a Comunicação Social que agiu; não foi o Estado a exigir transparência e justiça fiscal. Aquilo a que assistimos foi a um colapso silencioso de uma empresa insustentável, protegida até ao fim por uma rede de indiferença, conveniência e corporativismo mediático.

    O fecho da Trust in News deve, portanto, servir de ponto de partida — e não de chegada — para a dissecação do negócio ruinoso de 2018, entre a Impresa e Luís Delgado. Há demasiadas sombras neste contrato de cessão de títulos que libertou o grupo Balsemão de um portefólio deficitário à custa do erário público. Há rubricas nas contas da Trust in News, nomeadamente a obscura “Outras contas a receber”, que indiciam engenharia financeira deliberada para mascarar prejuízos acumulados em milhões durante mais de cinco anos. E há responsabilidades que não podem continuar encobertas, seja do lado de quem vendeu, de quem comprou ou de quem devia fiscalizar e reguladoramente intervir.

    Em Julho de 2023, a então directora da Visão considerou o conteúdo dos artigos do PÁGINA UM como “fantasiosos”. Nota: a declaração de não permissão de a citar não tem qualquer validade, porque pressupõe haver uma aceitação da parte do PÁGINA UM (o que não se verificou). Mafalda Anjos escreveu voluntariamente.

    Este caso é mais do que a falência de uma empresa: é a falência de um modelo mediático que mercantiliza o jornalismo, que despreza a sustentabilidade económica e que vive de aparências e de favores institucionais. Um modelo que produz títulos vistosos mas assentes em areia, que enaltece o combate às fake news mas vive da opacidade das suas próprias contas, e que exige subsídios públicos enquanto foge ao fisco.

    O PÁGINA UM, ao denunciar em 2023 o descalabro financeiro da Trust in News, não apenas antecipou o desfecho — antecipou a verdade. E escrevo isto sem qualquer júbilo: o encerramento de 16 títulos de imprensa, por mais irrelevantes que se tenham tornado, é sempre uma perda simbólica para o pluralismo informativo. Mas essa perda só é superada pela complacência que permitiu que estes títulos sobrevivessem durante anos à custa do dinheiro que não pagavam ao Estado, nem aos trabalhadores nem aos credores.

    O jornalismo só se defende com verdade, independência e rigor. E isso começa pela denúncia dos que, em nome do jornalismo, dele abusam. A Trust in News morreu. Viva o jornalismo! Que a verdade continue viva.

  • A pandemia da intolerância: da covid à imigração, não há adversários – apenas inimigos

    A pandemia da intolerância: da covid à imigração, não há adversários – apenas inimigos


    De repente, uma estranha simetria une dois dos fenómenos sociais mais fracturantes do nosso tempo recente: a pandemia de covid-19 e a actual crise em torno da imigração. À primeira vista, parecem realidades inconciliáveis: uma, sanitária e de impacte global; outra, demográfica e de impacte nacional.

    Mas, ao observarmos os mecanismos sociais, políticos e comunicacionais, que ambas desencadearam, partilham algo de essencial: a intolerância como padrão de resposta colectiva. E daí parte-se para uma hostilidade crescente não apenas em relação às posições extremas opostas, mas — talvez ainda mais inquietante — contra quem tenta compreender, dialogar ou propor soluções de equilíbrio.

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    Durante a pandemia, bastava levantar uma dúvida sobre a proporcionalidade das medidas, questionar os confinamentos, interrogar a eficácia das vacinas ou simplesmente defender direitos constitucionais elementares para ser etiquetado de “negacionista”, “antivacinas”, “irresponsável” ou mesmo “assassino”. A emotividade pública, catalisada por uma comunicação social subserviente e por peritos promovidos ao estatuto de sacerdotes da verdade, interditava qualquer subtileza. O dogma instalou-se com uma eficácia capaz de ombrear com a Inquisição: quem não se ajoelhava perante o altar do medo era excomungado da vida cívica.

    Hoje, algo semelhante sucede com o debate sobre imigração. Quem aponta os efeitos reais — e documentados — da imigração desordenada sobre o sistema de saúde, habitação, educação ou segurança, corre o risco de ser acusado de xenofobia ou racismo. Mas o contrário também se verifica: quem rejeita o alarmismo identitário e sublinha os direitos humanos, as histórias de vida dos migrantes ou a necessidade de políticas de integração bem desenhadas é de imediato classificado como “globalista”, “vendido ao sistema” ou “traidor da pátria”.

    Pior ainda está quem ousa interrogar ambas as visões com prudência, tentando distinguir entre migração legal e tráfico humano, entre integração e guetização, entre impacto económico e vulnerabilidade social. Este é aquele que acaba por ser atacado de todos os lados — por traidor, por frouxo, por centrista táctico.

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    Na verdade, nos debates sobre a pandemia e agora sobre a imigração — e talvez noutros tantos campos — aquilo que se perdeu foi precisamente o que garante a sanidade de uma democracia: a capacidade de pensar o meio-termo, de analisar com rigor, de propor soluções ponderadas que evitem tanto a repressão cega como a permissividade ingénua.

    A pulsão de radicalização em ambos os lados — alimentada por redes sociais, algoritmos de indignação e agendas políticas maniqueístas — transforma tudo em trincheira. Já não há adversários: há inimigos. E a posição intermédia, que sempre foi mais difícil de construir do que os extremos, parece hoje terreno minado.

    Na pandemia, quem procurava uma via equilibrada — por exemplo, defendendo a protecção dos mais vulneráveis sem destruir as liberdades fundamentais — foi marginalizado, insultado, silenciado. Ou processado — como eu, que ainda este ano terei de responder judicialmente em três processos.

    Na questão migratória, quem procura agora aplicar políticas sérias de controlo de fronteiras, mas ao mesmo tempo defender a dignidade humana — tanto dos imigrantes como dos autóctones —, sofre a mesma sorte: é demasiado duro para os progressistas e demasiado mole para os populistas.

    O consenso tornou-se heresia.

    Há nisto um paradoxo revelador. Se, teoricamente, os extremos se combatem melhor a partir do centro (não me refiro ao espectro ideológico) — com racionalidade, dados e proporcionalidade —, o que vemos hoje é o contrário: os extremos prosperam precisamente porque conseguiram minar o prestígio do centro, esvaziar-lhe a credibilidade, converter a prudência em tibieza e o pensamento crítico em traição. É a vitória do ressentimento contra o equilíbrio. Do ruído contra o discernimento. Do algoritmo contra o argumento.

    As redes sociais, que durante a pandemia foram usadas como instrumentos de controlo emocional e repressão simbólica, agora funcionam como aceleradores de pânico moral e de fúria identitária. A lógica binária de “salva vidas” versus “negacionistas” foi apenas substituída por outra: “defensores da pátria” versus “traidores pró-imigração”. O molde é o mesmo; apenas se trocam os actores. E, mais curioso e preocupante, muitos daqueles que na pandemia sofreram penalidades por serem minorias, estão agora na linha da frente para serem algozes dos que pensam diferente na imigração.

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    E, como antes, quem tentar desmontar o jogo, desmontar o medo, desmontar a encenação, é eliminado do palco.

    Talvez estejamos a assistir a um processo mais profundo: o esgotamento da razão pública como espaço de construção comum. O velho ideal iluminista de que podemos, pela razão e pela evidência, fundar consensos mínimos para enfrentar problemas complexos, está em erosão. Em seu lugar, estão a erguer-se afectos inflamados, tribalismos digitais e dogmas emocionais. E com eles vem a recusa do diálogo, a humilhação do outro, a purga dos moderados.

    Na pandemia, fomos empurrados para o medo absoluto como forma de controlo. No debate migratório, estamos a ser empurrados para o medo difuso como forma de fragmentação. Em ambos os casos, o efeito é idêntico: o desaparecimento da política como espaço de ponderação e a sua substituição por actos reflexos emocionais e moralistas. No limite, deixa de haver verdade: apenas versões armadas da verdade.

    É por isso que, mais do que escolher entre extremos, importa reconstruir o valor do meio. Não o meio-termo cómodo e inócuo, nem sequer ideológico, mas o meio ponderado, exigente — aquele que resiste à emotividade e se ancora na realidade.

    A pandemia ensinou-nos, ou devia ter ensinado, que a histeria colectiva não é boa conselheira. A questão migratória exige agora essa mesma lição: sem tabus, mas também sem ódio. A liberdade — e a civilização — moram nesse equilíbrio precário que os radicais de ambos os lados querem demolir. Mas é lá que vale a pena continuar a construir. Mesmo que seja mais difícil — ou sobretudo por isso.