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  • Fixem estes nomes: são os carrascos do jornalismo

    Fixem estes nomes: são os carrascos do jornalismo


    Fixem estes nomes: Helena Sousa, Pedro Correia Gonçalves, Telmo Gonçalves, Carla Martins e Rita Rola. Ficarão para a História como os carrascos do Jornalismo Livre e Isento em Portugal.

    É da mais elementar justiça que as responsabilidades sejam pessoais, quando as consequências dos seus actos são devastadoras. Estas cinco pessoas são membros do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) e têm nas mãos a obrigação constitucional de defender a Imprensa, como entidade fundamental da Democracia, e os princípios da ética e da transparência no jornalismo.

    Tem sido uma entidade, que pela sua natureza associada ao poder político, raramente exerce essas funções com isenção. Mas piorou nos últimos anos. Se muitas vezes critiquei, com virulência, o mandato de Sebastião Póvoas, a ERC com Helena Sousa afundou-se para um grau de indigência e de desonestidade intelectual – desculpem o eufemismo.

    Helena Sousa, Pedro Correia Gonçalves, Carla Martins, Telmo Gonçalves e Rita Rola, membros do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

    Hoje, a ERC, com estas três senhoras e estes dois senhores no seu Conselho, não apenas mostra uma inércia regulatória como, quando ‘obrigados’, mostram uma condescendência fatal, dando mostras de que preferem não ver para não ter de agir. E isso fá-los cúmplices de um sistema que permitiu a degradação da imprensa portuguesa, não por falta de meios, mas por falta de vergonha.

    A recente deliberação que sancionou o Expresso por promiscuidade entre jornalismo e publicidade é uma encenação para inglês ver – e, como todas as farsas mal encenadas, revela mais do que esconde. A coima de 2.000 euros à Impresa Publishing é uma anedota de mau gosto, quando estavam em causa valores de contratos promíscuos de elevados valor (basta olhar para as várias páginas dos indigentes ‘Projetos Expresso’, onde se mercadeja jornalismo à descarada). Não só pelo valor ridículo – um preço de saldo por violar a Lei de Imprensa –, mas porque sugere descaradamente que há um tarifário para a promiscuidade mediática.

    Uma multa tão simbólica não é punição: é um incentivo. Um convite à reincidência. Ou pior: ao alargamento de um negócio vergonhoso, legalizando o Jornalismo como mercadoria a ser oferecida a quem tiver mais dinheiro.

    A ERC transformou-se no facilitador institucional da promiscuidade entre os media e o poder político e económico. Ao demorar dois anos para sancionar um caso que remonta a 2021, e ao ignorar deliberadamente outros contratos escandalosos, este regulador revela-se um exemplo de cobardia e irresponsabilidade. E há que dizê-lo sem eufemismos: a ERC de Helena Sousa, Pedro Correia Gonçalves, Telmo Gonçalves, Carla Martins e Rita Rola normalizou a ‘prostituição informativa’.

    Estes cinco reguladores serão recordados como os comissários que abriram caminho para que a imprensa se financie à custa da mentira e do engano, vendendo aos leitores publicidade mascarada de notícia, desde que nos cadernos de encargos não conste expressamente que o adjudicatário (a empresa de media) não tem obrigação de publicar uma notícia paga, mesmo que depois seja publicada uma notícia, que somente existe por haver uma relação comercial. Na prática, a ERC deu aval para que os jornalistas se tornem agentes comerciais ao serviço de entidades públicas e privadas. E o resultado está já à vista sem esperança para os jornalistas assim pressionados pelas direcções e administrações para fazerem fretes: uma imprensa desacreditada, um público desconfiado e um jornalismo moribundo.

    A forma como a ERC se debruçou sobre este caso da Impresa Publishing antecipa o resultados de outros processos de contra-ordenação que envolvem mais seis órgãos de comunicação social:  PúblicoExpressoDiário de NotíciasJornal de NotíciasTSFVisão e SIC, no decurso de uma investigação do PÁGINA UM, publicada em Maio de 2022. Tudo era mais que confirmável, mas a ERC limita-se a aplicar uma coima simbólica, sugerindo, ainda por cima, que há um modo de escapar a futuras punições: basta não colocar a previsão explícita da publicação das “notícias” nos contratos.

    Notícia paga por uma entidade tutelada pelo Ministério do Ambiente, então liderado por Duarte Cordeiro, estava prevista ser publicada no Expresso num contrato de 19,500 euros. A ERC nem se dignou a querer ver o caderno de encargos, onde a exigência está expressa, absolvendo o jornal.

    Além disso, a ERC encontrou uma forma de fechar os olhos às promiscuidades. Embora tenha poderes legais para exigir cadernos de encargos das entidades públicas não mexeu uma palha para esclarecer outros contratos promíscuos. Limitou-se a usar a desculpa do ‘in dubio pro reo’, esquecendo-se que o seu papel não é o de um juiz indiferente, mas de regulador proactivo. Preferiu a preguiça ao rigor; a complacência à coragem. Em vez de defenderem os cidadãos e os leitores, defenderam os interesses dos poderosos. E a democracia, que necessita de uma imprensa livre, ficou mais pobre.

    A imprensa portuguesa não foi destruída pelo avanço das redes sociais, nem pelo desinteresse dos leitores. Tem sido traída por dentro, com o aval de um regulador que se recusa a regular. Enquanto jornalistas e directores venderem a sua independência, e enquanto a ERC se mantiver surda, muda e cega, o jornalismo continuará a morrer. E não há democracia que sobreviva à morte do jornalismo.

    Os membros deste Conselho Regulador da ERC não podem dizer que não sabem. E que nada do que fazem influencia o rumo qualitativo da imprensa numa época de crise financeira. Sabem e sabem muito bem. Sabem que permitem que conteúdos publicitários sejam publicados como se fossem notícias. Sabem que jornalistas foram transformados em comissários de relações públicas ao serviço de ministérios e empresas. Sabem que estas práticas corroem a credibilidade da imprensa como um ácido corrói o ferro. Sabem tudo isto, mas não se importam. Ou pior: importa-lhes manter o sistema tal como está.

    E qual foi, é e será a consequência directa deste laxismo regulatório? Também se sabe. O maior erro estratégico da imprensa portuguesa nos últimos anos tem sido acreditar que a sustentabilidade financeira se garante enganando os leitores com publicidade travestida de informação. Em vez de apostar em jornalismo isento e rigoroso para conquistar a confiança dos leitores e atrair anunciantes legítimos, optou-se pela batota. Preferiu-se vender a credibilidade por um prato de lentilhas. E hoje, temos quase todas as empresas de media de grande dimensão em colapso ou próximo disso, como são os casos da Trust in News, da Global Media e da própria Impresa, dona da SIC e da Impresa Publishing. Nem a promiscuidade é sustentável. Muito pelo contrário.

    O Conselho Regulador da ERC tem-se tornado cúmplice activo desta fraude. E, assim, a imprensa portuguesa continuará a afundar-se num pântano ético do qual dificilmente sairá enquanto Helena Sousa, Pedro Correia Gonçalves, Telmo Gonçalves, Carla Martins e Rita Rola permanecerem em funções. São eles os rostos da falência moral do jornalismo em Portugal. Fixem estes nomes, portanto, porque um dia hão-de figurar nos anais da Imprensa Portuguesa como os coveiros da informação livre e honesta.

  • Balsemão, a queda de um anjo

    Balsemão, a queda de um anjo


    Durante muitos anos, Francisco Pinto Balsemão foi um verdadeiro símbolo da liberdade de imprensa em Portugal – o homem que mesmo antes Revolução de Abril, fundou o Expresso, ergueu um título que, durante décadas, foi sinónimo de rigor, independência e seriedade. Era visto como um guardião da palavra livre, um exemplo de como o jornalismo poderia resistir à tentação dos poderes económicos e políticos, mantendo-se firme nos princípios da ética e da verdade. Aguentou até, estoicamente, o ‘seu’ jornal a atacá-lo durante o breve o período (1980-1983) em que teve funções governativas, incluindo o cargo de primiero-ministro entre 9 de Janeiro de 1981 e Junho de 1983, o que lhe granjeou um estatuto de elevada seriedade. A sua biografia poderia alcandirá-lo à figura de um “anjo” do quarto poder, pairando acima das pressões e influências que tantos outros não aguentariam evitar.

    Mas mesmo os anjos, diz-nos Camilo Castelo Branco, podem cair. E o que assistimos nas últimas duas décadas, e sobretudo nos últimos 10 anos, é precisamente isso: a queda de um homem e de um projecto que outrora pareciam intocáveis. Se, nos primórdios, Balsemão compreendeu a importância de criar uma imprensa livre e exigente, a sua família teve dificuldades em perceber, com o tempo, que o desafio maior não vinha de um golpe militar ou de um poder político opressor, perante a consolidação da democracia, mas de um novo inimigo silencioso: a erosão da credibilidade.

    Francisco Pinto Balsemão

    Num tempo em que as tecnologias digitais e as redes sociais impuseram uma transformação radical na comunicação, a resposta de Balsemão e da Impresa foi hesitante e, muitas vezes, errada. Em vez de reforçar o jornalismo rigoroso, isento e independente – aquele que poderia distinguir o Expresso e a SIC no ruído informativo –, optou-se por atalhos fáceis. A dependência de negócios paralelos, os alinhamentos subtis (ou nem tanto) com os poderes instalados e a complacência com agendas políticas esvaziaram de sentido aquilo que um dia foi o seu maior trunfo: a credibilidade.

    Balsemão parece não ter percebido que o seu nome, por mais prestígio que tenha acumulado no passado, não bastava para segurar o futuro. Um jornal ou um canal de televisão não vive da reputação passada, mas sim da confiança renovada todos os dias junto dos seus leitores e espectadores. Sem confrontar o poder político, sem independência em relação aos negócios e às pressões, o jornalismo torna-se apenas mais um instrumento de propaganda ou de entretenimento disfarçado.

    A Impresa, que podia ter liderado um novo paradigma de jornalismo sério e combativo em Portugal, preferiu o conforto das redacções domesticadas, das audiências fáceis e das alianças tácitas com quem manda. E nessa escolha reside a verdadeira queda do “anjo” Balsemão: não por corrupção moral ou por cedência consciente, mas por uma incapacidade de entender que sem verdade, não há jornalismo que resista.

    Francisco Pinto Balsemão, em 2023, aquando do seu doutoramento ‘honoris causa’ pela Universidade Lusófona.

    Hoje, o Expresso já não é lido como antes. A SIC já não inquieta quem governa. E a Impresa, que foi exemplo, é agora apenas mais um grupo de comunicação social, à deriva entre as dívidas, os interesses e a irrelevância crescente. Balsemão deu ao país uma grande imprensa, mas não percebeu que um império só dura enquanto for construído sobre a confiança, não sobre um nome. A crise da Impresa, que arrasta a SIC, é um, colapso iminente por erros estratégicos.

    E um anjo que cai, por mais títulos e medalhas que traga no peito, não deixa rasto de luz. Apenas um aviso: a credibilidade é tudo. E sem ela, não há futuro. E ele não merecia, aos 87 anos, este presente.

  • Montenegro, ou a vitória dos valdevinos

    Montenegro, ou a vitória dos valdevinos


    Portugal é, há muito, um terreno fértil para o florescimento de valdevinos. Não nos enganemos com a suavidade do termo: valdevinos são, na substância, os artífices das pequenas e grandes vigarices da nossa vida pública, indivíduos que fazem da arte de iludir e beneficiar-se do erário público um modo de vida respeitável — ou, pelo menos, tolerado. Mas o caso de Luís Montenegro eleva esta triste linhagem a um novo patamar, um grau superior de desfaçatez e de desprezo pela ética republicana e democrática.

    Aquilo que agora sabemos – e já não se pode negar – é que o ainda primeiro-ministro criou, em 2020, uma empresa de consultoria, a Spinumviva, sem rosto nem corpo, sem escritório conhecido (a sede era na casa de Montenegro), sem uma página electrónica onde se pudesse ler sequer uma linha da missão ou qualquer descrição de serviços para angariação de clientes. Não há registo de empregados, nem de qualquer estrutura que mereça o nome de empresa. No entanto, esta ‘entidade-fantasma’ facturou mais de 650 mil euros em dois anos e margens operacionais absurdamente elevadas, como o PÁGINA UM revelou em primeira mão em 16 de Fevereiro, antes da outra imprensa. Continuou a facturar mesmo após Montenegro assumir a liderança do Governo. E só após semanas de hesitações, meias verdades e omissões é que se ficou a saber quem eram os seus clientes, por revelações da imprensa: entre outros, empresas como a Solverde e a Rádio Popular, cuja dimensão dispensa apresentações, mas cuja real necessidade de serviços de “consultoria” de Montenegro permanece uma incógnita para qualquer espírito minimamente exigente.

    Noutros tempos, noutras geografias políticas, este simples facto seria motivo mais do que suficiente para a demissão de um primeiro-ministro, e aquilo que deve causar admiração é ter sido necessário uma moção de confiança no meio do circo parlamentar. Não porque tivesse sido provado algum ilícito penal – embora isso possa ainda vir a acontecer -, mas porque em democracia se exige que os governantes não apenas sejam sérios, como também o pareçam.

    Um homem que, de forma obscura e opaca, com as suas responsabilidade, cria e depois mantém uma empresa familiar sem qualquer lastro, apenas para receber avenças por serviços que ninguém consegue explicar ou justificar, não pode ser primeiro-ministro de um país que se pretenda civilizado e europeu.

    A questão de fundo não é, reitere-se, se Montenegro cometeu um crime. A questão é de decência e de respeito pelas regras mínimas da ética pública. Se a Spinumvia fosse uma sociedade reconhecida no mercado, com equipa consolidada, provas dadas e resultados publicamente conhecidos, poderíamos, talvez, admitir que Montenegro estava apenas a exercer a sua actividade de consultor com dignidade. Mas não. Trata-se de uma microempresa familiar – cujos beneficiários são os seus filhos e a sua mulher – criada para canalizar rendas e avenças, funcionando como veículo de oportunidades que só o conhecimento de bastidores e a influência política permitem captar. E jamais saberíamos para o que viria a servir no futuro. Aliás, basta observar o caso Manuel Pinho.

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    Que a Solverde ou a Rádio Popular tenham sentido necessidade de contratar uma empresa sem rosto, sem currículo e sem presença no mercado para a prestação de serviços de consultoria deveria, por si só, levantar as maiores suspeitas. Que Montenegro não tenha visto neste arranjo qualquer inconveniente ético, e tenha continuado a esconder os clientes semanas a fio, revela uma preocupante falta de noção sobre o que é ser governante em democracia.

    Num país onde a democracia estivesse plenamente consolidada, a demissão de Montenegro seria um sintoma de saúde institucional. Não haveria drama, nem precipício, nem vácuo de poder: o PSD escolheria outro líder, o Governo prosseguiria com outro rosto, e os cidadãos sentir-se-iam minimamente protegidos pela exigência ética imposta aos seus representantes. Mas o que assistimos é precisamente o contrário.

    No seio do próprio PSD, não houve uma única voz de peso que se erguesse para contestar a manutenção de Montenegro na liderança. Com a única e paradoxal excepção de Ângelo Correia, ninguém se mostrou incomodado com a degradação ética a que o partido foi submetido. Mais grave ainda: nem sequer se colocou a hipótese de que Montenegro pudesse ser substituído por outro social-democrata no Governo, ou que para as eleições antecipadas de Maio fosse escolhido outro candidato. O silêncio cúmplice do partido e o amolecimento da opinião pública revelam que, no Portugal de hoje, o padrão de exigência ética dos eleitores e dos eleitos atingiu um dos seus pontos mais baixos.

    De resto, a forma como a imprensa dominante tem abordado o caso – ora relativizando, ora desviando o foco para outros temas -, e como as sondagens continuam a projectar Montenegro como potencial vencedor, deveria preocupar qualquer cidadão que se preze. Não há um sobressalto cívico. Não há uma indignação genuína. A banalização da promiscuidade entre política e negócios atingiu tal ponto que um primeiro-ministro apanhado em esquemas obscuros de avenças familiares não só se mantém em funções, como ainda é visto como vencedor provável das próximas eleições.

    Se Montenegro vencer as eleições de Maio, será uma vitória dos valdevinos. Será a consagração pública de um modelo de fazer política que permitirá aos governantes criar empresas de fachada para canalizar rendas, disfarçar negócios e beneficiar de ligações de bastidores sem qualquer escrutínio efectivo. Será um salvo-conduto para que, no futuro, qualquer político possa fazer o mesmo, escondendo os clientes, omitindo os fluxos financeiros, e depois, apanhado em flagrante, alegar que está tudo bem.

    A democracia portuguesa está a ser reduzida a uma Economia de Estado onde se alimentam empresas, empresários e políticos que se confundem entre si. O Estado, com as autarquias, continuam a ser o maior motor da Economia nacional – pelo menos para uma franja empresarial relevante –, mas quando se analisam os contratos públicos, os ajustes directos e os espectáculos efémeros de que se enche o calendário, torna-se evidente que se pratica cada vez mais um jogo de pão e circo — expressão que, segundo os manuais de História, provém da Roma decadente e corrupta dos imperadores que compravam o apoio do povo com grão e divertimentos. Por outro lado, as empresas privadas querem sempre estar de bem com o poder e os políticos, mesmo que não tenham tenham contratos públicos, porque a ‘mão do Estado’ decide na regulação, nas concessões, na fiscalização e aprovação de financiamentos.

    O problema é que, em Portugal, o pão já escasseia e o circo já nem sequer diverte. As grandes obras são inauguradas com pompa e circunstância para meia dúzia de beneficiários, os eventos culturais e festivais servem para encher os bolsos das mesmas empresas do costume, e se há concursos públicos são muitas vezes desenhados para um dos concorrentes ‘pré-seleccionado’ possa vencer. Os benefícios aos cidadãos, quando existem, são residuais. Hoje, há uma rede de cliques e clientelas que gravita em torno do poder.

    Por muito que me custe reconhecê-lo, e mesmo admitindo que as alternativas não sejam mais virtuosas, uma vitória de Luís Montenegro nas eleições de Maio seria um péssimo sinal para a democracia portuguesa. Seria a legitimação do valdevinismo como método legítimo de ascensão e manutenção no poder. E se um país aceita como normal que o seu primeiro-ministro tenha um passado e um presente de opacidade e promiscuidade, então é porque está disposto a aceitar tudo.

    Num tempo em que, com meio século de democracia, a dar sinais de doença, se exigiria cada vez mais rigor, transparência e ética na governação, Portugal arrisca-se a ser olhado como um país que não aprendeu as lições básicas. Se Montenegro permanecer no poder, não será por mérito seu, mas pelo colapso moral de uma sociedade que se habituou a tolerar tudo. E um povo que tolera tudo, arrisca-se a perder tudo – inclusive a dignidade.

  • O pedantismo cientifista de David Marçal, sacerdote da Verdade Absoluta

    O pedantismo cientifista de David Marçal, sacerdote da Verdade Absoluta


    Sempre que leio no Público as crónicas de David Marçal, vejo ali um cruzado da Ciência, um paladino da racionalidade contra as hordas de bárbaros negacionistas. No entanto, ao contrário do que prega, Frei Marçal não combate o obscurantismo com argumentos rigorosos nem com método científico, mas com enviesamento ideológico e um irritante pedantismo que roça a arrogância e a boçalidade, temperado com um desdém dogmático que faz lembrar os inquisidores do Santo Ofício.

    No seu texto de hoje, glosa sobre um surto de sarampo nos Estados Unidos, parafraseando, de forma acérrima, o lema trumpista. “Tornar o sarampo grande outra vez” – o título do artigo de opinião – serve de mote para David Marçal culpabilizar R.F.K. Jr. por tudo e um par de botas. De facto, encontra-se em curso um surto de sarampo em 12 jurisdições norte-americanas: Alasca, Califórnia, Flórida, Geórgia, Kentucky, Nova Jérsia, Novo México, Nova Iorque, Pensilvânia, Rhode Island, Texas e Washington. Houve já uma morte confirmada e outra em investigação. As mortes não são normais, independentemente de estatisticamente serem irrelevantes, mas estaremos perante algo incontrolável? Uma crise de saúde pública causada pelo simples facto de Trump e R.F.K. Jr. terem assumido o poder nos Estados Unidos há menos de dois meses?

    Vejamos. O Centers for Disease Control and Prevention (CDC) – que mantém a mesmíssima abordagem e acompanhamento sobre os perigos do sarampo e sobre a vacinação – aponta este ano para 222 casos desde 1 de Janeiro até ontem, dos quais 38 resultaram em hospitalizações. Podemos ver isto em duas perspectivas. Em termos relativos, estes 222 casos nos Estados Unidos corresponderiam a 7 casos em Portugal, considerando a diferença populacional. A nossa Direcção-Geral da Saúde não costuma revelar informação detalhada da monitorização de sarampo em Portugal, mas posso adiantar que, há um ano, entre 1 de Janeiro e 5 de Maio, tinham sido contabilizados 27 casos. Ajustando para a população das terras do Tio Sam, estes 27 casos nacionais equivalem a 860 casos nos Estados Unidos. Não me recordo de ter lido David Marçal a escrever sobre os surtos de sarampo em Portugal em 2024.

    Além disso, convém referir que o sarampo é, cada vez mais – e em virtude também da vacinação –, uma doença benigna em países mais modernizadas, embora ainda longe de estar erradicada. E nos Estados Unidos, onde os diversos Governos estaduais têm um papel determinante, a ocorrência de surtos depende de muitos factores, sendo evidente que os mais vulneráveis são as pessoas não vacinadas. Se olharmos para o site do CDC, essa evidência é ali exposta para o ano de 2025, com R.F.K. Jr., tal como nos tempos de Biden e no primeiro mandato de Trump.

    Aliás, é curioso reparar que o número de casos de sarampo este ano ainda é inferior aos de 2024 – e não é certo que seja ultrapassado – e muitíssimo inferior aos valores de 2014 (667 casos, no segundo mandato de Barack Obama) e de 2019 (1274 casos, no primeiro mandato de Trump). Convém referir que, tanto num período como no outro, o responsável máximo do National Institutes of Health (NIH) era Anthony Fauci. Parece-me que apenas estes simples dados desmontam, e estragam, o tão jeitoso título de David Marçal.

    Casos de sarampo por ano nos Estados Unidos desde 2000. Fonte: CDC.

    Porém, onde Marçal melhor regurgita o seu ‘ódio’ quase irracional a R.F.K. Jr. – que há duas dezenas de anos era considerado um ídolo das correntes ambientalistas pela sua tenaz luta como advogado – é na tese de ser ele “um teórico da conspiração antivacinas”. E para tal, conta Marçal um episódio de um surto de sarampo em Samoa após erros na administração de vacinas terem causado mortes. Esquecendo, ou querendo esquecer, Marçal, que a Farmacopeia não é uma história imaculada, o paladino da Ciência chega a culpar R.F.K. Jr. de ser co-responsável por 83 mortes naquele país da Polinésia, por uma doença que a OMS diz ser fatal, por ano, para mais de 100 mil pessoas. Em 2023, foram 107.550 pessoas, praticamente todas em países subdesenvolvidos.

    Mas é na forma como David Marçal resume uma carta de R.F.K. Jr., em Novembro de 2019, ao primeiro-ministro de Samoa que se mostra o tipo de cientista que é – ou, melhor, que não é. Diz David Marçal que o actual secretário de Estado da Saúde norte-americano “culpa as vacinas pelas mortes por sarampo” e que a “carta de quatro páginas é um absoluto delírio” – contudo, o delírio está do seu lado.

    Lendo a carta de R.F.K. Jr., haveria espaço para rebater factualmente alguns dos seus argumentos – algo que um verdadeiro defensor da Ciência deveria fazer. Mas isso não é coisa para David Marçal – e outros que, durante a pandemia, ‘arrotaram’ certezas insofismáveis –, que enveredou pelo caminho da deturpação e do achincalhamento, reduzindo tudo a um “absoluto delírio” e a um “chorrilho de argumentos pseudocientíficos”.

    A táctica de David Marçal é sempre a mesma: simplifica-se ao extremo a posição do ‘adversário’, amputando-lhe qualquer nuance ou legitimidade, para depois a ridicularizar como se fosse produto de uma mente lunática. “Dois dias depois, R.F.K. Jr. escreveu ao primeiro-ministro de Samoa, na sua qualidade de presidente da Children’s Health Defense, culpando as vacinas pelas mortes por sarampo no país”, escreveu Marçal. A afirmação é uma mentira objectiva. Na sua carta, Kennedy nunca culpa as vacinas pelas mortes.

    A carta não é um panfleto antivacinação, não incita ao medo irracional das vacinas, nem exorta os samoanos a rejeitarem a imunização. Aquilo que R.F.K. Jr. faz é levantar questões sobre a relação entre a vacina MMR da Merck e a crise sanitária em Samoa, propondo hipóteses que deveriam ser cientificamente avaliadas. Ele sugeriu que se investigasse a imunidade materna conferida pela vacina, que se determinasse se a vacina estava a cobrir todas as estirpes do sarampo circulantes e que se examinasse se a vacinação em massa poderia ter desencadeado infecções por estirpes vacinais.

    Estes são argumentos que podem ou não ter mérito científico – e é assim que se deve tratar a Ciência, como um debate aberto, e não como um dogma imutável –, mas em nenhum ponto R.F.K. Jr. se opõe à vacinação per se. Aquilo que ele sugere é precisamente uma abordagem científica: estudar os dados, sequenciar geneticamente os vírus, identificar as variantes em circulação, analisar a eficácia das vacinas num contexto complexo, não assumindo que sejam consideradas sacrossantas.

    David Marçal

    Se David Marçal fosse um cientista a sério – e não um propagandista travestido de divulgador –, responderia a todos os argumentos de R.F.K. Jr. com números, estudos e dados. Mas nada disso faz – às tantas, dirá que tem mais que fazer. E assim, em vez disso, opta pelo caminho mais fácil: a caricatura.

    Este modus operandi de ataque ao ‘inimigo’ é recorrente – e viu-se bem na pandemia da covid-19. David Marçal nunca debate – destrói. Nunca argumenta – desqualifica. Nunca analisa – ridiculariza. Para ele, não há espaço para dúvidas ou para a revisão de conceitos. O palco é-lhe oferecido sem contestação – e ele ergue-se convencido da vitória e da razão.

    Para Frei Marçal, a Ciência é um santuário de verdades absolutas – como eram, por exemplo, os verhonhosos relatórios epidemiológicos do Instituto Superior Técnico –, e ele, um Sumo Sacerdote que pode decretar quem é herege e quem é iluminado. O problema é que esta postura não tem nada de científica. A Ciência verdadeira não se faz com certezas dogmáticas, mas com questionamento constante, com hipóteses que devem ser testadas, refutadas ou confirmadas pela experiência e pelos dados.

    A ironia disto tudo: se há alguém realmente a praticar a pseudociência, é David Marçal. A pseudociência não é apenas acreditar em teorias da conspiração e negar evidências – é também a recusa do debate, o uso de argumentos de autoridade em vez de evidências, a manipulação retórica para eliminar opositores sem os confrontar directamente. R.F.K. até poderia estar a fazer pseudociência, mas Marçal quer impor-nos a anti-Ciência, quer transformar a Ciência em dogma. Aquilo que ele pratica não é divulgação científica – é uma propaganda científica enviesada, onde o nome da Ciência é usada, e abusada, não para esclarecer, mas para justificar dogmas e atacar dissidências.

    E o efeito deste cientificismo autoritário é exactamente o contrário daquilo que ele quer fazer passar. David Marçal acredita que, ao ridicularizar os críticos, está a proteger a Ciência do obscurantismo. Mas, na verdade, está a afastar as pessoas da Ciência.

    Quando a Ciência se apresenta como um dogma inquestionável, as pessoas começam a desconfiar dela. Quando os defensores da ciência se comportam como inquisidores, as pessoas começam a procurar alternativas. Quando o debate é substituído pela arrogância, a credibilidade científica é corroída.

    Sejamos claros: a vacinação é uma das maiores conquistas da Medicina moderna, mas a confiança na vacinação não se impõe como se o hábito fizesse o monge; não se impõe com escárnio e insultos – conquista-se com transparência, com comunicação clara e honesta, com abertura ao debate. O problema de Marçal, e de tantos outros cruzados do cientificismo, é que não percebem que a confiança na Ciência não pode ser imposta à força; deve convencer, e não vencer; as pessoas devem ser conquistadas através do rigor, da humildade e da disponibilidade dos cientistas para responderem a todas as dúvidas – mesmo as que parecem incómodas ou possam ser obtusas.

    Se R.F.K. está errado, então prove-se que está errado. Mas prová-lo exige mais do que epítetos e ridicularizações – exige Ciência a sério. E mal seria se, estando ele errado, não existissem (como acho que existem) mecanismos numa democracia para evitar que ele imponha a sua opinião errada a toda a sociedade. Marçal pensa que isso se faz com marketeers da Ciência com tiques de inquisidores. Na verdade, a Ciência não precisa de tipos como David Marçal com tiques de inquisidor; precisa apenas de cientistas, que errem por lapso e acertem por sabedoria, e que, na prudência, tenham a humildade de reconhecer que até os seus acertos podem, afinal, ser erros.

  • A nova corrupção: nem malas nem envelopes; apenas avenças

    A nova corrupção: nem malas nem envelopes; apenas avenças


    A corrupção política, tal como a conhecíamos, tornou-se anacrónica. Já não se faz através de malas recheadas de notas, como nos tempos do antigo deputado António Preto – acusado de corrupção por causa de 40 mil euros em notas mas que acabou ilibado, quase quinze anos depois. Também não é mais uma questão de gabinetes ministeriais convertidos em cofres privados, pois nenhum espaço é seguro, nem mesmo o do próprio chefe de gabinete do primeiro-ministro, como bem aprendeu Vítor Escária.

    Os novos tempos exigiram novas formas de assegurar o tráfico de influências, a retribuição de favores e a manutenção de uma rede de lealdades. E estas formas são agora mais sofisticadas, legalmente blindadas e de difícil rastreio. Há três métodos principais para esta nova corrupção, que não precisam da tradicional troca de envelopes ou de contas bancárias na Suíça.

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    O primeiro método é o pagamento diferido, ou seja, o político exerce o seu cargo e, depois, é premiado com um lugar de gestão bem remunerado. Esta é uma prática antiga, mas altamente volátil, pois depende da continuidade da administração que corrompeu. Além disso, não há garantia de que a empresa que beneficiou se lembrará da “dívida” quando chegar o momento de pagar, excepto se o visado mantiver influência política.

    O segundo método é mais directo e eficaz: a criação de empresas por políticos ou testas-de-ferro, para as quais são canalizados pagamentos disfarçados sob a forma de contratos de consultoria, assessoria ou prestação de serviços. Esta estratégia tem várias vantagens. Primeira, o político não precisa de declarar os rendimentos da empresa como sendo seus, desde que não haja distribuição de lucros. Segunda, pode usar essa empresa para cobrir despesas do quotidiano sem levantar suspeitas. Terceira, os clientes que pagam pelos supostos serviços podem ser facilmente ocultados, tornando praticamente impossível provar que um determinado pagamento se trata, na realidade, de um suborno. Por fim, quarta, o corruptor ainda consegue uma factura para abater nos lucros, pelo que, de forma indirecta, o Estado contribui, sem saber, para esse acto de corrupção porque recebe menos impostos por causa dessa ‘despesa’.

    O terceiro método, muito apreciado por advogados, é o uso do sigilo profissional para ocultar clientes e transacções suspeitas. Em Portugal, a confidencialidade das relações entre advogados e clientes impede que se saiba quem paga a quem e porquê. Se um político se envolve na advocacia, qualquer pagamento pode ser justificado como honorários, sem que ninguém possa escrutinar a natureza do serviço prestado – ou sequer se esse serviço existiu. Aliás, aquilo que mais se destaca nas declarações de rendimentos dos políticos na Entidade para a Transparência é essa justificação. Basta ver a do presidente do Parlamento, José Pedro Aguiar-Branco.

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    Seja qual for a via escolhida, a verdade é que a nova corrupção tornou-se tecnicamente quase indetectável, mas não menos óbvia. E os sinais que emanam da Spinumvira são mais do que um mero problema político – são um problema judicial. A forma como a empresa de Luís Montenegro aceitou uma avença da Solverde, ainda mais a um valor quatro vezes superior ao praticado no mercado (avenças do género custam pouco mais de mil euros por mês), sem que se perceba quais os trabalhos efectivamente realizados, não pode ser vista como um detalhe irrelevante.

    Pior ainda, isto acontece num momento em que se aproxima um concurso público para a concessão de casinos. Mesmo que já nada tivesse a ver com a sua empresa familiar, há clientes que não podem ser aceites, porque, em certas situações, são sempre ‘tóxicos’. E se uma empresa for boa, pode dar-se ao luxo de prescindir de algumas propostas, aceitando outras.

    Ora, se António Costa se demitiu (e bem) pelas suspeitas que recaíam sobre o seu governo, o que justifica que Montenegro continue a brincar com moções de censura e de confiança, como se fosse apenas uma questão de gestão política?

    Entre o medo do PS de ir a eleições e os jogos estratégicos dos partidos e do Presidente da República, o problema essencial permanecerá: Montenegro não tem apenas uma questão política para resolver – tem uma questão judicial.

    Se há algo a discutir nas próximas semanas, não é se o primeiro-ministro tem condições políticas para continuar, mas sim se o país aceita reescrever a semântica da palavra “corrupção” para acomodar esta nova realidade. Se sim, então passemos a chamar-lhe outra coisa – avenças, consultorias, parcerias.

  • Será Montenegro o carrasco do PSD?

    Será Montenegro o carrasco do PSD?


    Luís Montenegro chegou ao poder como promessa de mudança, mas em poucos meses já colecciona episódios que colocam em causa a sua credibilidade e a confiança dos cidadãos. Depois das últimas semanas, em que uma alteração da Lei dos Solos descambou em revelações pouco éticas (ou mesmo ilegais) sobre o seu passado, envolvendo a empresa Spinumviva, a questão não é apenas se haverá uma crise política que leve a novas eleições legislativas. A verdadeira questão é a integridade política de quem governa o país.

    Pode-se confiar num primeiro-ministro que, até há bem pouco tempo, recebia avenças mensais de empresas ligadas ao jogo e de outras entidades com as quais manteve relações comerciais antes de assumir funções governativas? E, num plano mais abrangente, podem os políticos continuar a proclamar um regime de transparência quando, na prática, este mais não é do que um exercício de opacidade institucionalizada?

    Os contornos deste caso – e das relações pouco saudáveis de um primeiro-ministro – deveriam inquietar qualquer cidadão atento. O histórico de Montenegro não é um exemplo de sólida integridade, sobretudo quando se considera os sucessivos contratos públicos da sua sociedade de advogados. Enquanto líder da oposição, auferia remunerações regulares de entidades cujo sector depende, directa ou indirectamente, da regulação e acção do Estado. O conflito de interesses é evidente e a justificação, frouxa. O primeiro-ministro apressou-se a garantir que tudo foi feito dentro da legalidade, como se isso, por si só, bastasse para ilibá-lo do problema ético maior: a percepção de que, antes de se sentar à mesa do Conselho de Ministros, estava comprometido com interesses privados.

    E os problemas não ficam por aqui. Hoje mesmo, veio a público mais um caso. Segundo o Correio da Manhã, há discrepâncias nas declarações de rendimentos enviadas pelo primeiro-ministro à Entidade para a Transparência (EpT), nomeadamente na compra de dois apartamentos em Lisboa. Os imóveis, avaliados em mais de 715 mil euros, foram pagos a pronto, sem recurso a crédito bancário. Porém, na aquisição de um deles, há um montante de 226 mil euros cuja origem não foi possível apurar. Confrontado com estas dúvidas, Montenegro saiu-se com a habitual evasiva: “A origem do meu património foi o trabalho. Não existem dados ou meios ocultos.”

    E há mais. Muito antes do caso Spinumviva, Montenegro já acumulava episódios que lançam sombras sobre a sua conduta. O primeiro-ministro beneficiou de isenções fiscais na construção da sua vivenda em Espinho. O pedido foi submetido à Câmara Municipal quando esta era liderada pelo seu amigo Pinto Moreira – que, por coincidência, está a ser julgado por corrupção. O parecer favorável foi posteriormente emitido pelo sucessor, o socialista Miguel Reis. Oficialmente, a obra foi licenciada como uma reabilitação, mas o que aconteceu foi uma construção nova: uma moradia de seis pisos perto da Praia Azul, que resultou da demolição de uma minúscula casa. O Ministério Público arquivou o caso, mas deixou muitas perguntas sem resposta.

    E quem se lembra do Galpgate? Em 2016, Montenegro, então líder parlamentar do PSD, foi um dos políticos apanhados na polémica das viagens pagas pela Galp para assistir ao Euro 2016. Apresentou mais tarde comprovativos de pagamento, mas há suspeitas de que os cheques foram emitidos apenas depois de o caso ter sido denunciado, com datas duvidosas e, nalguns casos, fora de validade. O inquérito foi arquivado em 2021, mas o rasto de desconfiança permanece.

    O problema, agora, é que Montenegro está politicamente ferido. Em vez de assumir responsabilidade, parece preferir colocar-se no papel de vítima, aguardando uma moção de censura – desta vez aprovada (com apoio do PS) – ou sendo empurrado para uma moção de confiança que não conseguirá vencer.

    Seja qual for o desfecho, o primeiro-ministro, que quis vender-se como um líder credível e confiável, está profundamente fragilizado. O PSD, num Governo minoritário sem rumo claro, encontra-se numa encruzilhada, talvez rezando para que não surja mais um “elemento” que destrua o pouco que ainda resta da credibilidade de Montenegro.

    A partir de hoje, se um novo escândalo rebentar e o Governo de Montenegro cair com estrondo, o PSD não terá apenas um problema de liderança – poderá estar perante o início do seu próprio colapso. Entre a Iniciativa Liberal e o Chega, que se aproveitarão da ‘desgraça alheia’, e a habitual transição de votos para o Partido Socialista, a sobrevivência do PSD pode ficar seriamente comprometida.

    Montenegro entrou já na História como líder do PSD e primeiro-ministro. Resta saber se o seu nome não acabará também gravado na lápide do seu próprio partido.

  • Políticos e a hipocrisia da ‘transparência opaca’

    Políticos e a hipocrisia da ‘transparência opaca’


    Em mais um dos seus rasgos de hipocrisia em fim de festa, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, veio afirmar que “a comunicação social tem um papel a desempenhar”, que pode ser “desagradável para os titulares de poderes políticos, mas é um preço”. Claro que Marcelo, especialista em discursos flexíveis como um contorcionista de circo, gosta sempre de equilibrar o jogo: reconhece o papel da imprensa, mas logo relativiza, como se o escrutínio público fosse um incómodo inevitável, uma consequência desagradável da democracia, e não um direito fundamental dos cidadãos.

    Entretanto, o Governo, em coro harmonioso, anda a lamentar o suposto “voyeurismo” sobre os rendimentos dos políticos. A tese é brilhante: nunca há corrupção nem tráfico de influências, não há conflitos de interesse, jamais haverá favores encobertos – o problema é a obsessão dos jornalistas e do povo em querer saber demasiado. E, claro, José Pedro Aguiar-Branco, esse veterano da política e dos negócios, surge a fazer coro, alertando para o perigo de um clima onde, por “demagogia, inveja ou maledicência”, se anda demasiado preocupado com os interesses dos políticos. No limite, diz ele, corremos o risco de “só ficar com políticos sem interesse algum”. A ideia, subentendida, é que bons políticos precisam de um certo grau de opacidade, que os grandes talentos da política só sobrevivem se não forem demasiado escrutinados. Se não for permitido misturar negócios e política, se as perguntas forem muitas e incisivas, então só nos restará uma classe política medíocre.

    A falácia desta narrativa é que assenta numa inversão descarada de valores. Os políticos não são vítimas de um escrutínio excessivo – são, isso sim, os protagonistas de um sistema que se esforça ao máximo para evitar ser escrutinado. A ladainha do “voyeurismo” não é mais do que uma manobra de diversão, um pretexto para mascarar a falta de transparência e a aversão ao legítimo controlo dos actores políticos.

    Na verdade, a legislação sobre a transparência dos rendimentos e património foi desenhada pelos políticos para dificultar ao máximo o acesso a informações relevantes. E não para defender as vidas privadas, mas sim para esconder vícios privados com dinheiros públicos. Os mecanismos de consulta das declarações de rendimentos e interesses dos titulares de cargos políticos são deliberadamente burocratizados, e qualquer tentativa de furar essa barreira enfrenta obstáculos legais e acusações de perseguição mediática. Quando alguém exige mais rigor, a resposta é sempre a mesma: indignação, vitimização e apelos à moderação, como se o problema não fosse a falta de transparência, mas sim a ousadia dos jornalistas e cidadãos que insistem em perguntar.

    A Lei da Transparência dos detentores de cargos políticos, agora gerida pela Entidade para a Transparência, não passa de um exercício de cinismo político, um embuste cuidadosamente arquitectado para que a transparência continue a ser uma ilusão sem qualquer aplicação prática. O regime veste-se com as roupagens da ética e da prestação de contas, mas o corte do fato é feito à medida da classe política, com bainhas suficientemente largas para esconder o essencial e costuras reforçadas contra qualquer tentativa de escrutínio sério.

    A ilusão começa logo com a suposta abertura das declarações de rendimentos, património e interesses. Em teoria, tudo parece acessível, mas basta um olhar atento ao texto legal para perceber que os dados fornecidos são cuidadosamente depurados de qualquer utilidade para investigações jornalísticas. A lista de restrições é extensa: desde a justificada protecção de dados pessoais (como a morada) à exclusão de detalhes fundamentais sobre património e rendimentos. O resultado? Jornalistas e cidadãos são impedidos de cruzar dados de forma eficaz, deixando lacunas perfeitas para quem quiser ocultar informação sensível.

    Printscreen do registo de interesses de um deputados onde se considera que todas as cinco actividades, cargos ou funções que exerceu no ano anterior estão escondidas “devido a sigilo profissional”.

    Por exemplo, ao impedir a consulta detalhada de serviços prestados no âmbito de atividades sujeitas a sigilo profissional ou ao restringir o acesso a informações sobre rendimentos, participações societárias e aplicações financeiras apenas a valores totais, impossibilita-se qualquer verificação séria de potenciais conflitos de interesse. Um político pode ter realizado trabalhos em empresas que fazem negócios com o Estado, mas a lei assegura que ninguém terá acesso ao nome dessas empresas. Transparência? Só a fingir.

    E o grande truque desta encenação legislativa está na criminalização do escrutínio. A violação da “reserva da vida privada” é punida nos termos do Código Penal, o que significa que, em teoria, um jornalista que se atreva a publicar informações inconvenientes pode ser arrastado para os tribunais. E nem precisa de haver uma fuga de dados – basta que a divulgação não esteja formalmente autorizada para que o profissional da imprensa se veja transformado num réu. Como cereja no topo do bolo, há ainda um artigo que impede a publicação da declaração única na Internet ou nas redes sociais, tornando impossível que qualquer cidadão tenha acesso livre à informação.

    Portanto, documentos que, por definição, são públicos, não podem ser tornado verdadeiramente acessíveis, sob pena de punição. As imagens que decidi publicar a acompanhar este texto só não serão puníveis porque não identifico os deputados e posso alegar ser um “meio adequado para realizar um interesse público e relevante” – neste caso, denunciar uma fantochada.

    Mas a maior prova de que esta lei não passa de um embuste é a burocracia kafkiana montada para dificultar o acesso às declarações. Em vez de um sistema aberto e digitalizado, com dados acessíveis e pesquisáveis, impõe-se um sistema absurdo, onde cada pedido de consulta exige um requerimento formal e fundamentado, com registo individualizado, preenchimento repetitivo de formulários e um labirinto de códigos de acesso, reconfirmações e dificuldades informáticas.

    Prinstcreen de uma declaração de um político onde não se identificam as aplicações financeiras, que podem ser acções em empresas sob regulação ou intervenção do Estado.

    Para se ter uma ideia do grau de ridículo, demorei mais de seis horas – repito, seis horas – a concluir os 78 requerimentos das declarações dos deputados do PSD que resultaram nesta notícia. Sim, demorou-se mais tempo a fazer os requerimentos do que as consultas propriamente ditas. Quando tentei avançar com mais pedidos para cobrir todos os 230 deputados, o sistema informático da Entidade para a Transparência colapsou de novo. Desisti. Prefiro denunciar esta palhaçada. Para agravar, após a autorização – com registo –, o acesso expira ao fim de cinco dias, não sendo passível de se fazer a gravação em formato consultável.

    Se houvesse verdadeira vontade de garantir transparência, os dados estariam acessíveis online, sem restrições, e com a totalidade da informação relevante disponível. Não haveria necessidade de pedidos formais, nem registos de quem consulta, nem poderes discricionários para decidir quem pode ou não ver. Mas isso seria um problema para o regime – que criou esta obtusa lei, ainda mais restritiva do que a anterior, gerida pelo Tribunal Constitucional –, porque a transparência real implica responsabilidade, e responsabilidade é precisamente aquilo que a classe política portuguesa mais teme. Melhor mesmo é continuar a iludir os cidadãos com esta transparência de faz de conta, onde tudo parece acessível e tudo se esconde.

  • Os 10 Mandamentos da especulação imobiliária e dos expedientes políticos

    Os 10 Mandamentos da especulação imobiliária e dos expedientes políticos


    Não é de hoje. A especulação imobiliária e a transformação de terrenos rústicos em urbanizáveis sempre foram verdadeiras minas de ouro para quem, nos meandros políticos, sabe navegar entre o Governo e a Assembleia da República, que fazem as leis e aprovam planos de ordenamento, e o mundo autárquico, que delimita áreas urbanizáveis e aprova os licenciamentos. Desde os anos 80, nos primórdios dos planos directores municipais (PDM), sob a aparência de desenvolvimento e progresso, bem como da necessidade de habitações, muitos empresários e políticos unem esforços para valorizar terrenos que, antes, valiam o preço da uva mijona. O segredo? Um jogo bem montado de influência, legislação e oportunidades bem aproveitadas.

    A especulação imobiliária baseada na reclassificação de terrenos é um dos negócios mais lucrativos para quem souber movimentar-se nos bastidores da política, combinando informação privilegiada, boas relações com o poder local e uma estrutura bem montada de influências e intermediação.

    Aqui ficam os Dez Mandamentos que sempre regeram este lucrativo negócio, sendo que a recente alteração da Lei dos Solos, que já fez subir os preços dos terrenos rústicos, é mais um capítulo da promíscua ligação entre o imobiliário e a política lusitana.

    1 – Amarás a informação privilegiada acima de todas as coisas

    O primeiro passo para o sucesso na especulação imobiliária é saber antes dos outros onde o dinheiro vai brotar. Se um município está prestes a rever o seu Plano Director Municipal (PDM) ou a alterar o perímetro urbano das cidades, vilas e aldeias, há que garantir que a informação chega primeiro aos interessados certos. Ligações próximas com vereadores do urbanismo, arquitectos municipais ou até membros de gabinetes governamentais são essenciais. O segredo do lucro está em comprar, aos proprietários papalvos de prédios rústicos, antes da valorização ser pública.

    A river running through a small town next to a hillside

    2 – Não tomarás o nome da transparência em vão

    O discurso oficial tem de ser sempre exemplar. Para evitar desconfianças, é fundamental defender publicamente boas práticas de ordenamento do território, sustentabilidade e desenvolvimento equilibrado, e, sobretudo, invocar o direito constitucional à habitação. Nos bastidores, no entanto, a actuação deve ser outra: pressão sobre técnicos municipais, negociações de bastidores e uma gestão “criativa” das normas ambientais e urbanísticas. O importante não é o que se faz, mas sim o que se aparenta fazer.

    3 – Santificarás as boas relações com autarcas

    Sem apoio político, não há reclassificação de terrenos. O jogo é simples: os autarcas precisam de financiamento para as suas campanhas, e os promotores imobiliários precisam de decisões favoráveis. Jantares estratégicos, promessas de futuros cargos ou simples favores pessoais criam uma teia de interesses mútuos. Um presidente de câmara ou um vereador do urbanismo alinhado pode valer milhões em mais-valias.

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    4 – Honrarás os técnicos municipais e consultores

    A burocracia pode ser um entrave, mas também um grande aliado. O segredo está em ter nos quadros (ou no bolso) engenheiros, arquitectos, advogados especializados em ordenamento do território e, sobretudo, deputados e até governantes com empresas de consultoria de objecto social ambíguo. São eles que irão justificar, com argumentos técnicos e pareceres “científicos”, a necessidade de alterar a classificação de um terreno de cabras para área urbanizável essencial ao progresso da Nação. Sem um parecer bem fundamentado, nenhuma decisão política pode ser tomada – e é aqui que entra a influência sobre os profissionais da área.

    5 – Não darás parte de fraco nas negociações

    Antes da reclassificação, os terrenos rústicos devem ser adquiridos pelo menor preço possível. Os pequenos proprietários rurais, muitas vezes sem noção do verdadeiro potencial da terra, devem ser convencidos de que, se não aceitarem valores irrisórios, perdem uma oportunidade de vida. Pressionar, oferecer valores aparentemente vantajosos ou até recorrer a intermediários que escondam a identidade dos verdadeiros compradores são práticas que devem ser implementadas. Depois, quando a reclassificação ocorrer e o preço disparar, os intermediários usados jamais atenderão o telefone aos pobres vendedores ludibriados.

    A view of a city from a hill

    6 – Não ficarás preso a uma só estratégia

    Quando a alteração do uso do solo ou a expansão dos perímetros urbanos se mostrar difícil ou demorada, há sempre alternativas. Pode-se convencer o presidente da câmara e os autarcas a elaborarem Planos de Pormenor, Unidades de Execução ou a autorizarem pela via do “interesse público” para contornar obstáculos administrativos. Em casos mais complexos, nada como recorrer a lobbies e advogados influentes para encontrar brechas legais que permitam a reclassificação. A chave é nunca desistir à primeira barreira.

    7 – Não levantarás suspeitas desnecessárias

    Esconder os rastos é essencial. Para evitar que se perceba quem realmente lucra, utilizam-se sociedades offshore, empresas-fantasma ou testas-de-ferro para as compras iniciais de terrenos valorizados pela alteração do uso do solo. O verdadeiro dono do terreno só aparece mais tarde, talvez um fundo de investimentos – que melhor esconde os titulares de unidades de participação – quando os terrenos já estiverem valorizados e prontos para serem vendidos para construção imobiliária. Quanto menos ligações directas houver entre o político que aprovou a reclassificação e o beneficiado, melhor.

    brown long coated dog on brown wooden door

    8 – Não cobrarás dividendos de forma directa

    Lucros imediatos podem ser tentadores, mas os verdadeiros mestres da especulação sabem que a paciência paga melhor. Em vez de apenas vender terrenos valorizados, aproveitam-se oportunidades como adjudicações de obras públicas, concessões de exploração ou parcerias público-privadas, ou então contratos fictícios de empresas de consultoria que nem site ou funcionários de jeito precisam de possuir para facturarem bem. Muitas vezes, os verdadeiros lucros surgem anos depois, sob a forma de contratos vantajosos para empresas ligadas aos envolvidos.

    9 – Não desejarás o escândalo, mas estarás preparado

    Por mais discreta que seja a operação, há sempre o risco de um jornalista incómodo ou de um rival político levantar suspeitas. Nesses casos, a estratégia é clara: negar tudo, desvalorizar as acusações, clamar transparência, invocar a família e o futuro dos filhos, e alegar com fervor que a decisão seguiu todos os trâmites legais. Se necessário, recorre-se à velha desculpa da “cabala política” ou da “perseguição ideológica” para descredibilizar qualquer investigação.

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    10 – Não cobrarás o lucro apenas uma vez

    Depois da valorização inicial, o jogo ainda não acabou. Quem domina o sector e os esquemas sabe que há sempre mais dinheiro a ganhar. Uma vez urbanizado, o terreno pode ser vendido para construção, os edifícios podem ser arrendados ou revendidos, e novas licenças podem ser obtidas para aumentar ainda mais o valor das propriedades. Assim, deves criar uma empresa de gestão de escritórios, de condomínios e até de limpezas. O ciclo da especulação é infinito para quem sabe aproveitar todas as oportunidades.

  • Quem tem medo da Inteligência Artificial no Jornalismo?

    Quem tem medo da Inteligência Artificial no Jornalismo?


    Houve um tempo em que os pintores eram também alquimistas, misturando substâncias raras e perigosas para criar os seus próprios pigmentos. Um azul profundo exigia a trituração minuciosa do lápis-lazúli, uma pedra semipreciosa trazida do Oriente, e um branco puro requeria chumbo submetido a um processo químico prolongado e tóxico. O pintor não era apenas um artista: era um químico improvisado, um operário da sua própria paleta, um artesão obrigado a desviar-se do que realmente importava – o acto de pintar – para assegurar que as suas cores tivessem a intensidade e a durabilidade desejadas.

    Com o tempo, essa necessidade desapareceu. A evolução dos pigmentos sintéticos permitiu que os artistas pudessem concentrar-se naquilo que realmente importava: a concepção e a execução das suas obras. E, no entanto, a arte não perdeu nada da sua profundidade nem da sua beleza. Pelo contrário, com o fardo da manufactura das cores retirado dos seus ombros, os pintores puderam explorar novas técnicas, novos estilos, novas formas de expressão. Michelangelo, Caravaggio, Rembrandt, Velázquez, Goya, van Gogh ou Cézanne não teriam sido piores artistas se tivessem tintas pré-fabricadas. Pelo contrário, poderiam ter-se dedicado ainda mais à sua arte sem os incómodos da elevada toxicidade das tintas que afectaram (e mataram) muitos pintores. Ou a dedicarem mais tempo a simplesmente contemplar a vida. O génio não reside no método, mas na visão.

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    Um paralelismo se pode fazer com todos os avanços tecnológicos – que só o são verdadeiramente quando criam rupturas, quando desconstroem paradigmas estabelecidos e impõem novas formas de pensar, produzir e interagir com o mundo. De nada serve uma inovação que apenas aprimora o que já existe sem desafiar a estrutura vigente; o verdadeiro avanço é aquele que obriga a Humanidade a reconsiderar o que tomava como certo, abrindo caminho para novas possibilidades e, inevitavelmente, novas resistências.

    A Inteligência Artificial, democratizada em aplicativos, mais do que uma inovação é uma revolução, que, em todo o caso, causa compreensivas apreensões e dilemas. Por exemplo, no caso do Jornalismo, há quem tema que as ferramentas de Inteligência Artificial transformem a informação num produto padronizado, numa sequência interminável de notícias indistintas, redigidas sem alma, sem contexto, sem aquela centelha que distingue um jornalista talentoso de um vulgar reprodutor de comunicados de imprensa.

    Mas este receio, embora natural, ignora a essência do verdadeiro Jornalismo e a perspicácia e espírito crítico dos leitores a médio e longo prazo. Porque, tal como um mau pintor não se torna um mestre por ter acesso às melhores e pré-fabricadas tintas, um mau jornalista não se tornará excelente apenas porque tem à sua disposição um assistente de inteligência artificial.

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    Obviamente, é inegável que a Inteligência Artificial levanta questões prementes sobre ética e controlo da informação. Quem programará as ferramentas que auxiliam os jornalistas? Com que critérios serão filtrados os dados e seleccionadas as fontes? Ora, sabemos que o risco de enviesamento algorítmico é real, e um jornalismo excessivamente dependente de automatismos pode tornar-se vulnerável à censura subtil e à manipulação encapotada. Mas a comodidade da tecnologia não pode ser desculpa para se abdicar do escrutínio editorial humano, sob pena de transformarmos o jornalismo numa ilusão de objectividade, quando, na verdade, apenas reflectirá os preconceitos embutidos nos sistemas que o regem.

    A Inteligência Artificial não substitui a inteligência humana – reforça-a. Potencia-a. Estimula-a. Aquilo que separa o grande jornalista do medíocre não é a ferramenta, mas a forma como a utiliza. A Inteligência Artificial pode estruturar dados, sintetizar informações dispersas, organizar fontes, até sugerir ângulos de abordagem, mas não pode compreender aquilo que torna uma história realmente relevante. Não pode substituir o faro de um repórter experiente, a intuição de quem percebe que a verdadeira notícia não está na declaração oficial, mas naquilo que não foi dito. Não pode replicar a ironia subtil de um grande cronista, nem a acutilância de um editorial bem elaborado. Pode, no entanto, libertar os jornalistas de tarefas mecânicas e repetitivas, permitindo que se concentrem naquilo que realmente importa: investigar, interpretar, analisar.

    Tal como no xadrez, o jogo não termina simplesmente quando os programadores conseguem construir um computador capaz de vencer um campeão mundial. Pelo contrário, a Inteligência Artificial cria sim, com essa vitória, um novo desafio: o de superar a própria máquina, de aprender com ela, de atingir um novo nível de jogo, antes inimaginável. O jornalismo não é diferente. Se o objectivo fosse apenas o de produzir notícias padronizadas, os algoritmos já o fariam sem qualquer necessidade de supervisão humana.

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    Mas a questão não é essa. O verdadeiro desafio não está em criar máquinas que produzam textos indistintos, mas sim em proporcionar aos jornalistas as ferramentas para que possam elevar a sua arte a um nível superior.

    O perigo do Jornalismo jamais estará na inteligência artificial, mas na mediocridade humana. O jornalismo, como qualquer forma de criação intelectual, depende da capacidade crítica, da curiosidade, do espírito analítico. O mau jornalismo não nasce da automação, mas da preguiça, da complacência, da falta de rigor e de ética. Se há algo a temer no Jornalismo, não é o uso da Inteligência Artificial, mas sim o uso passivo e acrítico que dela se possa fazer. Se os jornalistas aceitarem que a máquina pense por eles, se se limitarem a reproduzir textos gerados automaticamente sem questionar, sem interpretar, sem acrescentar valor, então não será a Inteligência Artificial a culpada pelo declínio do Jornalismo – mas sim os próprios jornalistas.

    Assim, tal como os pintores do passado souberam tirar partido dos avanços da química sem comprometer a sua identidade artística, também os jornalistas – que já contaram com o auxílio da máquina de escrever, dos gravadores, da rádio, da televisão, da Internet e de inúmeras outras ferramentas – devem encarar as novas tecnologias não como substitutos da sua essência profissional, mas como instrumentos que potenciam a acuidade da investigação, a profundidade da análise e a clareza da comunicação. Até porque não são as tecnologias que interferem com o rigor e a independência crítica que definem o verdadeiro jornalismo.

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    O grande jornalista do futuro não será aquele que rejeita a tecnologia por medo ou por atávico purismo, mas sim aquele que a domina, que a molda aos seus propósitos, que a usa para expandir os limites daquilo que é possível fazer. A Inteligência Artificial não apagará o talento, a intuição ou a visão crítica – será um estímulo para que cada jornalista vá mais longe, investigue melhor, escreva com mais profundidade e precisão.

    Por isso, o jornalismo do futuro não será feito por máquinas; continuará a ser feito pelos humanos – talvez menos, certo –, por aqueles e aquelas que souberam integrar a Inteligência Artificial no seu processo criativo, tal como os mestres da pintura aprenderam a usar os pigmentos modernos sem perder o toque de génio que distingue uma obra-prima de um exercício técnico. O Jornalismo, afinal, é uma arte. E como em qualquer arte, o que conta não é a ferramenta – é quem a utiliza.

  • O Código Deontológico e a contradição do contraditório

    O Código Deontológico e a contradição do contraditório


    O Código Deontológico do Jornalista (CDJ) contém uma incongruência flagrante que tem servido de base para interpretações enviesadas e, mais grave ainda, para a distorção da própria prática jornalística: a imposição de que “os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso”. Esta formulação, que à primeira vista pode parecer um princípio equilibrado, esconde uma armadilha lógica: a ideia de que a comprovação dos factos depende da audição das partes envolvidas, como se a verdade jornalística só pudesse emergir de um processo dialéctico entre os visados.

    Ora, os factos existem independentemente da sua comprovação pelas partes. Um documento oficial que ateste um desvio de fundos, um contrato que revele tráfico de influências ou um relatório forense que demonstre um erro médico não precisam da validação dos protagonistas da história para serem verdadeiros. A verdade não se negocia, nem precisa de um carimbo de autenticidade de quem tem um interesse directo na narrativa.

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    A exigência do contraditório como critério universal para a comprovação dos factos cria um paradoxo: por um lado, exige-se ao jornalista rigor na apresentação de provas; por outro, obriga-se o mesmo jornalista a conceder espaço à parte interessada para que esta relativize, negue ou distorça a informação documentada. Assim, um facto objectivamente comprovado pode ser transformado num “alegado facto” apenas porque uma das partes o contesta. A verdade passa a ser condicionada pela disposição dos intervenientes em confirmá-la ou negá-la, convertendo-se num jogo retórico em vez de uma questão factual.

    Além disso, a formulação do código deontológico é ambígua e contraditória. Diz-se que os factos devem ser comprovados, mas o critério subsequente (ouvir as partes) não é uma via de comprovação, mas sim um procedimento de contextualização. Factos não se tornam mais verdadeiros porque as partes os corroboram, nem mais falsos porque os negam. Esta formulação, ao misturar um princípio objectivo (a necessidade de comprovar factos) com uma prática jornalística circunstancial (a audição das partes), resulta numa incoerência conceptual.

    O verdadeiro jornalismo assenta na busca pela verdade através de métodos rigorosos: cruzamento de fontes, análise documental, investigação aprofundada. O contraditório pode ser um elemento útil nesse processo, mas não pode ser uma condição obrigatória para validar o que já está demonstrado. Quando um jornalista possui documentos sólidos que sustentam uma investigação, o contraditório não serve para “comprovar” nada – apenas para permitir que a parte visada apresente uma defesa.

    O que é um facto? A participação de André Carvalho Ramos em formações de media training? Não! Para a ERC só é um facto quando se concede um ‘direito ao contraditório’, que permitisse André Carvalho Ramos simplesmente negar…

    O problema é que a ERC e outros reguladores, ao basearem-se nesta falha estrutural do Código Deontológico, transformaram o contraditório numa regra cega, aplicável acriticamente a qualquer contexto, como mais uma vez se verifica numa recentíssima deliberação contra o PÁGINA UM por causa de ‘um jornalista promíscuo’ da CNN Portugal, André Carvalho Ramos, não ter sido ‘ouvido’. O dito jornalista aceitou ser formador de media training organizado pela empresa onde o filho de António Costa é director-geral. A confirmação desse facto, além de estar no site do curso, foi comprovada numa notícia do jornal Eco em Setembro do ano passado e, cereja em cima do bolo, reconfirmada pelo próprio André Carvalho Ramos no LinkedIn [se, entretanto, ele pensar na ‘chico-espertice’ de apagar o registo, está aqui para memória futura].

    Mas, para a ERC, apesar do nome de André Carvalho Ramos continuar a estar no site do curso (que não tem características académicas, por ausência de ECTS, logo é um simples media training, incompatível com a profissão de jornalista), existe um ‘sacrossanto’ direito ao contraditório para eliminar os factos. Na prática, isto significa que a verdade factual pode ser contestada não com provas, mas com declarações de quem tem interesse em desmenti-la. Assim, um mecanismo que deveria servir para enriquecer a investigação jornalística passou a ser um expediente para diluir a responsabilidade de quem é alvo de uma reportagem.

    [Já agora, se se quiser escrever, como já se escreveu, que André Carvalho Ramos continua a constar nos formadores do mesmo curso a iniciar em Outubro deste ano, também se deveria dar-lhe um ‘direito ao contraditório’, ou mandar-se a ERC às malvas?]

    Cartaz do curso de media training (sem ECTS, portanto sem créditos universitários), organizado pela GCI Media e Universidade Europeia. Como não tem créditos universitários nem sequer se pode assumir que exista corpo docente; apenas formadores.

    Se o jornalismo quiser recuperar a sua função essencial – a de expor factos com base na melhor evidência disponível – tem de rejeitar esta visão burocrática e estéril do contraditório. O Código Deontológico dos Jornalistas precisa de ser revisto, clarificando que a comprovação dos factos não depende da aceitação das partes interessadas, mas da força das evidências apresentadas.

    O jornalista, com a sua credibilidade e seriedade – sem ingerências de uma ERC, que não aprecia ser investigada e se ‘vinga’ do PÁGINA UM sempre que lhe dão uma oportunidade -, é o garante de um serviço público essencial, e não deve permitir que o seu trabalho seja um simples palco para relativismos factuais onde a verdade depende sempre de quem tem direito de antena.