Categoria: Imprensa

  • Comissão da Carteira Profissional de Jornalista abre processos a directores editoriais do Público e da Global Media

    Comissão da Carteira Profissional de Jornalista abre processos a directores editoriais do Público e da Global Media

    Contratos comerciais assinados por jornalistas, como Domingos de Andrade (director da TSF), e conteúdos patrocinados ou contratualizados mas executados por profissionais acreditados, levam entidade a averiguar alegadas incompatibilidades. A entidade que regula e disciplina os jornalistas manifesta-se preocupada com “as formas de promoção comercial disfarçadas de jornalismo”, mas defende sigilo das suas diligências.


    Entre outros casos, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) anunciou hoje a abertura de um processo de averiguação ao director da TSF, Domingos de Andrade, por este jornalista assinar contratos comerciais como administrador da Global Media, detentora de periódicos como o Diário de Notícias e o Jornal de Notícias. Em causa estará o regime de incompatibilidade previsto pelo Estatuto do Jornalista. A sua violação poderá levar à cassação do título profissional e à aplicação de uma coima até 5.000 euros.

    Em resposta a um conjunto de situações anómalas, e documentadas, que o PÁGINA UM tem detectado, a CCPJ – o organismo independente de acreditação e de disciplina dos jornalistas – informou estar “a analisar as situações descritas sobre o Público, a Global Media e Domingos Andrade para avaliar os pontos que são da sua competência e quais os que, não sendo, justificam a participação à ERC [Entidade Reguladora para a Comunicação Social]”. E acrescenta ter já iniciado “também processos de questionamento aos referidos responsáveis”.

    Domingos de Andrade, jornalista e director da TSF, tem assinado contratos comerciais em nome da Global Media

    De acordo com o regime de incompatibilidades, previsto em lei desde 1999, os jornalistas – como Domingos de Andrade, detentor da carteira profissional número 1723, e que também acumula o cargo de diretor-geral editorial da Global Media – estão impedidos de exercer “funções de marketing, relações públicas, assessoria de imprensa e consultoria em comunicação ou imagem, bem como de planificação, orientação e execução de estratégias comerciais”. A preparação, assinatura e execução de contratos comerciais constitui, sem margem para dúvidas, funções de “planificação, orientação e execução de estratégias comerciais”.

    O PÁGINA UM detectou já, pelo menos, dois contratos comerciais assinados este ano por Domingos de Andrade como administrador da Global Media, designadamente com a Câmara Municipal de Valongo (para a produção de reportagens, no valor de 74.000 euros) e com a Comunidade Intermunicipal da Beira Alta (para aquisição de serviços de publicidade e divulgação turística para o período do Verão de 2021, no valor de 25.000 euros).

    Domingos de Andrade não está, obviamente, impedido de assinar contratos, mas deveria ter suspendido a sua carteira profissional, além de as suas funções de direcção editorial ficarem assim feridas do ponto de vista deontológico.

    Extracto do contrato comercial entre a DGS e a Global Media, para publicidade institucional relacionada com a pandemia, assinado por Afonso Camões, que mantém carteira profissional de jornalista.

    Domingos de Andrade não será o único jornalista a ser agora escrutinado pela CCPJ – o organismo com tutela disciplinar desta profissão especialmente regulada.

    Também o director do Público, Manuel Carvalho, e os directores das diversas publicações da Global Media, nomeadamente Rosália Amorim (Diário de Notícias) e Inês Cardoso (Jornal de Notícias), serão investigados por suspeita da existência de contratos comerciais, sobretudo com autarquias, para a encomenda de conteúdos patrocinados, mas que são escritos por jornalistas – algo estritamente proibido pelo estatuto e pelo código deontológico.

    Além disto, poderão ainda ser escrutinadas as suas participações activas, como jornalistas e directoras de órgãos de comunicação social, em eventos comerciais contratualizados entre autarquias e a Global Media.

    Na esmagadora maioria dos casos da escrita de conteúdos patrocinados, o PÁGINA UM sabe que os jornalistas chegam a ser forçados a escrever sob anonimato pelas chefias ou administração. O PÁGINA UM já detectou diversos “conteúdos patrocinados” não assinados, e que surgem, depois, republicados integralmente nas secções editoriais já assinados por jornalistas com carteira profissional. Ou seja, os textos originalmente patrocinados foram escritos por jornalistas, constituindo uma violação legal.

    A própria CCPJ afirmou ao PÁGINA UM que “tem sido crescente o número de denúncias generalizadas sobre jornalistas obrigados a elaborar conteúdos patrocinados sob anonimato ou sem sequer saberem que os conteúdos que lhes eram encomendados tinham na sua origem contratos comerciais ou de marketing do respetivo órgão de comunicação social.”

    Presidente da CCDR-N escreveu artigo em revista que pagou, por contrato, mas Público considerada não ser conteúdo comercial, e sim apenas apoiado.

    E acrescentou ainda que tem tomado diligências nos últimos anos, nomeadamente a elaboração de uma directiva sobre conteúdos patrocinados, a solicitação de um estudo à OberCom – Observatório da Comunicação, e a realização de reuniões de sensibilização junto dos directores dos principais órgãos de comunicação social.

    Também Afonso Camões – antigo director do Jornal de Notícias e actual director-geral de conteúdos da Global Media – estará eventualmente sob a alçada disciplinar da CCPJ. Apesar de sempre ter mantido a carteira profissional de jornalista (CP 308), Camões também assinou contratos comerciais.

    Por exemplo, em Agosto do ano passado, Afonso Camões apôs a sua assinatura no contrato de aquisição de publicidade institucional no âmbito da pandemia entre a Global Media e a Direcção-Geral da Saúde, no valor de 401.485 euros.

    Este jornalista, que tem actualmente colunas de opinião regulares no Jornal de Notícias e no Diário de Notícias, escreve com frequência sobre questões relacionadas com a gestão política da actual crise sanitária.

    No caso do Público, a situação em concreto, agora em averiguação pela CCPJ, refere-se sobretudo à assinatura de um contrato com a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N), no valor de 44.135 euros.

    Assinado em Outubro passado, esse contrato tinha por objecto a prestação de serviços de “criatividade e marketing no âmbito das Comemorações dos 20 anos da classificação do Douro Património”, de publicidade e de “Parceria Editorial com o Jornal Público”. Na semana passada, como desfecho deste contrato comercial sob a forma de alegada “parceria editorial”, o Público editou uma revista contendo artigos assinados por jornalistas e um editorial do director Manuel Carvalho, fazendo alusão a ser um conteúdo apoiado.

    Leonete Botelho, presidente da CCPJ, promete investigar jornalistas por incompatibilidades, incluindo o seu director no Público, mas defende sigilo sobre as conclusões.

    Saliente-se que em aditamento ao seu Livro de Estilo – feito em 2017 pelo então director David Dinis –, o Público considera que os conteúdos apoiados não são comerciais, porque são “editorialmente independentes e produzidos de forma autónoma pela redacção”.

    Porém, neste caso estamos perante não um conteúdo apoiado por publicidade, como habitualmente, mas sim pago por contrato comercial de prestação de serviços.

    Ademais, a revista contém, logo na página 5, um texto do presidente da entidade adjudicante (CCDR-N), António Cunha.

    Apesar das anunciadas promessas de fazer diligências para questionar os jornalistas do Público e das publicações da Global Media, o Secretariado da CCPJ promete já que “irá preservar o sigilo sobre as conclusões” destes inquéritos, bem como “eventuais procedimentos que se entendam por convenientes”.

    A CCPJ alega o sigilo a que os seus membros estão abrangidos por um decreto-lei de 2008. Contudo, sobreposta a esse diploma (decreto-lei) está juridicamente a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, a qual abrange os documentos também emanados pela CCPJ.

    Deste modo, o PÁGINA UM irá solicitar, a seu tempo, o acesso às eventuais diligências prometidas pela CCPJ aos jornalistas visados.


  • Nobel da Paz reconheceu jornalismo corajoso e independente

    Nobel da Paz reconheceu jornalismo corajoso e independente

    Maria Ressa, co-fundadora do site noticioso Rappler, tornou-se a primeira cidadã filipina a receber o Prémio Nobel da Paz de 2021. Compartilhou o prestigioso galardão com Dmitry Muratov, editor-chefe do jornal russo Novaya Gazeta. Breves perfis de dois jornalistas sem-medo num mundo onde a independência e a liberdade de expressão se pagam muitas vezes com a vida.


    Nos últimos anos, a jornalista Maria Ressa tem andado num constante e perigoso jogo do cão e do gato com o presidente filipino Rodrigo Duterte. Ou talvez melhor dizendo, ambos estão numa batalha naval, o que melhor se coaduna até com o título do seu jornal digital, fundado em 2012: Rappler, junção de rap (falar, em inglês) e ripples (levantar ondas).

    Ressa tem levantado mais do que ondas. Tem sido um autêntico tsunami na política e sociedade das Filipinas. E as suas “ondas” atingiram todo o Mundo, razão para ter recebido este mês o Prémio Nobel da Paz, em conjunto com o russo Dmitry Muratov. Foi a primeira vez que o comité norueguês atribuiu este prestigiante galardão a profissionais da imprensa.

    Desde o início do mandato presidencial de Duterte, o jornal de Ressa tem denunciado os abusos de poder e arbitrariedades do governo filipino perpetradas em nome de uma suposta “guerra contra as drogas”. As retaliações não se fizeram esperar, sobretudo com a abertura de processos judiciais demandados pelo próprio Governo ou de pessoas próximas de Duterte. Alguns casos têm sido arquivados, mas sobre a jornalista pende já uma ameaça de prisão de seis anos, actualmente em recurso.

    Maria Ressa na capa da Time em 2018

    Para além das batalhas judiciais, a jornalista é constantemente assediada. Maria Ressa já revelou ter chegado a receber “noventa mensagens de ódio por hora, noventa ameaças de violação por minuto”, e confessou mesmo que ser repórter de guerra “era mais fácil”. Acrescem também as campanhas de pressão nas redes sociais. As querelas entre o governo filipino e a fundadora do Rappler são o foco do documentário A Thousand Cuts, realizado em 2020.

    Apesar destas contrariedades, Maria Ressa nunca esteve sozinha. Sobretudo nos últimos três anos recebeu vários prémios internacionais pelo seu trabalho, entre os quais o Golden Pen of Freedom Award da Associação Mundial de Jornais. Em 2018, a revista Time escolheu-a para capa na edição que divulgou as 100 personalidades mais influentes do Mundo.

    No início deste ano, a advogada Amal Alamuddin – famosa defensora dos direitos humanos, e que juntou Clooney ao seu apelido em 2014 – veio em defesa de Ressa, acusando o governo filipino de orquestrar uma “campanha cada vez mais evidente” para silenciar a incómoda jornalista. A advogada de origem libanesa tem liderado a defesa do Rappler na justiça filipina após a imputação de mais um crime de “ciberdifamação”. Duterte tem insistido na ideia de o Rappler ser “um órgão noticioso falso que veicula notícias falsas e que pertence aos americanos”.

    A vida de Maria Ressa poderia ter sido muito diferente, se não tivesse optado por se meter no “olho do furacão” de um dos mais violentos países asiáticos. Embora nascida nas Filipinas, viveu desde a infância nos Estados Unidos, onde a sua família se refugiou após a instauração da lei marcial em 1972 por Ferdinando Marcos.

    Na Universidade de Princeton começou a estudar Biologia Molecular, mas transitou para o curso de Inglês, terminado com a distinção de cum laude. Foi classmate de Michelle Robinson – mais tarde, Mrs. Obama, a antepenúltima First Lady dos Estados Unidos da América. Passou ainda pelo mundo das artes, como aluna de teatro e dança, mas decidiu em 1986 retornar a Manila, sua cidade natal. Esse regresso coincidiu com a revolução popular que destituiu Marcos, e Ressa iniciaria a partir daí um caminho, muitas vezes sinuoso, pelo jornalismo.

    Durante duas décadas, foi correspondente da CNN no Sudeste Asiático, tendo investigado a presença de células da Al-Qaeda no continente asiático. Publicaria dois livros sobre esta organização terrorista.
    No próximo ano está já prometida a publicação daquela que, para a jornalista filipina, constitui uma grande ameaça mundial: a “guerra digital” pelos factos, que pode deturpar mesmo as democracias. O título é sugestivo: How to Stand Up to a Dictactor.

    Maria Ressa considera a desinformação o “novo terrorismo”, e tem lutado abnegadamente contra a propagação de fake news no universo virtual, e o Facebook tem sido um dos seus alvos. Após o anúncio do Prémio Nobel da Paz, em Outubro passado, a jornalista filipina acusou a gigante tecnológica de Mark Zuckerberg de construir algoritmos que “priorizam a disseminação de mentiras odiosas”.

    Da Rússia com ódio

    Haverá agora também um Prémio Nobel da Paz nos corredores do Novaya Gazeta, jornal russo fundado em 1993, mas por lá entraram já também cabeças de porco decepadas e ratazanas esquartejadas. Dmitriv Muratov, seu co-fundador e editor-chefe, já viu de tudo. Até facas e mensagens ameaçando matar todos, “desde a empregada da limpeza ao editor-executivo”. Não foram ameaças vãs. Desde que Vladimir Putin tomou as rédeas do poder no início de 2000, cinco repórteres e colaboradores do Novaya Gazeta foram assassinados no decurso de investigações jornalísticas: Igor Domnikov (2000), Yuri Shchekochikhin (2003), Anna Politkovskaya (2006), Anastasia Baburovafoi e Natalia Estemirova (ambas, em 2009). Além destes, em cenário de guerra morreu Victor Popkov (2001).

    Não admira assim que Muratov tenha assumido, aquando do anúncio do Prémio Nobel da Paz, que o galardão não era seu, mas sim dos companheiros caídos. E anunciou ainda que o montante do prémio atribuído pelo Comité Nobel – cerca de 500 mil euros, sendo que outro tanto foi entregue à filipina Maria Ressa – será distribuído pela redacção do Novaya Gazeta.

    Avesso a honras e distinções – apesar de ter já recebido em 2007 o Prémio Internacional de Liberdade de Imprensa do Comité para a Protecção dos Jornalistas (CPJ) e a Legião de Honra de França, em 2010 –, Muratov tinha prometido a si mesmo a reforma em 2017, após liderar por mais de duas décadas a redacção do Novaya Gazeta. Retomou, porém, a luta jornalística em 2019. E fez bem, porque, aos 60 anos, o Nobel da Paz tem agora um novo ânimo, e já garantiu mais e melhor. “Daqui para a frente cada palavra tem de ser medida”, assegurou.

    Maria Ressa e Dmitry Muratov na cerimónia de entrega do Prémio Nobel da Paz em Oslo, no dia 10 de Dezembro (© Nobel Prize Outreach. Foto: Jo Straube)

    Nascido no Outono de 1961, em Samara – a sexta maior cidade da Rússia e o local onde Estaline mandou instalar um bunker –, Dmitry Andreyevich Muratov chegou a alistar-se no exército soviético, após cursar Filologia na universidade da sua cidade natal. Porém, o “bichinho” do jornalismo falou mais alto. Estava como editor do Komsomolskaya Pravda quando, em 1993, fundou com mais meia centena de colegas o Novaya Gazeta.

    Os primeiros anos do Novaya Gazeta, pela sua postura independente, foram difíceis, com parcos recursos, até surgir um “balão de oxigénio” através do auxílio financeiro de Mikhail Gorbatchov, último presidente da União Soviética (1988-1991), também galardoado com o Nobel da Paz (1990), que ainda hoje mantém uma pequena quota.

    O resto é, digamos assim, conhecido: investigação, denúncias, perseguições, mortes, e mais investigação. E agora, também um Prémio Nobel da Paz.

    A profissão (quase) mais perigosa do Mundo

    Nascidos para investigar e expor os abusos de poder, a corrupção e as violações de direitos humanos, a vida de Dmitry Muratov e Maria Ressa – agora reconhecidos através do Prémio Nobel da Paz – conseguiram dar ainda mais destaque, por um lado, à importância da imprensa, e também, por outro, aos perigos de uma profissão, quando exercida com independência e coragem. Berit Reiss-Andersen, porta-voz do Comité Norueguês do Nobel, bem sintetizou o papel dos jornalistas: “sem a imprensa, não podemos ter uma democracia forte”. Mas o preço é alto para muitos destes profissionais.

    Ainda este mês, o CPJ revelou que ao longo do ano de 2021 foram assassinados 24 jornalistas em todo o Mundo, e contabilizam-se ainda 293 detidos, com o destaque negativo para a China, Myanmar, Egipto, Vietname e Bielorrússia.

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    De acordo com uma base de dados desta organização independente, sempre em actualização, desde 1992 foram assassinados 1.422 jornalistas por causa dos seus trabalhos. Outros 578 morreram por motivo ainda não determinado. Incluindo casos confirmados e suspeitos, e se juntarem ainda outros trabalhadores dos media, o total de mortos ascende às 2.115 pessoas.

    Quase nove em cada 10 desses homicídios ficaram impunes, de acordo com a CPJ. No seu Índice Global de Impunidade – que mede os casos não resolvidos de homicídios de jornalistas em função da população –, a Somália destaca-se na primeira posição, seguindo-se a Síria, Iraque, Sudão do Sul e Afeganistão.
    O Brasil integra também o top 10 deste trágico índice, na oitava posição, a seguir ao México e às Filipinas, e antecedendo Paquistão e Rússia. Embora pouco referido, o Brasil é, de facto, um dos países mais perigosos do Mundo para os jornalistas, contabilizando 58 mortes nas últimas duas décadas, das quais 18 desde 2015.

    O último caso no Brasil registado pelo CPJ – que classifica como imprensa mesmo as publicações noticiosas em redes sociais – foi o homicídio de Leonardo Pinheiro, em 13 de Maio de 2020. Este líder comunitário e social, que detinha uma página de notícias no Facebook chamada A Voz Araruamense, foi executado com um tiro na cabeça, depois de ajoelhado, alegadamente por dois polícias militares desta cidade do Estado do Rio de Janeiro.

    Texto editado por Pedro Almeida Vieira


  • Contratos com a Global Media compram silêncio

    Contratos com a Global Media compram silêncio

    A crise financeira na imprensa nacional lançou-a para “aventuras” comerciais de duvidosa legalidade, mas de deontologia maculada. Um dos casos mais graves mostra-se na Global Media, que tem estado a transformar-se numa “fábrica de notícias” para quem pagar. Garante até sigilo. Mas estes estranhos negócios comerciais mercadejando o jornalismo não são caso único. Este é o primeiro artigo de um dossier que mergulha no mundo financeiro sem escrúpulos da nossa imprensa.


    A Global Media – que detém, entre outros, os periódicos Diário de Notícias e Jornal de Notícias, e a rádio TSF, para a além de uma participação relevante na agência Lusa – tem estado a assinar contratos para a produção de notícias, sob a forma de prestação de serviços, para as Câmaras Municipais. Como contrapartida suplementar, estes contratos possuem uma cláusula de sigilo, que impedirá potencialmente a publicação de notícias prejudiciais às autarquias.

    O caso mais evidente, mas não único, detectado pelo PÁGINA UM, passa-se com um contrato assinado em 28 de Julho passado entre a Câmara Municipal de Valongo e a Global Media – e tendo como um dos signatários o jornalista Domingos de Andrade, simultaneamente director-geral editorial e director da TSF – que contratualizou a produção de “52 (cinquenta e duas) reportagens anuais”, a inserir no Canal JN Directo, e ainda “12 (doze) páginas anuais” em suplementos.

    Domingos de Andrade acumula as funções de jornalista, director da TSF e de administrador da Global Media, assinando contratos comerciais.

    Este contrato, com o prazo de 24 meses, surge no seguimento de um outro assinado no início de 2019 (mas não disponível no Portal BASE), tendo como objecto do contrato a “aquisição de serviços de promoção das marcas identitárias e tecido económico local do Município de Valongo”. Ambos com um preço contratual de 74.000 euros.

    A contratação de produção de reportagens pagas – e portanto, dependendo de critérios não editoriais – é uma das questões mais sensíveis na imprensa portuguesa e mesmo mundial. Contudo, aparentemente a Comissão da Carteira Profissional do Jornalista não tem colocado em causa a inserção, cada vez mais abundante, de notícias com conteúdos patrocinados, grande parte dos quais não assinadas para esconder a identidade dos jornalistas que as escrevem.

    Com efeito, a Lei da Imprensa destaca que o exercício da profissão de jornalista é incompatível com o desempenho de “funções de angariação, concepção ou apresentação, através de texto, voz ou imagem, de mensagens publicitárias” e ainda de “funções de marketing, relações públicas, assessoria de imprensa e consultoria em comunicação ou imagem, bem como de planificação, orientação e execução de estratégias comerciais”.

    No entanto, essa regra legal (e sobretudo deontológica) não é cumprida na Global Media mesmo ao alto nível. Domingos de Andrade, detentor da carteira profissional 1723, sendo director-geral de todas as publicações da Global Media e director da TSF, demonstra participar activamente nas estratégias comerciais do grupo. Por uma simples razão: é um dos signatários do contratos dessa natureza.

    Porém, a cláusula de sigilo que se encontra expressa no contrato da Global Media com a autarquia de Valongo, mostra-se ainda de maior gravidade.

    Em todo o caso, esta cláusula aparenta ser desnecessária tendo em conta as excelentes relações comerciais entre a Global Media e a Câmara de Valongo. De acordo com um levantamento do PÁGINA UM no Portal Base, apenas desde 2019 estão já contabilizados 18 contratos entre estas duas entidades no valor total de 248.300 euros. Somente 16.300 euros dizem respeito à inserção de publicidade – que, até há anos, era a forma básica de financiamento dos media.

    O grosso do montante pago pela autarquia liderada pelo socialista José Manuel Ribeiro refere-se, para além dos contratos já referidos, ao patrocínio de etapas do Grande Prémio de Ciclismo Jornal de Notícias (60.000 euros, no total de dois contratos) e à aquisição de diversos serviços de comunicação das actividades daquela autarquia do distrito do Porto, algumas das quais relacionadas com a actual pandemia, e com a participação activa de jornalistas e mesmo de responsáveis editoriais.

    Com efeito, a cláusula 8ª do citado contrato de Julho passado estabelece que “o segundo outorgante [Global Media] garantirá o sigilo quanto a informações que os seus funcionários [que inclui, obviamente, os jornalistas] venham a ter conhecimento relacionados com a actividade do primeiro outorgante [Câmara Municipal de Valongo]. Em suma, como esta cláusula se estende à “actividade” (toda, salvo a inexistência de referência contrária), tal significa que se qualquer jornalista dos órgãos de comunicação social da Global Media souber, por exemplo, de um caso de corrupção naquela autarquia, estará impedido de a noticiar.

    Nesses “eventos”, que são efectivamente uma prestação de serviços contra pagamento de verbas, mostra-se à saciedade um franco convívio entre as partes, pouco consentâneo com a equidistância e independência exigida aos jornalistas perante as entidades e responsáveis políticos.

    Por exemplo, em 21 de Abril passado, num webinar patrocinado pela autarquia de Valongo em redor da pandemia, e organizado pelo Jornal de Notícias, a directora desta publicação, Inês Cardoso – com a carteira profissional 2511 –, não se inibiu de tecer encómios ao patrocinador do evento. Cite-se: “Uma saudação também especial ao presidente da câmara de Valongo. Nós temos tido algumas iniciativas com Valongo. São particularmente significativas pela forma como o presidente da câmara tem uma perspectiva muito mobilizadora e focado nos cidadãos, nas suas emoções. E por isso foi particularmente desafiante a preparação e a montagem deste webinar”.