Categoria: Editorial

  • O Pfizergate, o New York Times e o caso português do PÁGINA UM (a aguardar sentença há 28 meses)

    O Pfizergate, o New York Times e o caso português do PÁGINA UM (a aguardar sentença há 28 meses)


    Durante a pandemia, uma parte significativa do jornalismo português ajoelhou-se perante os altares da Comissão Europeia e dos Governos nacionais. A crítica, o contraditório e a investigação foram substituídas por uma militância sanitária que assumiu como missão promover vacinas, esconder contratos, silenciar dúvidas e rotular como perigosos ou irresponsáveis os que ousassem fazer perguntas.

    Por exemplo, logo após o nascimento do PÁGINA UM em Dezembro de 2021, a direcção editorial da CNN Portugal (com o apoio da Ordem dos Médicos) encomendou ao então estagiário Henrique Magalhães Claudino uma notícia para me associar aos ditos movimentos negacionistas da covid-19. Tive de lutar meses junto da ERC pela justeza da minha notícia rigorosa para, pelo menos, conseguir publicar direitos de resposta em alguns dos jornais que propalaram esta patifaria da CNN.

    Ursula von de Leyer com o CEO da Pfizer, Albert Bourla.

    Para evitar a publicação do direito de resposta, o jornal Público chegou mesmo a colocar, em meados de 2022, uma providência cautelar, através do advogado Francisco Teixeira da Mota – conhecido paladino da liberdade de imprensa –, em que se acusava que o PÁGINA UM “manifestamente, tinha tomado posições claramente atentatórias contra a necessidade de se criar consenso social em favor da vacinação, algo que o jornal [PÚBLICO] assumiu e defendeu desde a primeira hora”.

    Ou seja, durante a pandemia, a imprensa mainstream e muitos jornalistas não hesitaram em atribuir-me epítetos por não seguir linhas editoriais de propaganda vacinal e de gestão da pandemia, funcionando mais como departamentos de comunicação da DGS do que como órgãos de comunicação social que se exigem livres e plurais.

    Nesse contexto, não surpreende que a imprensa portuguesa — com raríssimas excepções — nunca tenha demonstrado qualquer interesse em saber o que realmente se passou nos bastidores das negociações das vacinas, tanto a nível europeu como nacional. Quando, em 2022, o The New York Times avançou com um processo contra a Comissão Europeia para obter as célebres mensagens trocadas entre Ursula von der Leyen e o CEO da Pfizer, Albert Bourla, a imprensa nacional mal lhe dedicou uma nota de rodapé. Uma ou duas linhas tímidas, e logo voltou ao conforto das pachorrentas conferências de imprensa, onde as perguntas difíceis eram proscritas.

    Agora, em Maio de 2025, o Tribunal Geral da União Europeia condenou a Comissão Europeia por violação dos princípios de boa administração ao recusar a entrega dessas mensagens – e os mesmos jornais que se calaram ou atacaram quem exigia transparência rejubilam agora. O Público até tem a ousadia de escrever que o “desfecho do caso Pfizergate é uma vitória para o The New York Times, a liberdade de imprensa e a transparência”.

    O Público agora rejubila com a vitória da liberdade de imprensa e da transparência…

    A hipocrisia na sua plenitude: quem ontem negou o jornalismo, hoje celebra o jornalismo dos outros — desde que venha com o selo do New York Times e sem incomodar os interesses nacionais.

    Mas mais grave do que esta hipocrisia mediática é o facto de, em Portugal, também haver um “caso Pfizergate” — ou melhor, um “caso DGSgate”, igualmente associado à compra de vacinas da covid-19, mas este, intentado pelo PÁGINA UM, arrasta-se há mais de dois anos, sem que o Tribunal Administrativo tenha decidido o que há muito já deveria estar resolvido. Ou melhor dizendo, porque os tribunais (e as suas decisões) são feitos por pessoas, pela juíza do processo, Telma Nogueira.

    Com efeito, em 22 de Novembro de 2022, requeri à DGS, ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos, um pedido claro, inequívoco e fundamentado de acesso integral aos contratos celebrados com as farmacêuticas fornecedoras de vacinas contra a covid-19, incluindo todos os anexos, cadernos de encargos, guias de transporte e trocas de correspondência administrativa.

    A juíza associada à intimação do PÁGINA UM tem permitido ao Ministério da Saúde e à DGS um exercício prolongado de opacidade com verniz burocrático: quando está em causa decidir se existe legitimidade para o acesso, é permitido que se negue o inegável, que se traduzam documentos (sem se ver os originais), e expurguem partes, retirando qualquer valor informativo real. E, na verdade, ‘apenas’ se quer consultar os originais. E anda-se há 28 meses — a intimação foi apresentada no último dia de 2022 — numa encenação de transparência, onde se finge cooperação para, na prática, se negar o acesso à informação pública.

    E a juíza permanece, despacho após despacho, sem proferir sentença ao fim de 28 meses, num processo classificado de urgente. Ainda que fosse desfavorável, seria preferível uma sentença, porque, ao menos, seria possível recorrer ao tribunal superior.

    Ainda este mês, sabendo bem que aquilo que a DGS tem carreado para o processo em nada corresponde ao que foi solicitado em 2022, a juíza Telma Nogueira deu um despacho para que nos pronunciemos se estamos satisfeito com aquilo que temos. Anda-se neste ‘enrola-enrola’ há dois anos. Se o formalismo jurídico permitisse seguiria uma única palavra e em maiúsculas: NÃO. E a seguir, um rogo: “decida, se faz favor”.

    person holding white plastic bottle

    Talvez não seja de bom tom, com um caso em curso, estar a debruçar-me e a criticar a condução deste caso. Mas ao jornalismo cabe a obrigação da denúncia, mesmo se em casos que digam respeito ao próprio jornalista, porque, neste caso, existe interesse público. E a questão jurídica do Tribunal Administrativo nestes casos é simples: não lhe cabe ser árbitro entre o que o requerente pediu e aquilo que o requerido quer dar. Cabe-lhe dizer, com clareza e firmeza, se há ou não legitimidade no pedido, se a DGS tem ou não obrigação de entregar os documentos originais sem rasuras, se o cidadão e, em particular, o jornalista têm ou não o direito de escrutinar os contratos que foram pagos com dinheiro público em nome de uma emergência sanitária. E decidir com a celeridade que a lei determina para as intimações. E 28 meses são 28 meses — não há conceito lato de urgência que encaixe todo este tempo.

    Ao contrário do que muitos insinuaram durante a pandemia, não há qualquer pulsão negacionista em se querer saber como foram negociadas e contratadas as vacinas ou se geriu a pandemia. Aquilo que há é jornalismo — esse mesmo que agora tantos fingem celebrar quando a vitória é de um jornal estrangeiro.

    O ‘caso DGSgate’ – e um outro relacionado com uma base de dados dos internamentos, que se eterniza apesar de um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 2023 – é, por isso, um teste à democracia. Se a Justiça portuguesa confirmar que a recusa da DGS foi ilegal, estará a dar uma resposta clara em favor da liberdade de informação e contra a opacidade institucional. Mas se continuar em silêncio, estará a dizer-nos que, em Portugal, certos contratos públicos estão acima da lei — e que, ao contrário do que se exige aos cidadãos, o Estado pode desobedecer impunemente àquilo que ele próprio legisla.

    Assim, se Von der Leyen foi condenada por esconder mensagens de WhatsApp, o que se deve dizer de uma DGS que esconde contratos inteiros, facturas, guias de remessa e cartas em papel timbrado? E o que dizer de uma Justiça que, passados mais de dois anos, ainda não respondeu?

    Enfim, não basta aplaudir o New York Times e dizer que a liberdade de imprensa venceu em Bruxelas. É tempo de exigir que a liberdade de imprensa também vença em Lisboa. E que se denuncie, em simultâneo, os hipócritas — sobretudo os escribas de certa imprensa, que tão maltrataram os princípios do jornalismo durante os anos da pandemia.

  • O regresso cego ao ‘business as usual’ e o preço da negligência energética

    O regresso cego ao ‘business as usual’ e o preço da negligência energética


    A cultura do business as usual é a mais insidiosa forma de irresponsabilidade institucional. Mais ainda no rescaldo de um apagão eléctrico que mergulhou Portugal na escuridão, depois de o MIBEL ter andado a ser ‘vendido’ como modelo de negócio com garantias de “segurança no abastecimento de electricidade”, ainda mais depois de Portugal ter encerrado a central a carvão do Pego, que embora causasse problemas ambientais, concedia inércia à rede electrica nacional, auxiliando o amortecimento de variações súbitas de frequência.

    Nas últimas duas semanas, a REN – a empresa monopolista de segurança e continuidade do serviço de eletricidade e pela gestão do sistema elétrico nacional – tem-se desdobrado em declarações à imprensa acrítica – sobre o apagão espanhol que colapsou Portugal como um baralho de cartas. Ouvem agora declarações de prudência e de monitorização “em permanência”, mas sem que se vislumbre uma explicação sobre as actuais fragilidades portuguesas e sem se mexer uma palha naquilo que verdadeiramente conta: a estrutura técnica do sistema. Enfim, fazem-se figas e toca a negociar de novo – em Portugal, o business as usual quer dizer irresponsabilidade.

    closeup photo of lighted bulb

    É certo que as investigações internacionais ainda decorrem e já há quem prognostique que as causas do ‘incidente’ do passado dia 28 de Abril demore meses – este prazo é muito conveniente para que a culpa se esqueça ou morra solteira. Mas não nos haja iluões: a morosidade processual é muitas vezes um biombo conveniente para adiar decisões e manter tudo como está – e confiar na sorte. E achar aceitável continuar a operar uma rede eléctrica com os mesmos erros que nos levaram, literalmente, ao colapso.

    Os sinais são, infelizmente, de um país a regressar tranquilamente à rotina. Portugal já retomou as importações de electricidade de Espanha, embora agora com supostas restrições nas horas de maior produção fotovoltaica. A medida, apresentada como prudente, nada resolve.

    Aliás, ao reduzir e condicionar a importação de electricidade fotovoltaica em função do período horário, a REN acaba por revelar, de forma implícita mas inequívoca, onde esteve a génese do apagão de 28 de Abril: na conjugação entre forte produção solar intermitente, demasiada importação de Espanha, baixa inércia do sistema nacional e ausência de mecanismos de resposta rápida. A própria REN, ao limitar agora as importações diurnas, indicia o risco que não ousa nomear frontalmente — e ao fazê-lo, reconhece tacitamente que o sistema eléctrico ibérico, e o português, não está preparado para absorver grandes fluxos renováveis sem ferramentas técnicas modernas.

    Limitar a importação solar, portanto, não é uma precaução neutra — é uma confissão técnica. E mais: é a manutenção deliberada de um sistema que falhou, à espera que falhe outra vez.

    Uma das grandes vantagens do apagão foi, em certa medida, permitir que muitos especialistas independentes pudessem expor as fragilidades do sistema eléctricio português, porque aparentemente temos uma Entidade Reguladora do Sector Energético que anda a vir navios.

    De entre as propostas que, não sendo eu especialista em detalhe nesta matéria – direi que ‘tenho umas luzes’ – se afiguram muito realistas e exequíveis, destaco as seguintes causas para estarmos continuamente sob risco de sucessivos apagões.

    Primeiro, a ausência de Fast Frequency Reserve (FFR), ou seja, de capacidade de injectar ou retirar potência da rede em milissegundos após uma perturbação. Esta reserva rápida, que actua como um “airbag” eléctrico, é hoje considerada essencial em redes com elevada penetração de renováveis. Portugal tem neste momento zero megawatts contratados, enquanto, por exemplo, a Irlanda opera com 330 MW e o Reino Unido gasta mais de 200 milhões de libras anuais para garantir este tipo de resposta.

    Foto: D.R./ REN

    Segundo, a persistência de relés de protecção mal calibrados, com valores de RoCoF (Rate of Change of Frequency) excessivamente conservadores. Com o actual limiar, variações superiores a 1 Hz/s disparam desligamentos automáticos de centrais e linhas devido à variação excessiva da frequência — uma resposta defensiva que, em vez de estabilizar, pode precipitar colapsos em cascata como o que ocorreu a 28 de Abril. A solução, consta, é simples e está estudada: reprogramar os relés para aceitar ±1 Hz/s, o que evitaria desligamentos prematuros. Mas nada foi feito.

    Terceiro, a actual baixa inércia do sistema, que se agravou com a substituição de centrais térmicas por fontes renováveis intermitentes. Esta fragilidade, não sendo recente, poderia ser mitigada com a chamada inércia sintética — conversores especiais ‘grid-forming’, baterias e até veículos eléctricos com tecnologia V2G. A REN sabe disto. O Governo também. E, no entanto, nenhuma meta foi definida, nenhum plano foi anunciado.

    Quarto, a ausência de digitalização e controlo dinâmico. A integração em tempo real de produção distribuída, pequenos produtores, veículos eléctricos e baterias requer uma infraestrutura de gestão moderna, com sistemas de gestão de energia (EMS) actualizados. Continuamos com uma infraestrutura pouco digitalizada e com baixa capacidade de resposta automatizada.

    light bulb

    Perante tudo isto, o mais grave é a tentativa de empurrar a responsabilidade para um vago “ainda não se sabe” ou para Espanha. Porque se sabe. Sabe-se, tecnicamente, que o sistema ibérico estava numa situação crítica às 11h33 de 28 de Abril.

    Sabe-se que houve uma quebra abrupta de 2200 MW na produção do sul de Espanha, provavelmente fotovoltaica, e que a ausência de FFR provocou uma queda de frequência tão rápida que os relés foram disparados em cascata. Sabe-se que os mecanismos de defesa do sistema — supostamente para o proteger — causaram precisamente o seu colapso.

    Se nada for feito, o próximo apagão é uma questão de estatística, não de surpresa. E, nessa altura, será lícito perguntar: quantas vezes precisa o país de cair para se lembrar de erguer os pés?

    black solar panels on purple flower field during daytime

    A REN, como operadora do sistema, tem a obrigação de preparar a rede para a realidade que já existe. E o Estado, como garante do interesse público, tem o dever de agir, regular e proteger. Aquilo que não pode suceder é continuar-se como se nada tivesse ocorrido, enquanto se esperam relatórios que apenas confirmarão o que os engenheiros e analistas já sabem de cor.

    Regressar ao business as usual serve os interesses dos operadores do MIBEL, mas é um luxo que portugueses já não podem pagar, até porque pagam já uma factura de electricidade já demasiada alta.

  • Spinumviva: o jornalismo da esponja e a nódoa que persiste

    Spinumviva: o jornalismo da esponja e a nódoa que persiste


    Em democracia, há momentos em que a história se repete, não como farsa, mas como ensaio da decadência. A queda do Governo de Luís Montenegro, provocada por um escândalo ético (pelo menos) envolvendo a sua empresa familiar Spinumviva -cujo único activo era ele próprio, não pelo conhecimento jurídico mas influência política –, parecia inaugurar um momento de depuração cívica.

    Mas bastaram poucos dias para que se reinstalasse o mecanismo rotineiro da absolvição mediática, essa máquina bem oleada que, em vez de investigar, serve para enxaguar a nódoa. Luís Rosa, jornalista do Observador, que se apresenta como repórter de investigação, apresentou uma suposta investigação jornalística que serviu para uma narrativa muito conveniente para uma ‘limpeza ética’ de Luís Montenegro e preparar um nível de vitimização para ‘desaconselhar’ um enfoque no caso Spinumviva.

    A peça assinada por Luís Rosa e João Paulo Godinho, publicada em tom triunfal no dia 19 de Março, garantia ter sido baseada na consulta de mais de mil documentos sobre a actividade da Spinumviva — documentos que alegadamente comprovavam, de forma irrefutável, que os serviços prestados tinham sido reais, substanciais, legítimos. Porém, o leitor mais atento — e qualquer jornalista com um mínimo de exigência — deparou-se com uma ausência total de provas visíveis: na peça não surgia nenhum fac-símile, nenhum relatório, nenhum contrato, nenhum e-mail, nenhuma factura, nada. Apenas o anúncio da existência dos documentos, talvez por fé, talvez por conveniência. Em vez de jornalismo de investigação, tivemos jornalismo de proclamação.

    Não há desculpa plausível para um jornal digital, que opera sem os constrangimentos de espaço do papel, não apresentar aos seus leitores, nem que fosse em anexo, uma pequena amostra dos tais documentos. E as imagens publicadas, com dossiês e folhas amontoadas, pareciam mais uma produção estética do ChatGPT do que uma prova documental genuína. Não se vislumbrava sequer uma citação, nada.

    A operação foi tudo menos inocente: serviu para projectar a ideia de que o caso estava encerrado, de que Montenegro era uma vítima da má-língua e do “clima de suspeição”, e de que tudo não passava de uma cabala. A imprensa convencional não perdeu tempo: replicou a narrativa sem pestanejar, sem escrutinar, sem perguntar.

    Imagens destacadas na peça do Observador de 19 de Março sobre a Spinumviva com os dossiês usados na investigação jornalística. Não foi apresentrado qualquer documentos concreto. Foto: DR.

    E assim se passou, durante algum tempo, uma esponja sobre a razão primordial da queda do Governo: a promiscuidade entre funções públicas e interesses privados, a opacidade das avenças, o potencial conflito de interesses, e a recusa em afastar-se de uma empresa familiar com ligações activas a entidades com relações com o Estado. E mais:percebeu-se também que, por coincidência, um cliente da Spinumviva é pai de um candidato do PSD à Câmara de Braga.

    Nestas eleições, mais do que confirmar ou não um sistema político de governos minoritários – o que, numa democracia, até deveria ser saudável e saudado –, está em causa se o eleitorado sanciona ou não aquilo que representa o caso Spinumviva. Não foi a oposição que forçou a queda do Governo: foi o próprio Luís Montenegro que apresentou uma moção de confiança. Caiu não por perseguição política, mas porque perdeu a legitimidade ética.

    Agora, já em vésperas da campanha eleitoral, surgiu afinal uma nova lista de empresas que constam como clientes da Spinumviva, com destaque para a ITAU e a Sogenave – ambas do ramo alimentar e que têm contratos volumosos com entidades estatais que, por exemplo, fornecem cantinas de escolas e hospitais em ajustes directos – e ainda a Portugalenses Transportes, a metalomecânica bracarense Beetsteel, a consultora espanhola INETUM Portugal, e a Grupel, que actua no sector da energia.

    ‘Investigação jornalística selectiva’: sem revelar fonte nem mostrar qualquer documentação em concreto, Luís Rosa ‘sentenciou’ que a Spinumviva não era empresa de fachada, mas ficam agora em aberto várias questões essenciais. Em (supostas) mil páginas de documentos da Spinumviva, nada constava das ‘novas’ empresas agora conhecidas? Não era suposto ter tido acesso a toda a documentação? Aceitou fazer revelações taxativas sem ter tido acesso a todos os contratos da empresa de Montenegro?

    Estranhamente, ou talvez não, esta informação surgiu através de uma declaração do próprio Luís Montenegro à Entidade para a Transparência – que supostamente o primeiro-ministro pensaria que viesse a ser confidencial – não veio pela mão de Luís Rosa. Nem do Observador. Nem de qualquer outro órgão que tenha ecoado, sem filtro, a narrativa de reabilitação.

    Recordemos para memória futura; Luís Rosa garantiu em Março passado ter lido acesso a mais de mil páginas de documentos sobre a Spinumviva. E então, não recebeu a informação sobre esta (novas) empresas. Ou não a quis mostrar? O que é pior? Ter sido ingénuo e manipulado por fontes próximas de Luís Montenegro – ou pelo próprio –, acreditando que tinha toda a verdade? Ou ter recebido apenas parte da informação e, mesmo assim, ter decidido avançar, consciente de que servia uma operação de maquilhagem? Em qualquer dos casos, fica manchada a integridade jornalística.

    A função do jornalismo de investigação não é salvar políticos caídos em desgraça, nem reescrever as razões das suas quedas, nem participar em operações de cosmética eleitoral. É perguntar, duvidar, incomodar. Não há investigação jornalística sem provas, mas estas têm de ser apresentadas como critério e seriedade. E não há jornalismo sério quando se confunde o acesso exclusivo com a fidelidade à fonte. Luís Rosa, neste episódio, não foi jornalista; foi transmissor.

    O Observador ‘lamenta’ agora que se está de novo a discutir o caso da Spinumviva (que justificou a queda do Governo), “enquanto o que interessa ao país não é discutido”. Não interessa ao país discutir a ética por detrás de um primeiro-ministro?

    Se Montenegro ganhar as próximas eleições, não será por ter explicado de forma clara os contornos da ligação da Spinumviva aos seus clientes e sobre as razões da sua contratação. Será porque a imprensa — a começar pelo Observador — contribuiu para apagar, na consciência colectiva, o escândalo que levou à dissolução da Assembleia. Será porque uma parte do jornalismo português continua a ver os políticos como aliados ou como clientes, não como sujeitos a escrutínio. Será porque a exigência democrática se diluiu no espectáculo da vitimização e da propaganda.

    É neste exacto ponto que a nossa democracia desce mais uns graus na escala da decência. Não porque o cidadão vota mal, mas porque lhe mentem; porque lhe ocultam; porque lhe vendem moral em troca de prestígio editorial. E porque, no final de contas, quem escreve não responde pelos actos de quem governa, mas deveria, no mínimo, prestar contas pelo silêncio conveniente e pelas investigações de papel.

    Neste caso da Spinumviva, a esponja (do jornalismo) está gasta; e aquilo que resta é a nódoa.

  • O Estado desertou. A energia nacional é hoje um negócio estrangeiro. E pagámos o preço

    O Estado desertou. A energia nacional é hoje um negócio estrangeiro. E pagámos o preço


    O apagão de 28 de Abril não foi um incidente imprevisto. Foi a manifestação física de uma política energética leviana, de uma estratégia de privatizações cegas e da rendição sistemática do Estado português aos interesses financeiros internacionais.

    Portugal entregou, voluntariamente, uma das suas infraestruturas mais críticas — a gestão da rede eléctrica nacional — a entidades cujo único objectivo é maximizar lucros. A REN, concessionária da rede de transporte de electricidade, foi separada da produção no ano 2000 para cumpri um objectivo da União Europeia de liberalização do mercado energético com a separação jurídica de empresas para não existirem conflitos de interesses e haver maior transparência e competividade.

    transmission towers and wind turbines on the field

    De boas intenções estáo inferino chei. E em pouco anos, um sector vital para a Economia portuguesa não só sai do controlo do Estado português como de empresas nacionais. Hoje, a REN é detida em 25% pela State Grid do Governo da China, em 12% pela Pontegadea Inversiones do espanhol Amancio Ortega, em 7,7% pelo fundo norte-americano Lazard Asset Management, em 5,3% pela Fidelidade (também de capitais chineses), e em 5% pela Red Eléctrica de Espanha (Redeia). O resto dispersa-se entre fundos privados. Em termos de investidores institucionais somente 11% do capital está em mãos portuguesas, embora com parcelas disperas. E o Estado português? Um espectador impotente.

    Esta situação, criada e consolidada sobretudo sob o Governo de Pedro Passos Coelho, não apenas retirou capacidade soberana de decisão sobre o funcionamento da rede nacional — expôs o país a uma vulnerabilidade estrutural que ontem explodiu em toda a sua crueza.

    No final da manhã de ontem, Portugal operava com cerca de 30% da sua carga eléctrica abastecida através de importações de Espanha. Esta dependência diária, quase invisível para a maioria da população, é a herança directa do encerramento das centrais térmicas nacionais — primeiro as de carvão, depois o progressivo esvaziamento da capacidade de resposta das centrais a gás — em nome de uma “transição energética” feita sem cautela, sem reservas e sem responsabilidade.

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    Mas a irresponsabilidade não parou aí. Aquilo que ontem aconteceu foi ainda mais grave, porque demonstra que a REN procura maximizar o lucro em detrimento da segurança, no sentido do fornecimento de electricidade sem riscos de apagão. Ontem, independentemente da causa, aquilo que poderia ser um mero incidente descambou num colapso de todo o sistena eléctrico nacional.

    Com efeito, ao amanhecer, num dia de previs+ivel forte incidência solar, as centrais hidroeléctricas nacionais — um dos poucos activos capazes de garantir flexibilidade e estabilidade ao sistema, agora cheias com as chuvas dos últimos meses — foram deliberadamente desligadas. Porquê? Para maximizar a importação de electricidade de Espanha a preços mais baixos e, em boa parte, canalizar essa electricidade para processos de armazenamento, como a bombagem hidroeléctrica.

    Mas o sistema eléctrico, importa sublinhar, não distingue consumo final de armazenamento. Para a rede, tudo é carga. Tudo consome energia em tempo real. Quando o somatório da procura — doméstica, industrial e de armazenamento — ultrapassa a geração disponível, a rede desestabiliza: a frequência baixa perigosamente e, sem resposta rápida, desencadeia-se o apagão geral. Foi exactamente isso que sucedeu.

    white windmill during daytime

    Portugal passou a operar o seu sistema eléctrico no fio da navalha: altamente dependente de importações, com a produção interna dominada por renováveis intermitentes (solar e eólica) e sem uma capacidade de resposta interna suficiente para lidar com falhas externas. Um modelo que qualquer manual de engenharia de sistemas eléctricos classificaria como imprudente — e que ontem demonstrou, sem misericórdia, a sua falência.

    Pior ainda: tratou-se de uma falência por opção consciente. Um Estado que não controla a sua infraestrutura energética; uma operadora que gere o sistema com critérios de maximização de margens financeiras; uma política energética que sacrificou a segurança pela cosmética da “transição verde” a qualquer custo.

    Ontem, não faltou apenas electricidade. Faltou soberania. Faltou competência. Faltou prudência. Faltou Estado.

    No sector energético há três S fundamentais que estão a falhar: segurança, soberania e sustentabilidade. A Segurança energética exige a existência de uma capacidade firme de produção nacional, uma gestão prudente e responsável das redes eléctricas, bem como a manutenção de reservas de contingência prontas a ser activadas em caso de necessidade.

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    A Soberania implica que um país preserve o controlo efectivo sobre os seus activos estratégicos, recusando a sua entrega a capitais estrangeiros cuja lógica é movida apenas pelo lucro e não pelo interesse nacional.

    Já a Sustentabilidade, se for verdadeira e madura, exige uma transição energética realizada com inteligência e prudência, respeitando o equilíbrio técnico do sistema e não sacrificando, em nome de modas políticas, as bases que garantem a sua estabilidade e resiliência.

    E a responsabilidade não é apenas da REN nem dos operadores privados, porque esses visam o lucro legítimo. Ela recai directamente sobre os decisores políticos que, com leviandade e voluntarismo, abdicaram de proteger o interesse nacional em nome de interesses económicos de curto prazo.

    Se nada for feito — se o Estado não recuperar instrumentos de controlo, se não se reconstruir uma capacidade de reserva energética interna robusta e independente —, o apagão de 28 de Abril não será recordado como um acidente isolado, mas como o prelúdio de colapsos futuros. Não é uma questão de “se”. É já apenas uma questão de “quando”.

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    A energia de um país não é um bem comum qualquer. É o sangue que corre nas suas veias económicas e sociais. Entregá-la a lógicas puramente financeiras, sem responsabilidade, sem estratégia e sem soberania, é um acto de autodestruição.

    O Estado desertou. Os apagões, agora, são apenas a consequência natural.

  • Brincar às sondagens: entre quotas, ponderações esdrúxulas e deprimentes taxas de resposta

    Brincar às sondagens: entre quotas, ponderações esdrúxulas e deprimentes taxas de resposta


    Vivemos num país onde a arte de brincar às sondagens se tornou, mais do que um passatempo estatístico, um ritual mediático. As redacções, sedentas de manchetes fáceis e previsões eleitoralistas, agarram-se a números que mais parecem tirados de um jogo de bingo do que resultantes de ciência rigorosa. E o exemplo que agora se serve à opinião pública, com pompa académica e chancela universitária, ilustra de forma cristalina como se pode mascarar fragilidade metodológica com o verniz das quotas e das ponderações pós-modernas.

    A recente sondagem para o Expresso e SIC, sob a égide do ICS-ULisboa e do Iscte-IUL, e operacionalizada pela GfK Metris, recolheu a intenção de voto dos portugueses através de entrevistas presenciais em lares, recorrendo ao sistema CAPI e com simulação de voto em urna. Até aqui, tudo parece denotar rigor, mas a substância revela-se bem mais volátil.

    Primeiro, a taxa de resposta: dos 2815 lares elegíveis contactados, apenas 803 entrevistas válidas foram obtidas – ou seja, um anémico 29% de adesão. Isto significa que mais de sete em cada dez portugueses recusaram participar ou não chegaram sequer a concluir a entrevista. E mesmo entre os que inicialmente mostraram disponibilidade, a taxa de cooperação foi de uns escassos 44%. Estes números deviam ser suficientes para qualquer jornalista ou editor colocar em dúvida a representatividade da amostra. Mas não: os dados são engolidos acriticamente, como se estivéssemos perante um oráculo infalível.

    Segundo, o método de selecção dos inquiridos recorreu a quotas, baseando-se numa matriz de Sexo, Idade, Instrução, Região e Habitat. Ora, as quotas, embora úteis em certas circunstâncias, não substituem o valor de uma amostra aleatória rigorosa. São, no fundo, uma forma artificial de impor proporcionalidade a um processo já condicionado pelas recusas massivas. Não se trata de amostragem probabilística, mas sim de uma engenharia demográfica, onde se tenta colar à força uma estrutura populacional a um grupo que, na realidade, é auto-seleccionado.

    Terceiro, e aqui reside o ponto mais alarmante, os resultados foram ponderados com base em frequência de prática religiosa e pertença a sindicatos ou associações profissionais, usando dados do European Social Survey (Ronda 11). Esta opção, que mais parece saída de uma tese académica ansiosa por originalidade, levanta sérias dúvidas. Desde quando a prática religiosa ou a filiação sindical são os eixos centrais da ponderação de intenções de voto em Portugal? E por que não ponderar, como é habitual, por critérios como voto anterior, escolaridade ou rendimentos?

    Este tipo de ponderação é um verdadeiro exercício de alquimia estatística, onde se tenta corrigir uma amostra fraca com factores que pouco ou nada têm a ver com a realidade eleitoral do país. É brincar à estatística com ares de ciência. Acresce que os dados do European Social Survey podem não reflectir com exactidão o estado actual da sociedade portuguesa, servindo como uma muleta desactualizada para sustentar números instáveis.

    Por fim, temos a proverbial margem de erro: anunciam, com ares de certeza, um valor de ±3,5% para a amostra de 803 inquiridos. Mas este valor pressupõe uma amostra aleatória simples, o que manifestamente não é o caso. Com as quotas, as recusas elevadas e as ponderações desviantes, a verdadeira margem de erro – se fosse honestamente calculada – seria substancialmente maior. Só que ninguém o diz. Nem a ficha técnica, nem os responsáveis pela sondagem, muito menos os jornalistas que a publicam com ar grave e títulos bombásticos.

    Tudo isto mostra, mais uma vez, que em Portugal se continua a brincar às sondagens, servindo números com pouca fiabilidade a um público cada vez mais descrente, mas ainda vulnerável à manipulação mediática. O rigor que se exige à ciência é aqui substituído por um jogo de aparências, onde se prefere manter a ficção de que tudo está controlado, tudo é medido, tudo é previsível.

    Enquanto não se fizer uma análise crítica séria e fundamentada a este estado de coisas, aceitando a passividade da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), continuaremos a assistir ao desfile de percentagens ilusórias, sem que ninguém se pergunte: quem é que realmente respondeu? E que valor têm estas respostas?

    Enfim, a brincar também se fazem eleições e se manipula o eleitorado. E depois, caso os resultados não batam certo, culpar-se-á, claro, os eleitores, repetindo-se a ‘brincadeira’ nas eleições seguintes: e vamos ter autárquicas e presidenciais nos próximos meses.

  • A palhaçada, ou a ‘sondagem’ com um erro (escondido) de 9% que dá uma ‘vitória’ ao Chega

    A palhaçada, ou a ‘sondagem’ com um erro (escondido) de 9% que dá uma ‘vitória’ ao Chega


    Se uma empresa de sondagens, a Pitagórica, pode colocar 400 inquiridos a votar “de certeza” em 1.032 ocasiões, distribuindo a respectiva escolha (que deveria ser única) por vários proto-candidatos presidenciais, então qual o problema de uma outra empresa de sondagens, a Aximage, permitir que um inquérito com 116 inquiridos na Área Metropolitana de Lisboa (AML), num universo de 2,5 milhões de eleitores, possa ser usado pelo jornal de um partido (Chega) para dizer que vence a concorrência sem ‘avisar’ que a margem de erro ultrapassa os 9%?

    Num país de fraca numeracia, de má ética e de pior regulação, já tudo vale, mesmo se temos uma Lei das Sondagens, e se grita loas à democracia. A permissividade, que combina imprudência mediática com laxismo regulatório, está a transformar as sondagens de opinião em instrumentos de distorção da realidade política e de manipulação da opinião pública. E daqui a dias vão todos descer a Avenida da Liberdade de cravo na mão e na lapela – e a gritar ‘Fascismo nunca mais!”, em vez de lamentar ‘Democracia nunca mais chega, de verdade!”

    Não é função de um órgão de comunicação social fazer participações, vulgo queixas – mas também não era suposto de tivéssemos necessidade de recorrer mais de duas dezenas de vezes aos tribunais para aceder a documentos públicos. Por vezes, um jornal não serve apenas para dar notícias. E, por isso, perante mais do que passividade geral – eu já digo que é conluio –, apresentei hoje uma nova queixa formal na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) contra a Aximage e o jornal Folha Nacional por divulgarem resultados regionais com base numa amostra estatisticamente irrelevante, sem sequer qualquer nota de salvaguarda sobre a elevada margem de erro. Uma margem de erro de 9%, significa, por exemplo, que um partido com 2% das intenções de voto (ou seja, duas pessoas na tal amostra de 116) pode ter, afinal, entre 0% e 11%. Acham isto uma sondagem?

    A ‘notícia’ da Folha Nacional – que, apesar de contar com mais de 90% de ‘takes’ da Lusa, publicada ainda uns artigos não assinados, e é considerado pela ERC um jornal – dá o CHEGA como vencedor destacado na AML, com 28,8% das intenções de voto, apoiando-se em apenas 116 inquiridos. Com esta quantidade, uma oscilação de meia dúzia de respostas bastaria para alterar radicalmente esse cenário.

    Com uma margem de erro superior a 9%, os três partidos principais — CHEGA, AD e PS — estão tecnicamente empatados. No entanto, o jornal, omitindo este dado essencial, converteu uma incerteza estatística numa certeza política, sendo aproveitada por André Ventura e os seus correligionários para fazerem propaganda. Uma sondagem política não pode ser usada desta forma – nem deveria ser permitido que um órgão de comunicação social detido por um partido a pudesse encomendar e divulgar.

    Este caso não é único. Junta-se à sondagem presidencial da Pitagórica, difundida em Janeiro pela TVI, CNN Portugal, TSF, JN e O Jogo, e alvo de anterior queixa apresentada também pelo PÁGINA UM. Nessa sondagem, os 400 inquiridos manifestaram voto “de certeza” em múltiplos candidatos, resultando numa soma absurda de 1.032 intenções firmes. Cada pessoa votou, em média, em 2,58 candidatos — um cenário aritmeticamente impossível em eleições reais. E, apesar dessa aberração metodológica, a ERC optou por ilibar todos os envolvidos, não detectando qualquer violação legal ou deontológica. Uma indigência estatística e uma irresponsabilidade dos membros do Conselho Regulador da ERC.

     Esta decisão tem agora consequências directas. Se o caso da Pitagórica, bastante grave, passou sem censura, então como poderá a ERC justificar uma posição diferente relativamente à sondagem da Aximage? A entidade reguladora ficará presa ao seu próprio precedente? Ou reconhece que errou na primeira deliberação? Ou aceita como legítima a degradação progressiva das práticas estatísticas no espaço mediático português?

    Neste contexto, é fundamental alargar o foco da crítica. As empresas de
    sondagens não são simples prestadoras de serviços técnicos isentas de
    responsabilidade. Quando entregam os seus estudos a órgãos de
    comunicação social — seja a grandes grupos generalistas, seja a jornais ideologicamente associados a partidos — sabem perfeitamente qual será o uso mediático dos seus dados. Não podem, pois, lavar as mãos quanto às interpretações que facilitam ou silenciosamente legitimam. Ao permitirem extrapolações abusivas sem esclarecimentos públicos, participam na distorção informativa que dizem querer evitar.

    Mais preocupante ainda é o facto de não existirem, em Portugal,
    mecanismos reais de verificação independente das sondagens. A ERC não exige acesso aos microdados, não fiscaliza a realização efectiva das
    entrevistas, não valida a correspondência entre os métodos declarados e os processos seguidos. Uma empresa, na prática, pode construir uma
    sondagem apenas com folhas Excel, ajustar os valores a um cenário
    plausível, redigir uma ficha técnica formalmente correcta — e ninguém
    lhe pedirá provas.

    Neste quadro de opacidade e permissividade, as sondagens correm o risco de se tornarem peças ficcionais com aparência de ciência. Gráficos
    coloridos, percentagens com casas decimais e manchetes definitivas
    constroem realidades que nem sempre correspondem ao país que os
    eleitores conhecem — mas que influenciam percepções, moldam debates e até definem votos.

    Entendo que a seriedade democrática exige correcção urgente deste estado de coisas. As sondagens são ferramentas legítimas e importantes, mas a sua utilidade pública depende do rigor com que são feitas, da transparência com que são apresentadas e da responsabilidade com que são interpretadas. Se falharem nestes pontos, deixam de servir a democracia e passam a servir apenas as estratégias de quem quer dominar a narrativa sem passar pelo incómodo da verdade.

  • ERC: o descrédito de um regulador que fomenta o pântano

    ERC: o descrédito de um regulador que fomenta o pântano


    Na semana passada, escrevi à presidente do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), Helena Sousa, para lhe comunicar algo que se impunha há muito: o PÁGINA UM não lhe reconhece qualquer idoneidade ou capacidade técnica para avaliar o nosso rigor informativo.

    Esta decisão não foi tomada de ânimo leve. Nasceu do acumular de deliberações enviesadas, de juízos sem rigor técnico e de um silêncio cúmplice que, para além de revelar desprezo pela transparência, escancara as portas à promiscuidade entre órgãos de comunicação social e o poder político. Num país onde se pretende defender a liberdade de imprensa, é inaceitável que um regulador criado pela Constituição se comporte como um corpo obscurantista, que recusa dar informação pública e se refugia na opacidade processual e na tibieza institucional.

    Nos processos que conduz, a ERC nem sequer identifica os seus técnicos nem revela os seus pareceres – parece, nisto, o Santo Ofício. Recusa também esclarecer se quem analisa as queixas sobre rigor tem formação científica e técnica para o fazer. Esconde-se por detrás de pareceres anónimos e conclusões nebulosas, sem método nem escrutínio, como se fosse um tribunal de excepção para proteger os poderosos e castigar os incómodos. Não se sabe sequer se o Conselho Regulador decide em sentido contrário dos pareceres dos técnicos da ERC com o objectivo político de livrar os ‘amigos’ ou condenar os ‘inimigos’.

    A minha crítica à ERC não é uma negação da regulação – pelo contrário. Sempre defendi que o Estado deve intervir para corrigir falhas de mercado e travar abusos das empresas privadas. Mas um regulador que age por omissão, como a ERC, que se escusa a exercer os seus poderes de forma transparente e que, pior ainda, tenta ludibriar juízes administrativos, não merece senão o meu mais firme repúdio.

    Em 2022, o PÁGINA UM teve de recorrer ao Tribunal Administrativo para obter documentos que a ERC se recusava a facultar. Foi uma vergonha ter de apresentar uma intimação contra a entidade que deveria ser a guardiã e defensora do jornalismo livre e com acesso privilegiado às fontes de informação. No mês passado, voltámos a ser obrigados a recorrer ao Tribunal Administrativo. Desta vez, estão em causa quatro processos distintos, entre os quais os negócios da Global Media e as contas da IURD. Num desses processos, os advogados da ERC tiveram o desplante de tentar enganar o juiz, manipulando contagens de prazos para ganhar na secretaria aquilo que arriscam perder em tribunal: o direito (a que se arrogam) a serem obscuros. Sejamos claros: a ERC, actualmente, com a liderança de Helena Sousa, não é já uma instituição reguladora; estamos a falar de um bastião da opacidade.

    Helena Sousa, presidente do Conselho Regulador da ERC.

    E o que dizer da indigência estatística? Há poucas semanas, a ERC considerou que uma sondagem da Pitagórica para a TVI e CNN Portugal, em que 400 inquiridos votavam 1.032 vezes com toda a certeza, não tinha qualquer problema. Perante este nível de incompetência – ou cumplicidade – não posso, nem devo, aceitar que um conselho regulador com este grau de inconsciência se arrogue autoridade moral ou técnica para avaliar o PÁGINA UM.

    É por isso que já deixei claro à ERC: o PÁGINA UM continuará a cumprir, com rigor escrupuloso, a Lei da Imprensa e a Lei da Transparência dos Media. Nada mais, até porque as deliberações sobre rigor informativo não passam de bitaites que nem sequer podem ser contestados em tribunal, exactamente por isso: são meros bitaites – e de gente pouco séria, além disso. O PÁGINA UM não se prestará a participar em fantochadas regulatórias que têm por único fim silenciar o único jornal que ousa expor as falhas gravíssimas da própria ERC.

    Posto isto, sinto-me mais liberto para manter as críticas e a ‘vigilância’ sobre a acção da ERC, que é, hoje, um dos principais responsáveis pelo pântano de credibilidade da imprensa nacional – tanto por acção como por omissão. E o caso que publicamos hoje é a mais gritante demonstração disso.

    Em Lagoa, uma autarquia socialista celebrou, desde 2019, contratos no valor de quase meio milhão de euros com uma empresa de media, exigindo explicitamente, em alguns contratos, a realização de entrevistas e cobertura de eventos da autarquia. Esta exigência é escrita. Há cláusulas que estipulam tiragens, conteúdos, periodicidade, presença no terreno, reuniões quinzenais com a autarquia e relatórios de desempenho. Isto não é um contrato publicitário: é um protocolo de subordinação editorial. E o jornal em causa, o Lagoa Informa, é dirigido por um jornalista com carteira profissional, Rui Santos Pires, que acumula as funções de gerente e assinante dos contratos.

    Lagoa Informa: um jornal que aceita fazer fretes políticos a troco de contratos de publicidadade. E a ERC não vê ilegalidade.

    A ERC esteve dois anos a analisar um contrato de 2023 que mostra a institucionalização do frete político feito por um órgão de comunicação social com recurso a dinheiros públicos. Concluiu que não havia ilegalidades, aceitou as desculpas esfarrapadas da empresa e emitiu uma recomendação inócua: que se garantisse, no futuro, a separação entre publicidade e jornalismo. Dez dias depois dessa recomendação, a Pressroma assinou novo contrato com cláusulas ainda mais abusivas. E, só porque o PÁGINA UM denunciou o caso, a ERC lá anunciou que vai abrir “um procedimento de averiguações”. Só agora. Só porque os obrigámos. Só porque a revelação lhe é demasiado vergonhosa. Uma vergonha que se junta a mais actos vergonhosos.

    Aquilo que está aqui em causa é gravíssimo. A ERC está a institucionalizar o jornalismo encomendado. Está a declarar, com todas as letras, que não há problema algum que jornalistas prestem serviços comerciais ou políticos desde que misturem um pouco de publicidade num qualquer contrato. O recado foi dado: está aberta a temporada de caça por parte de empresas de media com espírito de agência de comunicação, usando a credibilidade, cada vez menor, dos jornalistas. E depois finge-se que há liberdade editorial.

    O Lagoa Informa é apenas a ponta do icebergue de uma imprensa onde já há pouco jornalismo puro e já muita veneração paga. E isso, para a ERC, não merece sequer um puxão de orelhas.

    Helena Sousa, Pedro Correia Gonçalves, Carla Martins, Telmo Gonçalves e Rita Rola, membros do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

    Perante este estado de coisas, o PÁGINA UM continuará a fazer aquilo que sempre fez, mesmo com as limitações inerentes ao nosso modelo de negócio (acesso livre com donativos): cumprir a lei, defender o jornalismo independente e expor o que muitos preferem esconder. E, nesta linha, não fingiremos respeito por quem não o merece. O PÁGINA UM é transparente, autónomo e responsável perante os seus leitores – não perante um conselho capturado pela mediocridade e pela conveniência política.

    No meio do caos, um desejo e uma esperança: Portugal precisa de uma ERC diferente. Uma entidade que defenda a liberdade de imprensa, e não que a subverta. Uma entidade que puna a promiscuidade, e não que a legitime, porque acha que, no curto prazo, salva os ‘amigos’ aflitos, mesmop que traia e aniquile a credibilidade do jornalismo. Mais do que nunca, precisamos de uma entidade que regule com coragem e competência – não com compadrios e inépcia.

  • Montenegro e as ‘fake news’: a construção da impunidade

    Montenegro e as ‘fake news’: a construção da impunidade


    Luís Montenegro continua a esforçar-se, com notável insistência, por alimentar os piores tiques do trumpismo — mas sem o folclore nem o carisma. A cada nova revelação de dúvidas sobre questões essenciais das suas finanças e das finanças do PSD, atira-se à imprensa como quem cospe no espelho, acusando jornalistas de espalharem falsidades e exigindo-lhes “rigor”, ao mesmo tempo que tropeça em contradições e se esquece de que a verdade factual é sempre a primeira vítima da arrogância política. E usa a própria imprensa para lançar essas acusações — que as divulga, caindo no engodo.

    Desde que o caso Spinumviva — nome digno de um thriller político, mas enraizado nas práticas rotineiras do compadrio à portuguesa — fez cair o Governo, e Montenegro (e o PSD) se manteve disponível para ir novamente a eleições, torna-se evidente o que está em causa: deslegitimar a crítica e normalizar a impunidade.

    Quando Montenegro acusa jornais como o Expresso e o Correio da Manhã de difundirem “manipulações” e “mentiras”, não está apenas a defender-se. Está a lançar as bases para um novo modelo de governação em Portugal: aquele em que um governante se transformará em vítima perpétua, em mártir da verdade, em paladino de uma integridade assente na ocultação de relações, interesses e amizades bem posicionadas. Montenegro não é ingénuo — pelo contrário, é hábil. E aquilo que se tem visto nesta campanha é a preparação subtil de um escudo contra o escrutínio, onde qualquer denúncia de favorecimento, qualquer ligação embaraçosa, qualquer conta bancária mal esclarecida será imediatamente rotulada de “fake news”, ao estilo de Donald Trump, mas com sotaque de Vila Real e residência em Espinho.

    Estes episódios não podem ser vistos como um fait-divers de campanha. É um aviso, e dos fortes. Se Montenegro conseguir transformar a sua condição de suspeito recorrente em trunfo eleitoral, se for recompensado nas urnas não apesar das suspeitas, mas precisamente por se apresentar como o homem que enfrenta “a comunicação social”, então teremos dado um passo decisivo na erosão do jornalismo como instância de vigilância do poder. O primeiro-ministro que se queixa de perseguição não é novo, mas aquilo que é novo — e inquietante — é o grau de naturalidade com que o faz, ao mesmo tempo que se mostra incapaz de responder objectivamente às questões que lhe são colocadas.

    Na democracia, o escrutínio não é perseguição. A imprensa livre não é inimiga do povo. E uma democracia adulta não aceita que o chefe do Governo insinue que só ele é alvo, que só ele é injustiçado, que tudo à sua volta é “simplesmente falso”. Essa pose de santidade laica é, na verdade, a máscara da opacidade.

    É também revelador — e grave — que Montenegro tenha desvalorizado o pedido de esclarecimentos sobre as suas contas bancárias, afirmando tratar-se de “uma prestação de esclarecimentos banal”. Banal? Quando um candidato a primeiro-ministro é instado a explicar-se sobre movimentos bancários e possíveis conflitos de interesse, isso nunca pode ser banal. Só num país habituado à opacidade, onde os favores e as avenças se confundem com “relações familiares”, é que um político pode declarar, com impunidade, que essas ligações nada têm que ver consigo. E ainda ter a audácia de inverter os papéis: transformar-se de arguido mediático em acusador dos media.

    O padrão é claro: descredibilizar o mensageiro para desviar do conteúdo. A fórmula resulta — e Montenegro sabe-o. É por isso que insiste em falar de uma “pressão especial” sobre si. Ora, essa pressão não é mais do que o funcionamento normal de uma imprensa que ainda não perdeu por completo a vergonha.

    Mas, se Montenegro conseguir traduzir o seu vitimismo em votos, se vier a chefiar um novo Governo, então essa “pressão” passará a ser um incómodo a eliminar. E não tenhamos ilusões: será com uma sucessão de pequenas mudanças, com nomeações cirúrgicas, orçamentos cortados, pressões discretas sobre directores de redacção e legislação com nomes pomposos como “transparência da informação” que a liberdade de imprensa será laminada.

    Estamos perante uma verdadeira ameaça: não será a gritaria pontual contra um jornalista ou uma reportagem, mas a construção de um ecossistema de governação onde só há uma verdade — a do primeiro-ministro — e tudo o resto é ruído. O caso Spinumviva foi o primeiro sinal. O ataque aos jornais foi o segundo. O terceiro será o silêncio, se os eleitores não perceberem o que está em causa.

    Neste Portugal cada vez mais habituado à amnésia e ao medo de desagradar, Montenegro, o ainda primeiro-ministro português, aparece como o rosto sereno de um futuro inquietante. O seu sorriso é educado, o seu tom é moderado, mas o seu projecto é claro: fazer da impunidade um direito adquirido pelo voto. E isso, se acontecer, será a maior derrota da democracia portuguesa desde que temos memória.

  • Sondagens (ou palermices) no país da manipulação de massas

    Sondagens (ou palermices) no país da manipulação de massas


    Quando se afirma que uma sondagem foi feita com “rigor científico”, geralmente associada a uma reduzida margem de erro, espera-se, no mínimo, que esse rigor não se dissolva ao primeiro olhar sobre a ficha técnica. Mas o que o Público, a RTP e a Antena 1 aceitaram publicar por estes dias — com chancela ‘científica’ da Universidade Católica, via CESOP — não é uma sondagem: é uma palermice mascarada de estatística.

    E pior: é uma palermice perigosa, porque serve para manipular a opinião pública sob o verniz da respeitabilidade académica. Com a bênção silenciosa da ERC, essa entidade reguladora que há muito perdeu a utilidade e hoje apenas funciona como um armazém de pareceres burocráticos, incapaz de defender os cidadãos contra a intoxicação informativa.

    Comecemos pelo número mais escandaloso: a taxa de resposta desta suposta sondagem (que, como todas as outras nunca são validadas externamente) foi de 29%. Isto significa, de forma crua, que sete em cada dez pessoas recusaram participar na sondagem. Foram contactadas 4.177 pessoas, mas só 1.206 aceitaram responder. E, ainda assim, esses 1.206 são tratados como se representassem fielmente os mais de nove milhões de eleitores portugueses. Há aqui dois problemas gravíssimos que deviam invalidar qualquer pretensão de fiabilidade desta sondagem:

    1. Auto-selecção dos inquiridos: quem responde não é uma amostra aleatória pura, mas sim quem quis responder. Esse grupo tende a ser mais politizado, mais disponível e, muitas vezes, mais alinhado com os meios de comunicação que encomendam a sondagem. Há uma diferença enorme entre uma amostra aleatória de 1.206 pessoas com alta taxa de resposta e uma amostra de 1.206 extraída de um universo onde 71% recusaram participar. A Universidade Católica sabe isso; os directores dos órgãos de comunicação social talvez -mas todos participam na farsa que alimentará notícias, comentários e entrevistas até à próxima fraude.

    2. Distância entre método e realidade eleitoral: por mais que os ‘produtores’ destas ‘sondagens’ se defendam com “ponderações estatísticas”, o facto é que não se pode corrigir um viés de auto-selecção se não se conhece sequer o perfil dos que não responderam. A ilusão de representatividade criada pelas chamadas ponderações é apenas isso: uma ilusão. Ou, se quisermos ser mais justos, um embuste.

    Que uma universidade alimente este tipo de práticas já seria, por si só, um motivo de vergonha académica. Que meios de comunicação social com responsabilidades públicas, como a RTP, aceitem difundir os resultados como se fossem uma fotografia fiável do país — isso, sim, é escandaloso. E que a ERC assista e abençoe esta prática de manipulação de massas num regime democrático é uma prova da sua absoluta inutilidade e de uma indigência que mina a democracia. A ERC, que devia zelar pela integridade da informação difundida, transforma-se, com a sua cumplicidade, numa aliada objectiva da pura desinformação.

    Aliás, esta não é uma falha isolada. Há muito que os chamados estudos de opinião servem mais para formar percepções do que para retratar realidades. O objectivo não é saber em quem os portugueses tencionam votar, mas sim condicionar o voto dos indecisos com o argumento da viabilidade e da “preferência nacional”, construídas em cima de amostras frágeis e enviesadas.

    Não basta publicar a margem de erro (aqui 2,8%, como se isso tivesse algum valor real com 71% de não respondentes). A verdadeira margem de erro é outra: a do bom senso que se perdeu.

    Estamos perante um caso claro de abuso da credibilidade académica e jornalística para alimentar um ritual estatístico vazio. E, assim, quando o ritual substitui o rigor, a ciência cede o lugar à propaganda.

    Se ainda há quem leve estas ‘sondagens’ a sério, só pode ser porque prefere viver numa realidade fabricada a aceitar a verdade nua: a maioria dos portugueses recusa participar nestes exercícios porque já percebe, por instinto, que são uma fraude. E essa é, por ironia, a única sondagem verdadeiramente representativa: a cada vez menor taxa de respostas em sondagens.

    Há-de surgir o dia em que ninguém atenderá um telefone de uma empresa de sondagens – mas, lamentavelmente, serão sempre apresentados ‘resultados’ com rigor. Nem que se invente. Há gente para tudo, sobretudo quando a numeracia em Portugal ainda é pior do que a literacia.

  • Contratos Públicos: quando o conluio começa a ser a regra e a decência é a excepção

    Contratos Públicos: quando o conluio começa a ser a regra e a decência é a excepção


    A Operação Pactum, conduzida pela Polícia Judiciária e que envolve suspeitas de conluio e cartelização na aquisição de material informático por várias entidades públicas, revela — mais uma vez — que a bandalheira na contratação pública em Portugal não é um acidente, é um sistema. Em causa estarão, neste processo, vícios procedimentais com um valor acumulado “não inferior a 17 milhões de euros”, mas o que realmente interessa vai muito além de uma cifra avultada: está em causa o próprio sentido da legalidade e do interesse público.

    Ao longo dos últimos anos, o PÁGINA UM tem destacado, com persistência jornalística e rigor documental, largas dezenas de contratos públicos em que o abuso, a opacidade, a promiscuidade e, por vezes, a ilegalidade são práticas aparentemente correntes, dir-se-ia corriqueiras. Não se trata de meros erros administrativos ou de desatenções burocráticas.

    gray and black laptop computer on surface

    Estamos a falar de estratégias recorrentes para contornar a lei e favorecer determinadas empresas, das pequenas aos grupos económicos — muitas vezes os mesmos, sobretudo em sectores sensíveis e de negócios apetecíveis como as tecnologias de informação, a alimentação (escolar e hospitalar), a segurança privada, a limpeza ou os transportes escolares e de doentes. E sempre com o mesmo pano de fundo: o assalto ao erário público com a conivência dos decisores políticos e administrativos, e a passividade de reguladores e fiscalizadores, com o Tribunal de Contas à cabeça.

    Vejamos alguns dos esquemas que se tornaram rotineiros e que o PÁGINA UM tem vindo a denunciar:

    a) Ajustes directos por “urgência imperiosa”, invocada a pretexto de atrasos provocados pelas próprias entidades adjudicantes, ou em prazos que de urgentes nada têm. A “urgência” é frequentemente fabricada para contornar os concursos públicos.

    b) Concursos públicos vazios ou com exclusão total dos concorrentes, seguidos de ajustes directos previamente combinados. Um clássico da concertação: quem ganha o ajuste directo raramente concorre — sabe de antemão que a concorrência será anulada.

    c) Adjudicações sucessivas à mesma empresa, por ajuste directo, sem que haja qualquer reacção da concorrência ou do mercado. Uma evidência de cartelização consentida. Em muitos casos, os ajustes directos ocorrem após terminar a vigência de um contrato após concurso público, não sendo sequer sensato que não se tenha lançado novo concurso público para evitar ajustes directos.

    d) Empresas que impugnam concursos que não venceram, mas que, enquanto aguardam decisão judicial, continuam a prestar o serviço por ajuste directo, mantendo de facto o monopólio.
    e) Consultoras e sociedades de advogados contratadas por ajuste directo, com a desculpa de que é “impossível definir critérios objectivos” para concurso, quando os serviços são perfeitamente quantificáveis. Escolhas pessoais travestidas de necessidade técnica.

    f) Contratações durante pandemia, muitas feitas sem cadernos de encargos, sem contratos escritos e muitas vezes com registo tardio no Portal Base — como no caso do Hospital de Braga, que demorou mais de dois anos a registar contratos de centenas de milhares de euros. Estou ainda aguardar que o Ministério Público fala buscas ao Hospital de Braga, cuja gestão durante a pandemia foi um verdadeiro ‘caso de polícia’, mas longe de ser o único.

    Perante este panorama, a única coisa verdadeiramente surpreendente é a escassez de buscas policiais, detenções e condenações. Os sinais de prevaricação e conluio são tantos e, por vezes, tão descarados que se justificaria, aqui sim, uma task-force permanente da Justiça só para a contratação pública. Há cerca de ano e meio, encaminhei uma participação com mais de duas dezenas de casos suspeitos para o Tribunal de Contas. Foi um teste. Não houve qualquer consequência visível. Não é só o sistema que está capturado: é também a fiscalização que parece paralisada.

    Torna-se assim imperioso adoptar uma política de mão-de-ferro na contratação pública, desde os ajustes directos de 19.999,99 euros (um ‘número mágico’ para entregar uns cobres aos ‘amigos do café’ sem concorrência) até aos contratos de milhões com cadernos de encargos a preceito ou a possibilidade de reajustes de preço. Isso significa, por exemplo:

    Transparência absoluta: contratos e cadernos de encargos publicados atempadamente, com prazos escrupulosamente cumpridos.

    Cumprimento rigoroso da lei: aplicação inflexível do Código dos Contratos Públicos e sanções reais para quem o violar.

    Responsabilização efectiva: penalizações monetárias a gestores públicos que façam adjudicações irregulares e demissões de responsáveis políticos sempre que se detetem práticas sistemáticas de atropelo à legalidade.

    Punição dissuasora de conluios e cartelizações: multas pesadas e, acima de tudo, exclusão temporária ou definitiva de empresas prevaricadoras da contratação pública.

    Mas o combate à corrupção não se faz apenas pela punição: faz-se também pela correcção das falhas de mercado. Quando sectores inteiros se viciam em práticas de cartelização e de ajustezinhos directos combinados, cabe ao Estado intervir com soluções públicas.

    Se, por exemplo, os concursos para fornecimento de alimentação escolar, de limpeza, de segurança privada ou de transportes continuam sistematicamente vazios — para depois surgir uma confortável adjudicação directa ao mesmo do costume —, talvez seja altura de o Estado ameaçar assumir directamente esses serviços, com empresas públicas dimensionadas e fiscalizadas. Não por ideologia, mas por defesa do interesse público e da concorrência verdadeira. Só o simples anúncio levaria a uma moralização de muitos sectores que vivem de esquemas em contratos públicos.

    É tempo de dizer basta. A Operação Pactum está muito longe de ser um caso isolado: é apenas a prova de que há muito tempo a excepção deixou de ser a corrupção — ela é, hoje, a norma. A decência, essa, é que se tornou rara.