Quando Mohammed veio ao mundo, no beco do Surra, em Al-Hamma, governava Al-Hushbuna o Califa Saladino. Durante a reza da aurora, antes de começar o dia de trabalho, o profeta Arafat anunciou a boa-nova.
Está para nascer um cavalo que terá o dom de falar. Será hoje, quando o sol estiver a pino.
Os devotos, ajoelhados nos tapetes, soltaram um coro de inxalás. A profecia cumpriu-se e assim veio ao mundo Mohammed, no exacto momento do sol atingir o zénite.
O parto decorreu sem embaraços e pouco depois de ver a luz do dia já Mohammed dava pinotes e relinchava alto e bom-som com a particularidade de a cada saltinho dizer allahu akbar.
O meu nome é Sal-Azar e assisti a tudo, pois morava nas redondezas. A fama de Mohammed depressa chegou aos ouvidos do Califa e este ordenou a sua incorporação nos estábulos da Alcáçova. Coube-me a tarefa de escrever a história de Mohammed, sendo eu o responsável pelas narrativas de tudo o que se passava e se passa em Al-Hushbuna. Tudo teria decorrido sem grandes sobressaltos na vida de Mohammed não fora haver uma revolta no ano de 1492, que para os infiéis dominados era o ano de 2052.
Morava algures na terra de Chelas um agitador infiel de seu nome Geraldes conhecido por furar pneus com uma navalha afiada e pintar nas paredes a figura de um santo padroeiro com cara de anjo, que, segundo os seus seguidores, viria destronar os muçulmanos. Saladino, um homem supersticioso, temia estes rebeldes e pusera a cabeça de Geraldes a prémio. Encarregara o seu mais temível general, Ali, o Africano, de varrer a cidade a pente fino e procurar o infame Geraldes e a sua milícia. Noite e dia, montado em Mohammed, Ali vasculhava cada recanto de Chelas sem nunca lograr dar com Geraldes que devia ser esperto o suficiente para se disfarçar de árabe e andar por aí de barba comprida e jelaba.
Foi pois num dia como outro qualquer que Mohammed cheirou o esturro ao dar com um tuk tuk abandonado numa viela de Al-Hamma. Diz-se, pois eu não vi e só o soube por me terem contado as gentes que sobreviveram para contar, que o tuk tuk estava armadilhado e não fora as narinas de Mohammed serem prodigiosas, e ter este a capacidade de falar, e nem ele, nem o general Ali teriam escapado a esse dia e à explosão que se seguiu.
Saladino viu naquele incidente um motivo para reforçar as suas tropas e condecorar Mohammed pela sua façanha. Desde então quando os guias passam nos seus tuk tuks contam aos estrangeiros que nos visitam a razão de haver uma estátua de um cavalo preto como a fuligem num lugar de destaque, que é a praça mais bela de Al-Hamma, junto à velha cisterna e à amena enseada.
Parece que a história termina por aqui, mas muitas coisas se sucederam desde então. Mohammed está vivo, tal como eu Sal-Azar, e Geraldes continua a monte.
Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)
As ilustrações foram elaboradas com recurso a inteligência artificial.
Foi preciso descer, ou lateralizar, até à Linha de Cascais para confirmar que nem tudo no Estoril são mansões com vista para o mar — até há um estádio que, enfim, me fez recuar aos tempos em que assistia a jogos do Moitense na terceira ou quarta divisão dos distritais de Aveiro, nos anos 80. Exagero. Aquilo era um pelado, nem bancadas havia, e o mais entusiasmante era ver as cacetadas nas canelas e a ousadia dos guarda-redes a lançarem-se e a esfolarem-se todos na pedra solta.
Mas enfim, a minha visita ao estádio do Estoril-Praia deu para saber duas coisas. A primeira foi que, pobre de mim, sou um desgraçado frequentador da Varanda da Luz — e, nos últimos tempos, com passagem pela Varanda do Varandas, uma ida ao Dragão, outra ao Montjuïc, em Barcelona, e uma outra (que terá repetição este ano) ao Jamor. Portanto, sou frequentador de estádios com História, ignorando as vicissitudes dos pequenos clubes, mesmo em regiões onde o metro quadrado de construção ultrapassa, em certos sítios, os dez mil euros.
Por outro lado, fiquei finalmente a saber — mesmo se pouco — quem foi o António Coimbra da Mota. Pesquisei na Internet enquanto as equipas ainda aqueciam. Consta que terá sido um benemérito, cujos herdeiros devem estar agora a lamentar a doação — ou, pelo menos, a ponderar se o nome não merecia um estádio menos propenso a servir de abrigo ao vento e às sevícias meteorológicas do Guincho. Brincadeira, claro.
Não me posso queixar da experiência. A começar por pensar, ingénuo de mim, que seria rápida e fácil a viagem até ao estádio: comboio até ao Monte Estoril e depois um breve passeio até ao recinto. Porém, o progresso em Portugal é daquelas coisas que complicam sempre a vida a quem tem planos simples — e, assim sendo, a modernização da Linha de Cascais, mais a expansão da rede de metro, levou à suspensão dos comboios entre o Cais do Sodré e Algés durante este fim-de-semana. Resultado: acabei por recorrer aos serviços ‘uberianos’ da Elisabete — e lá fiquei às portas do estádio, bem a tempo de sacar a acreditação e entrar logo ali, com passagem pelo relvado para uma fotografia que, aliás, nunca consegui tirar na Luz.
Do jogo, verdadeiramente, pouco há a dizer. Ou melhor: o essencial foi dito pelo Tiago Franco. Acrescento, ainda assim, que nesta senda final de um dos campeonatos mais renhidos de que há memória (pelo menos desde que a memória dos benfiquistas se reduz à última jornada), procuro também disfarçar o meu nervosismo escrevendo sobre tudo e sobre nada.
Vai-se, pois, destacando a arquitectura do estádio, adequado a adeptos à moda antiga, que aguentam as intempéries da chuva, do sol e do vento — porque está quase tudo destapado, ao contrário do que sucede com os jornalistas da imprensa escrita, enclausurados numa espécie de aquário envidraçado que, embora os proteja dos elementos, também os impede de sentir o ambiente dos adeptos. De resto, quase todos benfiquistas. E como se não bastasse, ficam acantonados na ala norte, o que significa que só vêem bem um dos ataques.
No caso, porém, a sorte protegeu os envidraçados: tendo o jogo terminado com uma vitória por 2-1 do Benfica, e tendo o Estoril marcado na segunda parte, muito bem se viram todos os golos, mais a defesa salvífica de um penálti pelo ucraniano Trubin, que começa a ganhar lugar no coração dos adeptos.
Não foi uma vitória fácil — no Dragão, há um mês, foi canja. Aliás, foi um daqueles triunfos que envelhece os treinadores cinco anos em noventa minutos e que obriga os adeptos a roerem as unhas até ao sabugo. Ao intervalo, tudo parecia encaminhado para mais um jogo de gestão: primeiro golo, de Aursnes, saído dos manuais de boas práticas da UEFA; o segundo golo, em mais uma bola parada — onde, milagrosamente, agora o Benfica começa a parecer equipa grande —, deu uma falsa sensação de tranquilidade. Mas, como já se vai tornando hábito, a segunda parte trouxe o lado B: o recuo inexplicável, o golo do Estoril e a sensação de que o Benfica joga contra o cronómetro, contra si próprio e contra a inevitabilidade da ansiedade.
O Estoril, que é equipa bem orientada e com vontade de fazer mossa, cresceu. Os adeptos — ou, pelo menos, eu — sofrem, imploram que o tempo passe, e há sempre aquela sensação de que o árbitro irá dar sete, oito ou nove minutos de compensação. Mas tudo terminou em bem.
Para a semana, é o jogo do título. É isso que se diz. Mas antes do jogo do título, é preciso que esta equipa perceba que ainda não ganhou nada. Que não basta marcar dois golos em trinta minutos e depois entregar o controlo do jogo como se estivesse tudo decidido. O futebol é implacável para quem dorme cedo demais. E o campeonato português tem essa virtude: castiga os distraídos e glorifica os persistentes.
Por esta altura do campeonato, fazemos todos contas para que o derby chegue. Até lá — pelo menos na parte que me toca — desejo apenas jornadas calmas e com um onze que não trema das pernas.
O mistério de Prestianni e Schjelderup continua, sem que se perceba, a olho nu, como é que, na ausência de Di María, Amdouni é a opção mais natural.
A primeira parte não teve grande história, com o Benfica a dominar em ritmo de treino. O primeiro golo é de manual, com metade da equipa a jogar ao primeiro toque. O segundo começa a tornar-se um clássico no aproveitamento das bolas paradas. É particularmente estimulante perceber isso quando, ainda há poucos meses, a maior parte destes jogadores, com Roger Schmidt, não sabia que um canto ou um livre podiam ser ocasiões de golo.
Na segunda parte, o Estoril — uma das boas equipas do campeonato — veio com outra vontade e subiu as linhas. O penálti apareceu com alguma naturalidade, dada a pressão dos canarinhos. Pensei, ingenuamente, que depois da defesa de Trubin, Bruno Lage trataria de acordar as tropas, mas não: foi exactamente o contrário que aconteceu. O Estoril motivou-se e o Benfica deixou de ter a bola. Aliás, durante dez ou quinze minutos, os encarnados nem sequer passaram do meio-campo, e foi com alguma naturalidade que o golo do Estoril surgiu.
A luta no meio-campo intensificou-se, com muitos lances divididos e Florentino, sozinho, entregue a essa batalha. Samuel Dahl é um corpo estranho na lateral esquerda e lembro-me, na semana passada, de ter escrito que “descansar” Carreras contra o Estoril era um risco. Estes são os jogos que valem campeonato.
Schjelderup não entrou particularmente bem e os últimos vinte minutos foram de sufoco total por parte do Estoril. Lage tem as substituições escritas num papel que todos já conhecemos. Imagino que os treinadores adversários também as antecipem.
O Benfica meteu-se a jeito para ter um daqueles desgostos aos 98 minutos. Sim, porque, num jogo sem grandes paragens, tivemos todos direito a quase uma primeira parte de prolongamento.
Sobraram casos que serão discutidos durante a semana, mas o que se confirma é que, para a semana, o fraquíssimo campeonato português será decidido num jogo que se prevê de faca nos dentes.
Há domingos que começam com bom presságio. E não falo das promessas rotineiras de sol ou da esperança vaga de que as escadas rolantes do metro da Baixa-Chiado estivessem a funcionar — que não estavam. Não, falo de presságios a sério, daqueles que, se o mundo fosse mais honesto, fariam correr tinta nas páginas de astrologia e nas crónicas sérias, aquelas onde se desvendam as tramas tácticas que escapam ao comum dos mortais.
Pois bem, o meu bom presságio começou — pasme-se! — com o relógio a anunciar um atraso de oito minutos. Dir-me-ão que isso é hábito, e é. Mas este atraso, meus caros, foi providencial. Ainda não me instalara na Varanda da Luz, ainda nem resfolegara com o farnel na mão, e já Tomás Araújo punha a bola lá dentro. Golos assim, com a emoção concentrada sem o prévio suplício das primeiras hesitações, são dádivas dos céus, e não fosse eu um homem de pouca fé, acreditaria em milagres.
Mas vamos ao que interessa. Este texto, meus amigos, é um hino à liberdade. Mais uma vez, hoje não preciso de dissertar sobre as incidências e ‘conjunturas’ tácticas — sim, escrevo à antiga, como se deve —, porque para a ‘crónica da bola’, propriamente dita, há quem o faça com sapiência e com talento. O Tiago Franco decifra melhor do que ninguém as movimentações labirínticas do Aursnes, que para mim continua a ser um mistério nórdico, mas um mistério útil, daqueles que não se questionam, apenas se agradecem. Vê-lo ali, careca reluzente, varrendo o meio-campo com a elegância de quem passou a vida entre fiordes e relvados, é uma satisfação estética. Não entendo bem o que ele faz, mas sei que, sempre que joga, o meio-campo adversário se desfaz, como se tivesse sido devastado por uma tempestade escandinava.
E se há coisa que também me deixa em paz com a minha ignorância táctica é saber que temos agora o Pavlidis. Um nome que soa a promessa de golos, e que, sem ofensa, se parece cada vez mais com um Goykeres grego — se é que me entendem. Há quem diga que os gregos nos deram a democracia, a filosofia e o drama, pois então nos deram também o Pavlidis, que marca com a consistência de quem sabe que, no futebol moderno, a beleza está no simples acto de mandar a bola para dentro da baliza. E com ele, meus caros, já não se deve sofrer daquela ansiedade benfiquista do “será que é hoje?”. Não. Com Pavlidis, o golo é uma inevitabilidade que me tranquiliza. Isto sou eu agora a dizer, que já me esqueci do empate a duas bolas contra o Arouca!
Mas a razão maior desta crónica não está apenas nas quatro batatas bem aviadas ainda na primeira parte, e em mais duas na segunda – e deveram ter sido mais. A razão está num triplo contentamento que não posso deixar de partilhar. Primeiro, este prazer de escrever sem me perder em tácticas que me ultrapassam, num jornal onde a liberdade é mais sagrada do que qualquer VAR. Depois, a dita cuja cirurgia ao olho esquerdo, que finalmente me devolveu a capacidade de perceber que, afinal, daqui do alto, a diferença física mais visível entre o Prestianni e o Aursnes é que o primeiro tem cabelo. E, por fim, a cereja no topo da águia: tenho finalmente uma fotografia ao lado da Glória.
Sim, senhoras e senhores, depois de tantos olhares furtivos, de tantas tentativas frustradas, consegui. Um instante imortalizado ao lado da rapina-mor, augúrio maior de vitórias e, quem sabe, de títulos. E, deixem-me dizer, com a Glória ao lado, até me senti mais benfiquista. É como se, por um momento, partilhasse com ela a visão sobre o estádio, sobre a equipa e sobre este destino glorioso que, todos os anos, tentamos agarrar com unhas e dentes.
Enfim, há quem veja no futebol apenas um jogo. Outros vêem tácticas, números, percentagens. Eu, confesso, vejo mais. Vejo histórias. Vejo a liberdade de escrever sem as amarras da estatística. Vejo o Aursnes como um daqueles personagens de banda desenhada que resolve tudo com uma vassoura invisível. Vejo o Pavlidis agora como um semi-deus grego, que desceu à Luz para nos garantir domingos felizes. E vejo, com os meus olhos renovados, cada lance, cada corrida, cada golo, com a nitidez que antes só imaginava.
O próximo jogo aqui não será, certamente, tão descontraído. Em todo o caso, ainda haverá, entretanto, com grande probabilidade, uma varanda especial, ali para os lados da Linha… do Estoril.
Quando a equipa subiu ao relvado, lembrei-me do João Mário na era de Roger Schmidt. Por mais passes para o lado que fizesse, jogava sempre. Em tom de brincadeira, dizia-se, no terceiro anel, que o bom do João deveria ter “nudes” do treinador para o chantagear.
Vou por aqui, mas ao contrário, para tentar compreender a relação entre Schjelderup e o banco. Que mais terá o rapaz de fazer para entrar no onze de forma regular? Terá ele dito que choco frito não presta e ofendido o treinador?
Aos 10 segundos apareceu o primeiro e último susto na baliza de Trubin. António Silva perdeu-se na marcação e Trubin foi abalroado. Decididamente, não consigo compreender como é que António Silva, que tão novo se afirmou, treme constantemente perante qualquer adversário e parece estar sempre a sofrer de um défice de confiança. Terminou aos 2 minutos a entrada forte do AVS e começou um jogo de sentido único.
Numa liga tão desequilibrada como a portuguesa, e com um plantel com tantas opções, custa-me um pouco a perceber como é que o Benfica corre o risco de perder o campeonato até, por curiosidade, com dois pontos perdidos contra este fraquíssimo AVS.
Ochoa passou a primeira parte a fazer o que podia para evitar um descalabro maior, e a linha defensiva dos visitantes, com mérito, ainda conseguiu anular um par de ataques, colocando os avançados benfiquistas repetidamente em posição de fora-de-jogo. Ochoa é um daqueles jogadores conhecidos mundialmente sem que alguma vez, em 20 anos de carreira, tivesse jogado num clube de primeira linha. Mas participou em cinco mundiais, normalmente com algum destaque, na boa selecção do México. Um caso único na liga portuguesa.
Com Pavlidis e Akturkoglu em excelente plano – o turco parece estar de volta à boa forma dos seus primeiros jogos de águia ao peito –, os ataques foram-se sucedendo sem que o AVS conseguisse oferecer qualquer réplica. E deu para tudo. Jogadas de laboratório ao primeiro toque, bolas paradas, dribles, golos anulados. Ao intervalo, a diferença de golos marcados para o Sporting estava reposta.
Belotti entrou para marcar, Otamendi apareceu no poste que mais gosta para cilindrar Ochoa. Num jogo sem grande história, o Benfica não repetiu o erro de esperar pelo resultado como tinha feito contra o Arouca, e tratou de resolver a vida bem cedo.
Neste que será um dos campeonatos com um dos piores campeões de sempre (em termos pontuais), a emoção parece estar garantida até ao fim e, tudo indica, o canto da sereia acontecerá no derby da Luz. Tem a palavra o Sporting, daqui a pouco no Bessa.
Ao contrário do que gostariam os cronistas desportivos, os cabeleireiros de bairro e os comentadores que ainda dizem “à homem”, o cabelo dos jogadores de futebol nunca foi apenas cabelo. Foi sempre mais: disfarce, bandeira, extensão da psique ou mesmo assinatura visual. E, por vezes, tudo isso ao mesmo tempo — dependendo da década, da câmara e da audiência.
Num jogo onde a cabeça serve tanto para pensar como para marcar golos e fazer cortes, o cabelo tornou-se palco, cortejo e camuflagem. Nunca inocente nem neutro. Porque a verdadeira disputa, como se sabe, já não é apenas com os pés. O cabelo a todos os níveis e em qualquer circunstância é sempre importante. Então no futebol…
Durante muito tempo, a cabeça do jogador era um território em teoria disciplinado. Sóbrio, previsível e funcional. Cortes curtos, milimetricamente higiénicos, que cumpriam o código de uma masculinidade silenciosa, sem adornos nem desvios. Era uma ética do cabelo contido — como se uma madeixa fora do lugar pudesse pôr em risco o equilíbrio táctico da equipa.
Bobby Moore, Beckenbauer, Eusébio: homens cuja relação com o cabelo era a de um técnico de equipamentos com a gravidade. Nada se arriscava. O corte era um contrato com a virilidade operária. Nenhum deles diria a palavra “estilo” sem tossir.
Até que veio a explosão laranja — e com ela, o primeiro cabelo verdadeiramente subversivo. A selecção holandesa dos anos 70 levou ao relvado não apenas um novo sistema táctico, mas também uma estética que parecia saída de uma sala de ensaios da Island Records. Cruyff e os seus companheiros jogavam como se filosofassem e penteavam-se como se fossem sair numa capa dos Pink Floyd. A primeira equipa sem duvida a funcionar no colectivo a esse nível.
Cabelos compridos, franjas despreocupadas, um toque de boémia estudada. Ali, a revolução já não se fazia apenas nos pés: fazia-se nas cabeças. Jogar bem e parecer alguém que podia recitar Rimbaud. A franja como armadilha conceptual. Não era apenas uma equipa com cabelos compridos: era uma estética colectiva em revolta contra o formalismo higiénico do futebol europeu da época.
O cabelo era parte do sistema: a fluidez táctica do “futebol total” encontrava eco nessa fluidez dos penteados que pareciam só fazer raccord com as micto revoluções de costumes da época mas o futebol até aí era visto como conservador e paladino dos regimes políticos.
Enquanto os alemães tinham um Paul Breitner arrojado e os ingleses um George Best bêbedo e amalucado mais uma ou outra excepção, a laranja mecânica sem dúvida era também laranja psicadélica. Um movimento capilar táctico que antecedeu em décadas o conceito de branding visual, só que com charme, irreverência e zero gel, influenciando alguns jogadores portugueses como Victor Baptista do Benfica— o do brinco.
Mas talvez o primeiro a fazer do seu cabelo e penteado um freak show tenha sido mesmo George Best, que disse um dia que só tinha estado umas horas sóbrio na vida, mas que foram as piores da vida dele. Uma personagem especial.
Já nos anos 80, o cabelo passou para outro plano. O futebol, transformado por televisões omnipresentes e contratos publicitários obscenos, descobriu o seu lado performativo — e o cabelo, outrora submisso, tornou-se símbolo de identidade mediática. Maradona foi o ícone perfeito dessa transição.
A sua cabeleira não era penteada, era mais desalinhada ainda que certinha no arco. Um animal capilar, indomável, denso, insolente. Aquilo não era cabelo, era um manifesto com pernas e cocaína. Um acto de insubmissão. A cabeça de Maradona jogava o seu próprio jogo: um jogo de desobediência estética, de desordem gloriosa, de caos coreografado com talento de um anjo caído. Em Barcelona era conhecido como Pelusa Maradona.
Os anos 80 foram também a década da franja curta à frente e do cabelo comprido atrás — o famoso mullet, corte de dualidade esquizofrénica. Um penteado de fronteiras instáveis, muito usado por futebolistas sul-americanos e europeus, como se o pescoço tivesse vontade própria. Era o início de uma relação mais marcada entre masculinidade e estilo.
Foi também a era do bigode e cabelo espesso, dos caracóis controlados a custo de mousse e dos cortes geometricamente desalinhados. A televisão a cores e os replays aproximaram as cabeças dos espectadores — e o cabelo teve de reagir, criar presença. Ainda não havia redes sociais, mas já havia replay em câmara lenta. E o penteado tinha de aguentar essa exposição a 24 frames por segundo
A estética era uma mistura de virilidade televisiva e boémia moderada. Os penteados jogavam com alguma irreverência, mas sempre dentro de uma certa contenção: ousavam, mas não colapsavam. Paolo Maldini exibia um cabelo que oscilava entre o guerreiro grego e o galã de novela brasileira. Hugo Sánchez parecia aplicar laca com régua. O futebolista dos 80s ainda era, no fundo, um homem que queria parecer sério — mesmo quando se penteava como cantor de casino.
Havia estilo, mas ainda não havia branding. Havia também vaidade, mas ainda não era bem um produto. O cabelo dos 80s era identidade, não se tratava ainda de mercadoria. A rebeldia vinha do estilo de vida — não do contrato publicitário. Era o último suspiro do jogador como ser humano quase privado.
Depois os anos 90 aceleraram tudo. Aí é que foi um a ver se te avias
O cabelo dos futebolistas tornou-se uma espécie de carnaval forever, laboratório de estilos, catálogo de experiências com final infeliz. O futebolista já não se limitava a marcar presença no jogo: precisava de marcar posição na estética do tempo. Era preciso aparecer. E o cabelo passou a ser prova de vida, território de invenção e, muitas vezes, desastre programado. O ridículo deixou de ser risco: passou a ser método. Nunca a Isabel Queiroz do Vale tivera tanto trabalho, já para não falar do disparo de vendas do shampoo Vidal Sassoon tal a influência que começavam a exercer nos media.
David Beckham elevou o processo capilar à categoria de fenómeno. Cada corte seu era um comunicado oficial. Da cabeça rapada ao moicano simétrico, do loiro platinado à franja calculadamente desalinhada, Beckham transformou a cabeça num outdoor rotativo.
Era jogador, sim, mas também produto e figura de desejo. E o cabelo, respondia às exigências da indústria. A cada corte, um novo contrato com a fama. Beckham percebeu que, no futebol moderno, o talento dura 90 minutos. Mas a imagem, joga um prolongamento permanente. O estilo dandy choninhas estava na moda e agora já eram as séries tipo Marés Vivas a copiar o estilo visual de futebolistas.
David Beckham preconizou e encaixou no termo metrossexual que nem ginjas. Até parece que o termo usado pela primeira vez pelo jornalista Mark Simpson fora inventado para ele. Hoje é um termo pouco usado e substituído por muitos outros possíveis e cada vez mais refinados.
O colombiano Valderrama será talvez o caso mais desafiante dessa estética que eleva os cabelos á condição de actor principal. Manteve sempre ao longo dos anos o mesmo estilo de cabeleira longa encaracolada mas estranha, sobretudo durante os democráticos anos 90. Uma loucura!
Já no novo milénio, o cabelo tornou-se uma linguagem global. Uma mercadoria visual com gramática própria. Cristiano Ronaldo, Neymar, Pogba, Arturo Vidal: cada um com a sua assinatura capilar e com a sua identidade estrategicamente desenhada acompanharam a revolução chamada Internet que finalmente já era acessível a toda a gente. E aí a loucura foi total. Cabelos geometricamente rasgados, dégradés que pareciam obras de engenharia, colorações de laboratório. O futebolista já não era apenas jogador: era influencer, modelo, avatar. O cabelo deixou de ser natural — passou a ser curadoria.
Neste cenário, jogadores africanos e latino-americanos transformaram o cabelo em afirmação cultural e política. Não era apenas estilo: era identidade em alta resolução. Das tranças fluorescentes de Taribo West às cristas neo-tribais de Cuauhtémoc Blanco, os cabelos tornaram-se gestos de presença. Contra a invisibilidade europeia, o excesso como resposta.
O relvado tornou-se espaço de disputa simbólica. Havia uma rebeldia codificada em cada risco, em cada cor, ou em cada provocação capilar. Era também aí que se jogava o jogo — longe da bola, mas perto da história.
Zidane, claro, fez o movimento inverso. A cabeça rapada talvez como recusa muçulmana. Um silêncio estético. Um apagamento deliberado da vaidade. A austeridade como posição ética. Não queria ser visto — queria ser compreendido. Mas foi com essa mesma cabeça, limpa de ornamentos, que desferiu a cabeçada mais célebre da história recente em Materazzi. Como quem diz: o cabelo pode não dizer tudo, mas a cabeça ainda pode falar. Um gesto como ruptura com o sistema da imagem?
E ainda há o caso do Ronaldo Fenómeno — o único jogador que conseguiu fazer do cabelo uma piada internacional.
No Mundial de 2002, deixou na testa um triângulo minúsculo e absurdo, uma provocação sem legenda, uma sabotagem simbólica que desafiou toda a lógica publicitária. Esse penteado ou lá o que era aquilo, não era bonito, nem coerente, muito menos prático e não fez moda. Era simplesmente um acto de nonsense. Um corte que parecia escrito por um surrealista bêbado sem dormir há dias. Um gesto dadaísta emitido em directo para três mil milhões de espectadores. E ninguém esqueceu porque a inutilidade, quando bem feita, é inesquecível. O filósofo espanhol António Escohotado disse um dia antes de morrer há três anos, referindo-se ao Fenómeno que já era presidente do Valladolid, tratar-se sem dúvida de uma das pessoas mais inteligentes que tinha conhecido em vida.
Foi uma surpresa agradável.
Mas se os jogadores jogam com o cabelo, os treinadores jogam com a cabeça — literalmente. A estética do treinador obedece a outra lógica: não quer bem seduzir, quer respeito. O jogador procura desejo, o treinador exige autoridade. E o cabelo, ou a sua ausência, é parte da táctica. Mesmo agora que são cada vez mais novos.
Durante décadas, os treinadores preferiram a sobriedade capilar. Cabeças nuas, calvícies assumidas, riscas laterais discretas. A autoridade era incompatível com a vaidade. Guardiola, Sarri, Spalletti: carecas não por destino, mas por escolha estratégica. A superfície lisa como extensão de um cérebro onde a vaidade foi substituída pela geometria do pressing.
Mourinho, por outro lado, criou um corte blindado à entropia. Cabelo sempre igual, sempre calibrado. Uma espécie de colete táctico para a cabeça — nem uma ponta fora de sítio, como se uma franja desalinhada pudesse pôr em causa a linha de quatro defesas. Muito militar. O seu cabelo diz muito do seu jogo.
Mas nem sempre foi assim.
César Luis Menotti que nos deixou à pouco, foi não só o arquitecto do futebol ofensivo argentino como o primeiro treinador rock’n’roll da história moderna do desporto. E foi campeão do mundo em 1978 com a Argentina, ainda que a jogar em casa e com uma vitória muito suspeita por 6 golos sobre o Peru sob uma ditadura militar de Videla. Mas isso é lance para outro penálti como dizem os filipinos.
No entanto, via-se logo na cabeleira que o menino era diferente.
Longe da austeridade militar dos seus pares, Menotti trazia um cabelo pop-glam ‘setentista’, comprido, ondulado, com entradas dramáticas mas sem abdicar do volume — como se tivesse saído directamente de uma jam session dos Rolling Stones .
Sempre com cigarro na mão, o seu estilo era uma antítese dos treinadores-furriel da época. Mais próximo de um poeta boémio do que de um gestor de balneário, Menotti fez do cabelo uma declaração de princípios. Um elogio à liberdade.
O treinador que também havia sido jogador era magro, alto, desgrenhado e carismático — um pensador político do futebol com aspecto de guitarrista new age. E isso contagiava o jogo. Para ele, o futebol tinha de ser bonito, criativo, desobediente — e o cabelo, claro, dançava essa música.
E há o caso do argentino Passarela que já nos anos 90 proibiu mesmo os jogadores da selecção de ostentarem cortes arrojados e instigava-os a não fazer a barba acreditando que assim a testosterona necessária para ganhar o jogo viria para o relvado sem passar pelo balneário.
Não resultou.
Hoje, com a moda dos transplantes capilares, o cabelo dos jogadores entrou na era da ficção clínica. Não se trata de questões de genética, mas talvez de investimento. Não é bem biologia. É mais tecnologia aplicada ao ego.
De Istambul a Braga, de clínicas discretas a viagens com hashtag, os folículos são comprados como se fossem cláusulas de rescisão. O cabelo tornou-se prótese emocional. Uma negação da finitude. Até a calvície é agora opcional. O jogador moderno tem de ser completo: veloz, adaptável, resiliente e esteticamente confiável até à ultima selfie.
No fundo, o cabelo dos futebolistas é um campo de batalha simbólica, um espelho das ansiedades do tempo. É onde se negoceia o desejo, se encena a masculinidade, se mede o capital de atenção. Porque a cabeça, no futebol e na vida, está sempre em jogo. Quem controla o cabelo, controla o cliquedas câmaras. Quem domina a imagem, escreve o relato.
Mas estranhamente o cabelo dos futebolistas nos últimos anos voltou a parecer-se com o dos primórdios. São quase todos iguais, rapado na zona da orelhas e do pescoço e depois um cabelo curto normalmente com risco ao lado a dar o volume. Eu diria, militarizado. Estranho. Provavelmente, tenha sido substituído pelas tatuagens e disso pouco sei.
E talvez, em breve, vejamos o primeiro jogador com cabelo renderizado por inteligência artificial. Um penteado dinâmico, que muda conforme a intensidade do jogo, a emoção do público, ou a vontade do patrocinador. A cabeça como interface.
E nesse dia pixelizado talvez percebamos que o último cabelo verdadeiramente livre num corpo aprisionado foi o de Maradona. Até aí o argentino foi diferente.
Corte para fade.
Ruy Otero é artista media
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
GUETOS FELIZES I Um libertário defende a LIBERDADE como valor supremo. A LIBERDADE termina onde começa a dos outros. Há um erro crasso na análise de um libertário. Anarquia não é rebaldaria. Simplesmente, o Acrata não aceita um Sistema só porque ele existe. Se existe e se revela disfuncional há que ser derrubado. O problema da eficácia da anarquia está na pobre harmonia de vontades (ineficiência da comunhão e comunicação) e de entre quem a defenda haja sempre um ou outro mais vaidoso, impetuoso e autoritário que queira sobressair. Mandar nos outros. Ora, eu não quero mandar nos outros, nem que mandem em mim. É como numa relação amorosa: só resulta se houver igualdade, bem como verdade e vontade de cooperar. Um amante do fascismo aprecia pôr a pata em cima. Ama a palavra conjugal que é pôr jugo. Nem tudo se resolve com o bom uso da palavra justa. Mas se porventura não há coincidência de pontos de vista, o caminho libertário é seguir a viagem solitário. Há guetos felizes.
OS RUSSOS I Quando era chavalito dizem que um dia me apanharam a dizer spasiba e pajalsta e outras palavras em russo. O meu livro favorito era As Aventuras do Miguel Strogoff, o carteiro do Czar Nicolau. Antes dos vinte anos, li Pushkin, Yevtushenko, Gogol, Tolstoi, Dostoiévski, Tchecov, Ribakov, Bulgakov entre outros. Nunca os abandonei. Um dia, um bruxo vidente disse-me que antes desta reencarnação andei pelas estepes como médico de campanha. Gosto de casacos à cossaco. Tive duas filhas na Rússia tal como tenho agora. A minha primeira viagem foi à URSS. Estudei a fundo o comunismo e o anarquismo para me situar, tal como os liberais e fascistas e toda a sorte de ismos. Acrata fiquei, muito em parte graças ao meu preclaro tio Filipe. A mãe Rússia é fértil de prodígios. Nem vou nomear os músicos, compositores, escultores ou o Aranha-Negra. Estes são os russos que me interessam. Prefiro-os aos cobóis.
1991 I Escapa-me o dia exacto, mas foi em Outubro de 1991 que desaguei na redacção do extinto Semanário com uma carta de Adelino Alves, meu vizinho de patamar do terceiro piso na Rua Coronel Marques Leitão, número 25, na altura professor jubilado e ex-director de O Dia. Tudo começou a ganhar forma no ano de 1990, quando no dia do meu aniversário me vi posto ao fresco da casa materna por ter atingido a maturidade. Fui recambiado para casa da minha avó Vessadas. Ou melhor, depois de andar uns dias a fazer contas à vida, foi na casa da minha avó Vessadas que encontrei refúgio até ter capital próprio para a independência. Tinha feito uns biscates nas vindimas e como estafeta de uma empresa de transporte marítimo, mas o Jornalismo chamava por mim. Avô materno jornalista, apesar de nunca o ter conhecido por ter morrido nos anos 50, infância e parte da adolescência a conviver com jornalistas (o prédio era habitado por jornalistas), mais o apelo inato de contar histórias, ditaram a escolha. Uns meses antes de recorrer a Adelino Alves, ainda fui bater ao ferrolho do tio Balsemão, o Rupert Murdoch lusitano, meu conhecido da Quinta da Marinha e dos fairways do golfe, na esperança deste todo poderoso me arranjar trabalho no Expresso ou outro dos seus títulos. Procurava trabalho de estafeta, antes de me abalançar a estagiar nos jornais. É preciso dizer que podia ter feito carreira de desportista, quer no futebol, quer no golfe. Haverá quem o ateste por aqui. Sem que o tio Balsemão me desse guia de marcha, fui assim parar ao Semanário, de carta de recomendação entregue ao chefe Adriano Oliveira. Não sabia o teor da carta, deduzindo apenas que me recomendava para o cargo de estafeta. Afinal, e sem o saber até ser enviado ao primeiro serviço (no Júlio de Matos), tinha sido recrutado para estagiário de jornalismo. Vi-me assim entregue a mim próprio, sabendo apenas ler e escrever (redacções). Tinha publicado uns contos no DN-Jovem e ganho uns prémios. Achava-me capaz de dar conta do recado. Nesses primeiros meses devo ao Eurico de Barros, ao Nuno Henrique Luz e à Sofia Barrocas os ensinamentos, que se prolongaram no DN, para onde fui e encontrei a Maria Augusta Silva, a grande mestra do ofício a par do Moutinho António José M. Pereira, cuja amizade e conselho duram até hoje. 34 anos já lá vão. Fiz tudo o que quis no Jornalismo. Só não entrevistei um par de figuras por quem nutria estima. De resto, fui à fala com nomes como José Cardoso Pires ou Maria Velho da Costa, Agustina e Luiz Pacheco, entre outros ilustres. Foi no jornalismo que ganhei calo. Aprendi onde estão as rugas na prosa. Vi o Jornalismo dar lugar à promiscuidade dos negócios. Fora as desilusões próprias da vida como ela é. Sem jornalismo livre não há democracia. Tal como sem mestres não há como afirmar uma voz. O mestre está em cada um. As boas influências são uma ajuda.
FRACTURAS I Morei uns tempos em Chelas. Tinha amigos dealers, carochos e da barra prezada. Uns faleceram de overdoses. Outros foram de cana. Havia alcunhas como “Rambo” e “Comando”. A esperança de vida era limitada e desprovida de sonhos. Ou se vendia ou se consumia. O Jordão só vendia. O Jordão gostava de atestar o meu depósito e ir pela estrada fora, de cabelos compridos encaracolados de carapinha ao vento. Tinha um Talbot Samba descapotável e o Jordão gramava o ar livre. Foi de cana uns anos e quando saiu fui buscá-lo para rodarmos pelo asfalto até gastar o petróleo. A polícia volta e meia entrava por ali adentro a distribuir cacetada. Era a forma de educação. Rusgas, porrada e insultos. Pedagogia fascista. Afinal, era um bairro de bardamerdas. A palavra bardamerdas ouvi-a da boca de um policial com cara de cu à paisana. Tal como “cambada de merdas”. Ia dar ao mesmo. Quem não se metia nas drogas, na compra e consumo ou na venda, ia jogar à bola ou para o boxe. A nobre arte salvou e salva muitos da raiva incontida. Querem um exemplo actual? O Paulo Seco, da Quinta do Loureiro. Vou lá, e ninguém me faz mal. Sou recebido como um do bairro. Sabem o que leva à revolta dos excluídos? Haver poltronas de políticos a incitar a matança dos desalinhados. Aqueles que atiram para os guetos e escravizam com salários africanos. Aqueles que são párias para eliminar.
GRITA LIBERDADE I Quando nasci, enquanto a minha mãe chamava putas às parteiras eu gritava o meu primeiro tropo de indignação. Ou talvez berrasse por me terem roubado o aconchego uterino, a piscina morna da placenta. Os males da garganta, nos adultos, advêm de protestos contidos. Não se trata de dizer tudo como os malucos, mas de exercer a comunicação assertiva. Há que desembuchar os pedaços entalados. De preferência cara a cara com os provocadores das moléstias, no lugar de guardar as aflições no buraco escuro e cinzento do crânio. Tal serve de igual modo para declarar o amor a quem se ama sem reservas tímidas ou receios de rejeição. As cordas vocais são artérias de liberdade.
Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)
As ilustrações foram elaboradas com recurso a inteligência artificial.
1. Formação e Ideologia: A Representação como Resto
A figura do actor, historicamente associada à mediação entre o real e o simbólico, entre o gesto e a palavra, encontra-se hoje num ponto de inflexão estrutural que ultrapassa em muito as transformações estéticas do teatro ou do cinema, revelando um processo mais vasto de reconfiguração da subjectividade artística no seio de um ecossistema mediático que se alimenta da exposição, da performatividade do eu e da substituição progressiva da experiência pela aparência.
E isso é também comum a muitas outras áreas.
Mas nesta em particular sobre a qual me debruçarei, o actor tornou-se, simultaneamente, o último elo da cadeia de produção artística — profundamente dependente de estruturas externas de validação e selecção e tirando todo o ecossistema técnico que também envolve a profissão — sendo o mais visível, precisamente por se encontrar exposto num mercado simbólico no qual a presença se confunde com existência e a visibilidade com legitimidade.
O corpo é o seu produto também e o grau de exposição ao qual é sujeito é brutal, distinguindo-se assim de artistas plásticos, por exemplo.
Esta condição paradoxal manifesta-se desde logo no processo formativo. Cada vez mais, os actores saem das escolas — sejam conservatórios ou cursos profissionais — com uma formação técnica fragmentada, fortemente voltada para a adaptação funcional ao mercado (castings, self tapes, agências, networking), mas muitas vezes desprovida de pensamento crítico, de base teórica ou de referências estruturantes sobre a história e a filosofia do teatro, do corpo, da cena e da linguagem. Nalgumas escolas as cadeiras teóricas são até opcionais.
Claro que haverá excepções, que até conheço, de professores que fazem de outra forma — e serão certamente bastantes, quero acreditar — mas há limites para a docência, porque obedecem a programas.
O desconhecimento de nomes fundamentais como Stanislawski, Brecht, Meyerhold, Grotowski, Ionescu, Beckett ou mesmo Shakespeare e muitos outros protagonistas da História, nos mais jovens não é apenas um sintoma de ignorância histórica; é um reflexo de uma pedagogia que favorece a operacionalidade à consciência e a repetição ao questionamento, que muitas vezes cede ao imperativo do entretenimento como valor absoluto, apagando o papel do actor enquanto sujeito pensante e realmente critico.
Olhando para trás, parece que isso já foi mais efectivo, durante o século XX, sobretudo nas transições políticas ou mesmo com o fim de regimes totalitários, não sendo porém evidente. Precisaria certamente de outro estudo mas isso é texto para outra coluna.
Nas estruturas, tanto espontâneas como oficiais ou paralelas, o pensamento prêt-à-porter “humanista” já lhes está intrinsecamente associado.
As ideias de Gramsci venceram.
A hegemonia cultural que antes era projecto estratégico tornou-se norma pedagógica. As escolas de arte, teatro e ciências sociais transformaram-se em templos do progressismo automático, onde a linguagem da inclusão, da representatividade e da resistência simbólica se tornou dogma — um novo catecismo afectivo travestido de crítica.
Os alunos já são de “esquerda” sem saberem porquê, já são “anti-capitalistas” por reflexo, já operam dentro de uma matriz moral que confunde empatia com pensamento.
E o actor, outrora sujeito trágico da cena, agente de tensão, de contradição e de gesto simbólico, é agora mascote ideológica de um sistema que lhe alimenta o ego enquanto esvazia o corpo. Substitui-se a crítica pelo posicionamento, a ética pela performatividade e a arte pelo simulacro bem-intencionado do que supostamente devia ser perigoso.
Enquanto isso “as direitas” afastaram-se completamente de uma arte contemporânea em que não percebem a complexidade, apesar de tudo, do efeito Duchamp ou da conceptualidade por exemplo, e deixaram o papel da operacionalidade artística para outras zonas de mercados mais ambíguos e recicláveis conforme as ondas e marés.
Mas direita e esquerda já não são para aqui chamadas, numa era em que uma existe para representar e ser o negativo da outra, como que por falência e graças ao meta-capitalismo estruturante desta nova dimensão (a)política.
A maioria dos agentes culturais ainda vive nessa velha dicotomia capitalismo versus socialismo, como que por magia.
O delay já faz eco.
2. Tipologias e Fragilidades: O Actor na Era da Exposição
Por outro lado, a profissão do actor tornou-se um campo especialmente vulnerável à lógica de mercantilização das emoções e das identidades, sobretudo numa época em que a representação não se limita ao palco ou ao ecrã, estendendo-se a todas as esferas da vida quotidiana através da auto-exposição digital e da contínua construção de avatares nas redes sociais.
Neste contexto, o actor profissional deixou de ser o único a representar: todos representam, todos actuam, todos encenam versões de si mesmos para consumo público.
Esta contaminação entre representação artística e performance social, esvazia o gesto do actor do seu potencial simbólico, na medida em que já não se distingue, com clareza, entre a arte de representar e a compulsão de se mostrar — sendo certo que o guião a seguir muitas vezes coincide.
O que pode ser cómico para os cómicos.
Acresce que o lugar do actor nas estruturas de produção cultural se tornou profundamente condicionado por factores extrínsecos ao seu ofício — critérios de representatividade, políticas de quotas, discursos identitários ou agendas de financiamento — que, embora tenham tido origem em reivindicações bastante legítimas e até urgentes, vão tendo um efeito boomerang e tendem hoje a reduzir a complexidade da arte à função ilustrativa ou pedagógica, transformando o actor num funcionário do afecto e da correcção simbólica aliando essa vertente a uma hipocrisia conhecida no meio artístico.
Dando para rir entre o que é dito no público e no privado.
Mas este novo paradigma acentua a fragilidade estrutural do actor enquanto trabalhador precário, obrigando-o a adaptar-se constantemente às exigências de um mercado cada vez mais sensível à performance política do corpo e à sua legibilidade dentro dos discursos dominantes — muitas vezes em detrimento da qualidade estética, da ética artística ou da exigência crítica.
É neste cruzamento entre fragilidade laboral, hiperexposição mediática e instrumentalização ideológica que o actor contemporâneo se encontra — e é precisamente aí que deverá ser repensado o seu “papel”.
Há que distinguir entre os vários estilos e práticas de representação, sem cair na caricatura, mas também sem iludir os problemas.
Existem inúmeros tipos de actores, entre eles destaco: o actor intuitivo, que depende exclusivamente do impulso emocional, frequentemente carece de ferramentas críticas para intervir sobre o material que trabalha, e é normalmente muito inseguro e emocionalmente dependente — a carência supera e ofusca o desejo, podendo torná-lo ridículo na sua prática.
O actor técnico, que por sua vez tende a encarar o corpo como um dispositivo executável, desprovido de pulsão e de risco, funcionando normalmente por compensação económica. Pode ter ou não personalidade e conhecimento fora da sua zona de acção , mas normalmente conhece bem o sector e é calculista.
Ainda existe, noutra geração, o actor do método, que mergulha perigosamente na biografia das suas personagens — mesmo que tenham sido escritas por uns tarefeiros de serviço — como se a experiência pessoal pudesse substituir a dramaturgia. Aqui dependem da experiência dos realizadores de televisão ou dos encenadores para moldar o seu conhecimento às exigências do produto em que normalmente não há tempo para experiências psicanaliticas.
Para além de outros géneros existentes , sem dúvida, (não é para ser exaustivo), tanto que as gerações também são muito distintas em conhecimento, devo destacar ainda aquele que parece ser o mais problemático e vítima número um do deslumbre do fenómeno da Desconstrução: o actor pós-dramático.
Este género bastante permissivo ao sabor do tempo, dissolve-se num formalismo estéril que abdica da construção simbólica em nome da presença imediata e da intuição, aliada a uma história muitas vezes inverosímil e distorcida da performance nas Artes Plásticas — sempre associada aos impulsos do corpo e dos sentidos — para normalmente cair num vazio pouco sustentado e frágil do ponto de vista argumentativo.
Adora Marina Abramovich mas nunca viu.
Esta tipologia pode ter tido origem no Living Theatre (é discutível) e tomou muitos caminhos, passando pelos efervescentes e oitentões La Fura Dels Baus — que foram depois muito criticados por abrirem os Jogos Olímpicos de Barcelona, na altura por se terem vendido ao capitalismo, segundo a esquerda dominante nas artes, numa era menos obscura, pré-internet, em que o discurso anti capitalista e anti americano moldava muitas cabeças, ainda que os actores nunca deixassem de pensar em Hollywood como um sonho a atingir. Não todos, claro.
Um paradoxo de sonho… Ou pesadelo.
Nenhum destes modelos é inválido, mas todos se tornam limitadores quando não acompanhados por um pensamento que os interpele, que os questione, ou que os coloque em relação com o mundo e com a história da representação enquanto acto político, ético e estético.
Importa ainda afirmar que esta crise do actor é, também, uma crise do público.
Um público deseducado, emocionalmente condicionado pelas narrativas audiovisuais dominantes e treinado para consumir identificação em vez de complexidade, já não reconhece o valor da representação como distanciamento, nem entende o artifício como linguagem. Sempre com excepções como é evidente. Falo também de Portugal, desconhecendo propriamente outros países. Mas não me parecem muito diferentes no seu modelo ocidental.
A confusão entre arte e vida, tão promovida pelas culturas de massas e pelos dispositivos algorítmicos de selecção simbólica, transforma o actor num espelho vazio: reflecte aquilo que o público quer ver, não aquilo que precisa de pensar.
Não é que o publico já tenha sido mais culto, mas com a fragmentação e o excesso cada vez mais evidente, já não são só os agentes da cultura e representação que desconstroem mas até o publico o está a fazer sem saber.
Desconstruir até cair para o lado, parece ser essa a ordem crescente pregada de moral para consumo interno, sempre com a cumplicidade das indústrias farmacêuticas e psiquiátricas com homeopatias e acupuncturas pelo meio. Não é possível desconstruir mais sem depressões associadas, para ser irónico.
Mas não é por isto que deixamos, como que por magia, de ver grandes “representações” e performances dos actores, tanto em televisão como no cinema ou no teatro.
Nem tudo tem explicação. E o mundo não acabou.
3. Narcisismo, Crise Simbólica e a Possibilidade de Representar
A crise da representação não se exprime apenas em termos de condições externas, mas atinge directamente o núcleo da prática actoral: a sua relação com o eu, com o corpo e com o mundo.
A figura do actor tornou-se, no contexto contemporâneo, uma das expressões mais visíveis do paradigma narcisista dominante, que transforma a arte da representação numa gestão contínua da própria imagem e da própria emocionalidade. Esta mutação arrasta consigo o esvaziamento simbólico da prática artística e a sua conversão em performance afectiva para consumo imediato.
O actor, já não apenas como intérprete de papéis, mas como figura pública e marca pessoal, é chamado a sustentar uma identidade coerente, exposta, emocionalmente legível e esteticamente consistente.
A distinção entre o espaço do trabalho artístico e o da auto-representação quotidiana dissolve-se num regime de visibilidade permanente. As redes sociais, ao exigirem uma narrativa constante do eu, impõem ao actor uma representação contínua, muitas vezes sem conteúdo, onde a vulnerabilidade se torna valor e a autenticidade é convertida em capital simbólico.
As práticas performativas dominantes são reflexo desta transformação. Para voltar às tipologias anteriores: o actor intuitivo representa a valorização do afecto imediato em detrimento da construção simbólica; o técnico revela a conversão do corpo em dispositivo funcional e programável; o do método indica a fusão entre biografia e ficção, que compromete a mediação crítica; o pós-dramático manifesta a desmaterialização da linguagem e a aposta numa presença que, muitas vezes, abdica da significação.
Talvez fosse bom de quando em vez voltar-se a penetrar Brecht ou imergir no livro de Robert Bresson com as suas insinuações sobre o actor, para não falar em Peter Brook, todos sempre actuais e pertinentes nas suas linhas, ainda que dogmáticas.
Estas tipologias, apesar de distintas, convergem na recusa — ou na perda — da representação enquanto acto mediado ou mesmo construído e pensado — logo, por isso, político.
Esta configuração é reforçada por um ecossistema simbólico que desvaloriza a crítica em nome do apoio emocional, que confunde empatia com complacência e que romantiza a precariedade como forma de resistência criativa. Até ver.
O elogio constante e a ausência de exigência transformam o campo artístico num espaço de validação afectiva, impedindo o confronto com os limites e a profundidade do gesto artístico. O actor, nesse ambiente, é infantilizado enquanto trabalhador e idealizado enquanto figura pública — sem espaço real para errar, questionar ou resistir.
O resultado é a conversão da arte da representação num espelho do desejo social, num reflexo imediato das expectativas afectivas do público e das lógicas algorítmicas de visibilidade.
O actor, em vez de intervir simbolicamente sobre o real, é convocado a reproduzir narrativas emocionalmente aceitáveis, facilmente partilháveis e alinhadas com os códigos dominantes de sensibilidade.
A arte deixa de distanciar para reflectir; o corpo deixa de significar para agradar.
Repensar o lugar do actor, hoje, exige muito mais do que mudar práticas pedagógicas ou modelos de produção. Terá de vir dos próprios.
Serão certamente os actores quem reagirá mais tarde ou mais cedo ao “cataclismo asséptico”, até provavelmente o poder detectar a convulsão. Ou não. Talvez a História ao rimar novamente encontre novas terminologias e o feitiço se vá voltando contra o feiticeiro. O mundo é um lugar dinâmico… Como sempre.
Estou optimista.
Exige é uma redefinição profunda do que significa representar, numa época em que todos performam. Significará sem dúvida devolver ao actor a sua dimensão crítica, simbólica, política.
Dever-se-à quanto a mim, voltar a valorizar a linguagem, a narrativa e inscrever o corpo no pensamento e a sua presença num mundo que precisa de mais autonomia. Sobretudo autonomia, o que não é fácil, certo.
E, sobretudo, recusar a transformação do actor em produto emocional de um mercado simbólico disfarçado de “humanista” totalmente em colapso, em que os “actores” principais desta era também não sabem nada de Beckett , Ionescu ou Shakespeare, quer-me parecer.
Daí o optimismo.
Ruy Otero é artista media
Ilustrações: Ruy Otero
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Perguntou-me o director do PÁGINA UM se eu estaria interessado em começar a escrever crónicas a cada jogo do Benfica. Depois de chatear activamente os leitores da Extrema-direita, Pedro Almeida Vieira escolhe agora aborrecer os adeptos dos outros clubes.
Vamos partir deste princípio basilar nesta que será a minha primeira crónica. Eu não sou jornalista, sou adepto benfiquista, gosto de futebol e, portanto, tudo o que podem esperar ler aqui é a minha opinião. Com alguma sorte teremos momentos de triângulos invertidos e basculação no meio-campo.
Ainda a bola não tinha começado a rolar e já os adeptos da minha cor me envergonhavam. Sim, eu sou benfiquista, mas não sou cego. Durante o minuto de homenagem a Aurélio Pereira, uma figura ímpar do desporto português, um conjunto de acéfalos resolveu imitar o fatídico som do very light que matou um adepto sportinguista na final do Jamor. Um dia alguém me explicará como é que há um benfiquista — seja ele quem for — orgulhoso com um dos momentos mais negros da nossa centenária história.
Quando entramos na recta final do campeonato, tudo o que não nos interessa é ver um Benfica-Arouca. São jogos que me fazem lembrar as derrocadas finais nos tempos de Jorge Jesus. A vitória é certa no papel, a equipa acredita que a bola, cedo ou tarde, entrará, e o pouco espectáculo arrasta-se penosamente por longos noventa minutos. O Arouca é uma equipa cuja classificação não reflecte o futebol jogado. Não se limitam ao clássico bloco baixo esperando um contra-ataque milagroso, sabem ter a bola no pé e apresentam um plantel com jogadores interessantes.
A primeira parte teve quase sentido único, com o Benfica, no seu onze habitual, a dominar o meio-campo e a controlar as operações. Ainda assim, essa posse de bola não se reflectiu em oportunidades de golo. As poucas que aconteceram foram quase sempre cortadas por defesas em lugar do guarda-redes. O Estádio da Luz, cheio como é habitual, demonstrava algum nervosismo com a ineficácia e o ritmo baixo.
A asa esquerda do Benfica foi, como de costume, o abono de família do ataque, com Carreras, especialmente, em bom plano. Do outro lado, Tomás Araújo continuou preso por arames, a fazer o que pode. Di María, ou GOAT, como é conhecido cá em casa, insistiu nos lances individuais que já não consegue fazer, deixando as recuperações para o norueguês amigo. Ainda assim, há sempre aquele momento em que descobre uma linha de passe que mais ninguém vê e obriga qualquer comentador de sofá, como eu, a meter a viola no saco.
É estranho pensar na profundidade do plantel do Benfica para disputar um jogo com o Arouca. Mas foi exactamente isso que fiz ao intervalo.
Rezei para que Bruno Lage pedisse autorização ao Di María para o deixar no balneário, na companhia de Tomás Araújo. A minha expectativa era que a ala direita carregasse jogo com mais eficácia na segunda parte. Opções no banco parecem não faltar. A segunda parte começou com um três para três na área do Benfica, sacudido por Trubin, seguido de mais um ataque desperdiçado por Di María. Bruno Lage não viu nada de errado na primeira parte e apostou, tal Marcello Caetano, na transição da continuidade. Aos cinquenta minutos de jogo, já eu fazia contas à vida depois do Arouca ter chegado com perigo à baliza do Benfica.
Passava a hora de jogo quando comecei a ver nuvens negras e a lembrar-me de um campeonato perdido contra o Estoril. Por esta altura, até um penálti à Diomandé se aceitava. Carreras percebeu o sofrimento da classe operária, que precisa de motivação para trabalhar amanhã, e desatou a ultrapassar gente pelo lado esquerdo. A bola desaguou no pé direito de Kokçu e o turco fez arte, colocando a dita onde a coruja faz o ninho.
Di María, logo de seguida, falhou um golo cantado e Jason, o melhor jogador do Arouca, tentou trazer um Geny para o Estádio da Luz. O mergulho foi bom, a entrada na água fez pouco espalhafato e o VAR fez o que se espera dele em Portugal: marcou.
Há uma tendência neste final de época para se ver a mais nalgumas latitudes e fechar os olhos noutras. Dizem-me que é azar. Do Benfica, obviamente. Azar esse que se prolongou do VAR para a inoperância de Bruno Lage que, aos 75 minutos, ainda não tinha visto necessidade de mudar fosse o que fosse.
Quando Belotti e Schjelderup entraram, já o Arouca estava na opção do bloco baixo e o espaço para jogar se reduzira a um T1 de meio milhão em Arroios. Esperava-se que o norueguês ganhasse os duelos que Di María não conseguiu.
As substituições, tardias, tiveram efeito quase imediato. Kokçu, o tal rapaz com um pé direito que daria jeito ao Florentino, descobriu Pavlidis sozinho, enquanto Belotti arrastava os centrais. São aquelas dinâmicas, como lhes chamam os entendidos da bola, que acontecem quando dois rapazes, com a mesma camisola, estacionam permanentemente na área alheia.
O Arouca não reagiu ao segundo golo porque o Benfica não tirou o pé do acelerador. Seguiram-se algumas hipóteses de golo desperdiçadas, um golo anulado e mais uma dose de nervos até ao fim.
O prolongamento chegou com 7 minutos que ninguém percebeu e o Arouca, vendo que o jogo não era sentenciado, apostou tudo nos instantes finais, conseguindo marcar já depois dos 95 minutos.
O campeonato volta a dar mais uma volta e, pela segunda vez, o Benfica não aguenta a liderança mais do que uma semana. Tal como disse no início desta crónica, gosto pouco destes jogos em que pouco se ganha e tudo, ou quase, se perde.
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, dizia Camões — e, valha a verdade, se o nosso épico não tivesse perdido um olho, talvez visse com mais nitidez o que esta crónica, de visão ainda turva, tem vindo a confirmar: a tradição já não é o que era, e quem de costume observa a bola da Varanda da Luz, anda mais dado a filosofias e quejandos do que à redondinha propriamente dita, aqui o garante.
De facto, nos últimos jogos do Benfica na Liga, este vosso cronista habitual fez gazeta, primeiro porque foi lourear a pevide para Espanha, depois porque um bisturi decidiu meter-se em campo e substituí-lo sem aviso prévio. Ou seja, perdeu dois jogos no conforto da Luz, mas vá-se lá saber como, no último mês e meio, apareceu em Montjuic, foi a Alvalade ver a selecção e ainda teve a ousadia de ir ao antro do Dragão, onde o Benfica deu uma coça ao Porto.
E tudo isto, nas últimas duas semanas, com um olho que vê mal ao perto e só agora começa a distinguir camisolas ao longe. E o outro está como estava: mal. Ja consigo ver os números nas costas dos jogadores, o que é um progresso — antes disso, via os jogos como quem lê prescrições médicas: de longe, com desconfiança e a torcer para não me enganar.
Mas como o bom filho à casa retorna (ainda que tropeçando nos degraus e piscando os olhos ao ecrã como quem faz sinal à torre de controlo), eis que esta crónica volta à vida. Ou melhor, ressuscita com ajuda: o relato de hoje é da pena do Tiago Franco, que além de ver bem (ao que consta) ainda escreve com propriedade sobre futebol. Ficam mais bem servidos, não duvidem — porque se fosse eu a escrever, acabava-se a falar da teoria do caos, da filosofia dos penáltis, ou da geopolítica dos fora-de-jogo.