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  • O Índice ICARO do Instituto Nacional de Saúde não é um alerta; é uma farsa científica

    O Índice ICARO do Instituto Nacional de Saúde não é um alerta; é uma farsa científica


    Um investigador ou cientista, para ser credível, tem de cumprir duas premissas: a reprodutibilidade das suas conclusões e a transparência na comunicação pública. E mais uma terceira: a humildade de ser questionado e fiscalizado, mesmo se por alguém que ele possa considerar menos capacitado.

    Ora, em Portugal, a academia tem, infelizmente, caído na velha tentação de se juntar ao poder, sobretudo ao poder político, esquecendo que uma universidade pública deve, em primeiro lugar, ser penhor da Ciência e da Verdade, e da sociedade, e nunca do poder. Pelo contrário, deve até procurar afastar-se de qualquer intromissão política. Não tem sido isso que tem sucedido.

    Fernando de Almeida, presidente do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge

    Por exemplo, o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) tem vindo, ao longo dos últimos anos, a comportar-se como um tentacular braço dos Governos em matérias de saúde pública: ora por omissão, quando não realiza estudos que seriam essenciais à compreensão dos fenómenos epidemiológicos; ora por manipulação, quando apresenta relatórios alinhados com narrativas políticas. Basta recordar a recusa em fazer um escrutínio sério do excesso de mortalidade não-covid em 2020 e 2021, ou a ausência de uma avaliação rigorosa da mortalidade global em 2022. A Ciência foi preterida ao serviço de conveniências.

    Este ano, o INSA voltou a dar mostras de que, em Portugal, a investigação em saúde pública é moldada pelas necessidades comunicacionais do poder. O caso do Índice ÍCARO é, neste ponto, paradigmático. No início deste mês de Agosto, com a vaga de incêndios, o INSA divulgou valores do Índice ÍCARO que apontariam para um inédito excesso de mortalidade entre 4 e 6 de Agosto da ordem de 1.100 óbitos – números alarmistas e sem consistência empírica. Porém, logo no dia seguinte, esses dados foram “corrigidos”, ainda assim para valores elevados, sem qualquer explicação metodológica. E, apesar das insistências do PÁGINA UM, o presidente do INSA, Fernando de Almeida, recusou prestar esclarecimentos.

    Nos dias seguintes, predispus-me eu a confrontar as previsões alarmistas do INSA com dados reais. E o ‘edifício’ do INSA desmoronava-se. Entre 25 de Julho e 7 de Agosto deste ano, em 14 dias, registaram-se 4.601 mortes contra um valor previsto de 4.373. Ou seja, um excesso de apenas 228 óbitos, equivalente a +5,2% — significativo, sim, mas a anos-luz das duplicações anunciadas pelo Índice ÍCARO. Convém recordar que este acréscimo ocorreu num contexto de Inverno menos agressivo em termos gripais, o que, paradoxalmente, teria produzido um défice prévio de mortalidade, susceptível de “inflacionar” o impacto de vagas de calor.

    Reportagem da RTP sobre o alegado excesso de mortalidade e o Índice INSA, com a participação das investigadoras Susana Silva (esq.) e Ana Paula Rodrigues (dir.).

    Perante esta evidência, o que fez o INSA? Organizou, em cooperação com a RTP, uma encenação, protagonizada pelas investigadoras Ana Paula Rodrigues e Susana Silva. Uma pantomima travestida de comunicação científica, onde se insistiu na narrativa de um excesso de cerca de 950 óbitos desde finais de Julho, enquanto se exibiam gráficos vagos e inócuos em ecrã, cuidadosamente desprovidos de dados reprodutíveis. Um exercício mais próximo da propaganda do que da Ciência, colocado estrategicamente numa quinta-feira à noite, em véspera de sexta-feira e antes de um fim-de-semana. Tudo para garantir menor contraditório mediático.

    Ora, como qualquer investigador sabe, a Ciência sem escrutínio é apenas retórica. Aquilo que se exigiria ao INSA seria simples: publicamente, dar a conhecer a descrição metodológica completa do Índice ÍCARO, o modelo estatístico usado para previsão e “correcção por observação”, a definição operacional de “excesso de mortalidade”, as séries diárias de mortalidade observada e esperada, os cálculos que sustentam os tais “950 óbitos em excesso”, a explicitação do efeito de colheita, a indicação das fontes de dados e a análise de robustez a diferentes metodologias. Pedi isto formalmente, na passada segunda-feira, à investigadora Ana Paula Rodrigues, com conhecimento ao gabinete de comunicação do INSA e ao seu presidente. Até hoje, nada.

    Perante esta evidência empírica, a conclusão é inequívoca: a investigação baseada no Índice ÍCARO por parte do INSA não passa de um artifício, uma encenação pseudocientífica que confunde indicadores exploratórios com diagnósticos de mortalidade, manipulando dados conforme as conveniências. E assim, quando a Ciência é usada para encobrir, em vez de esclarecer, deixa de ser Ciência. E quando uma instituição pública de saúde se presta a este jogo, abdica do seu dever maior: servir a verdade e a sociedade.

    A reprodutibilidade e a transparência são duas premissas da Ciência. Mas, aparentemente, não para o INSA.

    Tudo isto não é apenas uma questão metodológica; é uma questão ética. A opacidade do INSA é um insulto à comunidade científica e uma afronta à cidadania. Mais grave ainda é a cumplicidade dos meios de comunicação social, incapazes de exercer o contraditório, aceitando como dogma aquilo que deveria ser alvo de escrutínio. Repita-se por outras palavras, porque nunca é demais: a Ciência sem transparência e sem reprodutibilidade não é Ciência; é prestidigitação. E quem confunde Ciência com prestidigitação não só desonra a academia, como mina a confiança pública.

    O Índice ÍCARO, tal como está a ser usado, não é um alerta: é uma farsa.

  • Sabe a causa dos incêndios devastadores? Não são as alterações climáticas; é a tragédia dos anti-comuns

    Sabe a causa dos incêndios devastadores? Não são as alterações climáticas; é a tragédia dos anti-comuns


    Portugal atravessa um dos piores Agostos de sempre em matéria de fogos. Mais de 200 mil hectares já arderam desde Janeiro, e a contabilidade cresce a cada dia. O número impressiona, mas o país já quase se habituou a vê-lo repetir-se, década após década, com a mesma coreografia: discursos inflamados, homenagens aos bombeiros, promessas de reformas e um rasto de cinzas. O que ninguém encara de frente é a raiz estrutural do problema: a floresta portuguesa vive presa numa “tragédia dos anti-comuns”.

    O termo pode soar académico, mas descreve com precisão a realidade do território. Ao contrário da “tragédia dos comuns” — quando um recurso partilhado é destruído por uso excessivo —, a dos anti-comuns resulta de uma fragmentação que paralisa a gestão: demasiados donos, cada um com poder de exclusão, nenhum com capacidade de agir em escala. Portugal é o caso perfeito: 11,6 milhões de prédios rústicos, muitos com dimensões microscópicas, abandonados ou em litígio entre herdeiros. Cada proprietário olha para a sua parcela; o fogo, porém, olha para o conjunto.

    Tall trees create a dense forest scene.

    É aqui que se esconde a confusão maior. “Floresta privada” não é a mesma coisa que “espaços florestais”. A primeira refere-se às parcelas, registadas nas conservatórias, com estremas e dono definido. Os segundos são o território real: manchas de vegetação contínuas, cursos de água, ecossistemas e paisagens que não reconhecem limites de caderneta. O incêndio não se detém numa estremadura; os benefícios ambientais também não. O ar limpo, a regulação da água, o sequestro de carbono, a biodiversidade — tudo isto ultrapassa as linhas do cadastro. Por isso, os espaços florestais, mesmo em terrenos privados, devem ser encarados como bens públicos.

    Durante muito tempo, a gestão não falhou. Pelo contrário: funcionava porque a paisagem tinha uso e valor. O pinhal era resinado, a lenha e a caruma aqueciam casas, os baldios eram administrados pelas comunidades, e os Serviços Florestais mantinham vigilância, caminhos e aceiros. Havia uma economia do mato e uma autoridade técnica que impunha regras. Funcionava porque havia gente no território e guardas no terreno.

    Esse modelo desfez-se nas últimas décadas. E não foi por causa das alterações climáticas nem pelas ondas de calor – foi por razões políticas, de erros de desenvolvimento. As alterações climáticas aumentam o risco, mas não são o factor desencadeador dos fogos destrutivos. A causa principal está no contínuo vegetal que aumentou, quer em extensão quer em volume, por razões demográficas, económicas e sobretudo políticas.

    an aerial view of a village surrounded by lush green hills

    O êxodo rural esvaziou as aldeias, a resinagem deixou de dar rendimento, os baldios perderam relevância e os Serviços Florestais foram virtualmente extintos. Onde havia uso e vigilância, ficou abandono; onde havia técnicos e guardas, ficou a retórica; onde havia economia, ficou custo. A floresta deixou de ter dono visível e passou a ser combustível à espera da próxima ignição.

    É neste vazio que os incêndios ceifam – e é aqui que cada vez mais urge defender um novo paradigma: a criação de um efectivo Sistema de Gestão de Espaços Florestais (SIGEF), de natureza pública, com equipas permanentes no terreno, incluindo prevenção e combate. O modelo é simples: técnicos, sapadores e vigilantes com mandato para limpar, vigiar e agir, incluindo em áreas privadas, sempre sem custos directos aos proprietários – e, pelo contrário, com compensações justas pelos serviços ambientais prestados pelas suas parcelas. E com uma lógica clara: quem se abstém de gerir não bloqueará o interesse colectivo, quebrando assim a possibilidade de accionar a tragédia dos anti-comuns.

    Assumir os espaços florestais como um bem público teria naturalmente um custo orçamental robusto. Se o Estado quisesse assegurar uma gestão integrada de toda a superfície florestal do continente — cerca de 6,2 milhões de hectares, que inclui áreas de floresta e matos —, com economia de escala, ciclos de limpeza de cinco anos e preços médios de 800 euros por hectare, o encargo anual rondaria 1,1 mil milhões de euros, considerando a rotatividade neste sistema de gestão.

    Mesmo admitindo intervalos de eficiência, o orçamento para este sistema nunca seria inferior a 900 milhões de euros. Em termos macroeconómicos, trata-se de um valor equivalente a pouco mais de 0,4 % do PIB português, montante comparável àquilo que o país despende anualmente em políticas activas de emprego.

    A diferença, porém, é que este esforço financeiro representaria uma inversão do paradigma actual: em vez de dependermos de milhares de minifundiários incapazes de coordenar estratégias de prevenção, o Estado assumiria a floresta como património comum, reduzindo drasticamente a lógica dos anti-comuns que hoje favorece a desordem, a inércia e, em última instância, a catástrofe dos megaincêndios.

    Os números mostram que não é dinheiro que falta: é racionalidade. Entre 2000 e 2016, os incêndios custaram ao país 5,2 mil milhões de euros; em 2003, só num ano, os prejuízos ultrapassaram 1,5 mil milhões. E há custos que passariam a ser evitados. Por exemplo, actualmente entre 45% e 50% da despesa pública — e foi de cerca de 640 milhões de euros em 2024 — é destinada apenas às operações de combate, incluindo meios aéreos.

    Com uma gestão adequada dos espaços florestais, uma parte significativa seria poupada. Menos incêndios seria também riqueza que se criaria: os custos (indicativos) de madeira perdida por incêndios rondam os 1.000 a 1.500 euros por hectare.

    A lush green forest filled with lots of trees

    Além disso, têm de se considerar os custos ambientais e mesmo climáticos: em 2017, cerca de 40% das emissões de dióxido de carbono foram dos incêndios; este ano estarão seguramente acima dos 20%. Existem também os custos em infra-estruturas destruídas (habitações, estradas, prejuízos agrícolas, etc.) e as perdas no turismo. Fazendo algumas contas, o ganho económico potencial de reduzir drasticamente os incêndios situa-se entre os 0,25% e os 0,45% do PIB.

    Mesmo assim, numa primeira fase, o sistema poderia obter um financiamento assente em três pilares, numa lógica clara e percebida como taxa de serviços públicos: contributo diversificado, incidência proporcional e justiça social.

    O primeiro pilar seria o reforço do Fundo Ambiental, via receitas da fiscalidade verde e, sobretudo, das licenças de carbono. Portugal arrecada, em média, 400 milhões de euros por ano apenas com leilões de dióxido de carbono (CO₂). Se um quarto desse montante fosse automaticamente canalizado para a gestão florestal, garantir-se-ia uma verba fixa de 100 milhões anuais.

    cars passing through north and south

    O segundo pilar seria um adicional ao IMI rústico — cujo valor é quase nulo —, aplicando-se um imposto inicial de cinco euros por prédio, mas com forte progressividade: explorações activas ficariam praticamente isentas, enquanto prédios abandonados, em litígio ou em regime de absentismo fiscal suportariam uma carga maior. Desta forma, além de ser um incentivo ao emparcelamento e à venda de prédios rústicos abandonados, seria possível gerar entre 120 e 150 milhões anuais, mas sem penalizar quem mantém a terra viva e produtiva.

    O terceiro pilar seria a criação de uma Taxa de Protecção de Espaços Florestais. Com a aplicação de uma taxa anual de 10 euros por prédio urbano (cerca de 6 milhões) e por veículo motorizado (cerca de 7,2 milhões), a receita anual ultrapassaria os 130 milhões de euros. O valor continua irrisório para quem possui uma habitação ou um automóvel, mas permitiria financiar de forma directa a rede nacional de prevenção e vigilância florestal.

    Naturalmente, a parte da despesa já inscrita todos os anos no Orçamento do Estado — cerca de 600 milhões em prevenção e combate — teria de ser incorporada no novo modelo, funcionando como verba cativa e estável.

    Ao mesmo tempo, Portugal poderia exigir em Bruxelas a criação de um Fundo Europeu de Coesão Florestal, aplicando o princípio da solidariedade ambiental: países menos expostos ao risco de incêndio contribuiriam mais para apoiar aqueles que, como Portugal, Espanha ou Grécia, enfrentam o drama recorrente do fogo. Um mecanismo deste tipo poderia garantir entre 200 e 250 milhões de euros anuais, integrando a política florestal na própria agenda climática europeia e servindo para financiar os serviços ambientais dos proprietários.

    a bridge over a river

    Com este modelo, em vez de desperdiçar milhares de milhões em prejuízos a cada década, Portugal passaria a investir de forma previsível, justa e transparente. Porque transformar os espaços florestais em bens públicos exige também que o seu financiamento seja público, claro e equitativo — distribuindo encargos de acordo com a responsabilidade, mas também com a solidariedade nacional.

    Persistir no modelo actual — pseudo-voluntário, de glorificação da tragédia — mostra-se insustentável económica e socialmente. Se 2025 já está entre os piores anos deste século, é porque Portugal insiste em varrer cinzas em vez de organizar o território. Enquanto não se assumir que os espaços florestais são bens públicos e não se pagar para os gerir, o país continuará a repetir este Verão: cada vez mais extenso, cada vez mais caro, cada vez mais devastador.

  • Da pandemia aos fogos: o jornalismo em (contínua) crise

    Da pandemia aos fogos: o jornalismo em (contínua) crise


    O jornalismo é, por definição, uma actividade que serve a sociedade: informar, denunciar, interpretar. Não é uma função de propaganda, não é um exercício de entretenimento, não é um palco para vaidades nem um púlpito para a catequese do medo.

    O jornalista tem de olhar para a realidade com instrumentos de rigor e de contexto, sem se deixar enredar por paninhos quentes, mas também sem cair no grotesco do sensacionalismo ou no enviesamento interesseiro. Esta é a condição mínima para se merecer a designação de jornalista. Fora disso, sobra apenas o comentador mal informado, o propagandista disfarçado ou o vendedor de emoções baratas.

    Infelizmente, o passado recente deveria ter servido de lição. Durante a pandemia, a sociedade — não apenas a portuguesa, mas a global — foi bombardeada por um estilo de jornalismo que, de tão abjecto, deveria envergonhar gerações inteiras de editores e repórteres.

    A imprensa desempenhou, durante a pandemia, um papel que ficará como exemplo de como o jornalismo pode degenerar em propaganda alarmista. Em vez de informar com contexto e rigor, cultivou-se uma verdadeira cultura do medo. As manchetes diárias, em letras garrafais, com o número de “casos positivos” foram transformadas em termómetro universal da catástrofe, como se a detecção de um vírus fosse, por si só, doença, sofrimento ou morte. A ausência de qualquer referência sistemática à distribuição etária, aos factores de risco, ou às probabilidades reais de complicação clínica, contribuiu para a percepção de que todos estavam igualmente ameaçados — o recém-nascido e o octogenário, o saudável e o moribundo.

    Os telejornais alimentaram a amplificação do risco através de uma estética de guerra: gráficos vermelhos, contadores em tempo real, rodapés permanentes a anunciar internamentos e mortes, como se a realidade epidemiológica pudesse ser reduzida a um placar de futebol macabro. Pior: chegou-se ao absurdo moral de aplaudir a descida de internados em cuidados intensivos, omitindo que parte dessa descida resultava apenas de óbitos. Uma contabilidade mórbida mascarada de boas notícias.

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    A imprensa também fomentou uma verdadeira cultura de ostracização. Quem duvidava das medidas mais draconianas, quem ousava interrogar a proporcionalidade dos confinamentos ou o impacto das vacinas em fase experimental, era imediatamente rotulado de irresponsável, negacionista, conspiracionista. Criou-se uma divisão maniqueísta: os “bons cidadãos”, obedientes e submissos, versus os “maus cidadãos”, suspeitos e perigosos. Esta lógica, mais próxima de regimes totalitários do que de democracias abertas, foi incentivada e reproduzida nos estúdios televisivos e nas páginas de jornais.

    A linguagem da imprensa revelou uma incapacidade estrutural de contextualizar. Falava-se em milhares de mortos diários na Índia ou no Brasil, esquecendo-se de referir que tais números correspondiam a populações centenas de vezes maiores do que a portuguesa. Comparavam-se riscos de crianças e jovens como se fossem idênticos aos dos idosos frágeis, criando um clima de pânico transversal sem fundamento epidemiológico. A estatística, que deveria ser instrumento de esclarecimento, foi usada como arma de propaganda.

    Mais grave: a imprensa não apenas falhou na análise crítica, como se colocou em posição servil diante das autoridades políticas e sanitárias. Em vez de questionar contratos de vacinas, metodologias de contagem de mortos ou critérios de confinamento, preferiu repetir comunicados oficiais, legitimando sem reservas a narrativa dominante. O jornalismo tornou-se megafone do poder, abdicando da sua função essencial de escrutínio.

    A large bonfire blazing at night with embers and sparks flying into the dark sky.

    O resultado foi devastador: fomentou-se uma cultura de medo permanente, minou-se a confiança crítica da sociedade, normalizou-se a vigilância social e, acima de tudo, reduziu-se o cidadão à condição de súbdito, infantilizado pelo paternalismo mediático. O jornalismo, que deveria ter sido vacina contra o exagero, acabou por ser veículo de contágio do pânico.

    O disparate não teve limites: confundiu-se prevalência com incidência, confundiu-se mortalidade absoluta com risco relativo, confundiu-se ciência com histeria.

    Ora, com os incêndios, está a suceder precisamente o mesmo. Este ano será, garantidamente, pelo menos o quarto pior do século. Já arderam mais de 170 mil hectares, e só um milagre permitirá que se chegue ao fim do ano sem ultrapassar a fasquia dos 200 mil hectares. Esta dimensão é extraordinária, calamitosa, gravíssima. Revela que o poder político continua incapaz de assumir que este é um dos principais problemas estruturais do país. Persistimos no abandono rural, na destruição do papel fundamental da agricultura e da pastorícia, e nos compadrios que perpetuam um sistema obsoleto de prevenção e combate.

    A comunicação social, em vez de assumir o papel de denúncia estruturada, contenta-se em produzir reportagens fotogénicas do horror: casas a arder, bombeiros exaustos, helicópteros em contraluz. Passada a época dos fogos, cai o silêncio. Não se pressiona o Estado a mudar o status quo, não se exige um verdadeiro plano nacional de ordenamento do território rural, não se confrontam os interesses instalados que vivem dos fogos como quem vive de uma indústria cíclica. Essa abdicação é, por si só, uma falha ética do jornalismo.

    19 anos depois: problemas estruturais mantiveram-se, destruição aumentou.

    Causa-me urticária, cada vez mais, a forma misturada de ignorância e de sensacionalismo com que a imprensa portuguesa — do Público ao Correio da Manhã — tabloidiza números. Seria sensato esperar que editores e directores soubessem — e se não sabem, não merecem sê-lo — que a incidência dos incêndios é altamente variável ao longo da época de estio. O Verão português não é uma fotografia estática; é uma película irregular. Em 2017, por exemplo, a esmagadora maioria da área ardida concentrou-se em Junho e em Outubro, mostrando que a duração da estação crítica se estende cada vez mais.

    Significa isto que não faz qualquer sentido, quando a gravidade já é por si grande, exagerar com comparações descabidas. Dizer que a área ardida em 2025 é dezassete ou dezoito vezes superior à de 2024, como sucedeu anteontem em diversas notícias da imprensa, pode ser matematicamente correcto, mas é intelectualmente absurdo. É jornalismo de feira, equivalente a dizer que num restaurante que fecha ao domingo houve, no dia 17 de Agosto, uma quebra de facturação de 100% face ao mesmo dia 17 do ano anterior — ignorando que em 2024 esse dia foi um sábado. O disparate é o mesmo.

    Mais ainda: se o objectivo é o sensacionalismo, porque não escrever que nos primeiros dezassete dias de Agosto ardeu este ano trinta e três vezes mais do que no ano passado? É um número vistoso, mas serve para quê? Para instruir o cidadão? Para alertar a sociedade? Ou apenas para vender papel, cliques e minutos de emissão? O jornalismo não se deve medir pela capacidade de impressionar, mas pela capacidade de esclarecer.

    O papel do jornalista não é o de alimentar a ilusão estatística nem de soprar brasas de pânico, mas de interpretar números, denunciar falhas, dar sentido à informação. Não se exige neutralidade bovina nem frieza burocrática: exige-se compromisso com a verdade, com o contexto e com a responsabilidade social. Quem se limita a repetir comunicados oficiais ou a fabricar títulos escandalosos não está a informar — está a desinformar.

    A imprensa portuguesa, se quiser sobreviver como pilar democrático e não como caricatura de si própria, tem de reaprender a função básica do jornalismo: olhar para a realidade sem filtros de conveniência, expor o que está mal, contextualizar o que é complexo, desmontar o que é manipulado – é para isso que serve um jornalista. O resto é espuma — e a espuma, como se sabe, desaparece sempre ao sabor da próxima onda.

  • Froes, o pneumologista pornógrafo

    Froes, o pneumologista pornógrafo


    A pornografia, na sua acepção literal, é a mercantilização despudorada do corpo, reduzido a mercadoria e instrumento de prazer alheio, sem pudor nem compromisso com outra coisa senão o gozo imediato de quem consome e o lucro de quem fornece. Mas o termo, na sua dimensão figurada, vai muito além da carne exposta. Há pornografias de várias ordens: intelectual, científica, mediática, política. Sempre que alguém vende o seu saber — ou o simulacro dele —, a sua influência, a sua credibilidade, ou mesmo a sua alma, com o único fito de alimentar interesses alheios e lucrar, está-se perante pornografia. A moeda de troca já não é a nudez, mas a rendição ética.

    É dessa pornografia figurada que falo. Da pornografia científica que se vende ao melhor pagador, travestida de credibilidade académica, polida com currículos e adornada com cargos institucionais. Da pornografia mediática que ocupa colunas e microfones, não para esclarecer, mas para seduzir, amedrontar ou moldar a opinião pública conforme a cartilha dos patrocinadores. E é aqui que entra, inevitavelmente, o nome do pneumologista Filipe Froes.

    Filipe Froes

    Froes é um caso de escola da promiscuidade na Medicina portuguesa. E uso o termo “promiscuidade” no seu sentido mais técnico: não o da devassidão carnal, mas o da ausência de pudor em cruzar fronteiras e confundir interesses. Não é homem de fidelidades exclusivas. Não se confina a um patrocinador: todas as farmacêuticas lhe servem. Com todas tem conflitos de interesse; de todas recolhe proveito. E quando fala — e fala muito, sobretudo desde a pandemia da COVID-19 — fá-lo proporcionalmente ao seu “salário” extra-médico, somado ao vencimento do Serviço Nacional de Saúde.

    Um olhar sobre os registos de transparência das próprias farmacêuticas, compilados pelo PÁGINA UM, mostra que só este ano já arrecadou 31.550 euros — cerca de 4.500 euros mensais — pagos por laboratórios, aos quais se soma o ordenado como médico hospitalar.

    Pode parecer muito, mas é pouco: em Agosto de 2023 fiz um levantamento no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed e, oficialmente, Froes contava com 324 prestações de serviços ou apoios de farmacêuticas que lhe valeram 453.635,37 euros. Agora, já ultrapassou há muito o meio milhão.

    woman in black jacket holding white paper

    Este é o mesmo Froes que nunca revela — e que a imprensa raramente pergunta — com quem trabalha, quanto recebe e que interesses defende. É o mesmo que, em Agosto de 2025, surge novamente nos noticiários a falar sobre a COVID-19, ressuscitando um dos capítulos mais negros da nossa contemporaneidade. Não pela doença em si, mas pela forma como foi gerida: com medo, com medidas erráticas, com a política a submeter a ciência e com a ciência a submeter-se à política.

    Foi um tempo em que as fronteiras entre recomendação médica e marketing corporativo se dissolveram, em que a comunicação em saúde deixou de ser um serviço público para se tornar um espectáculo de manipulação.

    Mesmo em 2025, quando as terapias genéticas contra a COVID-19 caem em desuso e finalmente a investigação independente começa a assumir que foi um erro injectar em massa adultos saudáveis com menos de 60 anos — e um erro ainda maior fazê-lo em jovens —, Froes continua como consultor de uma farmacêutica espanhola, a Hipra, para uma vacina contra a doença. Uma vacina que já chega fora de tempo, como aquelas agendas que, vendidas em Agosto, são quase puro desperdício, salvo para quem ainda lucra com a sua impressão.

    Filipe Froes ‘registou-se’ este ano como consultor da Hipra que somente em 2023 conseguiu aprovação da vacina contra a covid-19… e que precisa de vender doses… em 2025.

    O problema maior não está apenas nos conflitos de interesse; está no uso que Froes sabe fazer de uma imprensa dócil, composta por jornalistas que não sabem ou não querem saber. Num país onde morrem, todos os dias, cerca de 15 pessoas de pneumonia, as manchetes de hoje deram eco à “notícia” de que 38 pessoas morreram com COVID-19 nos primeiros 10 dias de Agosto. A matemática é, porém, simples: menos de quatro por dia. Seria desejável que ninguém morresse, mas 38 num universo de mais de 3.500 óbitos nesse período representa 1,1% do total. Há doenças muito mais letais e ignoradas.

    Aliás, ironicamente, hoje, um artigo científico publicado na BMC Pulmonary Medicine, tendo Froes como co-autor, destaca a mortalidade e o perfil dos internados de uma doença bem caracterizada e muito mais letal em Portugal: a pneumonia, que resulta em mais de 50 mil internamentos por ano e uma taxa de mortalidade de 22,5%. Froes sabe disso, mas prefere continuar a surfar a onda do negócio da COVID-19.

    Pior ainda: não há qualquer agravamento anómalo da COVID-19 nesta época do ano. Pelo contrário, excluindo o ano inaugural de 2020 — em que o país viveu confinado e quase sem ir à praia no Verão —, a mortalidade por COVID-19 nos primeiros 10 dias de Agosto de 2025 é a mais baixa de sempre. Em 2021, já com vacinação em curso, morreram 121 pessoas; em 2022, foram 98; em 2023, 51; e no ano passado, 50. Este ano, 38. Os números não mentem, mas são tratados como se mentissem: ignorados, manipulados ou apresentados sem contexto.

    Óbitos atribuídos à covid-19 no período de 1 a 10 de Agosto para os anos de 2020 a 2025. Fonte. ACSS.

    O objectivo é transparente para quem não vive anestesiado: Setembro aproxima-se, e com ele o início da estação das campanhas de vacinação. Há que criar ambiente, cultivar receios, manter vivo o espectro de uma doença que encheu contas bancárias e agendas.

    Será mais uma dose de reforço para “proteger os vulneráveis” — leia-se, mais uns milhões para as farmacêuticas, mais uns milhares para quem as serve na praça pública. A pornografia da COVID-19 não é feita de imagens explícitas, mas de gráficos truncados, declarações alarmistas e uma luxúria pelo palco mediático que se mede em euros.

    E assim, a pornografia científica continua. Com actores pagos, enredos repetitivos, figurantes crédulos e uma audiência enganada. Froes é apenas um dos protagonistas. Mas, na pobreza ética da nossa saúde pública e na indigência crítica do nosso jornalismo, basta um protagonista para comandar a encenação.

  • A calúnia, ou como as hienas, medrosas por natureza, se agigantam em grupo

    A calúnia, ou como as hienas, medrosas por natureza, se agigantam em grupo


    A ‘coisa’ faz-se de forma tão concertada e com tal má-fé que nem se disfarça. Em pouco mais de uma semana, depois de termos revelado que um juiz quis saber como passo os tempos livres e que um pivot desvairado da CNN Portugal pediu ao Ministério Público o encerramento do PÁGINA UM (e a ERC, pressurosa, abriu-me um processo), continuámos a fazer aquilo que apenas sabemos fazer: revelar o que a outra imprensa não revela.

    Foi assim que, na semana passada, voltámos a um tema que causa urticária a certos médicos e influencers sanitários (com ligações pouco recomendáveis): desmontei um ignóbil artigo (pseudo)científico de Filipe Froes na Acta Medica (revista científica da Ordem dos Médicos) e expus um estudo exaustivo de John Ioannidis que demonstra como, afinal, em três anos, as vacinas contra a covid-19 salvaram cerca de 12 milhões de pessoas a menos do que o estimado, para um único ano, por um modelo financiado pela Fundação Gates.

    brown hyena

    Era previsível receber respostas discordantes. O que veio, porém, foi um desfile de ataques pessoais, rótulos fáceis e “argumentos” que dispensam qualquer argumentação. Por exemplo, o enfermeiro Nuno André Macedo, candidato do Bloco de Esquerda e do Livre à Assembleia Municipal do Seixal, resolveu desenterrar um artigo meu de Outubro de 2023 sobre a campanha de marketing das farmacêuticas, com apoio da imprensa, para convencer o Estado a imunizar todos os recém-nascidos com um novo anticorpo monoclonal. Acompanhou-o de um printscreen (sem ligação) e desta pérola:

    Os chalupinhas são perigosos mas divertidos. Dizer que o VSR é inócuo quando é a maior causa de internamento em pediatria, de UCI pediátrica, e das maiores nos seniores, é mesmo para rir de tão ignorantes que são. O NIRSEVIMAB não é o primeiro anticorpo contra o VSR.

    O ataque é gratuito e reles — e eu ainda pensava que na esquerda havia uma certa ética, mas isso deve ser coisa de antanho —, mas também é mentiroso. Em parte alguma escrevi que o vírus sincicial respiratório é inócuo. Pelo contrário, afirmei que é “geralmente benigno, excepto em prematuros ou recém-nascidos com problemas respiratórios e cardíacos”, e que “não existe registo, em Portugal, de qualquer morte tendo o VSR como causa”. Também não disse que o niservimab é o primeiro anticorpo monoclonal; mencionei o palivizumab, administrado apenas a bebés vulneráveis e cuja eficácia é contestada por diversos estudos.

    Pegue-se num texto de Outubro de 2023, descontextualize-se e minta-se mesmo sobre o seu conteúdo. Chame-se ‘chalupa’ e ‘ignorante’ ao visado e consegue-se, mesmo assim, ser-se candidato a presidente da Assembleia Municipal do Seixal pelo Bloco de Esquerda e Livre nas próximas autárquicas.

    Mas que importa a verdade a quem nem honra a ideologia que apregoa? No habitual efeito de rebanho, atrás de uma hiena surge sempre outra. Apareceu então o influencer Luís Ribeiro, com carteira de jornalista, a ecoar as mentiras do Macedo, acrescentando insinuações sobre a minha higiene e acusando-me de ser “odiento”. Seguiu-se, na habitual procissão, uma cronista do Público — XXX Garcia —, que também não resistiu a lançar referências paternalistas e pouco abonatórias. Os chacais juntam-se sempre quando pressentem sangue, ainda que a “caça” seja apenas a verdade inconveniente.

    Pode dizer-se que estes episódios não passam de patetices. Mas de patetice em patetice, têm um propósito pernicioso: estes influencers — porventura alinhados ou contratados — recorrem à mentira para, em momentos-chave, tentar descredibilizar quem cria rupturas no status quo. Não é coincidência que, precisamente hoje, o LinkedIn tenha decidido censurar a divulgação da notícia sobre o estudo de Ioannidis, certamente por o post ter sido ‘metralhado’ de denúncias. As hienas e os chacais, medrosos por natureza, agigantam-se em grupo.

    O já desusado “chalupa” e a sua derivação “chalupice” continuam, em 2025, e em Portugal, tristemente vivos em certas cliques como táctica de ataque. É a estratégia mais cómoda: se não se quer — ou não se consegue — discutir o mérito das questões, chama-se um nome feio, fecha-se a caixa de comentários e passa-se ao próximo tema.

    Depois de fazer fretes na revista Visão, identificados até pela ERC, o jornalista Luís Ribeiro entretém-se a fazer piadas sobre o suposto ódio dos outros e da sua higiene. Ou seja, em vez de jornalismo, faz agora ‘trollismo’.

    Apesar de tudo, é fascinante observar como a Medicina e o mundo das farmacêuticas continuam a provocar tanta baixeza. E o problema não é apenas económico: é conceptual. O debate sobre Saúde Pública foi reduzido a um simplismo clínico e hospitalocêntrico, ignorando princípios básicos da epidemiologia, da saúde populacional e, sobretudo, da gestão racional de recursos. A ideia de que se pode administrar, a torto e a direito, determinados fármacos sem aplicar o princípio da precaução — tratando seres humanos como gado veterinário — é não só insustentável como perigosa.

    Pior ainda é tentar fazer crer que questionar terapias génicas ou a universalização de anticorpos monoclonais em pessoas saudáveis equivale a ser “anti-vacinas”. Ao contrário das vacinas, que induzem imunidade activa e memória imunológica, estes fármacos oferecem apenas imunidade passiva e temporária, com o risco acrescido de criar gerações menos preparadas para enfrentar agentes patogénicos na idade adulta, quando certas infecções podem ser mais graves.

    Este raciocínio raramente encontra espaço no debate mediático. A imprensa mainstream, sequestrada economicamente por farmacêuticas e influencers sanitários, evita o incómodo de confrontar interesses, contratos, custos e eficácia real. Mais fácil é gritar “chalupa” e encerrar a conversa.

    Em 2025, se houver ‘denúcias’ em alcateia, o LinkedIn ainda censura conteúdos de jornalistas que se baseiam exclusivamente em artigos científicos, neste caso um da autoria do mais reputado epidemiologista mundial, John Ioannidis.

    E é precisamente aí que a minha crítica incomoda: não aceito pacotes fechados de “verdades” impostas pelo marketing farmacêutico ou pela preguiça intelectual de muitos profissionais e comentadores. Questionar é uma obrigação. Recusar a aplicação de tratamentos veterinários a seres humanos é, mais do que bom senso, uma questão de responsabilidade.

    Se estes ataques de carácter servirem para que alguns leitores percebam que a discussão sobre Saúde Pública não pode ser sequestrada por quem a reduz a protocolos clínicos e slogans publicitários, então já terão valido a pena. Mas convém que todos entendam: chamar nomes não muda a realidade nem apaga os números. E os números, infelizmente para alguns, continuam a mostrar que dar anticorpos caros a todos os bebés para chegar exactamente ao mesmo número de mortes — zero —, para gáudio dos accionistas e colaboradores das farmacêuticas, não é Ciência, nem boa Medicina. É marketing.

  • Até eu já estou farto do espalhafato da ‘Crise Climática’

    Até eu já estou farto do espalhafato da ‘Crise Climática’


    Sou jornalista desde os anos 1990. E desde essa altura — quando poucos davam atenção ao que então se chamava “efeito de estufa” — que acompanho as questões ambientais e, em especial, a problemática das alterações climáticas, quando então as petrolíferas gastavam imenso dinheiro para condicionar estudos sobre estas matérias.

    Acredito na Ciência, e sei que o planeta está a aquecer. E digo isto não por confiar na infalibilidade dos modelos matemáticos — pelo contrário, se enviesados ou com “arquitectura” mal concebida, mostram-se erráticos e de utilidade meramente especulativa —, mas sim por sinais biológicos e ecológicos. São os animais e as plantas que melhor sinalizam modificações climáticas: espécies que sobem em altitude e latitude, ciclos reprodutivos a mudar, migrações a antecipar-se. E os indícios estão aí. São múltiplos e cumulativos. São reais.

    Mas uma coisa é isso — e outra, muito diferente, é o espalhafato. A dramatização constante. O sensacionalismo catastrofista. A hipocrisia política. O histerismo mediático. A transformação do aquecimento global num épico de Hollywood, onde parece que já estamos a viver dentro de O Dia Depois de Amanhã, de 2012 ou de Geostorm — tal como sucedeu com a pandemia, onde, às tantas, estivemos a viver Contágio, com o Matt Damon.

    Olhando para os jornais, os telejornais, os portais e os podcasts, o que se vê? Um fogo permanente. Um inferno meteorológico a escorrer pelas palavras. E depois vê-se os políticos e “especialistas residentes” com a pala do costume: “temos de agir já!”, como se nunca se tivesse feito nada, como se a mudança dependesse unicamente da intensidade da histeria retórica. E das pessoas individualmente — nunca dos políticos ou das suas (más) políticas de desenvolvimento, de planeamento, de ordenamento.

    Dou, portanto, por mim cada vez mais exasperado. Irritado, mesmo. E não é com o clima — é com a forma como se tenta injectar, a martelo e com cuspo, uma narrativa armagedónica na imprensa dita “de referência”. Todos os dias se tenta colar uma nova tragédia ao aquecimento global. Já não há onda de calor, seca, chuvada, furacão, incêndio, peixe morto ou mosquito que não esteja, directa ou indirectamente, a ser “culpa do clima”. Como se as políticas de gestão territorial não existissem. Como se a má governação, a incúria, o desordenamento, a incompetência, as más prioridades orçamentais ou a ausência de prevenção fossem meras vítimas inocentes do CO₂.

    beach lounge on seashore facing the sea

    Hoje, por exemplo, dei de caras com a notícia do Público: “A água do Mediterrâneo nunca esteve tão quente em Julho como este ano”. A gota de água — com trocadilho — que me fez transbordar.

    O título é alarmante. O texto, mais ainda. A temperatura média da água no Mediterrâneo em Julho foi de 26,68 °C. Dado que o recorde anterior era de 26,65 °C, temos uma “diferença histórica” de… 0,03 graus. Repito: três centésimas de grau — um valor inferior à margem de incerteza estatística associada à maioria dos métodos de medição e interpolação da temperatura da superfície oceânica. E no entanto, a autora do artigo transforma isso numa espécie de profecia apocalíptica. Segundo ela, esse valor “favorece tempestades, inundações, secas e incêndios”. Assim mesmo, num parágrafo só, sem hierarquia de causas, sem filtros, sem bom senso.

    Enumeremos mais casos:

    1 – Temperatura “a ferver” – O subtítulo “Mediterrâneo a ferver” aparece em destaque, quando a temperatura média do mar rondou os 26,68 °C. Um valor inferior ao de muitas piscinas públicas. Não é um valor extraordinário para o próprio Mediterrâneo, que todos os verões ultrapassa os 26 graus. A expressão é enganadora. E é sensacionalista.

    2 – Causalidade simplista – A autora sugere que a tragédia de Derna em 2023, na Líbia, com centenas de mortos por colapso de barragens, teve relação com a temperatura do mar. Uma correlação abusiva, destituída de substância técnica, que ignora os factores estruturais do colapso — como a negligência prolongada na manutenção de infraestruturas hidráulicas obsoletas.

    sea under white clouds at golden hour

    3 – Secas, fogos, tempestades e furacões – Tudo junto, tudo misturado. Usa-se a subida de três centésimas de grau em determinadas zonas como rastilho narrativo para descrever um planeta em chamas. E nem uma linha sobre o ordenamento florestal, a falta de limpeza de matas ou o abandono rural. Aliás, em Portugal, as condições meteorológicas mais adversas, promotoras de aumento do risco de incêndio, nem costumam ser ventos de oeste nem de norte nem de sul (marítimos), mas sim de leste, transportando ar seco e quente da Península Ibérica interior, frequentemente associado a descidas de humidade relativa e aumento do risco de ignição — como documentado em vários estudos sobre incêndios extremos em Portugal.

    4 – Selecção de dados – O artigo afirma que 51,9% da Europa e do Mediterrâneo estiveram em seca entre 11 e 19 de Julho. Mas não refere que Julho de 2025 foi menos quente do que Julho de 2023 e 2024. Nem que, no total dos últimos 25 meses, houve vários em que a temperatura média global não ultrapassou o limiar de 1,5 graus sobre os níveis pré-industriais. E, mesmo quando ultrapassa, fá-lo apenas de forma pontual e não sustentada — ao contrário do que prevê o Acordo de Paris para definir um real agravamento climático. O dado inconveniente é omitido. A nuance desaparece. Enfim, escolhe-se um mês (meteorologia) para fazer conclusões sobre o clima (que é outra coisa).

    5 – Alarme sem contexto – Afirma-se que em 13% do oceano a temperatura esteve “um grau acima da média”. Mas qual média? Qual o período de referência? Qual a significância estatística? Nada disso é explicado. Fica apenas um número, a flutuar como uma bóia de pânico.

    Se isto não é propaganda, é pelo menos um jornalismo excessivamente alinhado com um discurso único — onde prevalece o dogma apocalíptico.

    E é pena. Porque a causa é séria. Porque a adaptação às alterações climáticas exige inteligência, planeamento, responsabilidade. E o histerismo ajuda pouco. O drama por atacado desacredita quem, com serenidade e rigor, tenta mudar comportamentos, políticas e modelos económicos. O jornalismo tem a obrigação de informar, não de assustar.

    Transformar o Verão Mediterrânico — que é uma bênção da Natureza para um ser humano feliz — num “forno climático” logo que os termómetros sobem acima dos 30 ou 32 graus é um exercício de revisionismo climático sem memória.

    orange and white egg on stainless steel rack

    Estamos, pois, a viver não uma crise ou emergência climática — mas uma emergência narrativa. Um colapso do discernimento. Uma febre ideológica que se esconde atrás da Ciência para impingir agendas políticas, económicas e comunicacionais. E que, no fundo, infelizmente, apenas serve para transformar o aquecimento global num novo moralismo redentor, com pecadores, castigos, indulgências e profetas.

    A Terra está a aquecer — e é preciso agir. Mas não precisamos de entrar num filme de terror. Precisamos de verdade, não de histeria. Precisamos de jornalismo, não de alarmismo. E eu, que ando nisto há 30 anos, não estou disposto a ser cúmplice de uma neurose colectiva só porque ela parece bem na fotografia… e na infografia.

  • Pivot da CNN Portugal solicitou que o Ministério Público encerre o PÁGINA UM

    Pivot da CNN Portugal solicitou que o Ministério Público encerre o PÁGINA UM


    O jornalista José Gabriel Quaresma, também pivot da CNN Portugal, apresentou um pedido ao Ministério Público para “encerramento do jornal PÁGINA UM, em virtude”, diz, “das graves irregularidades e da disseminação de notícias falsas”. O pedido foi também comunicado à Entidade Reguladora para a Comunicação Social – que entretanto abriu um processo sem qualquer análise prévia das acusações –, à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) e ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.

    Em causa estão diversos artigos do PÁGINA UM – e mesmo uma crónica satírica assinada por Brás Cubas – que incidem, em partes ou na globalidade, na actividade do jornalista da CNN Portugal que se mostra incompatível com o Estatuto do Jornalista.

    José Gabriel Quaresma é pivot da CNN Portugal. Foto: Printscreen de uma das emissões.

    Esta solicitação de encerramento de um jornal é inédita em Portugal no período da democracia, ainda mais por ser exigida por um jornalista de um importante órgão de comunicação social – a CNN, detida pela Media Capital  e controlada pelo empresário Mário Ferreira – contra um jornal independente que não tem, até agora, qualquer condenação nos tribunais sobre qualquer matéria nem cometeu qualquer infracção de carácter sancionatório pelos reguladores, quer pela ERC quer pela CCPJ.

    Quaresma, que detém a carteira profissional de jornalista número 1713, reage assim depois de terem sido denunciadas as suas actividades de formador (media training ), coach e consultor de comunicação claramente incompatíveis com o Estatuto do Jornalista. De acordo com este diploma legal, o exercício da profissão de jornalista é incompatível com o desempenho de, entre outras, “funções remuneradas de marketing, relações públicas, assessoria de imprensa e consultoria em comunicação ou imagem, bem como de orientação e execução de estratégias comerciais”.

    Ora, José Gabriel Quaresma tem vindo, sobretudo nos últimos anos, e à boleia do seu estatuto de pivot da CNN, a desenvolver actividade intensa de formação e de coaching na área da comunicação, sobretudo através da empresa que criou em 2023, a Sardine Conjugation, e que nem sequer divulga as suas contas anuais, incumprindo a lei. Tem, além disso, conhecidas ligações maçónicas. Ainda recentemente foi ‘apanhado’ num vídeo de um ritual da Maçonaria ao lado de António Pinto Pereira, antigo deputado do Chega e candidato à autarquia de Cascais pela Nova Direita.

    Apresentação de José Gabriel Quaresma no seu site, detido pela sua empresa de comunicação Sardine Conjugation, e onde oferece uma panóplia de serviços. Quaresma considera que expor estas situações, usando imagens públicas viola a sua privacidade e direitos de autor.

    Quaresma detém 70% do capital social da empresa, sendo também seu gerente. No objecto social da empresa estão actividades incompatíveis com o jornalismo: “consultadoria em comunicação, formação, media training e consultadoria online”. No site da Sardine Conjugation, onde José Gabriel Quaresma se apresenta como “um especialista reconhecido, em comunicação, com experiência e capacidades técnicas e humanas que o posicionam como um guia essencial para quem procura aperfeiçoar as suas competências em comunicação”, há uma panóplia de serviços que colocam em causa a isenção de um jornalista – além da ilegalidade.

    Com efeito, o pivot da CNN Portugal – que quer encerrar o PÁGINA UM – oferece um portefólio diversificado de serviços na área da comunicação, combinando formação, mentoria e apresentações públicas. Inclui programas de mentoria personalizada para desenvolvimento de competências estratégicas de comunicação; masterclasses sobre saúde mental nas organizações e sobre “Comunicar com Impacto”; workshops práticos que vão desde falar em público, escrita de discursos e storytelling até técnicas para enfrentar câmaras e criar conteúdos para redes sociais; apresentação e moderação de eventos, com ênfase na gestão da comunicação e no envolvimento de diferentes públicos; e actuação como keynote speaker em empresas, escolas e universidades, transmitindo experiências e técnicas que, segundo o próprio, visam gerar impacto e resultados tangíveis.

    Aparentemente, não lhe têm faltado clientes – embora não se saiba a facturação, porque a Sardine Conjugation não apresentou as demonstrações financeiras de 2023 e de 2024 na Base de Dados das Contas Anuais. Nos últimos meses, e já depois das notícias do PÁGINA UM, José Gabriel Quaresma acrescentou, a par da sua actividade de jornalista na CNN Portugal, a função de “Coach de Comunicação” na Turim Hotel Group e na Centralmed, como freelancer, e ainda de formador em cursos (não académicos) de comunicação na Universidade de Aveiro. Além disso, desde 2012 treina a Força Aérea a comunicar com a imprensa – tudo isto actividades incompatíveis.

    José Gabriel Quaresma faz publicidade activa dos seus serviços de serviços de “treinamento corporativo”, de coaching, consultoria e redacção. No LinkedIn, a última vez foi há uma semana.

    Mas, apesar destas evidências, Quaresma – que aparentemente não foi escrutinado nem pela sua entidade empregadora nem da CCPJ por acumular actividades de consultor de comunicação com o jornalismo – sentiu-se encorajado a lançar um chorrilho de acusações contra o PÁGINA UM, não apenas reputando de falsas as notícias – que apresentam provas e evidências – como garantindo que foram usados “documentos de carácter privado”.

    Note-se que o PÁGINA UM apenas usou printscreens (capturas de ecrã) de imagens das redes sociais e do site de José Gabriel Quaresma, de acesso público, exactamente para demonstrar as suas actividades incompatíveis, não havendo, pelo contrário, qualquer violação legal.

    Mas Quaresma vai mais longe e acusa o PÁGINA UM de usar “conteúdos” da sua autoria e lança a suspeita de que o jornal até tenha tido acesso a documentos privados que estavam guardados no seu computador.

    Na sua página do LinkedIn, Quaresma revela, por vezes, clientes satisfeitos com as suas formações em comunicação.

    Para compor o ramalhete, o pivot da CNN Portugal aponta ainda a existência de alegadas irregularidades na ficha técnica do PÁGINA UM, entre as quais destaca a inclusão do Serafim como mascote.

    Quaresma, que nem sequer terá entendido a ironia desta inclusão (permitida pelas interpretações da ERC, uma vez que, segundo o regulador, a Lei de Imprensa não impede que outros elementos, para além dos que discrimina, integrem a ficha técnica, pelo que não existe violação de lei), diz que o Serafim é um cão – uma ultrajante falsidade, uma vez que o Serafim é um verdadeiro gato com a provecta idade de 17 anos, e que dá o seu nome à rubrica satírica Arranhadelas’. Quaresma – que se intitula de Chief Magic Officer [Director-Chefe de Magia, em tradução livre] da Sardine Conjugation – diz que a existência de uma mascote pelo PÁGINA UM aparenta “descompensação psíquica, sem qualquer ironia e alegadamente”.

    O pivot da CNN Portugal e gerente de uma empresa de treino em comunicação defende ainda que o modelo de financiamento do PÁGINA UM é “irregular”, por ser, diz, “o único órgão de comunicação social registado na ERC, que eu tenha conhecimento, que solicita doações directas aos leitores”, algo que, na sua opinião, “pode condicionar a linha editorial e a independência do jornal”.

    José Gabriel Quaresma acusa o PÁGINA UM de não o ouvir, mas vedou o acesso ao jornal á sua página do LinkedIn. Em todo o caso, até já comunicou com o PÁGINA UM, sendo as suas declarações integralmente transcritas. Jocosamente fez também um donativo de 50 cêntimos ao PÁGINA UM, através da sua empresa de comunicação Sardine Conjugation.

    A acusação da eventual ocorrência de influências externas sobre a direcção editorial do PÁGINA UM, um jornal de acesso livre, por via de se financiar através dos seus leitores – e que teve 595 donativos no mês passado e contabilizou receitas de 63 mil euros em 2024 e ostenta um passivo virtualmente nulo – não deixa de ser curiosa, sobretudo por vir de um jornalista da CNN Portugal.

    Com efeito, a empresa que detém a TVI (dona da CNN Portugal), e que paga o salário de jornalista de José Gabriel Quaresma, contabiliza um passivo de 91 milhões de euros e o seu detentor, o Grupo Media Capital, tem como accionistas uma sociedade por quotas (Zenithodissey) e quatro sociedades anónimas (Pluris Investments, Trium, Biz Partners e CIN), além de outras entidades minoritárias, estando assim muitíssimo mais dependente de influência externa. Acrescente-se ainda que a prática de donativos por leitores tem sido vista, mesmo internacionalmente, como um selo de independência, sendo usado nomeadamente pelo Guardian e Associated Press.

    Em todo o caso, isso pouco interessa para José Gabriel Quaresma que, nas suas denúncias, além de requerer o encerramento do PÁGINA UM – justificando que “a democracia não pode permitir que se tente manchar uma carreira intocável (a minha) sem que uma única coisa afirmada seja verdade, nem uma. É intolerável, a democracia, assim”, conclui –, exige também a “adopção de medidas sancionatórias fortes e definitivas”.

    Extracto da queixa de José Gabriel Quaresma ao Ministério Público, à ERC, à CCPJ e ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas onde se solicita o encerramento do jornal PÁGINA UM.

    E acrescenta ainda que “a existência destas plataformas [referindo-se ao PÁGINA UM], com o aval da ERC, apenas servem para destruir o já a definhar jornalismo, porque nestes casos não existe jornalismo”.

    Quaresma acusa o PÁGINA UM de nunca ter sido contactado para exercer o contraditório, o que é falso. Na verdade, o pivot da CNN Portugal até bloqueou o acesso ao seu perfil do LinkedIn numa tentativa de esconder as suas actividades mercantilistas apoiadas no jornalismo.

  • Fraude científica: como a Ordem dos Médicos se deixa usar para manter uma narrativa falsa

    Fraude científica: como a Ordem dos Médicos se deixa usar para manter uma narrativa falsa


    Este é um exemplo perfeito — e por isso alarmante — de como a Ciência pode ser instrumentalizada para fins políticos e narrativos, ainda por cima com o selo de uma instituição centenária. Um artigo publicado esta semana na (suposta) revista científica Acta Médica Portuguesa, detida pela Ordem dos Médicos (e dirigida pelo seu bastonário, Carlos Cortes), assinado por Filipe Froes e dois co-autores — um dos quais uma antiga jornalista do Sol , Marta Reis que, durante a pandemia, promoveu ‘médicos influencers‘, incluindo o próprio Froes — constitui um caso acabado de fraude científica por omissão, por manipulação retórica e por abuso da autoridade institucional.

    O seu objectivo é claro: manter viva a ideia de que a pandemia de covid-19 foi, em Portugal, uma tragédia sanitária sem precedentes — mesmo que os dados, se bem analisados, desmintam essa tese. A fraude torna-se ainda mais grave quando se percebe que este texto foi redigido sem qualquer rigor metodológico e com laivos panfletários, sendo usado para alimentar peças na comunicação social, nomeadamente no Expresso, sem qualquer escrutínio jornalístico ou científico. A promiscuidade está à vista.

    Filipe Froes (ao meio) foi mandatário de Carlos Cortes (segundo a contar da direita) nas (duas últimas) eleições para bastonário da Ordem dos Médicos.

    Sob o título “Janeiro de 2021 e a COVID-19 em Portugal: o mês mais mortal desde 1919”, o artigo pretende convencer-nos, numa sucessão de frases vagas e comparações grotescas, de que o impacto da pandemia em Portugal rivaliza com o da gripe espanhola, que teve o seu auge em 1919. A narrativa começa pela cronologia: 1.150 dias de pandemia, de Março de 2020 a Maio de 2023, 26.655 mortos atribuídos à COVID-19, com um pico de 5.805 óbitos em Janeiro de 2021.

    Estes números até poderiam ser discutidos — e devem sê-lo —, mas o problema fundamental reside noutro ponto: o artigo carece por completo de metodologia científica minimamente exigível para uma publicação académica. Não houve análise estatística, não houve padronização etária, não houve controlo por variáveis confundentes, não houve enquadramento comparativo internacional, não houve sequer uma discussão crítica sobre causalidade. Se em Ciência isto não é aceitável, andar ainda com estes simplismos enviesados em 2025 nem sequer é admissível como panfleto.

    Pior ainda: o texto exibe uma retórica inflamada, de tom quase propagandístico, tentando ligar de forma forçada os números de Janeiro de 2021 à “introdução da variante Alfa” e ao “período pós-festas”, numa tentativa artificial de justificar os dados brutos. Mas estes números, mesmo em termos absolutos, não são contextualizados.

    Filipe Froes e António Diniz foram activos médicos influencers durante a pandemia. Marta Reis, licenciada em Comunicação Social, foi jornalista do i e do Sol durante o período pandémico, passando para a assessoria do Ministério da Saúde em Setembro de 2022, antes de passar para a comunicação da ULS de Lisboa Ocidental.

    O país, em 2021, tinha mais do dobro da população de 1918, muitíssimos mais idosos e, como é sabido, uma estrutura etária profundamente envelhecida. Jamais se pode comparar mortalidade total entre dois anos tão longínquos sem o devido enquadramento. Aos autores não lhes interessou analisar as taxas de mortalidade por grupo etário, porque verificariam que mesmo em 2021 — no ano de maior incidência da covid-19 — a taxa de mortalidade até nos maiores de 85 anos foi inferior à que se registava, para o mesmo grupo etário, em 2010. Se a mortalidade absoluta foi elevada, foi porque aumentou a esperança média de vida ao longo das últimas décadas — e tivemos uma nova doença a atingir uma população idosa nunca antes tão numerosa.

    Ainda assim, os autores proclamam e insistem, sem vergonha, que “Janeiro de 2021 foi o mês mais mortal desde 1919”, como se uma contagem absoluta de óbitos, sem qualquer ajustamento demográfico, pudesse ser levada a sério num artigo científico. Num panfleto mediático de 2021, até aceito que sim. Agora, numa revista que se quer científica, em 2025, isto é uma inqualificável vergonha para qualquer bastonário que queira apagar os anos de Inquisição do Miguel “Torquemada” Guimarães. Uma revista científica aceitar um título destes é desprestigiante.

    Note-se, aliás, que a única taxa apresentada no suposto artigo de Froes & Ca. — 1.216 óbitos por 100 mil habitantes em 2021 (e usar essa unidade é descaradamente populista e nada científica, porque a norma é utilizar-se óbitos por mil habitantes, o que daria 12,16) — é, de facto, a mais elevada desde 1957. Mas este valor, sendo relevante, não demonstra qualquer singularidade catastrófica, nem permite associar de forma directa a mortalidade à covid-19. A generalidade da mortalidade de 2021 resulta de múltiplos factores: idade da população, adiamentos de tratamentos, colapsos hospitalares, atrasos em diagnósticos e assistência médica não-covid. Nenhum destes elementos é sequer mencionado no artigo.

    Filipe Froes, um dos médicos portugueses com mais ligações à indústria farmacêutica.

    Além disso, um qualquer epidemiologista decente não trabalha jamais apenas com taxas de mortalidade total, porque sabe, ao contrário do inefável Froes & Ca., que em Epidemiologia facilmente se observa o chamado efeito de Simpson, ou paradoxo de Simpson. Este é um fenómeno estatístico em que uma tendência observada no total de um conjunto contraria as tendências verificadas nas suas partes.

    Em termos simples, pode acontecer que a mortalidade global de uma população aumente, ao longo de um determinado período, mesmo quando as taxas de mortalidade de todos os grupos etários — incluindo os mais vulneráveis — estão a diminuir. Esta inversão aparente resulta de mudanças na composição interna da população: se, por exemplo, aumenta significativamente o número de pessoas idosas, que apresentam naturalmente maior risco de morte, o total de óbitos tenderá a subir (e a taxa global também), mesmo que o risco individual em cada faixa etária esteja a baixar.

    Este fenómeno é particularmente visível em países com envelhecimento demográfico acelerado, como Portugal. Nas últimas décadas, apesar de se registarem reduções consistentes das taxas de mortalidade específicas em todos os grupos etários, incluindo nos maiores de 85 anos, a mortalidade total anual tem vindo a crescer. Assim, sem uma leitura desagregada por idades ou sem o uso de taxas de mortalidade padronizadas, corre-se o risco de interpretar como agravamento aquilo que, na verdade, é um progresso disfarçado por uma ilusão estatística.

    A única virtude do artigo é mostrar a quantidade de conflito de interesses de Filipe Froes e de António Diniz com a indústria farmacêutica da pandemia. Curiosamente, quando esteve nas sucessivas intervenções televisivas, Froes jamais falou destas ligações. Nem ninguém na comunicação social ‘mainstream’ lhe perguntou.

    A manipulação mais grave, no entanto, reside na forma como os autores seleccionam e interpretam os dados de internamento hospitalar. O artigo apresenta longas tabelas com o número diário de camas ocupadas por “internamentos covid”, em enfermaria e em cuidados intensivos, no período entre Dezembro de 2020 e Fevereiro de 2021. Froes & Ca. sugerem que estes dados ilustram uma pressão sem precedentes sobre o Serviço Nacional de Saúde.

    Mas omitiram — de forma deliberada — um dos paradoxos mais reveladores de toda a pandemia: os dados do Instituto Nacional de Estatística mostram que, entre 2020 e 2022, o número total de internamentos hospitalares em Portugal foi inferior ao registado em anos anteriores, bem como o número global de dias de internamento. Ou seja, o sistema hospitalar teve, em termos agregados, menos actividade assistencial do que em anos pré-pandemia.

    Esta contradição factual — que qualquer investigação científica séria teria de abordar — é ignorada sem pudor. Pior ainda, os autores falham também em referir o que é hoje reconhecido até por instituições oficiais: muitos dos internamentos classificados como covid foram internamentos por outras patologias, com teste positivo para SARS-CoV-2. Assim, a classificação “internamento covid” inclui, sem distinção, situações clínicas muito diversas mas com teste positivo ao SARS-CoV, mesmo que assintomático.

    Mas no artigo da Acta Médica Portuguesa, todos estes casos são apresentados como prova de uma alegada “pressão pandémica” — sem qualquer validação clínica ou segmentação por gravidade. Esta é mais uma omissão grave. Na prática, o que se apresenta como “carga pandémica” pode ter sido, em larga medida, uma reclassificação administrativa de internamentos ordinários, inflacionando os números e alimentando o alarme público.

    Carlos Cortes, bastinário da Ordem dos Médicos, é também director da Acta Medica.

    A ausência de dados sobre o número total de camas hospitalares disponíveis no SNS, ou sobre o número de camas convertidas temporariamente em unidades de cuidados intensivos, é assumida no artigo como limitação — mas essa mesma limitação não impede os autores de fazer afirmações categóricas e de grande peso político e mediático. Isto não é ciência, é retórica institucional disfarçada de artigo científico.

    Mais inquietante é a forma como os autores rejeitam todo o escrutínio científico, escudando-se em “dados oficiais” como se isso lhes conferisse imunidade epistemológica.

    Um dos autores, Filipe Froes, conhecido pelo seu papel mediático durante a pandemia, declara — vá lá! — abertamente ter recebido pagamentos, honorários e colaborações com mais de uma dezena de farmacêuticas, incluindo as principais promotoras de vacinas e de antigripais de eficácia questionável. Não é ilegal, mas torna-se eticamente insustentável que um artigo sobre o impacto da pandemia — coincidente com o início da vacinação em massa — seja publicado sem qualquer crítica ao papel da vacinação, sem referência a efeitos adversos ou à mortalidade em vacinados, ou sem cruzamento com dados de cobertura vacinal. A omissão é gritante e reveladora.

    E a quem cabe a responsabilidade por validar este artigo? À Acta Médica Portuguesa, a revista científica da própria Ordem dos Médicos, dirigida por Carlos Cortes que teve Filipe Froes como seu mandatário nas duas eleições. A revista aceita, publica e legitima um texto curto, como se fosse científico, sem qualquer revisão metodológica visível, sem discussão científica substantiva e, pior ainda, com um objectivo claro de reforçar uma narrativa já amplamente desacreditada na literatura internacional.

    woman in black jacket holding white paper

    Trata-se pois de um uso impróprio de uma plataforma institucional, e uma revista científica, para validar politicamente uma leitura histórica enviesada dos anos pandémicos. A revista da Ordem dos Médicos deveria ser um bastião da integridade científica — mas, neste caso, foi cúmplice de (mais) uma operação de propaganda.

    E, mais uma vez, a comunicação social desempenha aqui um papel vergonhoso: o Expresso, jornal generalista e membro activo do circuito mediático da pandemia, noticiou o artigo sem qualquer filtro crítico, transformando-o em mais um tijolo no edifício da desinformação institucional. Não se perguntou pela ausência de revisão estatística. Não se questionou o conflito de interesses. Não se inquiriu a Ordem dos Médicos sobre a razão de aceitar um artigo tão frágil. Ao contrário: publicou-se com o mesmo entusiasmo reverente com que, em tempos, se noticiavam previsões alarmistas do Imperial College ou números de testes da DGS, sem verificação nem contraditório. O jornalismo falhou — de novo. E os “anos loucos da pandemia” já passaram: convém elevar os padrõezinhos!

    Aquilo que este caso demonstra, em toda a sua crueza, é que a pandemia criou um circuito fechado entre Ciência, política e comunicação social, onde os papéis de validação se sobrepõem e confundem. A autoridade da Ordem dos Médicos é usada para garantir o verniz científico; os autores coniventes (por vezes mercantilmente ligados a farmacêuticas) continuam a fornecer uma narrativa conveniente; os media amplificam sem questionar; e a opinião pública é conduzida como gado bem-comportado. Não há Ciência nisto — apenas um simulacro dela.

    Num país sério, este artigo seria motivo de inquérito interno por parte da Ordem dos Médicos, e a revista Acta Médica Portuguesa teria de rever os seus critérios editoriais. Num país sério, jornalistas confrontariam os autores com as omissões metodológicas e os conflitos de interesse. Num país sério, os dados oficiais seriam cruzados com outras fontes, com análises independentes e com dúvidas saudáveis. Mas Portugal, neste campo, não tem sido um país sério.

    Sem análise crítica, o jornal que se arroga de referência publica tudo como se houvesse novidade e sem contexto crítico. Hoje, é fácil meter uma ‘notícia’ no Expresso.

    A fraude científica não se faz apenas com dados falsos. Faz-se também com dados verdadeiros apresentados de forma enviesada, com omissões de outros dados por causas intencionais e estratégicas, com gráficos sugestivos, com títulos sensacionalistas — e, sobretudo, com a complacência das instituições. É este o caso. E é preciso dizê-lo com todas as letras.

    A pandemia acabou, mas a manipulação continua perene. E quem deveria defender a verdade científica, neste caso, quer ainda enterrá-la — de bata branca e logótipo ao peito.

  • Há um juiz que quer saber como um jornalista passa os tempos livres

    Há um juiz que quer saber como um jornalista passa os tempos livres


    Portugal atravessa um momento de inquietante regressão democrática. Meio século depois da Revolução dos Cravos, os mecanismos institucionais que deveriam salvaguardar os direitos fundamentais começam a tornar-se os seus principais agressores – tudo sob o manto morno da normalidade administrativa. Já não se trata de actos excepcionais. Trata-se da institucionalização do abuso sob a forma de rotina. Do automatismo inquisitório que devora, com papéis timbrados e formulários absurdos, o que resta da dignidade dos cidadãos.

    Falo, sim, na primeira pessoa. Não por vaidade – mas porque o que está em causa é mais do que um processo judicial. É o sintoma de um sistema que já não reconhece os seus próprios limites. Em Setembro começa o meu julgamento no Porto, após ter sido acusado pelo médico Gustavo Carona de 31 crimes de difamação. Um processo movido contra mim, por ter exercido a crítica pública, por ter respondido, por ter escrito. Por não me ter calado.

    Editorial

    Gustavo Carona, médico durante a pandemia, protagonizou momentos de exaltação pública, incentivando um clima de alarme e de exclusão dos que divergiam da narrativa oficial. Empurrou o discurso para a hostilidade e mesmo para o ódio. O meu “crime” foi recusar-me a alinhar com essa moral sanitária de palanque, e exercer, como cidadão e depois como jornalista e director do PÁGINA UM, o dever de contraditório e de sátira. A liberdade de expressão, de que tantos gostam de se apropriar quando lhes convém, parece ser, para certos sectores, uma licença condicional: vale para a militância, mas não para a crítica.

    Não solicitei abertura de instrução. Porque, desde o início, vi neste processo não apenas uma tentativa de intimidação, mas também uma oportunidade. Ser julgado – de forma pública e transparente – é o que desejo. Porque a absolvição será o meu selo de razão, de liberdade de expressão e de compromisso com a verdade jornalística.

    Aquilo que nunca esperei, no entanto, foi o que se passou a seguir.

    Sem qualquer condenação prévia, sem cadastro, nem sequer uma multa de trânsito ou uma dívida fiscal ou à Segurança Social de um cêntimo, e tratando-se de um processo por alegada difamação em contexto escrito, fui surpreendido por um despacho judicial que ordena à Direcção-Geral da Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) a realização de um relatório social sobre mim – como se de um recluso em transição penal se tratasse.

    Esse relatório inclui, entre outros pontos, a investigação sobre, “em especial“, conforme despacho do juiz:

    • o ambiente familiar em que se formou a minha personalidade;
    • as minhas habilitações literárias e o nível de aproveitamento;
    • o ambiente social em que me insiro;
    • a minha situação familiar e profissional;
    • a ocupação dos meus tempos livres;
    • e, claro, a minha situação económica.

    Repito: trata-se de um processo por difamação, por palavras escritas. E já me vejo reduzido a objecto de vigilância institucional, como se a Justiça estivesse mais interessada na arquitectura do meu lar do que na substância dos meus argumentos.

    Fui convocado pela DGRSP para uma “entrevista”, precedida da entrega de um inquérito em papel que roça o grotesco. É um formulário que parece saído de uma casa de correção do século XIX, onde se confundem necessidades sociais com devassidão institucional. A técnica que me atendeu – de forma correcta, apesar de tudo – apresentou-se com a naturalidade mecânica de quem cumpre ordens superiores. O problema não era ela. Era o que representava.

    Instalações da DGRSP na Avenida Almirante Reis, em Lisboa: onde a dignidade fica à porta.

    O questionário, com o selo da DGRSP, começa por perguntar se sou solteiro, casado, divorciado ou em união de facto. Quer saber a composição do meu agregado familiar, o nome e a idade de cada elemento, o rendimento de cada um. Pergunta se vivo em moradia ou apartamento, se tenho casa-de-banho com água canalizada, rede de esgotos e electricidade. Quer saber se os vizinhos me respeitam, se tenho desentendimentos, e se me ocupo de “tarefas domésticas”. E quer o meu contrato de trabalho, se o tiver. Sim, em 2025, o Estado português ainda pergunta se os vizinhos respeitam o arguido.

    Pergunta também se tenho médico de família – e se sim, o seu nome –, se estou doente, se frequento algum tratamento médico, se já tive contactos – não explicita de que género – com os tribunais, a polícia, os serviços prisionais e os serviços de reinserção.

    Mas mais escandaloso ainda foi o que a técnica me solicitou na entrevista: que apresentasse, um por um, comprovativos de abertura de actividade nas Finanças, os certificados das minhas três licenciaturas e do meu mestrado, e o diabo a quatro. Como se o meu currículo – público, acessível, auditável – não valesse nada para o Estado. Como se o jornalista, para ser tratado com respeito, tivesse de provar por escrito o que o seu trabalho demonstra há décadas. Quiseram-me ali para um ritual de humilhação burocrática. Não uma avaliação social – mas uma suspeição ontológica.

    Inquérito da DGSRP para elaboração do relatório social para cumprimento do despacho do juiz.

    E quando recusei responder a certas perguntas – como a da composição do meu agregado ou a descrição do meu ambiente familiar –, fui informado de que isso poderia ser entendido como “falta de colaboração”. Ora, isto é precisamente o reverso do Estado de Direito. Porque exercer o direito à reserva da vida privada (artigo 26.º da Constituição), à liberdade de expressão (artigo 37.º) e à presunção de inocência (artigo 32.º) nunca poderá ser considerado um sinal de rebeldia. Pelo contrário: é um acto de resistência legal.

    Aliás, só quase uma hora depois de ‘debate’, acabei por conseguir que aceitassem o documento que previamente tinha redigido sobre esta matéria. Mas até isso foi difícil.

    Hoje, observa-se uma perigosa tendência para a normalização do abuso. Quando um arguido, ainda mais sendo jornalista, acusado de difamação, é escrutinado ao nível da intimidade, como se estivesse já condenado, e fosse por homicídio, por violência doméstica ou por tráfico de droga, é porque os juízes perderam o senso da proporcionalidade.

    Quando um inquérito social nem sequer tem previsto, na parte da Escolaridade / Formação, a inclusão da alternativas sobre a frequência (e conclusão) de ensino superior, mas já questiona as minudências da residência (água canalizada, electricidade, redes de esgotos, conforto e privacidade), demonstra que o modelo subjacente não visa avaliar com rigor o percurso ou a posição social do arguido, mas antes reduzi-lo a um perfil de carência presumida, como se todo e qualquer acusado fosse, à partida, um desadaptado social em vias de reintegração.

    a wooden judge's hammer sitting on top of a table

    É a inversão perversa da lógica do Direito — e a consagração de um estigma institucionalizado —, onde se apaga a fronteira entre a justiça e o assistencialismo punitivo.

    E quando o aparelho do Estado exige provas documentais para tudo – até para diplomas que são do (re)conhecimento público – é porque o sistema deixou de confiar na sua própria transparência.

    O PÁGINA UM, que dirijo, já demonstrou – em tribunal – que o poder judicial, por vezes, se arroga acima da lei. Um dos processos administrativos que movemos contra o Conselho Superior da Magistratura levou o próprio presidente (e simultaneamente presidente do Supremo Tribunal de Justiça) a ser advertido pessoalmente com multa por incumprimento de uma decisão judicial. Se isto sucede ao topo do sistema, o que esperar das suas ramificações?

    Não está aqui apenas em causa a minha defesa pessoal. É a defesa de todos os que ainda acreditam que ser jornalista em Portugal é mais do que ser porta-voz do sistema. Que ainda acreditam que o contraditório, a sátira e a exposição do poder são parte da seiva da liberdade. Que não aceitam ser classificados, anotados e arquivados como potenciais réus morais por opinarem de forma incómoda.

    Aquilo que está em causa não é a minha vida privada. É a nossa liberdade pública. E se a justiça continuar neste caminho, amanhã o formulário será para todos.

    Espero que haja reacções e que não reine um silêncio cúmplice no meio jornalístico como em outras situações. Um silêncio que lembra — com ironia amarga — a antiga fórmula usada nos tribunais portugueses: “aos costumes, disse nada.”

    Dita por réus sem passado criminal, esta frase era um acto de defesa; mas dita hoje por cidadãos e instituições perante o avanço de uma justiça que tudo quer vigiar e tudo quer devassar, transformando uma democracia num simulacro, é um acto de rendição. Tornou-se símbolo de uma sociedade que aceita os atropelos da autoridade com a mesma passividade com que um arguido habituado à sala de audiências responde ao oficial de diligências.

    woman holding sword statue during daytime

    Mas eu, como jornalista, como cidadão e como homem livre, não digo nada aos costumes — por uma razão simples: é precisamente contra esses costumes que levanto a voz. Não se deve aceitar que o silêncio se transforme em regra e a humilhação em norma. Não se deve aceitar que a liberdade de expressão, de crítica e de privacidade seja degradada a favor de um sistema que, disfarçado de legalidade, anda desejoso de reprimeir o espírito livre.

    Se este meu julgamento — e um seguinte, que este ano, ainda me há-de colocar defronte das acusações da Gouveia e Melo, da Ordem dos Médicos, do ex-bastonário Miguel Guimarães e de dois médicos sem coluna’ (Filipe Froes e Luís Varanda)— servir para alguma coisa, que sirva para isto: não disse nada aos costumes. Mas direi tudo contra os abusos que deles derivam — porque é essa, afinal, a função do jornalista numa democracia: falar quando o poder preferia que se calasse.

  • Moderna: o colapso de um Ícaro que tocou o sol pandémico

    Moderna: o colapso de um Ícaro que tocou o sol pandémico


    Durante os anos febris da pandemia, o mundo assistiu a um espectáculo farmacêutico de proporções inéditas. Como na antiga fábula de Ícaro, e aproveitando a ideia de que eram empresas beneméritas e salvadoras, diversas farmacêuticas alçaram voo tão alto que chegaram a roçar o sol — ou, mais propriamente, a embater na razão e na prudência, escudadas numa narrativa de urgência que legitimava tudo, até o inadmissível.

    Entre estas, a norte-americana Moderna destacou-se como símbolo maior da fortuna repentina, empoleirada sobre uma tecnologia experimental — o mRNA — promovida com ares de milagre científico e embalada por contratos estatais que dispensavam responsabilidades e multiplicavam os lucros.

    Os lucros foram, aliás, de uma obscenidade quase teológica. Em 2021 e 2022, sustentada quase exclusivamente pela vacina Spikevax, a Moderna arrecadou lucros de mais de 20,5 mil milhões de dólares, o equivalente a cerca de 18,6 mil milhões de euros — ou 6,7% do PIB português. Antes de 2021, a Moderna apresentava prejuízos sistemáticos.

    Este sucesso com um só produto — e a Moderna nem sequer foi a farmacêutica que mais vendeu vacinas contra a covid-19 — teve como base uma vacina que, apesar de alegadamente segura e eficaz, foi testada a correr, aprovada sob regimes excepcionais e vendida a governos com cláusulas de exclusão de indemnização em caso de efeitos adversos.

    Tratava-se, dizia-se, de uma emergência — e, como em todas as emergências, os que correm depressa e com bons contactos institucionais colhem primeiro. A Ciência — ou o que dela restava, ou pelo menos a parte que preserva os princípios da prudência — foi empurrada para segundo plano, dando lugar à logística, à política e ao marketing biomédico.

    O frenesim chegou também à bolsa. As acções da Moderna, cotadas no índice Nasdaq sob o irónico símbolo MRNA, que antes da pandemia valiam cerca de 25 dólares, atingiram o seu pico histórico a 10 de Setembro de 2021, quando chegaram aos 449,38 dólares — uma subida de cerca de 1.700% num ano e meio. Foi a glória absoluta, o zénite do voo de Ícaro.

    Mas desde então a queda tem sido vertiginosa. A 1 de Agosto de 2025, a cotação era de apenas 27,60 dólares — uma queda de 94% face ao pico —, levando a empresa a perder quase toda a valorização obtida durante a pandemia. A capitalização bolsista, que em 2021 superava os 180 mil milhões de dólares, ronda agora os 10,7 mil milhões. Um desmoronamento de proporções mitológicas.

    Com o fim do entusiasmo pelos reforços — e a crescente ocultação dos efeitos adversos —, as vendas decaíram. E os prejuízos da Moderna regressaram: 4,7 mil milhões de dólares em 2023 e quase 3,6 mil milhões no ano passado, acompanhados por queda de receitas e poucos sucessos noutras terapias de mRNA.

    Evolução da cotação da Moderna com indicação do máximo (449,38 dólares em 10 de Setembro de 2021) e cotação em 1 de Agosto de 2025 (27,60 dólares). Fonte: Google Finance.

    O tempo do marketing biomédico terminou com estrondo. A Moderna, que em tempos não sabia como gastar o dinheiro que entrava em catadupa — investindo em laboratórios, fábricas, campanhas, contratações —, tenta hoje salvar-se de um declínio que é estrutural. No segundo trimestre de 2025, a empresa anunciou receitas de apenas 142 milhões de dólares, uma queda de 41% face ao período homólogo, e um prejuízo ajustado de 2,13 dólares por acção — ainda assim, melhor que os 2,97 dólares de prejuízo esperados pelos analistas.

    Piores, contudo, são as expectativas para o futuro. James Mock, director financeiro da farmacêutica, procurou suavizar a notícia: parte significativa da receita será reconhecida no terceiro e quarto trimestres, disse. Haverá um pico no outono, sugeriu. Mas reconheceu que o impulso recente veio sobretudo dos reforços de primavera nos EUA e dos cortes de 800 milhões de dólares em custos — um sinal claro de emagrecimento forçado.

    Não por acaso, Stéphane Bancel, CEO da Moderna, anunciou na semana passada a dispensa de cerca de 10% da força laboral. A empresa, que no final de 2024 empregava 5.800 trabalhadores, terá menos de cinco mil até ao fim deste ano.

    Não se trata apenas de reduzir gordura: é uma amputação cauterizada. E, tal como nas narrativas mitológicas, depois do voo de glória vem a queda abrupta. Bancel justificou a decisão com a necessidade de “disciplinar financeiramente” a empresa e preparar o caminho até 2027. Certo é que as milagrosas vacinas de mRNA — outrora apresentadas como o futuro inevitável da Medicina — já não se vendem como dantes.

    O novo produto da empresa — a mRESVIA, dirigida ao vírus sincicial respiratório — está longe de fazer grande sucesso. Até a nova versão da vacina contra a COVID-19, a mNEXSPIKE, obteve apenas uma aprovação restrita: nos Estados Unidos, apenas para maiores de 65 anos ou pessoas com comorbilidades, como sucede com as vacinas sazonais contra a gripe ou a pneumonia. Nada que se aproxime do mercado universal que se quis impor durante a pandemia — com fins meramente mercantilistas.

    Perante este cenário, a Moderna volta-se para o futuro — ou melhor, para a promessa do futuro. Fala de vacinas combinadas, de terapias para doenças raras, de oncologia personalizada, de vírus latentes. Projecta investimentos, anuncia regulações em curso, convoca uma visão estratégica. Mas, por mais que se empunhem termos como “disrupção”, “inovação” e “resiliência”, os dados impõem um regresso à realidade: sem uma nova emergência sanitária (fabricada ou não), dificilmente se repetirá o contexto político, mediático e regulatório que permitiu os lucros faraónicos da era pandémica.

    A crise da Moderna é, pois, paradigmática. Mostra que a transição do modelo de vacina de emergência para o mercado endémico — isto é, concorrencial, previsível e regulado — é dolorosa para quem apenas aprendeu a prosperar com o tapete vermelho estendido pelos governos e pelo alarmismo mediático, assessorado por cientistas mercantilistas.

    Hoje, até os governos que outrora assinaram contratos multimilionários sem pestanejar — muitas vezes sob sigilo — mostram-se menos generosos. E os cidadãos, vacinados em série, começam a questionar se não foram enganados e usados por uma hipérbole institucionalizada.

    Na verdade, aquilo que está a suceder à Moderna não é apenas um estrondo económico: é simbólico. Representa a falência de um modelo que confundiu biotecnologia com salvação, urgência com imunidade, marketing com saúde pública. Representa o ocaso de uma época em que os CEOs das farmacêuticas eram tratados como visionários e não como gestores de interesses corporativos. Representa, em última instância, o regresso de Ícaro ao chão — com as asas derretidas pela luz crua do escrutínio.

    Por isso se impõe uma reflexão mais ampla. O episódio da Moderna deve ser lido não como uma simples travessia empresarial num ciclo de mercado, mas como uma lição civilizacional: de que a Ciência, quando subordinada à lógica do lucro e do pânico, torna-se uma caricatura de si própria; de que a Política Pública, quando abdica do escrutínio, alimenta monstros económicos de pés de barro; e de que o jornalismo, quando abdica do contraditório, ajuda a construir mitos que mais tarde se desfazem em silêncio.

    A Moderna foi, como tantas outras, uma das beneficiárias de uma era de excepções. Mas o seu colapso poderá significar que os tempos da prevenção, da proporcionalidade e da transparência estão de regresso. E com eles, o sol da racionalidade — algo a que as asas de cera não resistem.