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  • A mortalidade triplicou mesmo ou a SIC é o novo Jornal do Incrível?

    A mortalidade triplicou mesmo ou a SIC é o novo Jornal do Incrível?


    A SIC Notícias brindou os portugueses, neste dia da graça de 22 de Agosto, com uma das maiores vergonhas do jornalismo nacional recente: a manchete Calor extremo faz disparar nível de mortalidade para o triplo face a 2024, em arquivo aqui para memória futura. Um enunciado que, à primeira leitura, não resiste sequer ao teste da lógica elementar.

    Triplicar significa aumentar 200%. E, como qualquer aluno do secundário sabe, se em 2024 morreram “x” pessoas, para em 2025 a mortalidade “triplicar” teriam de morrer 3x. Ora, bastaria olhar para a série histórica da mortalidade em Portugal para perceber que tal crescimento seria uma aberração estatística — nunca em tempo algum se registou, nem remotamente, uma explosão destas dimensões.

    Mas afinal, o que mostram os dados oficiais, designadamente os disponibilizados pelo Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO)? Entre 21 de Junho e 20 de Agosto de 2024 morreram 18.570 pessoas. No mesmo período de 2025 morreram 19.606. Diferença: +1.036 óbitos, equivalentes a +5,6%.

    Não há triplicação, nem duplicação, nem um aumento sequer de 50% nem de 10%. Houve apenas um acréscimo marginal, até perfeitamente dentro da variabilidade sazonal. Mas a SIC não hesitou em colocar na capa uma formulação que faria corar qualquer estudante de estatística. O problema não é apenas a mentira numérica: é a incapacidade de suspeitar que a triplicação não tinha lógica alguma e, ainda assim, publicá-lo como verdade absoluta.

    Mesmo que se quisesse, porque a Estatística pode permitir muitos ziguezagues, “puxar” a corda das metodologias, usando baselines mais propensos a detectar excessos de mortalidade — como a média de 2014–2019, um período pré-pandemia em que a mortalidade era mais baixa e a população menos envelhecida (e em menor número) —, o máximo que se encontra é um aumento na ordem dos 20%. E isto com o truque de não usar padronização etária. Mais realistas seriam os cálculos com média 2014–2024, que apontam para +13,6%.

    Porém, uma análise séria teria de incluir a tendência secular e ajustá-la à evolução demográfica. Contas feitas, com o modelo Serfling–Poisson, o excesso no Verão de 2025 não passa assim de +4% (+748 óbitos). Ou seja: nunca, em cenário algum, se chega sequer a 10%. Quanto mais a 200%! A notícia da SIC não é apenas exagerada: é aritmeticamente absurda.

    Evolução da mortalidade diária observada em Portugal no ano de 2025 (linha preta), em comparação com dois baselines históricos: a média dos anos 2014–2019 (linha azul tracejada) e a média de 2014–2024 (linha laranja tracejada). A zona sombreada a laranja corresponde ao período de Verão entre 21 de Junho e 20 de Agosto. Observa-se que, embora durante estas semanas os valores diários de 2025 tenham ficado acima das médias históricas, o desvio foi moderado e nunca configurou uma explosão de mortalidade. A oscilação é compatível com fenómenos sazonais normais e não justifica, jamais, a ideia de uma “triplicação” da mortalidade.

    E há um dado ainda mais revelador que a SIC omitiu, bem como o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge que anda numa azáfama para colar na imprensa um excesso de mortalidade que não existe.

    Com efeito, no acumulado de 2025 até 20 de Agosto, longe de se registar excesso, está a observar-se mesmo um défice de mortalidade, ou seja, menos mortalidade do que a esperada. Entre 1 de Janeiro e 20 de Agosto, o país contabilizou 78.271 óbitos, quando o esperado, ajustado à tendência de envelhecimento, seria de cerca de 81.487. Ou seja, morreram menos 3.216 pessoas do que seria expectável, um défice de 3,9%. Isto significa que, no conjunto do ano, não só não houve uma explosão de mortes, como até se morreu menos do que o normal.

    A “triplicação” da SIC é, portanto, não só falsa mas diametralmente oposta ao real: em vez de se morrer a mais, morreu-se a menos.

    O gráfico mostra a evolução dos óbitos acumulados em Portugal desde 1 de Janeiro até 20 de Agosto de 2025 (linha preta), comparada com três referências distintas: a média diária de 2014–2019 (linha azul tracejada), a média diária de 2014–2024 (linha laranja tracejada) e o baseline ajustado à tendência secular obtido por modelo Serfling–Poisson (linha verde), que incorpora a evolução demográfica e o envelhecimento da população. A zona sombreada a laranja assinala o período de verão, entre 21 de Junho e 20 de Agosto. Apesar de o traçado de 2025 se situar acima das médias históricas não ajustadas durante o verão, a comparação com a linha verde evidencia que, no acumulado anual até 20 de Agosto, o número de óbitos ficou abaixo do esperado, traduzindo um défice de 3,9%. Este resultado confirma que os picos de mortalidade verificados em Julho e Agosto correspondem sobretudo a um efeito de harvesting effect e não a um excesso líquido de mortes.

    Este dado liga-se a um mecanismo conhecido e estudado: o harvesting effect. Em muitos episódios de calor extremo, alguns idosos muito frágeis morrem uns dias ou semanas mais cedo, criando picos temporários. Ou, por outro lado, uma menor actividade gripal no Inverno acaba por ‘permitir’ que no Verão se concentrem mais pessoas altamente vulneráveis. Mas, no verão – que é, aliás, a época do ano de menor mortalidade – logo a seguir a eventuais picos, observa-se um défice compensatório, porque essas pessoas já estavam próximas do fim da vida. É uma espécie de antecipação estatística da mortalidade.

    Em situações normais, excepto casos de ruptura dos sistemas de saúde e crises sanitárias, o resultado líquido, ao fim de alguns meses, tende a ser nulo ou muito reduzido. E é exactamente isso que começa a desenhar-se em 2025, depois das anomalias entre 2020 e 2022: um ligeiro aumento no Verão, mas um défice claro no total anual até Agosto, porque os primeiros meses do ano foram de baixa mortalidade. Aquilo que a SIC pintou como catástrofe inimaginável é, afinal, apenas o jogo normal da sazonalidade e da fragilidade etária.

    Ainda mais grave, a somar ao facto de nenhum editor sénior ter detectado a parvoíce, é quem assina esta autêntica vergonha jornalística. A jornalista responsável passou anos a trabalhar em “fact-checking” para o Polígrafo, projecto que deixou em Novembro do ano passado e se apresenta como guardião da verdade contra a desinformação. Ora, se quem viveu do carimbo “verdadeiro/falso” é capaz de colocar no ar uma falsidade que nem sequer resiste ao senso comum mais básico, que confiança pode ter o público em todo o edifício do chamado “fact-checking”? O caso da SIC mostra como o jornalismo português, em vez de desconfiar e questionar, opta por amplificar narrativas institucionais sem pestanejar, mesmo quando os números gritariam o contrário.

    Tabela comparativa da mortalidade observada em Portugal no verão de 2025 (21 de Junho–20 de Agosto) e no acumulado do ano até 20 de Agosto (YTD), face a dois baselines históricos: média 2014–2019 (A1) e média 2014–2024 (A2). São apresentados os valores observados, os esperados, o excesso absoluto e relativo, bem como a Razão de Mortalidade Padronizada (SMR) e respectivos intervalos de confiança a 95% (IC95%). Mesmo em cenários mais favoráveis à detecção de excesso, os desvios nunca ultrapassam +21%, e no acumulado anual ficam entre +4,8% e +9,5%. Estes valores contrastam radicalmente com a manchete da SIC que falava em “triplicação” (200%), algo estatisticamente impossível e totalmente desprovido de lógica.

    A lógica jornalística deveria ser esta: se alguém afirma que a mortalidade triplicou, o primeiro dever é fazer a conta simples e ver se é plausível. E, em seguida, confrontar a instituição com o disparate. O que aconteceu foi precisamente o inverso: a SIC transformou um disparate em manchete, espalhou-o pelas redes sociais e reforçou o medo colectivo. Tudo isto sem perceber que estava a afirmar uma impossibilidade estatística.

    Em síntese: a SIC não só errou como errou de forma grotesca. Não só exagerou como transformou um aumento de 5,6% (ou mesmo menor) em um suposto aumento de 200%. Não só deixou de fazer jornalismo como prestou um serviço de desinformação. E, talvez mais grave do que tudo isto, revelou uma total ausência de cultura estatística e de escrutínio crítico — exactamente aquilo que um jornalista de “fact-checking” deveria ter como competências mínimas. Publicar esta notícia foi um acto de irresponsabilidade e de propaganda, não de informação.

  • A Economia do Fogo num país de aselhas governado por mentecaptos

    A Economia do Fogo num país de aselhas governado por mentecaptos


    O Governo voltou a anunciar um cardápio de medidas para acudir às zonas devastadas pelos incêndios deste ano: isenções, apoios financeiros a famílias, empresas e agricultores, reconstrução de casas, reforço dos cuidados de saúde, prorrogação de prazos fiscais e contributivos. Um extenso rosário de paliativos, embrulhado em discurso piedoso, que já conhecemos de cor e salteado.

    A cada tragédia sucede a mesma liturgia: visitas oficiais, promessas de apoios, choradeira perante as câmaras, discursos sobre a “solidariedade nacional”. Depois, silêncio, esquecimento e a inevitável repetição da catástrofe. Este é um ciclo vicioso que se arrasta há décadas e que revela não apenas incompetência, mas uma deliberada recusa em alterar a estrutura de um país refém da sua própria economia do fogo.

    Não se trata de má sorte. Não se trata de acidentes. Portugal não tem quatro anos malditos no espaço de um quarto de século por mero acaso – 2003, 2005, 2017 e agora 2025 não são caprichos da Natureza. São a prova empírica de que vivemos num país de aselhas e de mentecaptos políticos, incapazes de agir estruturalmente. Os Governos sucedem-se, mudam as caras, trocam-se siglas partidárias, mas o resultado é sempre o mesmo: hectares e hectares carbonizados, vidas destruídas, um território rural cada vez mais desertificado. Não é azar – é gestão criminosa.

    E, contudo, insiste-se na farsa dos bodes expiatórios. Há sempre quem aponte o dedo aos “incendiários”, às “ignições criminosas”, ao “clima extremo”, até aos “interesses do lítio”. Tudo serve para iludir a raiz do problema: a desordem fundiária, o minifúndio abandonado, a ausência de ordenamento florestal, a dependência do eucalipto e do pinhal, a ausência de políticas sérias de prevenção. O país não é um país de incendiários – é um país que aprecia cultivar essa narrativa, porque ela desvia atenções e permite manter de pé um status quo de interesses aparentemente obscuros mas evidentes nas sombras.

    Fala-se pouco, mas há hoje uma verdadeira Economia do Fogo instalada, tão entranhada quanto as acácias invasoras que dominam os nossos matos. Essa Economia vive e prospera das chamas. Há nela múltiplos actores, todos satisfeitos com o imobilismo governativo. As empresas de meios aéreos, sempre prontas a engordar contratos chorudos a cada verão; as corporações de bombeiros “voluntários”, que já de voluntárias pouco têm e que transformaram a tragédia em mecanismo de financiamento; os madeireiros, que aproveitam a desgraça para adquirir madeira barata e lucrar com a miséria alheia; e, agora, uma nova vaga de empreiteiros da reconstrução, ávidos em receber milhões de euros públicos para erguer de novo o que amanhã pode tornar a arder. É um ciclo obsceno: o fogo destrói, o Estado distribui, meia-dúzia lucram, os contribuintes pagam.

    silhouette of trees on smoke covered forest

    Não pode continuar esta palhaçada. Não é com apoios pontuais, com moratórias fiscais, com subsídios de tesouraria que se resolve um problema estrutural. É preciso romper com a lógica assistencialista e com o oportunismo político que se alimenta da tragédia.

    Portugal precisa de mudanças drásticas e corajosas: consolidação fundiária, gestão dos espaços florestais profissionalizada em larga escala, limitação séria da expansão de espécies silvícolas cada vez menos adaptadas às condições socio-ambientais (eucalipto e pinheiro-bravo), investimento continuado em prevenção e silvicultura sustentável. Não se trata de inventar a roda, mas de ter coragem política para enfrentar lóbis instalados e pôr fim à Economia do Fogo.

    Em 2003, Durão Barroso prometeu uma reforma profunda após o verão infernal. Em 2005, já com Sócrates, repetiram-se juras de “nunca mais”. Em 2017, António Costa encenou a mesma coreografia, jurando que a tragédia de Pedrógão e os fogos do Outono seria um ponto de viragem. Hoje, Montenegro vem repetir o ritual: mais apoios, mais promessas, mais remendos. O guião é o mesmo, os protagonistas mudam.

    bonfire

    O país não aguenta mais este teatro macabro. Não basta reconstruir o que arde, é preciso impedir que arda. O Governo tem de escolher se quer ser cúmplice de um sistema parasitário ou se quer, finalmente, governar para o interesse público. Portugal não precisa de mais discursos piedosos nem de mais milhões a fundo perdido para sustentar esta Economia do Fogo. Precisa de líderes que tenham a coragem de dizer basta e que, em vez de lágrimas de ocasião, tragam reformas estruturais. Se Montenegro repetir o mesmo que prometeram Barroso, Sócrates e Costa, ficará inscrito na mesma lista infame de chefes de Governo que deixaram o país arder em cinzas.

    Esse é o ponto de hoje: ou se rompe, ou continuaremos a ser um país de aselhas, governado por mentecaptos políticos, que confundem solidariedade com esmolas e política com oportunismo. O futuro da floresta, do território e da própria dignidade nacional não pode ficar refém desta Economia do Fogo.

  • Correio Mercantil de Brás Cubas

    Correio Mercantil de Brás Cubas


    PRÉ-VENDA NA LOJA DO PÁGINA UM

    17,50 euros (com portes incluídos para território nacional)

    Leia aqui o prólogo e três das crónicas

    O regresso literário de Brás Cubas em pleno século XXI, agora pela pena de Pedro Almeida Vieira, numa obra de humor erudito e crítica social mordaz. As crónicas revistas e aumentadas numa edição esmerada.

    O Correio Mercantil de Brás Cubas reinventa a tradição machadiana e oferece ao leitor crónicas satíricas sobre política, jornalismo e costumes contemporâneos, não do Brasil do século XIX, mas do Portugal do século XXI.

    Esta é a edição príncipe, impressa em tiragem exclusiva para os leitores do PÁGINA UM, que ostentará o nome dos subscritores em pré-venda até 12 de Setembro.

    Uma oportunidade única de figurar para sempre nas páginas de uma obra que alia inteligência, ironia e actualidade.

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    Envio dos livros a partir de 15 de Outubro. Será enviado recibo.

    Em caso de dúvida ou para aquisição em quantidade, por favor envie mensagem para loja@paginaum.pt

    PRÉ-VENDA NA LOJA DO PÁGINA UM

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    Prólogo de papel passado, ou a inconveniência tipográfica da minha ressurreição literária

    Estimadas leitoras e veneráveis leitores — sois vós agora, por artimanha editorial, os destinatários de um volume que, em bom rigor e decência metafísica, jamais deveria ter existido. Refiro-me, é claro, a este opúsculo desmesurado, baptizado Correio Mercantil de Brás Cubas, em cujas páginas se alojam, com impunidade tipográfica, as minhas mais recentes epístolas ao mundo dos vivos.

    Antes de mais, assinale-se o óbvio: um defunto não escreve livros. Pode, quando muito, soprar crónicas ao ouvido de escribas cansados, insinuar sarcasmos ao teclado de jornalistas descontentes ou, com a audácia dos espectros persistentes, lançar ironias em formato digital, tão voláteis como ectoplasma em dia de vento. Com a sua natureza evanescente, o meio electrónico condiz com a condição ectoplasmática de quem, como eu, já não tem carne, mas conserva os nervos do espírito Agora, transladar tal obra para o papel — esse nobre e vetusto suporte que se esfarrapa, se dobra, se encaderna e, pior ainda, se arquiva — é exercício de teimosia editorial, quase necromancia gráfica. Mas que hei-de eu fazer? Até os mortos têm editores.

    Confesso, pois, a minha estupefacção inicial. Um livro? Meu? Novamente? Depois de quase um século e meio de retiro no ossário da Literatura? Que insulto à compostura tumular! O papel, ao contrário do éter digital, compromete, fixa, torna oficial — e, para mal dos meus pecados, cria leitores com marca-páginas. Eis a tragédia: tornar-me autor reincidente sem sequer ter tido tempo para renegociar os direitos de autor com São Pedro.

    Dir-me-eis: “E as crónicas, Brás Cubas, essas que compusestes para o PÁGINA UM com desdém filosófico e fel risonho, que destino julgáveis que teriam?” Ó ingénuos! Julgava-as como folhas ao vento, para distrair os espíritos e afligir os vivos. Eram, à nascença, textos para correr mundo com leveza, não para serem impressos com ISBN. Escrevi-as como quem lança garrafas ao mar da internet, não como quem ergue catedrais de sarcasmo. Eis, portanto, a minha justificação: nunca foi minha intenção compor uma obra; apenas uma perturbação intermitente do vosso bom senso.

    Mas já que me imprimem — e com capa, lombada e prólogo, veja-se! —, cumpre-me esclarecer o propósito deste volume. Não é um romance, ainda que contenha personagens mais absurdas do que os de Balzac; não é um ensaio, embora se veja nele mais pensamento do que em muitos tratados universitários; tampouco é um panfleto, mesmo que esmurre com elegância vários dogmas do vosso tempo. Trata-se, tão-só, de um modesto inventário da loucura contemporânea, registado por um defunto com bom ouvido, má-língua e infinito tempo para observar as vossas insanidades.

    Em cada crónica aqui reunida — sim, crónicas, pois não se lhes pode chamar sermões, nem sentenças, nem editoriais — encontrarão uma tentativa de compreender a grotesca metamorfose do vosso século, essa era em que os reis se fazem bobos para ganharem votos, os moralistas se vendem a fundações, os artistas facturam em nome do sublime e os jornalistas já não investigam, mas reverenciam. O meu olhar não é neutro, porque os mortos não são imparciais: não tendo mais a perder, só nos resta a liberdade de rir.

    De António Costa a Cristina Ferreira, do Santo Padre às jerricanocracias lusas, da estética subsidiada à electricidade perdida, e com uma embirração especial para com os jornalistas e o Almirante Gouveia e Melo, percorro — com a ajuda do meu indispensável piparote — as misérias, as farsas, os eufemismos e os escândalos ocultos de uma Pátria que parece hoje menos uma Nação e mais uma anedota com impostos e taxas. As minhas crónicas são, portanto, actas da vossa decadência, redigidas por um escrivão sem corpo, mas com memória.

    E se há mérito nesta publicação, não me pertence inteiramente. Há, de facto, um vivo que se prestou ao vexame de me servir de médium e de amanuense, um tal Pedro Almeida Vieira — literato outrora conhecido, depois silente, agora ressurgido, como eu, mas ainda de carne e muitos ossos, muito cabelo e já alguma gordura — que, por nostalgia ou insanidade, vem prestar-me corpo tipográfico. É ele quem assina por mim na contabilidade dos livreiros, embora se saiba que, neste acordo, a alma sou eu. Em boa verdade, é o seu regresso à literatura; no meu caso, é apenas uma recaída.

    E assim vos deixo, leitoras de sensibilidade e leitores de coragem, com este compêndio de mordacidade. Não é obra de amor, mas de lucidez; não consola, mas esclarece; não perdoa, mas diverte. Se rirdes, cumpri o meu intento. Se vos ofenderdes, melhor ainda

    Brás Cubas

  • Correio Mercantil de Brás Cubas: o livro

    Correio Mercantil de Brás Cubas: o livro


    PRÉ-VENDA NA LOJA DO PÁGINA UM

    Há momentos históricos no percurso do PÁGINA UM, e há outros que, podendo não ser históricos, são profundamente sentidos, quase íntimos. A publicação do primeiro livro com a chancela do jornal pertence a esta segunda categoria: não é apenas um marco editorial, é também um gesto de afecto e de compromisso.

    Bem sei que se trata de um livro em nome próprio, que assinala o meu regresso à Literatura após uma década de interregno, e que o faço com uma certa imprudente ousadia: ao longo do último ano, dei nova vida a Brás Cubas, a célebre personagem póstuma de Machado de Assis, para analisar, com mordacidade e ironia, a política e a sociedade portuguesa. Caberá aos leitores – e, inevitavelmente, aos críticos – decidir se se trata de um mero pastiche ou de uma homenagem conseguida.

    Com o passar dos meses, porém, percebi que estas crónicas não deviam ficar condenadas a uma existência simultaneamente efémera e perene na Internet. Mereciam antes um relicário mais digno: a forma impressa, que continua a ser o altar maior onde a Literatura encontra a sua eternidade. Assim nasceu, o Correio Mercantil de Brás Cubas.

    Decidimos lançar a obra em pré-venda, antes da sua ida para o prelo, recuperando uma tradição do século XIX que Alexandre Herculano usou no seu Eurico, o Presbítero: permitir a subscrição prévia, com o nome dos compradores e o número de exemplares adquiridos a constarem na edição príncipe. É, por isso, mais do que uma honra para o PÁGINA UM: é também uma homenagem a todos aqueles que, ao longo destes três anos e meio, têm acompanhado e sustentado o nosso percurso.

    Deixamos já à vossa leitura o prólogo assinado pelo próprio Brás Cubas, bem como três crónicas de amostra – que, confessadamente, são as mais fracas da meia centena que compõe a obra. A pré-venda decorrerá até 10 de Setembro, e os exemplares serão enviados a partir de 15 de Outubro.

    Pedro Almeida Vieira

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    Prólogo de papel passado, ou a inconveniência tipográfica da minha ressurreição literária

    Estimadas leitoras e veneráveis leitores — sois vós agora, por artimanha editorial, os destinatários de um volume que, em bom rigor e decência metafísica, jamais deveria ter existido. Refiro-me, é claro, a este opúsculo desmesurado, baptizado Correio Mercantil de Brás Cubas, em cujas páginas se alojam, com impunidade tipográfica, as minhas mais recentes epístolas ao mundo dos vivos.

    Antes de mais, assinale-se o óbvio: um defunto não escreve livros. Pode, quando muito, soprar crónicas ao ouvido de escribas cansados, insinuar sarcasmos ao teclado de jornalistas descontentes ou, com a audácia dos espectros persistentes, lançar ironias em formato digital, tão voláteis como ectoplasma em dia de vento. Com a sua natureza evanescente, o meio electrónico condiz com a condição ectoplasmática de quem, como eu, já não tem carne, mas conserva os nervos do espírito Agora, transladar tal obra para o papel — esse nobre e vetusto suporte que se esfarrapa, se dobra, se encaderna e, pior ainda, se arquiva — é exercício de teimosia editorial, quase necromancia gráfica. Mas que hei-de eu fazer? Até os mortos têm editores.

    Confesso, pois, a minha estupefacção inicial. Um livro? Meu? Novamente? Depois de quase um século e meio de retiro no ossário da Literatura? Que insulto à compostura tumular! O papel, ao contrário do éter digital, compromete, fixa, torna oficial — e, para mal dos meus pecados, cria leitores com marca-páginas. Eis a tragédia: tornar-me autor reincidente sem sequer ter tido tempo para renegociar os direitos de autor com São Pedro.

    Dir-me-eis: “E as crónicas, Brás Cubas, essas que compusestes para o PÁGINA UM com desdém filosófico e fel risonho, que destino julgáveis que teriam?” Ó ingénuos! Julgava-as como folhas ao vento, para distrair os espíritos e afligir os vivos. Eram, à nascença, textos para correr mundo com leveza, não para serem impressos com ISBN. Escrevi-as como quem lança garrafas ao mar da internet, não como quem ergue catedrais de sarcasmo. Eis, portanto, a minha justificação: nunca foi minha intenção compor uma obra; apenas uma perturbação intermitente do vosso bom senso.

    Mas já que me imprimem — e com capa, lombada e prólogo, veja-se! —, cumpre-me esclarecer o propósito deste volume. Não é um romance, ainda que contenha personagens mais absurdas do que os de Balzac; não é um ensaio, embora se veja nele mais pensamento do que em muitos tratados universitários; tampouco é um panfleto, mesmo que esmurre com elegância vários dogmas do vosso tempo. Trata-se, tão-só, de um modesto inventário da loucura contemporânea, registado por um defunto com bom ouvido, má-língua e infinito tempo para observar as vossas insanidades.

    Em cada crónica aqui reunida — sim, crónicas, pois não se lhes pode chamar sermões, nem sentenças, nem editoriais — encontrarão uma tentativa de compreender a grotesca metamorfose do vosso século, essa era em que os reis se fazem bobos para ganharem votos, os moralistas se vendem a fundações, os artistas facturam em nome do sublime e os jornalistas já não investigam, mas reverenciam. O meu olhar não é neutro, porque os mortos não são imparciais: não tendo mais a perder, só nos resta a liberdade de rir.

    De António Costa a Cristina Ferreira, do Santo Padre às jerricanocracias lusas, da estética subsidiada à electricidade perdida, e com uma embirração especial para com os jornalistas e o Almirante Gouveia e Melo, percorro — com a ajuda do meu indispensável piparote — as misérias, as farsas, os eufemismos e os escândalos ocultos de uma Pátria que parece hoje menos uma Nação e mais uma anedota com impostos e taxas. As minhas crónicas são, portanto, actas da vossa decadência, redigidas por um escrivão sem corpo, mas com memória.

    E se há mérito nesta publicação, não me pertence inteiramente. Há, de facto, um vivo que se prestou ao vexame de me servir de médium e de amanuense, um tal Pedro Almeida Vieira — literato outrora conhecido, depois silente, agora ressurgido, como eu, mas ainda de carne e muitos ossos, muito cabelo e já alguma gordura — que, por nostalgia ou insanidade, vem prestar-me corpo tipográfico. É ele quem assina por mim na contabilidade dos livreiros, embora se saiba que, neste acordo, a alma sou eu. Em boa verdade, é o seu regresso à literatura; no meu caso, é apenas uma recaída.

    E assim vos deixo, leitoras de sensibilidade e leitores de coragem, com este compêndio de mordacidade. Não é obra de amor, mas de lucidez; não consola, mas esclarece; não perdoa, mas diverte. Se rirdes, cumpri o meu intento. Se vos ofenderdes, melhor ainda

    Brás Cubas

  • O Índice ICARO do Instituto Nacional de Saúde não é um alerta; é uma farsa científica

    O Índice ICARO do Instituto Nacional de Saúde não é um alerta; é uma farsa científica


    Um investigador ou cientista, para ser credível, tem de cumprir duas premissas: a reprodutibilidade das suas conclusões e a transparência na comunicação pública. E mais uma terceira: a humildade de ser questionado e fiscalizado, mesmo se por alguém que ele possa considerar menos capacitado.

    Ora, em Portugal, a academia tem, infelizmente, caído na velha tentação de se juntar ao poder, sobretudo ao poder político, esquecendo que uma universidade pública deve, em primeiro lugar, ser penhor da Ciência e da Verdade, e da sociedade, e nunca do poder. Pelo contrário, deve até procurar afastar-se de qualquer intromissão política. Não tem sido isso que tem sucedido.

    Fernando de Almeida, presidente do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge

    Por exemplo, o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) tem vindo, ao longo dos últimos anos, a comportar-se como um tentacular braço dos Governos em matérias de saúde pública: ora por omissão, quando não realiza estudos que seriam essenciais à compreensão dos fenómenos epidemiológicos; ora por manipulação, quando apresenta relatórios alinhados com narrativas políticas. Basta recordar a recusa em fazer um escrutínio sério do excesso de mortalidade não-covid em 2020 e 2021, ou a ausência de uma avaliação rigorosa da mortalidade global em 2022. A Ciência foi preterida ao serviço de conveniências.

    Este ano, o INSA voltou a dar mostras de que, em Portugal, a investigação em saúde pública é moldada pelas necessidades comunicacionais do poder. O caso do Índice ÍCARO é, neste ponto, paradigmático. No início deste mês de Agosto, com a vaga de incêndios, o INSA divulgou valores do Índice ÍCARO que apontariam para um inédito excesso de mortalidade entre 4 e 6 de Agosto da ordem de 1.100 óbitos – números alarmistas e sem consistência empírica. Porém, logo no dia seguinte, esses dados foram “corrigidos”, ainda assim para valores elevados, sem qualquer explicação metodológica. E, apesar das insistências do PÁGINA UM, o presidente do INSA, Fernando de Almeida, recusou prestar esclarecimentos.

    Nos dias seguintes, predispus-me eu a confrontar as previsões alarmistas do INSA com dados reais. E o ‘edifício’ do INSA desmoronava-se. Entre 25 de Julho e 7 de Agosto deste ano, em 14 dias, registaram-se 4.601 mortes contra um valor previsto de 4.373. Ou seja, um excesso de apenas 228 óbitos, equivalente a +5,2% — significativo, sim, mas a anos-luz das duplicações anunciadas pelo Índice ÍCARO. Convém recordar que este acréscimo ocorreu num contexto de Inverno menos agressivo em termos gripais, o que, paradoxalmente, teria produzido um défice prévio de mortalidade, susceptível de “inflacionar” o impacto de vagas de calor.

    Reportagem da RTP sobre o alegado excesso de mortalidade e o Índice INSA, com a participação das investigadoras Susana Silva (esq.) e Ana Paula Rodrigues (dir.).

    Perante esta evidência, o que fez o INSA? Organizou, em cooperação com a RTP, uma encenação, protagonizada pelas investigadoras Ana Paula Rodrigues e Susana Silva. Uma pantomima travestida de comunicação científica, onde se insistiu na narrativa de um excesso de cerca de 950 óbitos desde finais de Julho, enquanto se exibiam gráficos vagos e inócuos em ecrã, cuidadosamente desprovidos de dados reprodutíveis. Um exercício mais próximo da propaganda do que da Ciência, colocado estrategicamente numa quinta-feira à noite, em véspera de sexta-feira e antes de um fim-de-semana. Tudo para garantir menor contraditório mediático.

    Ora, como qualquer investigador sabe, a Ciência sem escrutínio é apenas retórica. Aquilo que se exigiria ao INSA seria simples: publicamente, dar a conhecer a descrição metodológica completa do Índice ÍCARO, o modelo estatístico usado para previsão e “correcção por observação”, a definição operacional de “excesso de mortalidade”, as séries diárias de mortalidade observada e esperada, os cálculos que sustentam os tais “950 óbitos em excesso”, a explicitação do efeito de colheita, a indicação das fontes de dados e a análise de robustez a diferentes metodologias. Pedi isto formalmente, na passada segunda-feira, à investigadora Ana Paula Rodrigues, com conhecimento ao gabinete de comunicação do INSA e ao seu presidente. Até hoje, nada.

    Perante esta evidência empírica, a conclusão é inequívoca: a investigação baseada no Índice ÍCARO por parte do INSA não passa de um artifício, uma encenação pseudocientífica que confunde indicadores exploratórios com diagnósticos de mortalidade, manipulando dados conforme as conveniências. E assim, quando a Ciência é usada para encobrir, em vez de esclarecer, deixa de ser Ciência. E quando uma instituição pública de saúde se presta a este jogo, abdica do seu dever maior: servir a verdade e a sociedade.

    A reprodutibilidade e a transparência são duas premissas da Ciência. Mas, aparentemente, não para o INSA.

    Tudo isto não é apenas uma questão metodológica; é uma questão ética. A opacidade do INSA é um insulto à comunidade científica e uma afronta à cidadania. Mais grave ainda é a cumplicidade dos meios de comunicação social, incapazes de exercer o contraditório, aceitando como dogma aquilo que deveria ser alvo de escrutínio. Repita-se por outras palavras, porque nunca é demais: a Ciência sem transparência e sem reprodutibilidade não é Ciência; é prestidigitação. E quem confunde Ciência com prestidigitação não só desonra a academia, como mina a confiança pública.

    O Índice ÍCARO, tal como está a ser usado, não é um alerta: é uma farsa.

  • Sabe a causa dos incêndios devastadores? Não são as alterações climáticas; é a tragédia dos anti-comuns

    Sabe a causa dos incêndios devastadores? Não são as alterações climáticas; é a tragédia dos anti-comuns


    Portugal atravessa um dos piores Agostos de sempre em matéria de fogos. Mais de 200 mil hectares já arderam desde Janeiro, e a contabilidade cresce a cada dia. O número impressiona, mas o país já quase se habituou a vê-lo repetir-se, década após década, com a mesma coreografia: discursos inflamados, homenagens aos bombeiros, promessas de reformas e um rasto de cinzas. O que ninguém encara de frente é a raiz estrutural do problema: a floresta portuguesa vive presa numa “tragédia dos anti-comuns”.

    O termo pode soar académico, mas descreve com precisão a realidade do território. Ao contrário da “tragédia dos comuns” — quando um recurso partilhado é destruído por uso excessivo —, a dos anti-comuns resulta de uma fragmentação que paralisa a gestão: demasiados donos, cada um com poder de exclusão, nenhum com capacidade de agir em escala. Portugal é o caso perfeito: 11,6 milhões de prédios rústicos, muitos com dimensões microscópicas, abandonados ou em litígio entre herdeiros. Cada proprietário olha para a sua parcela; o fogo, porém, olha para o conjunto.

    Tall trees create a dense forest scene.

    É aqui que se esconde a confusão maior. “Floresta privada” não é a mesma coisa que “espaços florestais”. A primeira refere-se às parcelas, registadas nas conservatórias, com estremas e dono definido. Os segundos são o território real: manchas de vegetação contínuas, cursos de água, ecossistemas e paisagens que não reconhecem limites de caderneta. O incêndio não se detém numa estremadura; os benefícios ambientais também não. O ar limpo, a regulação da água, o sequestro de carbono, a biodiversidade — tudo isto ultrapassa as linhas do cadastro. Por isso, os espaços florestais, mesmo em terrenos privados, devem ser encarados como bens públicos.

    Durante muito tempo, a gestão não falhou. Pelo contrário: funcionava porque a paisagem tinha uso e valor. O pinhal era resinado, a lenha e a caruma aqueciam casas, os baldios eram administrados pelas comunidades, e os Serviços Florestais mantinham vigilância, caminhos e aceiros. Havia uma economia do mato e uma autoridade técnica que impunha regras. Funcionava porque havia gente no território e guardas no terreno.

    Esse modelo desfez-se nas últimas décadas. E não foi por causa das alterações climáticas nem pelas ondas de calor – foi por razões políticas, de erros de desenvolvimento. As alterações climáticas aumentam o risco, mas não são o factor desencadeador dos fogos destrutivos. A causa principal está no contínuo vegetal que aumentou, quer em extensão quer em volume, por razões demográficas, económicas e sobretudo políticas.

    an aerial view of a village surrounded by lush green hills

    O êxodo rural esvaziou as aldeias, a resinagem deixou de dar rendimento, os baldios perderam relevância e os Serviços Florestais foram virtualmente extintos. Onde havia uso e vigilância, ficou abandono; onde havia técnicos e guardas, ficou a retórica; onde havia economia, ficou custo. A floresta deixou de ter dono visível e passou a ser combustível à espera da próxima ignição.

    É neste vazio que os incêndios ceifam – e é aqui que cada vez mais urge defender um novo paradigma: a criação de um efectivo Sistema de Gestão de Espaços Florestais (SIGEF), de natureza pública, com equipas permanentes no terreno, incluindo prevenção e combate. O modelo é simples: técnicos, sapadores e vigilantes com mandato para limpar, vigiar e agir, incluindo em áreas privadas, sempre sem custos directos aos proprietários – e, pelo contrário, com compensações justas pelos serviços ambientais prestados pelas suas parcelas. E com uma lógica clara: quem se abstém de gerir não bloqueará o interesse colectivo, quebrando assim a possibilidade de accionar a tragédia dos anti-comuns.

    Assumir os espaços florestais como um bem público teria naturalmente um custo orçamental robusto. Se o Estado quisesse assegurar uma gestão integrada de toda a superfície florestal do continente — cerca de 6,2 milhões de hectares, que inclui áreas de floresta e matos —, com economia de escala, ciclos de limpeza de cinco anos e preços médios de 800 euros por hectare, o encargo anual rondaria 1,1 mil milhões de euros, considerando a rotatividade neste sistema de gestão.

    Mesmo admitindo intervalos de eficiência, o orçamento para este sistema nunca seria inferior a 900 milhões de euros. Em termos macroeconómicos, trata-se de um valor equivalente a pouco mais de 0,4 % do PIB português, montante comparável àquilo que o país despende anualmente em políticas activas de emprego.

    A diferença, porém, é que este esforço financeiro representaria uma inversão do paradigma actual: em vez de dependermos de milhares de minifundiários incapazes de coordenar estratégias de prevenção, o Estado assumiria a floresta como património comum, reduzindo drasticamente a lógica dos anti-comuns que hoje favorece a desordem, a inércia e, em última instância, a catástrofe dos megaincêndios.

    Os números mostram que não é dinheiro que falta: é racionalidade. Entre 2000 e 2016, os incêndios custaram ao país 5,2 mil milhões de euros; em 2003, só num ano, os prejuízos ultrapassaram 1,5 mil milhões. E há custos que passariam a ser evitados. Por exemplo, actualmente entre 45% e 50% da despesa pública — e foi de cerca de 640 milhões de euros em 2024 — é destinada apenas às operações de combate, incluindo meios aéreos.

    Com uma gestão adequada dos espaços florestais, uma parte significativa seria poupada. Menos incêndios seria também riqueza que se criaria: os custos (indicativos) de madeira perdida por incêndios rondam os 1.000 a 1.500 euros por hectare.

    A lush green forest filled with lots of trees

    Além disso, têm de se considerar os custos ambientais e mesmo climáticos: em 2017, cerca de 40% das emissões de dióxido de carbono foram dos incêndios; este ano estarão seguramente acima dos 20%. Existem também os custos em infra-estruturas destruídas (habitações, estradas, prejuízos agrícolas, etc.) e as perdas no turismo. Fazendo algumas contas, o ganho económico potencial de reduzir drasticamente os incêndios situa-se entre os 0,25% e os 0,45% do PIB.

    Mesmo assim, numa primeira fase, o sistema poderia obter um financiamento assente em três pilares, numa lógica clara e percebida como taxa de serviços públicos: contributo diversificado, incidência proporcional e justiça social.

    O primeiro pilar seria o reforço do Fundo Ambiental, via receitas da fiscalidade verde e, sobretudo, das licenças de carbono. Portugal arrecada, em média, 400 milhões de euros por ano apenas com leilões de dióxido de carbono (CO₂). Se um quarto desse montante fosse automaticamente canalizado para a gestão florestal, garantir-se-ia uma verba fixa de 100 milhões anuais.

    cars passing through north and south

    O segundo pilar seria um adicional ao IMI rústico — cujo valor é quase nulo —, aplicando-se um imposto inicial de cinco euros por prédio, mas com forte progressividade: explorações activas ficariam praticamente isentas, enquanto prédios abandonados, em litígio ou em regime de absentismo fiscal suportariam uma carga maior. Desta forma, além de ser um incentivo ao emparcelamento e à venda de prédios rústicos abandonados, seria possível gerar entre 120 e 150 milhões anuais, mas sem penalizar quem mantém a terra viva e produtiva.

    O terceiro pilar seria a criação de uma Taxa de Protecção de Espaços Florestais. Com a aplicação de uma taxa anual de 10 euros por prédio urbano (cerca de 6 milhões) e por veículo motorizado (cerca de 7,2 milhões), a receita anual ultrapassaria os 130 milhões de euros. O valor continua irrisório para quem possui uma habitação ou um automóvel, mas permitiria financiar de forma directa a rede nacional de prevenção e vigilância florestal.

    Naturalmente, a parte da despesa já inscrita todos os anos no Orçamento do Estado — cerca de 600 milhões em prevenção e combate — teria de ser incorporada no novo modelo, funcionando como verba cativa e estável.

    Ao mesmo tempo, Portugal poderia exigir em Bruxelas a criação de um Fundo Europeu de Coesão Florestal, aplicando o princípio da solidariedade ambiental: países menos expostos ao risco de incêndio contribuiriam mais para apoiar aqueles que, como Portugal, Espanha ou Grécia, enfrentam o drama recorrente do fogo. Um mecanismo deste tipo poderia garantir entre 200 e 250 milhões de euros anuais, integrando a política florestal na própria agenda climática europeia e servindo para financiar os serviços ambientais dos proprietários.

    a bridge over a river

    Com este modelo, em vez de desperdiçar milhares de milhões em prejuízos a cada década, Portugal passaria a investir de forma previsível, justa e transparente. Porque transformar os espaços florestais em bens públicos exige também que o seu financiamento seja público, claro e equitativo — distribuindo encargos de acordo com a responsabilidade, mas também com a solidariedade nacional.

    Persistir no modelo actual — pseudo-voluntário, de glorificação da tragédia — mostra-se insustentável económica e socialmente. Se 2025 já está entre os piores anos deste século, é porque Portugal insiste em varrer cinzas em vez de organizar o território. Enquanto não se assumir que os espaços florestais são bens públicos e não se pagar para os gerir, o país continuará a repetir este Verão: cada vez mais extenso, cada vez mais caro, cada vez mais devastador.

  • Da pandemia aos fogos: o jornalismo em (contínua) crise

    Da pandemia aos fogos: o jornalismo em (contínua) crise


    O jornalismo é, por definição, uma actividade que serve a sociedade: informar, denunciar, interpretar. Não é uma função de propaganda, não é um exercício de entretenimento, não é um palco para vaidades nem um púlpito para a catequese do medo.

    O jornalista tem de olhar para a realidade com instrumentos de rigor e de contexto, sem se deixar enredar por paninhos quentes, mas também sem cair no grotesco do sensacionalismo ou no enviesamento interesseiro. Esta é a condição mínima para se merecer a designação de jornalista. Fora disso, sobra apenas o comentador mal informado, o propagandista disfarçado ou o vendedor de emoções baratas.

    Infelizmente, o passado recente deveria ter servido de lição. Durante a pandemia, a sociedade — não apenas a portuguesa, mas a global — foi bombardeada por um estilo de jornalismo que, de tão abjecto, deveria envergonhar gerações inteiras de editores e repórteres.

    A imprensa desempenhou, durante a pandemia, um papel que ficará como exemplo de como o jornalismo pode degenerar em propaganda alarmista. Em vez de informar com contexto e rigor, cultivou-se uma verdadeira cultura do medo. As manchetes diárias, em letras garrafais, com o número de “casos positivos” foram transformadas em termómetro universal da catástrofe, como se a detecção de um vírus fosse, por si só, doença, sofrimento ou morte. A ausência de qualquer referência sistemática à distribuição etária, aos factores de risco, ou às probabilidades reais de complicação clínica, contribuiu para a percepção de que todos estavam igualmente ameaçados — o recém-nascido e o octogenário, o saudável e o moribundo.

    Os telejornais alimentaram a amplificação do risco através de uma estética de guerra: gráficos vermelhos, contadores em tempo real, rodapés permanentes a anunciar internamentos e mortes, como se a realidade epidemiológica pudesse ser reduzida a um placar de futebol macabro. Pior: chegou-se ao absurdo moral de aplaudir a descida de internados em cuidados intensivos, omitindo que parte dessa descida resultava apenas de óbitos. Uma contabilidade mórbida mascarada de boas notícias.

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    A imprensa também fomentou uma verdadeira cultura de ostracização. Quem duvidava das medidas mais draconianas, quem ousava interrogar a proporcionalidade dos confinamentos ou o impacto das vacinas em fase experimental, era imediatamente rotulado de irresponsável, negacionista, conspiracionista. Criou-se uma divisão maniqueísta: os “bons cidadãos”, obedientes e submissos, versus os “maus cidadãos”, suspeitos e perigosos. Esta lógica, mais próxima de regimes totalitários do que de democracias abertas, foi incentivada e reproduzida nos estúdios televisivos e nas páginas de jornais.

    A linguagem da imprensa revelou uma incapacidade estrutural de contextualizar. Falava-se em milhares de mortos diários na Índia ou no Brasil, esquecendo-se de referir que tais números correspondiam a populações centenas de vezes maiores do que a portuguesa. Comparavam-se riscos de crianças e jovens como se fossem idênticos aos dos idosos frágeis, criando um clima de pânico transversal sem fundamento epidemiológico. A estatística, que deveria ser instrumento de esclarecimento, foi usada como arma de propaganda.

    Mais grave: a imprensa não apenas falhou na análise crítica, como se colocou em posição servil diante das autoridades políticas e sanitárias. Em vez de questionar contratos de vacinas, metodologias de contagem de mortos ou critérios de confinamento, preferiu repetir comunicados oficiais, legitimando sem reservas a narrativa dominante. O jornalismo tornou-se megafone do poder, abdicando da sua função essencial de escrutínio.

    A large bonfire blazing at night with embers and sparks flying into the dark sky.

    O resultado foi devastador: fomentou-se uma cultura de medo permanente, minou-se a confiança crítica da sociedade, normalizou-se a vigilância social e, acima de tudo, reduziu-se o cidadão à condição de súbdito, infantilizado pelo paternalismo mediático. O jornalismo, que deveria ter sido vacina contra o exagero, acabou por ser veículo de contágio do pânico.

    O disparate não teve limites: confundiu-se prevalência com incidência, confundiu-se mortalidade absoluta com risco relativo, confundiu-se ciência com histeria.

    Ora, com os incêndios, está a suceder precisamente o mesmo. Este ano será, garantidamente, pelo menos o quarto pior do século. Já arderam mais de 170 mil hectares, e só um milagre permitirá que se chegue ao fim do ano sem ultrapassar a fasquia dos 200 mil hectares. Esta dimensão é extraordinária, calamitosa, gravíssima. Revela que o poder político continua incapaz de assumir que este é um dos principais problemas estruturais do país. Persistimos no abandono rural, na destruição do papel fundamental da agricultura e da pastorícia, e nos compadrios que perpetuam um sistema obsoleto de prevenção e combate.

    A comunicação social, em vez de assumir o papel de denúncia estruturada, contenta-se em produzir reportagens fotogénicas do horror: casas a arder, bombeiros exaustos, helicópteros em contraluz. Passada a época dos fogos, cai o silêncio. Não se pressiona o Estado a mudar o status quo, não se exige um verdadeiro plano nacional de ordenamento do território rural, não se confrontam os interesses instalados que vivem dos fogos como quem vive de uma indústria cíclica. Essa abdicação é, por si só, uma falha ética do jornalismo.

    19 anos depois: problemas estruturais mantiveram-se, destruição aumentou.

    Causa-me urticária, cada vez mais, a forma misturada de ignorância e de sensacionalismo com que a imprensa portuguesa — do Público ao Correio da Manhã — tabloidiza números. Seria sensato esperar que editores e directores soubessem — e se não sabem, não merecem sê-lo — que a incidência dos incêndios é altamente variável ao longo da época de estio. O Verão português não é uma fotografia estática; é uma película irregular. Em 2017, por exemplo, a esmagadora maioria da área ardida concentrou-se em Junho e em Outubro, mostrando que a duração da estação crítica se estende cada vez mais.

    Significa isto que não faz qualquer sentido, quando a gravidade já é por si grande, exagerar com comparações descabidas. Dizer que a área ardida em 2025 é dezassete ou dezoito vezes superior à de 2024, como sucedeu anteontem em diversas notícias da imprensa, pode ser matematicamente correcto, mas é intelectualmente absurdo. É jornalismo de feira, equivalente a dizer que num restaurante que fecha ao domingo houve, no dia 17 de Agosto, uma quebra de facturação de 100% face ao mesmo dia 17 do ano anterior — ignorando que em 2024 esse dia foi um sábado. O disparate é o mesmo.

    Mais ainda: se o objectivo é o sensacionalismo, porque não escrever que nos primeiros dezassete dias de Agosto ardeu este ano trinta e três vezes mais do que no ano passado? É um número vistoso, mas serve para quê? Para instruir o cidadão? Para alertar a sociedade? Ou apenas para vender papel, cliques e minutos de emissão? O jornalismo não se deve medir pela capacidade de impressionar, mas pela capacidade de esclarecer.

    O papel do jornalista não é o de alimentar a ilusão estatística nem de soprar brasas de pânico, mas de interpretar números, denunciar falhas, dar sentido à informação. Não se exige neutralidade bovina nem frieza burocrática: exige-se compromisso com a verdade, com o contexto e com a responsabilidade social. Quem se limita a repetir comunicados oficiais ou a fabricar títulos escandalosos não está a informar — está a desinformar.

    A imprensa portuguesa, se quiser sobreviver como pilar democrático e não como caricatura de si própria, tem de reaprender a função básica do jornalismo: olhar para a realidade sem filtros de conveniência, expor o que está mal, contextualizar o que é complexo, desmontar o que é manipulado – é para isso que serve um jornalista. O resto é espuma — e a espuma, como se sabe, desaparece sempre ao sabor da próxima onda.

  • Froes, o pneumologista pornógrafo

    Froes, o pneumologista pornógrafo


    A pornografia, na sua acepção literal, é a mercantilização despudorada do corpo, reduzido a mercadoria e instrumento de prazer alheio, sem pudor nem compromisso com outra coisa senão o gozo imediato de quem consome e o lucro de quem fornece. Mas o termo, na sua dimensão figurada, vai muito além da carne exposta. Há pornografias de várias ordens: intelectual, científica, mediática, política. Sempre que alguém vende o seu saber — ou o simulacro dele —, a sua influência, a sua credibilidade, ou mesmo a sua alma, com o único fito de alimentar interesses alheios e lucrar, está-se perante pornografia. A moeda de troca já não é a nudez, mas a rendição ética.

    É dessa pornografia figurada que falo. Da pornografia científica que se vende ao melhor pagador, travestida de credibilidade académica, polida com currículos e adornada com cargos institucionais. Da pornografia mediática que ocupa colunas e microfones, não para esclarecer, mas para seduzir, amedrontar ou moldar a opinião pública conforme a cartilha dos patrocinadores. E é aqui que entra, inevitavelmente, o nome do pneumologista Filipe Froes.

    Filipe Froes

    Froes é um caso de escola da promiscuidade na Medicina portuguesa. E uso o termo “promiscuidade” no seu sentido mais técnico: não o da devassidão carnal, mas o da ausência de pudor em cruzar fronteiras e confundir interesses. Não é homem de fidelidades exclusivas. Não se confina a um patrocinador: todas as farmacêuticas lhe servem. Com todas tem conflitos de interesse; de todas recolhe proveito. E quando fala — e fala muito, sobretudo desde a pandemia da COVID-19 — fá-lo proporcionalmente ao seu “salário” extra-médico, somado ao vencimento do Serviço Nacional de Saúde.

    Um olhar sobre os registos de transparência das próprias farmacêuticas, compilados pelo PÁGINA UM, mostra que só este ano já arrecadou 31.550 euros — cerca de 4.500 euros mensais — pagos por laboratórios, aos quais se soma o ordenado como médico hospitalar.

    Pode parecer muito, mas é pouco: em Agosto de 2023 fiz um levantamento no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed e, oficialmente, Froes contava com 324 prestações de serviços ou apoios de farmacêuticas que lhe valeram 453.635,37 euros. Agora, já ultrapassou há muito o meio milhão.

    woman in black jacket holding white paper

    Este é o mesmo Froes que nunca revela — e que a imprensa raramente pergunta — com quem trabalha, quanto recebe e que interesses defende. É o mesmo que, em Agosto de 2025, surge novamente nos noticiários a falar sobre a COVID-19, ressuscitando um dos capítulos mais negros da nossa contemporaneidade. Não pela doença em si, mas pela forma como foi gerida: com medo, com medidas erráticas, com a política a submeter a ciência e com a ciência a submeter-se à política.

    Foi um tempo em que as fronteiras entre recomendação médica e marketing corporativo se dissolveram, em que a comunicação em saúde deixou de ser um serviço público para se tornar um espectáculo de manipulação.

    Mesmo em 2025, quando as terapias genéticas contra a COVID-19 caem em desuso e finalmente a investigação independente começa a assumir que foi um erro injectar em massa adultos saudáveis com menos de 60 anos — e um erro ainda maior fazê-lo em jovens —, Froes continua como consultor de uma farmacêutica espanhola, a Hipra, para uma vacina contra a doença. Uma vacina que já chega fora de tempo, como aquelas agendas que, vendidas em Agosto, são quase puro desperdício, salvo para quem ainda lucra com a sua impressão.

    Filipe Froes ‘registou-se’ este ano como consultor da Hipra que somente em 2023 conseguiu aprovação da vacina contra a covid-19… e que precisa de vender doses… em 2025.

    O problema maior não está apenas nos conflitos de interesse; está no uso que Froes sabe fazer de uma imprensa dócil, composta por jornalistas que não sabem ou não querem saber. Num país onde morrem, todos os dias, cerca de 15 pessoas de pneumonia, as manchetes de hoje deram eco à “notícia” de que 38 pessoas morreram com COVID-19 nos primeiros 10 dias de Agosto. A matemática é, porém, simples: menos de quatro por dia. Seria desejável que ninguém morresse, mas 38 num universo de mais de 3.500 óbitos nesse período representa 1,1% do total. Há doenças muito mais letais e ignoradas.

    Aliás, ironicamente, hoje, um artigo científico publicado na BMC Pulmonary Medicine, tendo Froes como co-autor, destaca a mortalidade e o perfil dos internados de uma doença bem caracterizada e muito mais letal em Portugal: a pneumonia, que resulta em mais de 50 mil internamentos por ano e uma taxa de mortalidade de 22,5%. Froes sabe disso, mas prefere continuar a surfar a onda do negócio da COVID-19.

    Pior ainda: não há qualquer agravamento anómalo da COVID-19 nesta época do ano. Pelo contrário, excluindo o ano inaugural de 2020 — em que o país viveu confinado e quase sem ir à praia no Verão —, a mortalidade por COVID-19 nos primeiros 10 dias de Agosto de 2025 é a mais baixa de sempre. Em 2021, já com vacinação em curso, morreram 121 pessoas; em 2022, foram 98; em 2023, 51; e no ano passado, 50. Este ano, 38. Os números não mentem, mas são tratados como se mentissem: ignorados, manipulados ou apresentados sem contexto.

    Óbitos atribuídos à covid-19 no período de 1 a 10 de Agosto para os anos de 2020 a 2025. Fonte. ACSS.

    O objectivo é transparente para quem não vive anestesiado: Setembro aproxima-se, e com ele o início da estação das campanhas de vacinação. Há que criar ambiente, cultivar receios, manter vivo o espectro de uma doença que encheu contas bancárias e agendas.

    Será mais uma dose de reforço para “proteger os vulneráveis” — leia-se, mais uns milhões para as farmacêuticas, mais uns milhares para quem as serve na praça pública. A pornografia da COVID-19 não é feita de imagens explícitas, mas de gráficos truncados, declarações alarmistas e uma luxúria pelo palco mediático que se mede em euros.

    E assim, a pornografia científica continua. Com actores pagos, enredos repetitivos, figurantes crédulos e uma audiência enganada. Froes é apenas um dos protagonistas. Mas, na pobreza ética da nossa saúde pública e na indigência crítica do nosso jornalismo, basta um protagonista para comandar a encenação.

  • A calúnia, ou como as hienas, medrosas por natureza, se agigantam em grupo

    A calúnia, ou como as hienas, medrosas por natureza, se agigantam em grupo


    A ‘coisa’ faz-se de forma tão concertada e com tal má-fé que nem se disfarça. Em pouco mais de uma semana, depois de termos revelado que um juiz quis saber como passo os tempos livres e que um pivot desvairado da CNN Portugal pediu ao Ministério Público o encerramento do PÁGINA UM (e a ERC, pressurosa, abriu-me um processo), continuámos a fazer aquilo que apenas sabemos fazer: revelar o que a outra imprensa não revela.

    Foi assim que, na semana passada, voltámos a um tema que causa urticária a certos médicos e influencers sanitários (com ligações pouco recomendáveis): desmontei um ignóbil artigo (pseudo)científico de Filipe Froes na Acta Medica (revista científica da Ordem dos Médicos) e expus um estudo exaustivo de John Ioannidis que demonstra como, afinal, em três anos, as vacinas contra a covid-19 salvaram cerca de 12 milhões de pessoas a menos do que o estimado, para um único ano, por um modelo financiado pela Fundação Gates.

    brown hyena

    Era previsível receber respostas discordantes. O que veio, porém, foi um desfile de ataques pessoais, rótulos fáceis e “argumentos” que dispensam qualquer argumentação. Por exemplo, o enfermeiro Nuno André Macedo, candidato do Bloco de Esquerda e do Livre à Assembleia Municipal do Seixal, resolveu desenterrar um artigo meu de Outubro de 2023 sobre a campanha de marketing das farmacêuticas, com apoio da imprensa, para convencer o Estado a imunizar todos os recém-nascidos com um novo anticorpo monoclonal. Acompanhou-o de um printscreen (sem ligação) e desta pérola:

    Os chalupinhas são perigosos mas divertidos. Dizer que o VSR é inócuo quando é a maior causa de internamento em pediatria, de UCI pediátrica, e das maiores nos seniores, é mesmo para rir de tão ignorantes que são. O NIRSEVIMAB não é o primeiro anticorpo contra o VSR.

    O ataque é gratuito e reles — e eu ainda pensava que na esquerda havia uma certa ética, mas isso deve ser coisa de antanho —, mas também é mentiroso. Em parte alguma escrevi que o vírus sincicial respiratório é inócuo. Pelo contrário, afirmei que é “geralmente benigno, excepto em prematuros ou recém-nascidos com problemas respiratórios e cardíacos”, e que “não existe registo, em Portugal, de qualquer morte tendo o VSR como causa”. Também não disse que o niservimab é o primeiro anticorpo monoclonal; mencionei o palivizumab, administrado apenas a bebés vulneráveis e cuja eficácia é contestada por diversos estudos.

    Pegue-se num texto de Outubro de 2023, descontextualize-se e minta-se mesmo sobre o seu conteúdo. Chame-se ‘chalupa’ e ‘ignorante’ ao visado e consegue-se, mesmo assim, ser-se candidato a presidente da Assembleia Municipal do Seixal pelo Bloco de Esquerda e Livre nas próximas autárquicas.

    Mas que importa a verdade a quem nem honra a ideologia que apregoa? No habitual efeito de rebanho, atrás de uma hiena surge sempre outra. Apareceu então o influencer Luís Ribeiro, com carteira de jornalista, a ecoar as mentiras do Macedo, acrescentando insinuações sobre a minha higiene e acusando-me de ser “odiento”. Seguiu-se, na habitual procissão, uma cronista do Público — XXX Garcia —, que também não resistiu a lançar referências paternalistas e pouco abonatórias. Os chacais juntam-se sempre quando pressentem sangue, ainda que a “caça” seja apenas a verdade inconveniente.

    Pode dizer-se que estes episódios não passam de patetices. Mas de patetice em patetice, têm um propósito pernicioso: estes influencers — porventura alinhados ou contratados — recorrem à mentira para, em momentos-chave, tentar descredibilizar quem cria rupturas no status quo. Não é coincidência que, precisamente hoje, o LinkedIn tenha decidido censurar a divulgação da notícia sobre o estudo de Ioannidis, certamente por o post ter sido ‘metralhado’ de denúncias. As hienas e os chacais, medrosos por natureza, agigantam-se em grupo.

    O já desusado “chalupa” e a sua derivação “chalupice” continuam, em 2025, e em Portugal, tristemente vivos em certas cliques como táctica de ataque. É a estratégia mais cómoda: se não se quer — ou não se consegue — discutir o mérito das questões, chama-se um nome feio, fecha-se a caixa de comentários e passa-se ao próximo tema.

    Depois de fazer fretes na revista Visão, identificados até pela ERC, o jornalista Luís Ribeiro entretém-se a fazer piadas sobre o suposto ódio dos outros e da sua higiene. Ou seja, em vez de jornalismo, faz agora ‘trollismo’.

    Apesar de tudo, é fascinante observar como a Medicina e o mundo das farmacêuticas continuam a provocar tanta baixeza. E o problema não é apenas económico: é conceptual. O debate sobre Saúde Pública foi reduzido a um simplismo clínico e hospitalocêntrico, ignorando princípios básicos da epidemiologia, da saúde populacional e, sobretudo, da gestão racional de recursos. A ideia de que se pode administrar, a torto e a direito, determinados fármacos sem aplicar o princípio da precaução — tratando seres humanos como gado veterinário — é não só insustentável como perigosa.

    Pior ainda é tentar fazer crer que questionar terapias génicas ou a universalização de anticorpos monoclonais em pessoas saudáveis equivale a ser “anti-vacinas”. Ao contrário das vacinas, que induzem imunidade activa e memória imunológica, estes fármacos oferecem apenas imunidade passiva e temporária, com o risco acrescido de criar gerações menos preparadas para enfrentar agentes patogénicos na idade adulta, quando certas infecções podem ser mais graves.

    Este raciocínio raramente encontra espaço no debate mediático. A imprensa mainstream, sequestrada economicamente por farmacêuticas e influencers sanitários, evita o incómodo de confrontar interesses, contratos, custos e eficácia real. Mais fácil é gritar “chalupa” e encerrar a conversa.

    Em 2025, se houver ‘denúcias’ em alcateia, o LinkedIn ainda censura conteúdos de jornalistas que se baseiam exclusivamente em artigos científicos, neste caso um da autoria do mais reputado epidemiologista mundial, John Ioannidis.

    E é precisamente aí que a minha crítica incomoda: não aceito pacotes fechados de “verdades” impostas pelo marketing farmacêutico ou pela preguiça intelectual de muitos profissionais e comentadores. Questionar é uma obrigação. Recusar a aplicação de tratamentos veterinários a seres humanos é, mais do que bom senso, uma questão de responsabilidade.

    Se estes ataques de carácter servirem para que alguns leitores percebam que a discussão sobre Saúde Pública não pode ser sequestrada por quem a reduz a protocolos clínicos e slogans publicitários, então já terão valido a pena. Mas convém que todos entendam: chamar nomes não muda a realidade nem apaga os números. E os números, infelizmente para alguns, continuam a mostrar que dar anticorpos caros a todos os bebés para chegar exactamente ao mesmo número de mortes — zero —, para gáudio dos accionistas e colaboradores das farmacêuticas, não é Ciência, nem boa Medicina. É marketing.

  • Até eu já estou farto do espalhafato da ‘Crise Climática’

    Até eu já estou farto do espalhafato da ‘Crise Climática’


    Sou jornalista desde os anos 1990. E desde essa altura — quando poucos davam atenção ao que então se chamava “efeito de estufa” — que acompanho as questões ambientais e, em especial, a problemática das alterações climáticas, quando então as petrolíferas gastavam imenso dinheiro para condicionar estudos sobre estas matérias.

    Acredito na Ciência, e sei que o planeta está a aquecer. E digo isto não por confiar na infalibilidade dos modelos matemáticos — pelo contrário, se enviesados ou com “arquitectura” mal concebida, mostram-se erráticos e de utilidade meramente especulativa —, mas sim por sinais biológicos e ecológicos. São os animais e as plantas que melhor sinalizam modificações climáticas: espécies que sobem em altitude e latitude, ciclos reprodutivos a mudar, migrações a antecipar-se. E os indícios estão aí. São múltiplos e cumulativos. São reais.

    Mas uma coisa é isso — e outra, muito diferente, é o espalhafato. A dramatização constante. O sensacionalismo catastrofista. A hipocrisia política. O histerismo mediático. A transformação do aquecimento global num épico de Hollywood, onde parece que já estamos a viver dentro de O Dia Depois de Amanhã, de 2012 ou de Geostorm — tal como sucedeu com a pandemia, onde, às tantas, estivemos a viver Contágio, com o Matt Damon.

    Olhando para os jornais, os telejornais, os portais e os podcasts, o que se vê? Um fogo permanente. Um inferno meteorológico a escorrer pelas palavras. E depois vê-se os políticos e “especialistas residentes” com a pala do costume: “temos de agir já!”, como se nunca se tivesse feito nada, como se a mudança dependesse unicamente da intensidade da histeria retórica. E das pessoas individualmente — nunca dos políticos ou das suas (más) políticas de desenvolvimento, de planeamento, de ordenamento.

    Dou, portanto, por mim cada vez mais exasperado. Irritado, mesmo. E não é com o clima — é com a forma como se tenta injectar, a martelo e com cuspo, uma narrativa armagedónica na imprensa dita “de referência”. Todos os dias se tenta colar uma nova tragédia ao aquecimento global. Já não há onda de calor, seca, chuvada, furacão, incêndio, peixe morto ou mosquito que não esteja, directa ou indirectamente, a ser “culpa do clima”. Como se as políticas de gestão territorial não existissem. Como se a má governação, a incúria, o desordenamento, a incompetência, as más prioridades orçamentais ou a ausência de prevenção fossem meras vítimas inocentes do CO₂.

    beach lounge on seashore facing the sea

    Hoje, por exemplo, dei de caras com a notícia do Público: “A água do Mediterrâneo nunca esteve tão quente em Julho como este ano”. A gota de água — com trocadilho — que me fez transbordar.

    O título é alarmante. O texto, mais ainda. A temperatura média da água no Mediterrâneo em Julho foi de 26,68 °C. Dado que o recorde anterior era de 26,65 °C, temos uma “diferença histórica” de… 0,03 graus. Repito: três centésimas de grau — um valor inferior à margem de incerteza estatística associada à maioria dos métodos de medição e interpolação da temperatura da superfície oceânica. E no entanto, a autora do artigo transforma isso numa espécie de profecia apocalíptica. Segundo ela, esse valor “favorece tempestades, inundações, secas e incêndios”. Assim mesmo, num parágrafo só, sem hierarquia de causas, sem filtros, sem bom senso.

    Enumeremos mais casos:

    1 – Temperatura “a ferver” – O subtítulo “Mediterrâneo a ferver” aparece em destaque, quando a temperatura média do mar rondou os 26,68 °C. Um valor inferior ao de muitas piscinas públicas. Não é um valor extraordinário para o próprio Mediterrâneo, que todos os verões ultrapassa os 26 graus. A expressão é enganadora. E é sensacionalista.

    2 – Causalidade simplista – A autora sugere que a tragédia de Derna em 2023, na Líbia, com centenas de mortos por colapso de barragens, teve relação com a temperatura do mar. Uma correlação abusiva, destituída de substância técnica, que ignora os factores estruturais do colapso — como a negligência prolongada na manutenção de infraestruturas hidráulicas obsoletas.

    sea under white clouds at golden hour

    3 – Secas, fogos, tempestades e furacões – Tudo junto, tudo misturado. Usa-se a subida de três centésimas de grau em determinadas zonas como rastilho narrativo para descrever um planeta em chamas. E nem uma linha sobre o ordenamento florestal, a falta de limpeza de matas ou o abandono rural. Aliás, em Portugal, as condições meteorológicas mais adversas, promotoras de aumento do risco de incêndio, nem costumam ser ventos de oeste nem de norte nem de sul (marítimos), mas sim de leste, transportando ar seco e quente da Península Ibérica interior, frequentemente associado a descidas de humidade relativa e aumento do risco de ignição — como documentado em vários estudos sobre incêndios extremos em Portugal.

    4 – Selecção de dados – O artigo afirma que 51,9% da Europa e do Mediterrâneo estiveram em seca entre 11 e 19 de Julho. Mas não refere que Julho de 2025 foi menos quente do que Julho de 2023 e 2024. Nem que, no total dos últimos 25 meses, houve vários em que a temperatura média global não ultrapassou o limiar de 1,5 graus sobre os níveis pré-industriais. E, mesmo quando ultrapassa, fá-lo apenas de forma pontual e não sustentada — ao contrário do que prevê o Acordo de Paris para definir um real agravamento climático. O dado inconveniente é omitido. A nuance desaparece. Enfim, escolhe-se um mês (meteorologia) para fazer conclusões sobre o clima (que é outra coisa).

    5 – Alarme sem contexto – Afirma-se que em 13% do oceano a temperatura esteve “um grau acima da média”. Mas qual média? Qual o período de referência? Qual a significância estatística? Nada disso é explicado. Fica apenas um número, a flutuar como uma bóia de pânico.

    Se isto não é propaganda, é pelo menos um jornalismo excessivamente alinhado com um discurso único — onde prevalece o dogma apocalíptico.

    E é pena. Porque a causa é séria. Porque a adaptação às alterações climáticas exige inteligência, planeamento, responsabilidade. E o histerismo ajuda pouco. O drama por atacado desacredita quem, com serenidade e rigor, tenta mudar comportamentos, políticas e modelos económicos. O jornalismo tem a obrigação de informar, não de assustar.

    Transformar o Verão Mediterrânico — que é uma bênção da Natureza para um ser humano feliz — num “forno climático” logo que os termómetros sobem acima dos 30 ou 32 graus é um exercício de revisionismo climático sem memória.

    orange and white egg on stainless steel rack

    Estamos, pois, a viver não uma crise ou emergência climática — mas uma emergência narrativa. Um colapso do discernimento. Uma febre ideológica que se esconde atrás da Ciência para impingir agendas políticas, económicas e comunicacionais. E que, no fundo, infelizmente, apenas serve para transformar o aquecimento global num novo moralismo redentor, com pecadores, castigos, indulgências e profetas.

    A Terra está a aquecer — e é preciso agir. Mas não precisamos de entrar num filme de terror. Precisamos de verdade, não de histeria. Precisamos de jornalismo, não de alarmismo. E eu, que ando nisto há 30 anos, não estou disposto a ser cúmplice de uma neurose colectiva só porque ela parece bem na fotografia… e na infografia.