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  • Negligência, crime & sangue nas políticas de Saúde Pública

    Negligência, crime & sangue nas políticas de Saúde Pública


    Desde 2022 que o PÁGINA UM trava uma batalha judicial aparentemente absurda – mas, na verdade, profundamente reveladora – contra a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). Lutamos pelo acesso à base de dados dos internamentos hospitalares, que é gerida por essa entidade pública. E lutamos não por um capricho jornalístico ou por qualquer fetiche com estatísticas, mas porque acreditamos, com convicção inabalável, que a informação é o primeiro antídoto contra a negligência e o primeiro instrumento da responsabilidade política.

    A base de dados existe – ponto final. O Tribunal Administrativo de Lisboa reconheceu, com clareza, o nosso direito de acesso. A ACSS recorreu, e perdeu. Voltou a recorrer, e voltou a perder. O Supremo Tribunal Administrativo, no Verão de 2023, encerrou o assunto com um acórdão cristalino. Mas em vez de cumprir, a ACSS decidiu trilhar o caminho do absurdo burocrático e da resistência kafkiana. Mais um processo arrasta-se agora para forçar os seus dirigentes a libertarem a informação, numa dança cínica de poder institucional contra o interesse público.

    black stethoscope with brown leather case

    E que informação é essa? Informação que poderia permitir avaliar a real incidência das doenças por região, identificar padrões de falhas no sistema hospitalar, detectar atrasos nos diagnósticos, comparar o desempenho entre hospitais, e até compreender melhor se os investimentos em saúde produzem resultados efectivos. Em suma, dados que, tratados com inteligência e independência, poderiam salvar vidas e corrigir injustiças. Mas, em vez disso, são mantidos num cofre institucional selado a sete chaves pela cultura opaca da nossa Administração Pública.

    A verdade, porém, é ainda mais perturbadora: Portugal não sofre de falta de dados. Sofre, isso sim, de falta de vontade – e de coragem – para os usar. Veja-se o exemplo do SICO – o Sistema de Informação dos Certificados de Óbito. Trata-se de uma ferramenta raríssima no panorama internacional: permite acompanhar, em tempo real, onde e porquê morrem os portugueses. Com esse sistema, poderíamos detectar rapidamente surtos epidémicos, falhas nos serviços de saúde, doenças com comportamentos anómalos. Poderíamos antecipar. Poderíamos agir. Mas não: usamos o SICO como se fosse apenas um notário da morte, e não como um radar da vida.

    Mais grave: quando os dados são usados, é muitas vezes para branquear políticas ou sustentar retóricas. A Escola Nacional de Saúde Pública tem-se especializado, com notável zelo, em cumprir este tipo de fretes institucionais. Em vez de ser um centro de pensamento crítico e estratégico, converteu-se numa agência de legitimação das decisões do poder. É uma traição silenciosa, mas perigosa, ao ideal de saúde pública.

    person lying on bed and another person standing

    De quando em vez, na solidão da investigação, detenho-me nos dados estatísticos de Saúde divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). Nem sempre trazem revelações imediatas, mas às vezes surgem indícios alarmantes. Como os dados ontem divulgados, entre informação sobre operações de caixas automáticas multibanco, sobre a taxa de mortalidade por tumores malignos em 2023, com base nos registos do SICO.

    A nível nacional, a taxa é de 2,7 por mil habitantes – um valor que parece aceitável, se olharmos apenas para a média. Mas as médias escondem tragédias, sobretudo quando se diluem em regiões vastas. É nos pormenores, nos concelhos pequenos, que a realidade grita mais alto.De facto, analisando os dados com maior detalhe, constata-se que, em 45 concelhos portugueses, a taxa de mortalidade por cancro em 2023 foi mais de 50% superior à média nacional, que se situa nos 2,7 óbitos por mil habitantes.

    Casos como Mora (7,4 por mil), Gavião (7,2), Lajes das Flores (6,9), Alcoutim (6,2) ou Vidigueira (5,4) revelam dramas locais quase invisíveis à escala nacional. Corrijo: para não relativizar nem suavizar esta realidade, importa aqui identificar todos esses 45 concelhos, onde a taxa de mortalidade por tumores malignos ultrapassa os 4,05 por mil habitantes – valor 50% acima da média nacional.

    Dados do INE revelados ontem. Ninguém os vai analisar. Ninguém analisa os dados do SICO?

    Eis a lista integral: Mora (7,4), Gavião (7,2), Lajes das Flores (6,9), Alcoutim (6,2), Vidigueira (5,4), Santa Cruz das Flores (5,3), Oleiros (5,3), Pinhel (5,3), Sabugal (5,1), Fronteira (5,1), Serpa (5,0), Belmonte (5,0), Crato (4,9), Manteigas (4,8), Alijó (4,8), Góis (4,7), Boticas (4,7), Corvo (4,6), Mêda (4,6), Melgaço (4,6), Almeida (4,6), Chamusca (4,4), Portel (4,4), Valpaços (4,4), Alfândega da Fé (4,3), Vinhais (4,3), Castro Verde (4,3), Santa Marta de Penaguião (4,3), Ferreira do Zêzere (4,3), Sardoal (4,2), Vila Nova de Paiva (4,2), Aguiar da Beira (4,2), Barrancos (4,2), Mértola (4,2), Torre de Moncorvo (4,2), Mação (4,2), Pedrógão Grande (4,2), Alcanena (4,1), Mortágua (4,1), Torres Novas (4,1), Estremoz (4,1), Seia (4,1), Sousel (4,1), Proença-a-Nova (4,1), e Fornos de Algodres (4,1).

    Como explicar estes valores? É certo que o envelhecimento populacional é uma variável relevante – e, em regra, onde há mais idosos, há mais incidência de doenças oncológicas. Mas esta explicação, só por si, é insuficiente. Há concelhos igualmente envelhecidos que registam taxas de mortalidade por cancro bem abaixo da média. A diferença não se resume à idade.

    Importa, por isso, levantar outras hipóteses. Poderão estar em causa factores ambientais, como a existência de antigas explorações mineiras abandonadas e mal descontaminadas, solos ou lençóis freáticos com presença de metais pesados ou substâncias cancerígenas, ou mesmo contaminação da água potável. Também a qualidade da alimentação – fortemente dependente de padrões económicos e culturais locais – pode influenciar o risco de doença oncológica, sobretudo quando associada ao consumo excessivo de carnes processadas, deficiente ingestão de vegetais frescos, ou exposição a pesticidas.

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    Outros factores, de natureza sistémica, poderão igualmente estar a contribuir. A escassez de rastreios organizados em tempo útil, como os do cancro da mama, do colo do útero ou do cólon e recto, impede diagnósticos precoces. E quando o diagnóstico chega tarde, o prognóstico agrava-se. Acresce, em muitos destes concelhos, a distância significativa até unidades hospitalares com oncologia, radioterapia ou cirurgia especializada, criando barreiras de acesso que nem sempre se vencem com ambulâncias. O tempo e o custo das deslocações – muitas vezes em transportes públicos escassos ou inexistentes – funcionam como obstáculos reais ao tratamento.

    Mesmo os circuitos de referenciação médica podem falhar, ou ser excessivamente lentos, sobretudo quando os centros de saúde locais operam com falta de clínicos experientes, ou quando os doentes são deixados meses à espera por uma consulta hospitalar. E não é difícil imaginar que, nos meios mais isolados e envelhecidos, o desânimo ou a resignação perante a doença também contribuam para o diagnóstico tardio e para a morte precoce.

    Mas a pergunta essencial mantém-se: se os dados estão disponíveis, se os números denunciam estes focos de mortalidade excessiva, porque não se actua?

    Ana Paula Martins, ministra da Saúde.

    Porque não há, no seio da Direcção-Geral da Saúde ou das administrações regionais, uma estratégia específica de vigilância e intervenção dirigida a estes territórios vulneráveis? Quantas destas mortes seriam evitáveis com uma política pública de saúde baseada em evidência, em vez de assente numa gestão inercial de silêncios e rotinas?

    A resposta é dolorosamente simples: porque ninguém quer saber. Porque a saúde pública em Portugal continua refém de um paradigma burocrático, preguiçoso e ineficaz. Porque temos dados – dados extraordinários, únicos até – e não os usamos. E porque, acima de tudo, nos habituámos à ideia de que as mortes por doença são inevitáveis e, portanto, inquestionáveis.

    A verdade, porém, é que há mortes que podiam ser evitadas. Há vidas que podiam ter sido salvas. Se houvesse uma política de rastreios adequada em zonas de risco. Se houvesse vigilância epidemiológica baseada em dados reais. Se houvesse uma rede de saúde que respondesse proporcionalmente aos riscos de cada território. Se houvesse coragem para enfrentar a evidência e para corrigir erros.

    Em Portugal, acredita-se que se ninguém ouvir uma árvore a cair, então ela nunca caiu. É uma filosofia confortável, que iliba os responsáveis e embala as consciências. Mas a árvore caiu. E com ela, muitas vidas.

    person holding amber glass bottle

    A questão que importa agora colocar é esta: quantas dessas mortes foram provocadas, não por um tumor implacável, mas por um Estado indiferente? Quantos diagnósticos falhados? Quantas oportunidades perdidas de prevenir? Quantas mortes, afinal, foram produzidas pela inacção?

    E mais: quantas mais ainda virão? Porque, enquanto se esconderem os dados, enquanto se impedirem jornalistas, investigadores e cidadãos de saber o que se passa realmente, continuaremos a viver numa república em que o sangue escorre em silêncio pelas estatísticas. E a sua morte – sim, a sua – pode ser apenas mais uma célula neste organismo doente que se convencionou chamar sistema nacional de saúde.

  • Da ‘notícia’ do Correio da Manhã sobre um colaborador do PÁGINA UM

    Da ‘notícia’ do Correio da Manhã sobre um colaborador do PÁGINA UM


    Hoje, o Correio da Manhã, com difusão posterior pela CMTV, dirigido pelo jornalista Carlos Rodrigues, decidiu noticiar que a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista passou “cartão a ex-PJ cadastrado”, fazendo referência ao facto de essa pessoa se tratar de João Pedro de Sousa, que efectivamente obteve o título de Colaborador – título distinto do de Jornalista – a pedido do PÁGINA UM, e particularmente de mim.

    O passado de João de Sousa não é segredo nem ele o esconde – e disso mesmo temos falado no podcast ‘A Corja Maldita‘, em que, com a minha moderação, ele participa com o advogado Miguel Santos Pereira. A sua experiência, como consultor forense, será de enorme utilidade para o PÁGINA UM, sobretudo em temas de Justiça, e particularmente no acompanhamento de julgamentos relevantes, como o dos Anjos vs. Joana Marques (a sua crónica inaugural teve mais de 140 mil leituras) ou o de José Sócrates. Nesta fase, João de Sousa recolherá informação e escreverá crónicas ou artigos de opinião.

    Carlos Rodrigues, director editorial do Correio da Manhã e da CMTV, durante uma conferência em que a Medialivre prestou serviços à autarquia de Lisboa, usando jornalistas, a troco de quase 150 mi euros.

    Tenho perfeita noção dos bastidores da imprensa (e dos incómodos causados pelas nossas notícias nos grupos de media) e da Justiça, e por isso das intenções deste tipo de notícias. Mas não deixa de me suscitar cinco perplexidades ter a notícia sido publicada no Correio da Manhã (CM), e difundida na CMTV, órgãos de comunicação social aos quais hoje se remeteu um pedido de direito de resposta, ao abrigo da Lei da Imprensa.

    Primeira perplexidade: o CM foi o primeiro órgão de comunicação social a contar com João de Sousa como colaborador – justamente bem pago – ainda enquanto cumpria pena em 2015. Presumo que lhe reconhecia valor.

    Segunda perplexidade: o título e texto assinado por Miguel Azevedo (que saberá, presume-se, a diferença entre “jornalista” e “colaborador”) denotam um tom claramente depreciativo, sugerindo indisfarçada oposição à reabilitação e reinserção social. Ao invés, até prova em contrário, não discrimino profissionalmente quem procura recomeçar com dignidade. João de Sousa foi libertado em 2018 e não teve qualquer condenação a partir dessa data, sendo reconhecido como consultor forense.

    Terceira perplexidade: numa breve pesquisa encontra-se, entre os quadros da Medialivre, jornalistas com cadastro: Tânia Laranjo, Sónia Trigueirão, Ana Isabel Fonseca, Eduardo Dâmaso. A primeira destas jornalistas até já foi condenada ao pagamento de uma coima pela Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) por práticas discriminatórias. A nenhum destes jornalistas foi retirada a legitimidade de deter o título de jornalista — mesmo se o crime foi cometido como jornalista.

    Quarta perplexidade: fui eu, enquanto director do PÁGINA UM, quem decidiu solicitar à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista a acreditação de João de Sousa como colaborador – e não como jornalista –, precisamente por uma questão de transparência, responsabilidade e acesso legítimo a fontes de informação. Ao contrário de outros, não temos ‘toupeiras’ nem ‘telhados de vidro’. A CCPJ limitou-se a aplicar a lei: negar-lhe a acreditação seria incorrer numa injustificada discriminação que seria legalmente inadmissível.

    Quinta perplexidade: o CM, que recorre com frequência aos seus jornalistas para executar contratos de prestação de serviços, pagos por entidades externas — situação manifestamente incompatível com o Estatuto do Jornalista —, não parece indignar-se com esse seu modus operandi. Mais surpreende, pois, que seja precisamente este jornal a criticar a emissão pela CCPJ de um simples cartão de colaborador do PÁGINA UM, usando uma página inteira.

    Pedro Almeida Vieira

    Director do PÁGINA UM

  • Demissão do Conselho Regulador da ERC: ontem já era tarde; hoje já não basta

    Demissão do Conselho Regulador da ERC: ontem já era tarde; hoje já não basta


    Há reguladores que regulam mal. Outros que não regulam. E depois há a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) — que se especializou numa nova modalidade institucional: regular às escondidas, pela calada, escamoteando deliberações, omitindo documentos, arquivando processos que nunca chegam a sê-lo formalmente.

    A recente revelação — forçada pelas perguntas do PÁGINA UM — de que o processo de contra-ordenação ao jornal Público, por alegada violação da Lei do Tabaco, foi discretamente arquivado em Agosto passado sem qualquer deliberação pública, ilustra à saciedade o que se tornou prática no actual mandato de Helena Sousa: uma cultura de opacidade e conivência institucional com os grandes grupos de comunicação social.

    Importa recordar que este processo nascera de uma deliberação formal da própria ERC, em Novembro de 2022, que considerava inequívoca a infracção cometida pelo Público, classificando-a como “muito grave”. O conteúdo em causa era um artigo promocional pago pela Tabaqueira, coincidente com o lançamento do produto de tabaco aquecido IQOS Iluma, e acompanhado de imagens típicas de publicidade camuflada, com a presença destacada do director-geral da empresa. Em termos legais, não havia dúvida para o anterior Conselho Regulador: tratava-se de publicidade ilícita, vedada expressamente pela Lei do Tabaco.

    No entanto, com a mudança de presidência — e a ascensão de Helena Sousa, académica sem experiência jurídica ou percurso em órgãos de regulação —, o que era certo passou a nebuloso. Um processo formal, com deliberação prévia unânime e indícios de contra-ordenação foi eliminado por uma suposta “análise preliminar” da sua Unidade de Contra-Ordenação. E pior: sem qualquer explicação voluntária por parte da entidade que, por dever constitucional, deve garantir a liberdade de imprensa e o acesso dos jornalistas à informação.

    Não é caso único. O PÁGINA UM tem sido forçado a recorrer à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) e aos tribunais para obter documentos que a ERC insiste em esconder. Mesmo após pareceres desfavoráveis, o regulador interpõe recursos, como se fosse parte interessada em proteger segredos que deveriam estar ao serviço da cidadania e da fiscalização democrática. Veja-se um caso recente em que, entre outros assuntos, o Tribunal Administrativo de Lisboa intimou a ERC a entregar ao PÁGINA UM todos os documentos associados com a negócio a venda do JN e TSF (entre outras publicações), cuja deliberação teve 78 rasuras inexplicáveis, apagando como confidencial questões relevantes.

    Exemplo flagrante da falta de transparência da ERC: na autorização do estranho negócio da transmissão / venda de títulos da Global Media à Notícias Ilimitadas aspectos essenciais são escondidos com a palavra CONFIDENCIAL. O Tribunal Administrativo de Lisboa determinou que todos esses elementos deveriam ser acedidos pelo PÁGINA UM, mas a ERC recorreu para a instância superior, mostrando ser adepta do obscurantismo em negócios de media pouco claros.

    Tenho já alguns anos disto para entender que se está perante uma estratégia deliberada da ERC de bloqueio informativo, dirigida especialmente contra jornalistas incómodos e meios não alinhados com os grandes grupos económicos que controlam a imprensa dita de referência.

    A atitude da ERC no processo do Público mostra que a indústria do tabaco, cada vez mais refinada nas suas estratégias de marketing, usa agora os jornais como veículos de promoção “sustentável”, investindo em conteúdos patrocinados, participando em podcasts, colando-se à imagem de inovação tecnológica e responsabilidade social. Com a bênção da ERC, que em vez de sancionar práticas ilegais, arquiva processos às escondidas, transforma “contra-ordenações muito graves” em nada, e cala-se perante perguntas legítimas de jornalistas que fazem o seu trabalho.

    A decisão de não penalizar práticas de publicidade sub-reptícia proibidas por lei junta-se à forma como a ERC tem vindo a aceitar, com passividade cúmplice, contratos de parcerias promíscuas entre grupos de media, empresas privadas e até entidades públicas. As coimas, quando existem, são simbólicas — um teatro jurídico que apenas confirma que, em Portugal, o crime compensa. E é por isso que temos grupos de comunicação social em crise financeira crónica, como a Trust in News, a Global Media ou mesmo a Imprensa, que sobrevivem à custa de publicidade institucional, parcerias obscuras e compadrios com o poder político e económico.

    Se a credibilidade da imprensa anda pelas ruas da amargura, a culpa primordial está precisamente na ERC e no seu Conselho Regulador. Um regulador que se mostra constituído por gente sem qualidade, sem coragem e sem noção da sua função constitucional.

    Helena Sousa, presidente da ERC está ao serviço da liberdade da imprensa ou de interesses pouco claros?

    Ontem, a demissão da presidente Helena Sousa e dos seus comparsas talvez fosse suficiente. Hoje, perante o que se sabe — arquivamentos secretos de processos de contra-ordenação e recusa deliberada de prestar contas —, já nem a demissão basta. Impõe-se, no mínimo, uma auditoria externa e independente ao funcionamento da ERC. E, quiçá, uma responsabilização jurídica dos seus membros, caso se confirme que violaram normas legais e administrativas essenciais.

    A ERC é hoje um caso paradigmático de decadência institucional. Quando o regulador adopta os tiques de prepotência, quando abdica do seu dever de fiscalização, quando protege os fortes e tenta até silenciar os que investigam, vemos que está em curso não uma regulação, mas uma rendição. E é a democracia que fica mais pobre. Porque uma imprensa livre só existe quando há reguladores livres — e não cúmplices — dos poderes que deveriam escrutinar.

  • Serafim: 17 anos cheios de vida

    Serafim: 17 anos cheios de vida


    Formalmente Mascot do PÁGINA UM, com direito a estar incluída na Ficha Técnica, e presumido autor da crónica ‘Arranhadelas’, informamos que o Serafim faz hoje, dia 13 de Junho, 17 inteiros anos de uma rica vida.

  • Portugalidade: uma maçada para a RTP, uma irrelevância para a ERC

    Portugalidade: uma maçada para a RTP, uma irrelevância para a ERC


    No Dia de Portugal, a 10 de Junho, a escritora Lídia Jorge proferiu em Lagos um discurso em que evocou, além da multiculturalidade e da miscigenação do povo português ao longo da História, o papel decisivo de Camões na fixação de uma “língua nova à altura de um pensamento novo”. Mais do que tudo o resto, subscrevo a ideia de que aquilo que verdadeiramente marca Portugal é ser uma Nação — algo que se distingue de um simples país por deter um património que transcende as fronteiras da biografia ou do território.

    Mas mais do que o conceito de Nação, atrai-me o conceito de portugalidade, porque esse é o traço mais subtil e profundo que molda o nosso modo de ser e de resistir — um sentimento que não cabe em estatutos nem se impõe por decreto. E que começa na língua, mas se reflecte, ou deveria reflectir-se, sobretudo no nosso olhar irónico perante o poder, na resistência ao absurdo, na memória entranhada das partidas e regressos, no génio de reinventar-se com poucos meios e no talento invulgar de desconfiar de tudo, inclusive de nós próprios. E isso tem-se perdido.

    Tem-se perdido porque se esvaziou o orgulho em promover Portugal como berço de uma língua com História. Mas o que mais dói é que esta erosão não resulta de ataques externos ou de falantes estrangeiros que tropeçam nos seus sons e ritmos — mas sim de gestores públicos, decisores políticos e instituições nacionais que tratam a língua como um adereço cerimonial ou, pior, como um entrave à modernidade cosmopolita.

    Veja-se, por exemplo, o que fez recentemente a AICEP, ao conceber o pavilhão de Portugal para a Expo 2025 em Osaka, omitindo ostensivamente o uso do português em quase toda a exposição — como se a identidade nacional se limitasse a branding, fado, cortiça e arquitectura de interiores.

    Mas o caso mais gritante — e de consequências directas — passa-se com a RTP, televisão pública que todos os portugueses são forçados a financiar. Por via da factura da electricidade, os contribuintes canalizaram, nos últimos cinco anos, quase mil milhões de euros para uma empresa que tem, entre as suas obrigações legais, uma missão clara: promover e difundir a língua portuguesa, independentemente de audiências, quotas de mercado ou modas.

    Se a RTP é culta e adulta, como se proclama, menos desculpável é o incumprimento na promoção da Língua Portuguesa e da produção audiovisual nacional.

    Ora, aquilo que se exige à RTP não é um capricho cultural nem uma imposição ideológica. É uma norma legal expressa, consagrada no artigo 44.º da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido, que estabelece que os canais com cobertura nacional, como a RTP2, devem emitir, anualmente, pelo menos 50% da sua programação em língua portuguesa, excluindo publicidade, televenda, autopromoções e serviços de teletexto. E, dentro dessa quota, pelo menos 20% deve corresponder a obras criativas produzidas originariamente em português, contando-se até às cinco primeiras exibições de cada obra.

    Não são meras orientações: são obrigações legais que visam preservar o espaço público audiovisual como território da nossa Cultura. Deveriam ser consideradas sacrossantas.

    Porém, pelo menos desde 2017, a RTP2 tem incumprido sistematicamente ambas as exigências. Durante cinco anos consecutivos, pelo menos, por agora, até 2021, falhou o mínimo de 50% de programação em português e nunca atingiu os 20% de obras criativas originais. Tudo documentado em relatórios públicos da ERC. E, ainda assim, nenhuma consequência prática.

    Golden Gate Bridge

    Num país decente, uma infracção sistemática como esta teria consequências óbvias: demissão da administração, apuramento de responsabilidades políticas e aplicação de sanções efectivas. Mas em Portugal, as obrigações legais são tratadas como metáforas regulamentares — enunciados solenes sem qualquer valor operativo. As normas existem, sim, mas para parecerem existir. E a ERC, em vez de agir com firmeza, entretém-se há anos a “instar”, numa coreografia burocrática onde a indignação nunca chega e a penalização nunca dói.

    Por cada infracção anual por incumprimento dos limites mínimos de emissão de programas em língua portuguesa e de produção nacional, a RTP poderia ser punida com uma coima de até 200 mil euros. Considerando que se verificaram dois incumprimentos por ano, o valor acumulado poderia, em teoria, ascender a 400 mil euros. Mas a ERC, magnânima e indulgente, decidiu sancionar de forma simbólica: em 2023, aplicou uma multa de 15 mil euros, e mandou o INBAN para a RTP pagar. E no mês passado, numa deliberação tornada pública esta semana, subiu generosamente a fasquia para… 16 mil euros.

    Isto não chega para pagar dois episódios de uma série de segunda linha, e nem atinge o bolso e o cargo dos administradores e directores de programa da RTP. E é uma quantia que nem sequer incomoda uma estrutura mastodôntica com orçamento anual a rondar os 200 milhões. É, na prática, uma palmadinha indulgente, um convite à reincidência, uma forma discreta de arquivar o incómodo. Como se dissesse: “Sim, falharam, mas enfim… todos falham. Continuem.”

    Helena Sousa, presidente da ERC: ainda se concede um desconto na multa pelo incumprimento recorrente dos níveis de promoção da Língua Portuguesa por parte de uma empresa pública que recebe quase 200 milhões de euros dos consumidores de electricidade.

    Portugalidade? Isso parece uma maçada para a RTP — mas também uma irrelevância para a ERC, que aplica multas como quem distribui advertências escolares a alunos preguiçosos. E, para os portugueses — esses que financiam tudo isto através da factura da luz —, uma palavra vazia, que serve para discursos floridos no 10 de Junho, mas que, no dia seguinte, já ninguém quer levar a sério. Muito menos quem devia levá-la à letra.

    E, com igual certeza, haverá mais um discurso, em português irrepreensível, a entoar loas cerimoniosas à Portugalidade — enquanto, nos bastidores, se continua a tratá-la como um empecilho dispensável.

  • Dinheiro, morte e silêncio: como a Saúde Pública se tornou um mero negócio de interesses

    Dinheiro, morte e silêncio: como a Saúde Pública se tornou um mero negócio de interesses


    Vem nos manuais, como ensinamento quase sagrado: a agenda setting — esse processo pelo qual determinados temas ganham centralidade no debate público — não é neutra. Depende, antes de mais, de quem fala, de como fala, e sobretudo de quem tem acesso privilegiado aos meios de comunicação.

    Num cenário ideal, a imprensa funciona como guardiã da relevância: um watchdog vigilante que impede que o ruído da propaganda se sobreponha às necessidades reais dos cidadãos. A imprensa, nesse modelo, não apenas filtra os temas da agenda política, mas molda-os segundo critérios de interesse público — e não segundo interesses comerciais ou corporativos.

    a stethoscope on top of a pile of money

    Hoje o ‘cão de guarda’ dorme ao colo de quem deveria vigiar, ronrona quando lhe estendem uma ração publicitária e ladra apenas quando a farmacêutica estala os dedos. E sobretudo no sector da Saúde, onde as emoções são tão inflamáveis quanto os milhões em jogo. Nos últimos anos — e muito em especial durante a pandemia da covid-19 — assistimos a uma inversão perversa do papel da comunicação social. Longe de agir como mediadora independente, a imprensa tornou-se co-agente de um conluio entre interesses privados (sobretudo da indústria farmacêutica), entidades reguladoras capturadas e ministérios complacentes. Ao invés de fiscalizar, participou. Ao invés de questionar, amplificou. Ao invés de desconfiar, vendeu.

    Os media têm vindo a abdicar, cada vez mais, do seu papel fiscalizador para assumirem o de arautos e correias de transmissão de campanhas comerciais. Durante a pandemia, esse fenómeno atingiu o paroxismo: testes vendidos como salvação, vacinas endeusadas como tótem da civilização, fármacos experimentais glorificados antes mesmo de qualquer avaliação crítica.

    O Ministério da Saúde, os reguladores e uma parte significativa da comunidade médica — transformada em figurino de publicidade institucional — pactuaram, em aliança obscena, com este novo regime sanitário-mediático. Aquilo que se seguiu foi previsível: venderam-se vacinas e testes como quem vende electrodomésticos num canal de telecompra, com médicos mercenários a apresentarem o produto e jornalistas a assegurarem que não haveria espaço para dúvidas nem para alternativas.

    Alternativas essas que, ironicamente, foram diabolizadas não por falta de provas científicas, mas por excesso de interesses. Veja-se a ivermectina, cujo debate foi abafado com histeria moralista, enquanto se publicavam estudos que, mesmo sem conclusões definitivas, mereciam consideração científica, como se pode observar nesta meta-análise publicada já este ano no Annals of Medicine and Surgery.

    Em 2020, a jornalista Filipa Traqueia, actualmente no jornal Expresso, achou por bem dissertar no Polígrafo sobre a (in)utilidade da vitamina D, usando como fonte de informação o pneumologista Filipe Froes, um dos médicos com maiores ligações mercantilistas à indústria farmacêutica, conselheiro da DGS e da Ordem dos Médicos e ‘guru’ para a comunicação social durante a pandemia.

    E sobretudo veja-se o caso da vitamina D, com provas acumuladas sobre o seu papel imunológico, transformada em suplemento menor por não trazer dividendos a multinacionais. Afinal, há mais lucro em administrar fármacos novos a milhões do que em distribuir sol e bom senso. Logo no início da pandemia, esse arauto do Jornalismo e da Ciência — estou a ironizar — chamado Polígrafo (e seguido por outros) tratou logo de menorizar a utilidade da vitamina D na prevenção e tratamento da covid-19. Isto, claro, com a imprescindível ajuda de um dos maiores mercenários da indústria farmacêutica, Filipe Froes.

    Hoje, sobre a covid-19, sabe-se que “níveis baixos de vitamina D aumentaram o risco de infecção entre 1,26 e 2,18 vezes, o risco de doença grave entre 1,50 e 5,57 vezes, o risco de admissão em unidades de cuidados intensivos (UCI) em mais do dobro, e o risco de morte entre 1,22 e 4,15 vezes”, citando ipsis verbis as conclusões de uma meta-análise publicada este ano na Nutrition Reviews, da prestigiada Oxford Academic.

    Mas se a pandemia foi um campo fértil para este jornalismo de parceria — entre aspas e sem ironia possível —, os anos que se seguiram não mostraram arrependimento. Pelo contrário, refinaram-se os métodos, disfarçaram-se melhor os conluios, construíram-se narrativas com roupagens de ciência e compaixão.

    A nova fronteira de conquista são as doenças raras, sobretudo em idade pediátrica: um terreno fértil para comover corações, amolecer decisões orçamentais e justificar tratamentos a preços pornográficos. O objectivo é simples: quanto mais rara for a doença e mais jovem o doente, mais fácil será colocar o fármaco na agenda pública. Basta um caso mediático, uma associação de pais com boas relações, uma imprensa dócil e, claro, um ex-director de farmacêutica agora estrategicamente colocado numa comissão do Infarmed ou em cargo político com acesso ao Orçamento.

    O caso ontem revelado pelo PÁGINA UM, sobre a entrada na Secretaria de Estado da Gestão da Saúde de um quadro da farmacêutica Sanofi, que negociou a compra de anticorpos monoclonais contra o Vírus Sincicial Respiratório (VSR), é paradigmático. A doença, cuja mortalidade é inexistente em Portugal, foi promovida à categoria de emergência sanitária. Resultado? Vinte milhões de euros em compras públicas para imunizar todos os recém-nascidos, incluindo os que nunca estariam em risco. O produto é caro, a doença tornou-se mediaticamente “fofa” — por força das conferências e notícias sobre o tema, mercadejadas pela imprensa — e o argumento parece inatacável: salvar alguns bebés do sofrimento e trauma de um eventual internamento. O agenda setting resulta nisto.

    Quem ousará pôr travão, redefinindo prioridades? A imprensa — cúmplice, dependente e indiferente — não. As sociedades médicas, muitas delas sustentadas por apoios da indústria, também não. E os decisores políticos, alimentados pelo vaivém das portas giratórias entre Estado e farmacêuticas, muito menos.

    Francisco Gonçalves, ex-Sanofi, e Ana Paula Martins, ex-Gilead: as ‘portas giratórias’ entre as farmacêuticas e o Ministério da Saúde.

    Enquanto isso, o que sobra da saúde pública degrada-se em silêncio. Urgências encerradas. Hospitais saturados e mal equipados. Jovens médicos desmotivados e explorados, ao passo que as elites clínicas fazem fortuna acumulando salários públicos e avenças privadas. Listas de espera que se arrastam até ao absurdo. E, cereja pútrida no cimo do bolo, até mesmo doenças associadas à água potável e ao saneamento — ou à falta deles — a matarem 525 pessoas no ano de 2023 em Portugal.

    Este número degradante foi publicado ontem discretamente pelo INE, sob a forma de “taxa de mortalidade devida a fontes de água insalubre ou a condições de saneamento e higiene deficientes ou inexistentes por 100.000 habitantes” (vd.aqui). Destas 525 mortes em 2023, três terão sido crianças com menos de 5 anos — portanto, mais do que mata o VSR. Em 2010, estes problemas sanitários tinham sido a causa de 116 óbitos, nenhum dos quais de crianças. Ninguém, na imprensa mainstream, que tem dezenas e dezenas de jornalistas, pegou no assunto. Tal como ninguém fez eco da notícia do PÁGINA UM em Setembro do ano passado onde já se revelava essa vergonhosa tendência de crescimento.

    Sobre isto não há reportagens de abertura de telejornal? Onde está a indignação? Onde estão os editoriais de fundo?

    Evolução da mortalidade por grupos etários entre 2010 e 2023 para doenças associadas a fontes de água insalubre ou a condições de saneamento e higiene deficientes ou inexistentes. Fonte: INE. Cálculos: PÁGINA UM com base na taxa de mortalidade e estimativas anuais da população por grupos etários.

    Não estão. Porque essas mortes, por insalubridade e desleixo, não geram publicidade, nem contratos de venda de fármacos, nem parcerias. São mortes pobres de interesse, sujas de realidade. E dessas, a Senhora Ministra da Saúde, ex-Gilead, e o Senhor Secretário de Estado da Gestão da Saúde, ex-Sanofi, não estão para aí virados, porque a imprensa também não os faz virar para aí. Aquilo que interessa mesmo é vender fármacos, porque basta um contrato, enviar um camião com os medicamentos salvíficos (ou não tanto) e fazer a transferência bancária com o dinheiro dos contribuintes para os cofres dos accionistas das farmacêuticas.

    Sem os chatos dos jornalistas watchdogs, agora amestrados em petdogs, o mundo tornou-se distópico: sobrevivemos sem noção de que a Saúde Pública serve quase só para, com contínuos negócios, alimentar uma contínua dependência dos fármacos do sector farmacêutico, que nos salvarão sempre, excepto prova em contrário, que nunca se procurará.

  • O Humor nos tempos do puritanismo: até o Diabo será censurado e encarcerado

    O Humor nos tempos do puritanismo: até o Diabo será censurado e encarcerado


    Vivemos em tempos perigosos para o pensamento. Tempos de lápis azul digital, de fogueiras morais disfarçadas de virtude cívica, de censores de toga que não se chamam Torquemada mas se julgam apóstolos da redenção social. Tempos em que, dos jornais aos tribunais, passando por grupos de puritanos ideologicamente diversificados — com o zelo puritano dos convertidos —, se decide quem pode ou não fazer humor, quem pode ou não rir e, sobretudo, de quem se pode ou não fazer troça.

    A condenação do humorista brasileiro Léo Lins a mais de oito anos de prisão, por fazer piadas, marca um momento histórico sinistro — não apenas no Brasil, mas no mundo civilizado que supostamente defende a liberdade. Léo Lins foi acusado de “racismo recreativo”, um neologismo ideológico que traduz uma ideia perigosa: a de que o riso é admissível apenas quando sancionado pelos dogmas do politicamente correcto. Um riso domesticado, asséptico, higienizado — como se a função do humor fosse reforçar consensos em vez de os questionar.

    Léo Lins

    O caso de Léo Lins não deve ser olhado de forma isolada. Representa o sintoma máximo de uma metástase que alastra: a ideia de que as palavras ferem como punhais, que piadas são crimes, que perpetuam preconceitos e estereótipos, que a ironia é perigosa se não vier acompanhada de uma cartilha de inclusão. O humor sempre foi uma forma de transgressão simbólica. A sua função, desde Aristófanes aos Monty Python, passando até pelo nosso Gil Vicente, não é confortar nem elogiar, mas desestabilizar. Rir do poder, das convenções, dos dogmas — e também das fragilidades humanas. O humor é o último reduto da liberdade de pensamento porque recusa ser domesticado. A democracia não pode querer domesticar o humor, qualquer que ele seja, mesmo que se trate de uma má piada.

    Mas essa liberdade está agora em risco porque se está a impor uma nova moral que recusa a transgressão. Cada grupo social, cada identidade, cada tribo autoproclamada ofendida exige imunidade à crítica e santidade de tratamento. E quando todos exigem ser tratados como santos, o mundo torna-se um imenso altar de porcelana — onde ninguém ousa mexer sob pena de blasfémia. A consequência é terrível: o humor deixa de ser arte e torna-se liturgia. Não se pode rir de um judeu, de um indígena, de um obeso, de um deficiente, de uma mulher, de um transexual — e não tarda, não se poderá rir sequer de um banqueiro, de um político, de um padre ou de um juiz. Porque todo o riso, mesmo o mais leve, será interpretado como violência simbólica.

    Este moralismo não nasce da bondade — nasce de um desejo de controlo. Da vontade de impor o silêncio àquilo que perturba, àquilo que ironiza ou rasga o véu da perfeição socialmente encenada. E o problema não é a necessidade de defesa das minorias. O problema é a sua canonização — e a transformação da crítica, do sarcasmo e da caricatura num acto sacrílego.

    Pergunto-me: que escreveria hoje Gil Vicente? Ou melhor: que fariam hoje a Gil Vicente, se escrevesse agora aquilo que escreveu no século XVI?

    O dramaturgo português, pai do teatro em língua portuguesa, escreveu há mais de 500 anos peças onde ridicularizava padres libidinosos, almocreves aldrabões, prostitutas sem escrúpulos, velhas devassas, judeus gananciosos, frades desonestos, corregedores corruptos, sapateiros trapaceiros e, sobretudo, a falsa santidade dos que se julgavam virtuosos. A sua obra-prima — Auto da Barca do Inferno — é um desfile de estereótipos: o frade leva consigo a amante Florença; o judeu tenta comprar indulgência; o sapateiro gaba-se da sua religiosidade enquanto vende calçado falsificado; o cavaleiro quer entrar no Céu porque morreu em combate, esquecendo-se dos seus pecados de soberba e opressão. É o julgamento universal, sim, mas feito com escárnio e maldizer.

    Praticamente todas as personagens vicentinas seriam hoje canceladas à primeira leitura. Representar o Frade seria tido como ofensa à fé católica. A Florença, exemplo flagrante de objectificação misógina. O Judeu, manifesto de antissemitismo. O Almocreve, caricatura abjecta de classe. A Velha do Auto da Cananéia, puro idadismo intolerável. A moça de A Sibila Cassandra, mais um caso de misoginia estrutural. Os pastores e vaqueiros, alvo de acusação por ridicularização grotesca das populações rurais. E, inevitavelmente, algum zelador académico denunciaria Gil Vicente por exercer “violência simbólica interseccional”.

    Aquilo que hoje passa por sensibilidade é, na verdade, censura travestida de virtude. A arte, incluindo a ficção, está a perder o direito de ofender. E até o humor está a perder o direito de errar. Porque todo o erro é lido como malícia, toda a sátira como agressão, toda a caricatura como opressão.

    É certo que há limites — sempre houve. Mas esses limites eram antes atribuídos pelo bom senso, pelo gosto, pela reacção do público — pela sociedade no seu todo, não por um tribunal inquisitorial. Quando um juiz define o que é aceitável no humor, o riso morre. E quando o riso morre, nasce o medo. O medo de escrever, o medo de representar, o medo de rir.

    Chegamos à conclusão de que Gil Vicente viveu, afinal, com mais liberdade do que os artistas de hoje. Escreveu as suas peças na transição entre a Idade Média e o Renascimento, quando Portugal ainda não conhecia a Inquisição formal — e mesmo depois desta surgir, o seu génio sobreviveu porque o ridículo era aceite como forma de crítica social. Hoje, porém, não vivemos um Renascimento, mas aparentemente uma nova Idade das Trevas, onde os censores não queimam livros — cancelam ou prendem pessoas.

    Eis a hipocrisia do nosso tempo: grita-se liberdade enquanto se ergue um muro de vigilância moral à volta de cada palavra. Dissimula-se a censura com o pretexto da inclusão. E, enquanto isso, o humor, que é um acto de coragem, torna-se um acto de risco judicial.

    Os novos inquisidores têm medo do riso porque sabem que ele desmonta as verdades absolutas. Rir de alguém não é odiá-lo — é reconhecê-lo como humano. A sátira aproxima mais do que afasta. Vivemos um tempo de pseudohipocriasia: essa mistura tóxica de hipocrisia e exigência histérica de perfeição, que quer proteger os indivíduos do mundo em vez de os preparar para ele.

    Se Léo Lins fosse condenado por incitar à violência, à perseguição, ao ódio concreto, não haveria polémica. Mas foi condenado por palavras ditas num espectáculo de comédia — por piadas. E isso deve aterrorizar-nos, porque o que hoje se aplica ao humorista, amanhã aplicar-se-á ao cronista, ao romancista, ao jornalista, ao historiador.

    O problema do nosso tempo não é a ofensa — é a intolerância a qualquer dissonância. Não é a violência das palavras — é a fragilidade de quem se recusa a ouvi-las. E, quando a fragilidade se transforma em arma de poder — então sim, já não rimos. Trememos.

  • O valor do jornalismo, o preço da independência

    O valor do jornalismo, o preço da independência


    Numa postura de transparência que sempre me impus no início do projecto do Página Um, em finais de 2021, apresentamos e divulgamos os resultados financeiros de 2024da microempresa que gere este jornal. Quando os vejo, e tendo presente tanto os contratos despesistas do Estado como os balanços catastróficos das grandes empresas de media em Portugal, não posso deixar de sorrir — mas é um sorriso com amargura.

    O PÁGINA UM conseguiu, em 2024, mais um milagre. Sem publicidade. Sem parcerias comerciais. Com acesso livre a todos. Recebemos mais de 61 mil euros em donativos de leitores generosos e conscientes. Parece muito dinheiro — e é, tendo em conta o panorama actual da imprensa —, mas não é suficiente. O nosso orçamento mensal ronda os 5.000 euros, valor que cobre os custos operacionais do site, comunicações, despesas logísticas, renda da redacção, e o pagamento — em montantes que envergonhariam qualquer tabela sindical — de dois jornalistas fixos. Não há desperdício. Não há luxos. Não há salários dourados.

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    Todos os dias, ao consultar o extracto bancário do PÁGINA UM, agradeço em silêncio cada apoio que surge. Só a falta crónica de tempo — esse tempo que se gasta a investigar, confirmar, redigir, editar — impede que cada contributo tenha o agradecimento personalizado que merece. Mas todos os nossos apoiantes sabem que este jornal não seria possível sem eles. E sabem também que nunca fizemos dívidas, nunca apresentámos prejuízo.

    Com um capital social de apenas 10 mil euros, a empresa que detém o PÁGINA UM cumpre religiosamente todas as obrigações fiscais e sociais. O único valor registado no passivo de 2024 referia-se ao IRC — que, aliás, já está pago. Temos orgulho nesse rigor. Somos pequenos, sim, mas somos íntegros.

    Esse rigor é também o que nos permite apontar o dedo à promiscuidade e à irresponsabilidade reinantes noutros lados da imprensa. Veja-se o caso paradigmático da Trust in News. Com o mesmo capital social de 10 mil euros, conseguiu, não se sabe bem como, manter uma operação com mais de duas centenas de empregados — mas acumulou também um passivo superior a 30 milhões de euros, dos quais metade são dívidas ao Fisco e à Segurança Social. E o seu dono, Luís Delgado, continua serenamente a acumular dívida, enquanto atira a credibilidade do jornalismo português para a sarjeta.

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    No PÁGINA UM, recusamos esse caminho. Preferimos não crescer a qualquer preço. E essa decisão tem custos. Apesar de tudo aquilo que conseguimos construir nos últimos três anos — credibilidade, impacto, notoriedade — há uma frustração que persiste nos números. Temos hoje cerca de meio milhar de apoiantes regulares, que nos financiam com o que consideram justo e possível. É, na prática, a aplicação espontânea e honesta do conceito económico de willingness to pay — a disposição individual a pagar por um bem imaterial que se reconhece como valioso.

    Esse princípio, aliás, é uma viagem à raiz do mais puro e nobre jornalismo: um contrato de confiança entre quem informa e quem quer ser informado com rigor, isenção e coragem. Não temos paywalls. Não exigimos quotas obrigatórias. Confiamos no julgamento dos leitores. E por isso cada euro doado vale mais do que mil de publicidade: é uma demonstração de respeito mútuo.

    Mas os desafios são reais. O crescimento das visitas — temos tido sistematicamente mais de 300 mil acessos mensais, chegando nalguns meses a ultrapassar os 400 mil — traz consigo uma exigência acrescida. Chegam-nos denúncias sérias, sugestões fundamentadas, propostas de investigação com potencial noticioso. E nós, por falta de meios humanos, por absoluta escassez de tempo, não conseguimos sempre responder. Sabemos o quanto isso é frustrante para os leitores. É também frustrante para nós.

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    Estamos, pois, num dilema. Não queremos desarmar. Mas temos consciência de que será cada vez mais difícil sustentar um projecto que se recusa a vender a alma, mas que está a exigir-me os limites. Precisamos de encontrar formas complementares de financiamento, para conseguir aumentar uma redacção que tem limites físicos, sem ceder um milímetro nos princípios que nos trouxeram até aqui. E a todos os que nos leem, vos deixo uma garantia: no dia em que sentir que a independência jornalística do PÁGINA UM está em risco de ser trocada por sobrevivência, será também o dia em que encerrarei este projecto.

    Mas esse dia não chegou. e nem quero que chegue — se continuarmos a merecer a confiança dos nossos leitores. Por isso, este é também um apelo: continuem connosco. Ajudem-nos a resistir. Acreditem que vale a pena fazer jornalismo livre, mesmo num país pequeno e com tantos interesses instalados. E saibam que, enquanto tivermos forças, estaremos aqui. Porque há coisas que ainda precisam de ser ditas. E, mais importante ainda, há verdades que ainda precisam de ser contadas.

    Obrigado a todos.

    Pedro Almeida Vieira

  • Gouveia e Melo: um populista de farda como epitáfio da democracia

    Gouveia e Melo: um populista de farda como epitáfio da democracia


    Portugal vive hoje sob um regime político que se apresenta como democrático, mas que já não o é. Persistem as eleições, os parlamentos, os jornais, os partidos, os discursos inflamados na Avenida da Liberdade para comemorar o 25 de Abril. Não há perseguições nem presos políticos. Mas falta-lhes todo o resto. Falta já a substância.

    A democracia portuguesa – e, por extensão, a de toda a União Europeia – tornou-se um teatro de sombras, onde os actores se movimentam obedientes a um guião traçado por interesses supranacionais, alheios à vontade popular. A liberdade política esvai-se sem tiros nem quarteladas, numa erosão subtil, mas implacável, em que o cidadão comum é reduzido a figurante.

    Gouveia e Melo com Isaltino Morais.

    Tal como em Matrix, os portugueses continuam a acreditar que vivem numa democracia porque ainda votam, ainda discutem política, ainda protestam de vez em quando. Mas já não mandam. Já não decidem. Já não influenciam. O poder efectivo – aquele que determina o rumo da Economia, os modelos de governação, os critérios de financiamento, as regras sociais, os limites da acção individual e colectiva – reside noutras mãos. Mãos frias, cinzentas, instaladas em Bruxelas, Estrasburgo e Frankfurt. Mãos de burocratas não eleitos, ou eleitos por cliques governamentais sem qualquer representação directa de vontades nacionais. A Comissão Europeia, hoje desprovida de qualquer sentido de solidariedade ou humanismo, tornou-se uma instância autocrática que olha para os cidadãos como carne para canhão, peças sacrificáveis num tabuleiro de xadrez onde só importa proteger o rei e os bispos.

    Onde antes se vislumbrava um projecto de desenvolvimento económico e social, temos agora um modelo de gestão tecnocrática e autoritária, que invoca a “governança” para justificar a opressão fiscal, a vigilância digital, a neutralização da dissidência e o esvaziamento do Estado-Nação. Em nome da estabilidade, da transição ecológica, da saúde pública ou da “resiliência”, tudo é permitido – menos resistir.

    A comunicação social mainstream, falida e dependente cada vez mais do ‘oxigénio’ das corporações e do Estado – porque os seus clientes tradicionais, os leitores, já não lhe concedem a credibilidade e o valor económico de outrora –, traiu os seus princípios. Neste novo cenário, deixou de ser watchdog para ser o petdog, abanando a cauda a cada migalha do poder.

    Portugal, outrora nação soberana, é hoje um protectorado sem identidade política – mais submisso aos ditames dos comissários europeus do que o foi à Coroa espanhola entre 1580 e 1640. A diferença é que, ao menos, o domínio filipino não disfarçava a sua natureza. Hoje, os nossos dirigentes sorriem, assinam, bajulam e até agradecem por sermos tutelados. E não são apenas os burocratas estrangeiros os culpados: são, sobretudo, os nossos próprios políticos, que cedo perceberam que em Bruxelas há mais poder, mais visibilidade e melhores poisos do que em São Bento. De Durão Barroso a António Costa, temos assistido a uma sucessão de ambiciosos que trocaram a lealdade à pátria pela ascensão nas hierarquias internacionais. Portugal serve já apenas como trampolim.

    E, no entanto, os tempos difíceis não surgem apenas do exterior. A deriva antidemocrática alastra também no plano interno, disfarçada sob novas roupagens. Se muitos se escandalizam com o Chega – e bem, diga-se, pois a retórica populista não oferece soluções, apenas ressentimentos –, poucos se apercebem de que o verdadeiro risco está na emergência de uma nova direita pretensamente respeitável, que nasce das borralhas de um antigo PSD e CDS e que se tenta reabilitar à boleia de uma figura tão popular quanto perigosa: o Almirante Gouveia e Melo.

    Há quem trema com os apoiantes do Chega. Eu tremo tanto ou mais com os que se juntam, discretamente, em redor de Gouveia e Melo. Começa-se pelo novo BFF (best friend forever) do Almirante: Isaltino Morais, o velho cacique que gere Oeiras como um paxá num feudo medieval. Junte-se-lhe Rui Rio, o ex-presidente do PSD, agora mandatário da candidatura a Belém, com contas a ajustar com os seus ‘fantasmas’ que o impediram de ser primeiro-ministro. Adicione-se ‘senadores’ reformados do PSD ou derrotados do CDS, bem da vida por terem aproveitado da rede de contactos políticos uma existência inteira, mas saudosistas das luzes da ribalta, como Ângelo Correia, António Martins da Cruz e Francisco Rodrigues dos Santos. Esta frente discreta, mas não menos inquietante, de figuras em busca de redenção ou vingança compõe um coro de sombras que encontra em Gouveia e Melo uma âncora, um novo D. Sebastião vestido de almirante. É isso que tentam vender.

    Gouveia e Melo com Rui Rio.

    Aliás, de entre os sete fundadores e membros da direcção de apoio ao AlmiranteHonrar Portugal, que curiosamente repete uma denominação com laivos de Estado Novo de um grupo de pensamento do Chega no Facebook –, não é de admirar que haja quatro especialistas em marketing, porque Gouveia e Melo é um produto apenas com embalagem: Carlos Sá, Catarina Santos Cunha, Manuel Vaz e Tiago Mogadouro. De facto, bem precisam de vender um senhor que de carisma tem zero, sem um pensamento teórico, político ou social minimamente estruturado sobre assunto algum, que lê o teleponto como um boneco de cera – talvez seguindo as recomendações de Tiago Mogadouro, que é director-geral do Museu Madame Tussaud, em Nova Iorque.

    Mas mais preocupante ainda é ver neste grupo avançado de lugares-tenentes de Gouveia e Melo – que se tornou conhecido por ter sido o director logístico de um produto (vacinas contra a covid-19) durante três trimestres – uma constitucionalista, Teresa Violante, que já defendeu, sem pudor, que houve, sim, atropelos constitucionais durante a pandemia, mas que tal problema se resolve facilmente: basta mudar a Constituição. Talvez também queira mudar a Constituição para que os atropelos cometidos por Gouveia e Melo, na sua sanha justiceira a bordo do NRP Mondego, se tornem legais.

    É este o perigo de se embarcar em populistas – que é exactamente aquilo que Gouveia e Melo é. Se a lei incomoda, muda-se a lei. Se os direitos atrapalham, cortam-se os direitos. Tudo pela eficácia – e ele já defendeu ser contra a burocracia, porque, hélas, promove a corrupção. A democracia, com os seus equilíbrios, os seus freios e contrapesos, os seus incómodos, é hoje vista como um obstáculo.

    O problema da crise dos partidos tradicionais, que fizeram crescer os populismos e os extremismos, faz também ‘nascer’ este tipo de figuras que, tal como André Ventura, querem mudança – mas essa mudança vem acompanhada de veneno. Em vez de vir revestida de ideias, vem mascarada com palavras como “modernização”, “responsabilidade” ou “realismo”. Traz, na verdade, um conteúdo bem mais sinistro: menos democracia, mais controlo.

    Gouveia e Melo é o rosto ideal para esta operação – e será talvez o mais desejado aliado, mesmo que involuntário, de André Ventura. Se Gouveia e Melo for eleito para Belém, aí teremos um populista sem ideias – ou com ideias feitas por outros –, mas com farda e voz grave. Um produto de marketing, com teleponto e conselheiros. Um símbolo de autoridade artificial, que seduz quem anseia por ordem, mas não percebe que está a abrir caminho ao autoritarismo. A ascensão de Gouveia e Melo não representa apenas um risco político: representa um sinal de desespero democrático. Quando o povo deposita as esperanças num almirante vazio de pensamento, é porque já perdeu a confiança nos partidos, nas instituições, na democracia em si mesma.

    Portugal vive, pois, um tempo de simulacro: simulacro de soberania, simulacro de debate, simulacro de escolha. E como em todos os simulacros, o espectáculo continua – com Gouveia e Melo em Belém seguirá, pois, em agonia, já sem alma, sem sentido e sem verdade.

  • Portugal apaga o português na Expo 2025 Osaka: uma vergonha diplomática, um acto de ignorância desmedida

    Portugal apaga o português na Expo 2025 Osaka: uma vergonha diplomática, um acto de ignorância desmedida


    Na Exposição Universal de Osaka, em pleno 2025, sobre a qual hoje escrevi para falar dos gastos, fiquei estupefacto com uma constatação: o pavilhão de Portugal optou por apresentar-se ao mundo sem uma única mensagem em português. Nas projecções que “recebem” os visitantes, apenas se lêem mensagens em japonês e em inglês. Presumo que a palavra Portugal apareça como Portugal porque assim se escreve em inglês.

    Esta aberração num projecto de quase 26 milhões de euros — que é o que custará aos cofres públicos a presença portuguesa em Osaka — não se trata de um lapso trivial. Trata-se de uma vergonha. Uma vergonha diplomática. Uma vergonha cultural. E, sobretudo, um acto de ignorância desmedida da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) sobre a própria História de Portugal — precisamente no Japão, um país onde o português foi, durante décadas, a língua da diplomacia, da fé, do comércio e da ciência.

    Ricardo Arroja e as “alminhas” da AICEP podem não saber da riqueza histórica entre Japão e Portugal, nem sempre pacífica quando mundos se contactam pela primeira vez. Mas, se tiveram mais de 13 milhões de euros para montar um edifício com 10 mil cordas, talvez por meia dúzia de patacas (não as de Macau, que isso é China) pudessem contratar um historiador.

    Se tiveram 200 mil euros para contratar a Ernst & Young para lhes fazer a contabilidade, poderiam ter contratado a decência para lhes explicar que, quando se promove Portugal, só se promove com a língua portuguesa, porque, como escreveu bem Fernando Pessoa (ou Bernardo Soares), “minha pátria é a língua portuguesa”.

    Num país que se envergonha pelo que faz no presente, parece agora querer vilipendiar o passado. Quer apagar da História Universal que o primeiro grande contacto da Europa com o Japão moderno foi feito por intermédio dos portugueses. Em 1543, três navegadores — António da Mota, António Peixoto e Francisco Zeimoto — ancoraram nas ilhas nipónicas, dando início a uma relação de trocas e fascínio mútuo que marcaria profundamente ambos os povos.

    Fernão Mendes Pinto, na sua Peregrinação, misto de verdade e ficção, reclama para si um lugar nesse feito inaugural, descrevendo com minúcia a sua chegada ao Japão, o assombro dos locais perante as armas de fogo portuguesas e o espanto recíproco perante os costumes e a cultura. É dele um dos primeiros retratos europeus do Japão — colorido, cheio de admiração e revelador de um encontro entre civilizações.

    Na sua narrativa, refere a entrega de espingardas a um senhor feudal japonês e o impacto profundo que esse gesto teve, ao ponto de modificar para sempre o modo como os japoneses concebiam a guerra. Mais do que uma crónica de aventuras, a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto é um testemunho vivo da presença portuguesa no Japão do século XVI. E é, também, um monumento literário que dá voz à nossa língua nas lonjuras do Oriente.

    Recorde-se ainda que Francisco Xavier, missionário jesuíta português, foi um dos primeiros evangelizadores do arquipélago. A cidade de Nagasáqui foi doada aos jesuítas portugueses. A primeira gramática da língua japonesa foi redigida por um português. A imprensa de tipos móveis foi introduzida por missionários portugueses. A língua portuguesa foi, até ao século XVII, o veículo oficial da comunicação dos japoneses com o mundo. Que país mais poderá reivindicar tal feito no Japão?

    E como poderemos honrar, com esta postura, esse insigne vulto que foi Wenceslau de Moraes, que nos deixou um legado sobre o Japão em tantos escritos? Logo ele que, por lamentável ironia, até foi cônsul em Osaka…

    E, no entanto, o Portugal de 2025 apresenta-se no Japão ignorando a sua própria língua — como se o português fosse um fardo do passado, um acessório irrelevante, uma relíquia a esconder. Como se a língua de Camões e de António Vieira, de Eça e de Pessoa, não merecesse aparecer agora num dos países que primeiro a escutaram no Extremo Oriente. Este apagamento não é casual. É sintoma de um Estado que já não se entende como Nação, que prefere o inglês da conveniência ao português da identidade.

    Numa era em que o multiculturalismo é brandido como bandeira, Portugal é dos poucos países que insiste em esconder a sua Cultura para parecer moderno. Mas não há modernidade possível sem memória. E não há presença internacional digna quando se abdica da própria língua — sobretudo quando essa língua é um dos maiores legados da presença portuguesa no Japão.

    O pavilhão português em Osaka já não é apenas um edifício; é uma metáfora da forma como o Estado português se vê a si mesmo: envergonhado da História, ignorante do seu papel no Mundo, submisso aos ditames de uma comunicação global onde tudo se quer nivelado, uniformizado, sem raízes.

    Não sou dado a sentimentalismos patrioteiros nem a arroubos diplomáticos, e muito menos me comovem cortejos de bandeiras ou salamaleques culturais. A minha pátria — como bem disse Pessoa — continuará a ser a língua portuguesa. Não me indigno demasiado com quem tropeça no português por ignorância — isso tem cura. Mas o que já me enoja é a opção consciente de apagamento da língua que nos define, como se se varresse Camões para debaixo de um tapete institucional ou se riscasse Pessoa das vitrinas da História.

    Com a indiferença burocrática dos que não percebem que se pode vender um país em silêncio, bastando para isso omitir-lhe a fala, a AICEP não cometeu apenas um deslize administrativo — trata-se de um acto simbólico de rendição cultural. E a rendição, quando feita sem disparar um só alfabeto, é ainda mais vergonhosa — porque já nem é traição: é desistência.