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  • O dogmatismo ‘científico’ e a desinformação: o paradigma David Marçal

    O dogmatismo ‘científico’ e a desinformação: o paradigma David Marçal


    Nos últimos anos, poucos conceitos foram tão martelados no espaço mediático e político como o da “desinformação”. Tornou-se uma espécie de fetiche moral, uma nova lepra simbólica que se cola a tudo o que contraria o consenso hegemónico — ainda que esse consenso seja, com frequência, volátil, interesseiro ou simplesmente errado.

    A palavra “desinformação” passou, aliás, a ter uma dupla função: por um lado, denunciar falsidades objectivas — o que é legítimo e necessário; mas, por outro, tornou-se um instrumento de exclusão retórica, um selo de infâmia aplicado a tudo o que destoa do discurso dominante. Serviu para calar vozes críticas no plano político, silenciar dissidentes no plano social e descredibilizar minorias epistémicas no plano científico. O que antes se combatia com argumentos, combate-se agora com rótulos. E um dos mais eficazes é precisamente este: “desinformador”.

    Curiosamente — ou não —, raramente se discute que a desinformação, em sentido lato, é uma externalidade negativa de algo positivo: a liberdade de expressão e a democracia. Tal como a poluição é uma consequência indesejada da industrialização — cuja mitigação exige tecnologia, investimento e ética —, também a desinformação é um subproduto inevitável da liberdade. Só em ditaduras se impõe uma visão única das coisas. E num regime democrático, a única resposta legítima à mentira é a palavra, não a mordaça.

    Pretender erradicar a desinformação sem pôr em causa a liberdade de expressão é como pretender eliminar o ruído urbano sem tocar no tráfego automóvel: uma ilusão autoritária mascarada de boa intenção.

    Mais grave do que essa simplificação é a tentação crescente — e perigosamente institucionalizada — de se combater a desinformação com censura. Pior ainda: com a Ciência, erigida a nova instância de verdade absoluta. Como se os cientistas fossem missionários, como se os consensos científicos fossem dogmas, como se a discordância fosse uma forma de heresia e os dissidentes, uns leprosos cognitivos.

    Mas a Ciência — e é trágico ter de repetir o óbvio — não é um corpo de verdades eternas: é um método. Ora, esse método vive de questionar, de duvidar, de admitir a possibilidade de estar errado. E também de ser paciente em refutar hipóteses absurdas ou erradas, mas sempre com espírito aberto e tolerante. Não se combate erros ou teorias da conspiração proibindo que sejam faladas — combate-se deixando que sejam faladas, para que caiam em descrédito.

    Não há, na verdade, Ciência sem dissenso, sem controvérsia, sem revisão de pressupostos. A História da Ciência está repleta de consensos quebrados — e foi sempre por aí que ela mais cresceu.

    Por isso, se há figuras públicas que me causam um fastio particular são aquelas que se colocam no pedestal da racionalidade, nos ombros da Ciência, para anatematizar os debates públicos — sejam estes travados por especialistas ou por leigos. Um desses exemplos, que se tornou uma espécie de mascote nacional da “Ciência Certa”, dá pelo nome de David Marçal, conhecido como colunista do Público e autor de vários livros de “divulgação científica”.

    David Marçal

    Essa minha irritação não decorre da falta de inteligência de David Marçal, nem da ausência de capacidade argumentativa. É precisamente o contrário: é por ser tão fluente na retórica falaciosa, tão hábil na omissão do que o incomoda, tão moralista nas suas inferências, que o seu discurso me parece perigosamente eficaz. E, claro, por ser tão ostensivamente aplaudido por aqueles que se julgam mais esclarecidos — os zelotas do racionalismo domesticado.

    No seu mais recente texto, publicado na passada sexta-feira no Público e intitulado As nossas percepções estão quase sempre erradas, David Marçal exemplifica esse seu modus operandi de forma lapidar. De início, parece apenas um ensaio sobre as nossas falhas cognitivas e erros de percepção, com base em autores credíveis como Daniel Kahneman, Bobby Duffy ou Hans Rosling. Nada contra.

    A exposição da dualidade entre pensamento rápido (Sistema 1) e pensamento lento (Sistema 2) é sólida, didáctica e reconhecida no campo da psicologia cognitiva. Também não é falso que, em muitos domínios da vida social, as percepções das pessoas estão erradas — como demonstram inquéritos sobre imigração, sexualidade, religião ou vacinas. Estamos na área da Psicologia, que é uma ciência humana e comportamental, não propriamente uma ciência exacta.

    ‘Ensaio’ desta sexta-feira de David Marçal no Público.

    Mas o problema de Marçal começa na selecção e no tratamento dos exemplos. O texto pratica, com notável perícia, aquilo que em Ciência se designa por cherry picking: seleccionar apenas os casos que confirmam a tese que se pretende sustentar. Aponta com severidade os erros do cidadão comum, mas omite olimpicamente os erros das instituições científicas, dos especialistas mediáticos e dos organismos internacionais — como se estes fossem infalíveis ou, no mínimo, irrelevantes para o debate sobre desinformação. Isso é desonestidade por omissão. E, como se sabe, a meia-verdade é mais perigosa do que a mentira.

    Por exemplo: onde está, no seu ensaio, qualquer referência aos consensos científicos errados da história recente? Onde está a autocrítica às previsões apocalípticas da pandemia da covid-19, em que se comparou a doença à gripe espanhola, se promoveram confinamentos com base em modelizações especulativas, se fecharam escolas sem base empírica sólida e se censuraram vozes discordantes que, com o tempo, se revelaram prudentes e certeiras? Onde está a reflexão sobre o papel das farmacêuticas na produção científica durante a pandemia, ou sobre a falência da revisão por pares como garante de fiabilidade?

    Não está. E não está porque esse tipo de crítica não serve o propósito do texto: reforçar que o problema está nos outros — os desinformados, os ignorantes, os simplórios. Nunca no clero científico.

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    O mais espantoso — e inquietante — é que, no momento em que a Ciência estava mais bem equipada do que nunca para enfrentar uma pandemia, com sistemas de vigilância epidemiológica, ferramentas estatísticas, equipas interdisciplinares e capacidade tecnológica sem precedentes, muitos dos seus representantes se comportaram como profetas do pânico, influenciando péssimas decisões políticas. Num cenário que exigia prudência, proporcionalidade e avaliação de risco baseada em dados desagregados, optou-se por uma retórica apocalíptica, convertendo incertezas legítimas em certezas absolutas e alimentando o medo como instrumento de mobilização social.

    Suspender consultas, diagnósticos e cirurgias; encerrar escolas e confinar crianças à telescola; impedir que se andasse ao ar livre; internar idosos em “covidários”; tudo isto foi sustentado por cientistas que se deslumbraram com o poder de uma distopia.

    E o paradoxo é este: o pico de mortalidade em 2020 e 2021 — não apenas pela covid-19 — deu-se quando havia menos visitas às urgências, menos camas hospitalares ocupadas e menos dias de internamento. E depois a Ciência recusou-se a avaliar seriamente as mortes em excesso em 2022, com temor em descobrir causas politicamente sensíveis. Mas note-se: mesmo entre os grupos mais vulneráveis — os idosos com múltiplas comorbilidades —, as taxas de mortalidade em Portugal durante a pandemia foram, por vezes, inferiores às de há vinte anos. Na primeira década deste século, a mortalidade relativa (taxa) entre maiores de 85 anos foi mais elevada do que nos picos pandémicos de 2020 ou 2021. Isto — goste-se ou não — é uma factualidade científica.

    E, no entanto, a percepção mediática e institucional — alimentada por divulgadores como David Marçal — insistiu na ideia de uma catástrofe sanitária sem paralelo. Não por força dos dados, mas por imposição de uma narrativa.

    Narrativa essa que foi promovida com zelo quase religioso por cientistas e divulgadores que confundiram pedagogia com propaganda, muitas vezes em promiscuidade ideológica, financeira ou simbólica com a indústria farmacêutica e com os centros de decisão político-mediáticos. A “Ciência” — essa entidade abstracta que tantos invocam — serviu de escudo retórico para justificar medidas que, em muitos casos, não resistiram ao escrutínio retrospectivo. E quem ousava colocar perguntas incómodas era imediatamente rotulado como “negacionista”, “desinformador” ou “anticiência”.

    Aliás, a ideia de que se combate a desinformação com “mais Ciência” é, por si só, uma armadilha lógica. Que Ciência? A de que momento? Publicada onde? Financiada por quem? Promovida por que canais? A Ciência não é um bloco monolítico. É feita por humanos, com os seus interesses, limitações, enviesamentos e alinhamentos institucionais. O verdadeiro cientista não teme o dissenso — estimula-o. Não silencia dados desconfortáveis — investiga-os. Não exclui outliers — problematiza-os. Quando um divulgador científico se comporta como censor ou paladino do dogma, deixa de ser defensor da Ciência e passa a ser apóstolo de uma fé travestida de método.

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    O mais irónico — e preocupante — é que essa retórica ilustrada, desse círculo de Marçal, que despreza o senso comum e endeusa a tecnociência, tem efeitos sociais contraproducentes. Em vez de promover confiança na Ciência, fomenta a suspeita. Em vez de combater os extremismos, alimenta-os. Quando o público se apercebe de que há censura de opiniões divergentes, de que só certas narrativas têm direito à luz do dia, de que os consensos mudam ao sabor do vento político, tende a desconfiar de tudo — até do que está bem fundado. A verdade não se impõe com silenciadores. A confiança constrói-se com transparência, humildade epistémica e coragem para admitir os erros do passado.

    Marçal termina o seu ensaio com uma referência ao Brexit como exemplo de erro colectivo baseado em percepções erradas. Pode até ser. Mas pergunto: quantas decisões políticas foram moldadas por dados distorcidos promovidos por instituições ditas credíveis? Onde está a crítica às projecções falhadas do FMI, do BCE ou da OCDE, que erraram sistematicamente durante anos sem qualquer responsabilização? O critério de Marçal é invariável: criticar a irracionalidade das massas, mas nunca a manipulação das elites.

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    Talvez a pergunta que hoje mais importa não seja “como combater a desinformação?”, mas sim “quem define o que é desinformação?”. Porque a História está cheia de ideias que foram rotuladas de perigosas ou absurdas — e que se tornaram, mais tarde, pilares do conhecimento. Galileu, Lavoisier, Semmelweis, Barry Marshall, Alfred Wegener: todos foram dissidentes. Todos foram perseguidos ou ignorados. Todos foram, a seu tempo, justificados pelos dados. Nenhum deles teria tido espaço nos palcos bem-pensantes da “Ciência Oficial” onde hoje David Marçal actua com os favores de uma certa academia e da imprensa.

    Na verdade, ao propor que a Ciência funcione como instrumento de silenciamento — erguendo-a a tribunal moral e a gendarme da verdade —, David Marçal não está a defendê-la: está a traí-la. Porque a Ciência, por definição, só respira em ambientes de liberdade crítica, de permanente revisão, de dúvida metódica. Quando alguém a invoca para calar em vez de para debater, para excluir em vez de para esclarecer, transforma-a numa paródia autoritária do seu próprio ideal.

    E se Marçal ainda acredita que esse é o papel legítimo da Ciência — o de censurar o dissenso e filtrar o que merece ou não ser discutido —, então estará perigosamente próximo de cometer aquilo que mais proclama combater: a desinformação. E mesmo que, em nome da liberdade, lhe reconheça o direito de o fazer, não posso deixar de assinalar a ironia: é que o homem que se arroga paladino da razão parece ter esquecido que a dúvida, e não a certeza, é a verdadeira alma do conhecimento.

  • Trust in News: o fim de um (mau) cadáver adiado

    Trust in News: o fim de um (mau) cadáver adiado


    Na próxima quinta-feira, 24 de Julho de 2025, cumprem-se exactamente dois anos sobre a publicação no PÁGINA UM de uma investigação que — por muito que alguns quisessem ridicularizar, desprezar ou silenciar — expunha, com base nas demonstrações financeiras da própria empresa, a ruína anunciada da Trust in News. O título era inequívoco: “Dona da revista Visão com dívida astronómica ao Estado. E Governo esconde.” Não se tratava de conjecturas nem de insinuações, mas de números, factos e documentos oficiais. Era jornalismo, e dos mais incómodos.

    Na altura, escrevi: “Na aparência, ninguém se apercebeu no Governo, mas a Trust in News – a empresa proprietária da revista Visão e de outras publicações como a Exame, a Caras e o Jornal de Letras – apresenta já, alegremente, uma dívida de 11,4 milhões ao Estado. A sua cobrança, a atender à situação financeira da empresa, mostra-se cada vez mais complexa.”

    Luís Delgado e Francisco Pedro Balsemão: um negócio ainda por explicar que termina sete anos depois numa ‘bancarrota’ absoluta e dívidas de mais de 30 milhões de euros.

    Era o retrato de um calote fiscal que crescia a mais de 12 mil euros por dia, com a complacência do poder político, a aparente indiferença da autoridade tributária e o silêncio cúmplice da Segurança Social. E o regulador – a Entidade Reguladora para a Comunicação Social – aos costumes disse nada.

    Apesar da clareza dos factos, a então directora da revista Visão, Mafalda Anjos — que acumulou durante anos o cargo de publisher do grupo — preferiu insultar a inteligência alheia, classificando as notícias do PÁGINA UM como “fantasiosas”. Talvez lhe parecesse fantasia que uma empresa de capital social de 10 mil euros, criada por Luís Delgado, tivesse adquirido à Impresa de Pinto Balsemão um portefólio de 16 títulos de imprensa escrita. Talvez lhe parecesse fantasia que a ERC, mesmo após a criação do Portal da Transparência, nunca tivesse analisado seriamente nem o negócio de 2018 nem a contabilidade anual da Trust in News, onde ano após ano as dívidas ao Estado cresciam, mas eram escondidas, enquanto se acumulavam “outras contas a receber” de natureza inexplicada.

    Durante mais de um ano, o PÁGINA UM foi o único órgão de comunicação social a acompanhar, com independência e persistência, este caso que só poderia ser descrito como um escândalo de gestão e de regulação. E mesmo quando a restante imprensa começou a abordar o tema, houve desresponsabilização de Luís Delgado – ainda hoje, as notícias omitem a condenação de Luís Delgado por abuso de confiança fiscal agravado.

    Mafalda Anjos, em Novembro do ano passado no Porto, a apresentar o seu livro (ironicamente) intitulado ‘Carta a um jovem decente‘.

    Entretanto, desde o ano passado, tudo aquilo que suceder em redor da Trust in News foi um circo para atirar areia para os olhos e salvar o ‘coiro’ de Luís Delgado, que, com a compra dos títulos à Impresa em 2018, ‘salvou’ a família Balsemão de mais agruras. O Processo Especial de Revitalização(PER), que Luís Delgado usou para congelar os seus compromissos fiscais e sociais, era na verdade um expediente para evitar novos processos judiciais por abuso de confiança fiscal.

    O mesmo sucedeu com o plano de insolvência que tinha um único propósito pessoal recusado – e bem – pela juíza: proteger o proprietário, e não os credores, e muito menos o interesse público.

    Em 2023, o silêncio do então ministro das Finanças, Fernando Medina, foi ensurdecedor – e foi para mim evidente que as revistas da Trust in News estavam agradecidas ao Governo socialista. Com efeito, causa estranheza que a Trust in News, apesar de ter processos executivos instaurados, e ter começado as dívidas ao Estado logo a partir de 2018, nunca ter figurado na lista de devedores fiscais nem da Segurança Social.

    Primeira notícia do PÁGINA UM de 24 de Julho de 2023 sobre a crise financeira insustentável (e escondida) da Trust in News.

    A pergunta impõe-se: por que razão foi esta empresa poupada à humilhação pública a que tantos outros contribuintes são sujeitos? E por que motivo os seus trabalhadores — especialmente os directores, que segundo a Lei de Imprensa têm o direito de aceder à situação financeira detalhada das suas empresas — permaneceram ignorantes ou resignados perante tamanha evidência de naufrágio?

    O encerramento hoje decretado judicialmente é, por muito que custe a assumir, “um choque saudável”, uma moralização tardia mas necessária no sector da comunicação social em Portugal. Mas não nos iludamos: não foi a Entidade Reguladora para a Comunicação Social que agiu; não foi o Estado a exigir transparência e justiça fiscal. Aquilo a que assistimos foi a um colapso silencioso de uma empresa insustentável, protegida até ao fim por uma rede de indiferença, conveniência e corporativismo mediático.

    O fecho da Trust in News deve, portanto, servir de ponto de partida — e não de chegada — para a dissecação do negócio ruinoso de 2018, entre a Impresa e Luís Delgado. Há demasiadas sombras neste contrato de cessão de títulos que libertou o grupo Balsemão de um portefólio deficitário à custa do erário público. Há rubricas nas contas da Trust in News, nomeadamente a obscura “Outras contas a receber”, que indiciam engenharia financeira deliberada para mascarar prejuízos acumulados em milhões durante mais de cinco anos. E há responsabilidades que não podem continuar encobertas, seja do lado de quem vendeu, de quem comprou ou de quem devia fiscalizar e reguladoramente intervir.

    Em Julho de 2023, a então directora da Visão considerou o conteúdo dos artigos do PÁGINA UM como “fantasiosos”. Nota: a declaração de não permissão de a citar não tem qualquer validade, porque pressupõe haver uma aceitação da parte do PÁGINA UM (o que não se verificou). Mafalda Anjos escreveu voluntariamente.

    Este caso é mais do que a falência de uma empresa: é a falência de um modelo mediático que mercantiliza o jornalismo, que despreza a sustentabilidade económica e que vive de aparências e de favores institucionais. Um modelo que produz títulos vistosos mas assentes em areia, que enaltece o combate às fake news mas vive da opacidade das suas próprias contas, e que exige subsídios públicos enquanto foge ao fisco.

    O PÁGINA UM, ao denunciar em 2023 o descalabro financeiro da Trust in News, não apenas antecipou o desfecho — antecipou a verdade. E escrevo isto sem qualquer júbilo: o encerramento de 16 títulos de imprensa, por mais irrelevantes que se tenham tornado, é sempre uma perda simbólica para o pluralismo informativo. Mas essa perda só é superada pela complacência que permitiu que estes títulos sobrevivessem durante anos à custa do dinheiro que não pagavam ao Estado, nem aos trabalhadores nem aos credores.

    O jornalismo só se defende com verdade, independência e rigor. E isso começa pela denúncia dos que, em nome do jornalismo, dele abusam. A Trust in News morreu. Viva o jornalismo! Que a verdade continue viva.

  • A pandemia da intolerância: da covid à imigração, não há adversários – apenas inimigos

    A pandemia da intolerância: da covid à imigração, não há adversários – apenas inimigos


    De repente, uma estranha simetria une dois dos fenómenos sociais mais fracturantes do nosso tempo recente: a pandemia de covid-19 e a actual crise em torno da imigração. À primeira vista, parecem realidades inconciliáveis: uma, sanitária e de impacte global; outra, demográfica e de impacte nacional.

    Mas, ao observarmos os mecanismos sociais, políticos e comunicacionais, que ambas desencadearam, partilham algo de essencial: a intolerância como padrão de resposta colectiva. E daí parte-se para uma hostilidade crescente não apenas em relação às posições extremas opostas, mas — talvez ainda mais inquietante — contra quem tenta compreender, dialogar ou propor soluções de equilíbrio.

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    Durante a pandemia, bastava levantar uma dúvida sobre a proporcionalidade das medidas, questionar os confinamentos, interrogar a eficácia das vacinas ou simplesmente defender direitos constitucionais elementares para ser etiquetado de “negacionista”, “antivacinas”, “irresponsável” ou mesmo “assassino”. A emotividade pública, catalisada por uma comunicação social subserviente e por peritos promovidos ao estatuto de sacerdotes da verdade, interditava qualquer subtileza. O dogma instalou-se com uma eficácia capaz de ombrear com a Inquisição: quem não se ajoelhava perante o altar do medo era excomungado da vida cívica.

    Hoje, algo semelhante sucede com o debate sobre imigração. Quem aponta os efeitos reais — e documentados — da imigração desordenada sobre o sistema de saúde, habitação, educação ou segurança, corre o risco de ser acusado de xenofobia ou racismo. Mas o contrário também se verifica: quem rejeita o alarmismo identitário e sublinha os direitos humanos, as histórias de vida dos migrantes ou a necessidade de políticas de integração bem desenhadas é de imediato classificado como “globalista”, “vendido ao sistema” ou “traidor da pátria”.

    Pior ainda está quem ousa interrogar ambas as visões com prudência, tentando distinguir entre migração legal e tráfico humano, entre integração e guetização, entre impacto económico e vulnerabilidade social. Este é aquele que acaba por ser atacado de todos os lados — por traidor, por frouxo, por centrista táctico.

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    Na verdade, nos debates sobre a pandemia e agora sobre a imigração — e talvez noutros tantos campos — aquilo que se perdeu foi precisamente o que garante a sanidade de uma democracia: a capacidade de pensar o meio-termo, de analisar com rigor, de propor soluções ponderadas que evitem tanto a repressão cega como a permissividade ingénua.

    A pulsão de radicalização em ambos os lados — alimentada por redes sociais, algoritmos de indignação e agendas políticas maniqueístas — transforma tudo em trincheira. Já não há adversários: há inimigos. E a posição intermédia, que sempre foi mais difícil de construir do que os extremos, parece hoje terreno minado.

    Na pandemia, quem procurava uma via equilibrada — por exemplo, defendendo a protecção dos mais vulneráveis sem destruir as liberdades fundamentais — foi marginalizado, insultado, silenciado. Ou processado — como eu, que ainda este ano terei de responder judicialmente em três processos.

    Na questão migratória, quem procura agora aplicar políticas sérias de controlo de fronteiras, mas ao mesmo tempo defender a dignidade humana — tanto dos imigrantes como dos autóctones —, sofre a mesma sorte: é demasiado duro para os progressistas e demasiado mole para os populistas.

    O consenso tornou-se heresia.

    Há nisto um paradoxo revelador. Se, teoricamente, os extremos se combatem melhor a partir do centro (não me refiro ao espectro ideológico) — com racionalidade, dados e proporcionalidade —, o que vemos hoje é o contrário: os extremos prosperam precisamente porque conseguiram minar o prestígio do centro, esvaziar-lhe a credibilidade, converter a prudência em tibieza e o pensamento crítico em traição. É a vitória do ressentimento contra o equilíbrio. Do ruído contra o discernimento. Do algoritmo contra o argumento.

    As redes sociais, que durante a pandemia foram usadas como instrumentos de controlo emocional e repressão simbólica, agora funcionam como aceleradores de pânico moral e de fúria identitária. A lógica binária de “salva vidas” versus “negacionistas” foi apenas substituída por outra: “defensores da pátria” versus “traidores pró-imigração”. O molde é o mesmo; apenas se trocam os actores. E, mais curioso e preocupante, muitos daqueles que na pandemia sofreram penalidades por serem minorias, estão agora na linha da frente para serem algozes dos que pensam diferente na imigração.

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    E, como antes, quem tentar desmontar o jogo, desmontar o medo, desmontar a encenação, é eliminado do palco.

    Talvez estejamos a assistir a um processo mais profundo: o esgotamento da razão pública como espaço de construção comum. O velho ideal iluminista de que podemos, pela razão e pela evidência, fundar consensos mínimos para enfrentar problemas complexos, está em erosão. Em seu lugar, estão a erguer-se afectos inflamados, tribalismos digitais e dogmas emocionais. E com eles vem a recusa do diálogo, a humilhação do outro, a purga dos moderados.

    Na pandemia, fomos empurrados para o medo absoluto como forma de controlo. No debate migratório, estamos a ser empurrados para o medo difuso como forma de fragmentação. Em ambos os casos, o efeito é idêntico: o desaparecimento da política como espaço de ponderação e a sua substituição por actos reflexos emocionais e moralistas. No limite, deixa de haver verdade: apenas versões armadas da verdade.

    É por isso que, mais do que escolher entre extremos, importa reconstruir o valor do meio. Não o meio-termo cómodo e inócuo, nem sequer ideológico, mas o meio ponderado, exigente — aquele que resiste à emotividade e se ancora na realidade.

    A pandemia ensinou-nos, ou devia ter ensinado, que a histeria colectiva não é boa conselheira. A questão migratória exige agora essa mesma lição: sem tabus, mas também sem ódio. A liberdade — e a civilização — moram nesse equilíbrio precário que os radicais de ambos os lados querem demolir. Mas é lá que vale a pena continuar a construir. Mesmo que seja mais difícil — ou sobretudo por isso.

  • Erros, equívocos, legalidade e respeito no PÁGINA UM

    Erros, equívocos, legalidade e respeito no PÁGINA UM


    Na vida, cometem-se erros e equívocos, mesmo quando as intenções iniciais são as melhores. Há cerca de três meses, abriu-se a possibilidade de uma colaboração sem custos para o PÁGINA UM por parte de João de Sousa, ex-inspector da Polícia Judiciária, com o passado público que se conhece. Esse passado, para mim, era irrelevante: acredito na reinserção social. O que interessava era a sua experiência.

    A melhor forma de oficializar essa colaboração, centrada na área da Justiça, implicava o acesso a fontes de informação e, por vezes, a audiências com limitação de lugares. Por isso, foi formalmente solicitada à CCPJ a emissão de uma carteira de colaborador. Assim, João de Sousa passava a deter, para todos os efeitos, os mesmos direitos e deveres dos jornalistas. Contudo, ficou acordado que, nesta fase, a sua colaboração seria no registo de cronista, o que lhe conferiria simultaneamente liberdade e responsabilidade editorial.

    Escrever num jornal como colunista é algo totalmente distinto de ser colaborador com estatuto equiparado ao de jornalista. Mesmo em textos de opinião, não se pode escrever “o que sai da real gana”, nem utilizar o espaço editorial para acertos de contas pessoais.

    Durante o curto período da sua colaboração, João de Sousa publicou três crónicas. Todas escritas num português correcto, mas com um estilo que, pela minha experiência jornalística e literária, considerei merecer, aqui ou ali, alguns retoques. Esses ajustes visavam garantir maior equilíbrio editorial e tornar o conteúdo mais acessível aos leitores menos familiarizados com os temas tratados. Essa prática – corriqueira, habitual e até necessária no jornalismo e na edição literária – causava, porém, um indisfarçável incómodo ao João de Sousa, que fui sempre gerindo com diplomacia.

    Nunca lhe manifestei que, por exemplo, discordava absolutamente do prisma de uma das suas crónicas, quando comparou o malogrado Diogo J. ao ex-primeiro-ministro José Sócrates, por me parecer despropositado ao contexto do início de um julgamento e de parecer uma colagem emocionalmente ilegítima. Nem tampouco me opus à publicação do texto, mesmo não concordando com o facto de ele justificar na crónica que não acompanhara o início do julgamento por estar em choque com a morte de um futebolista – e que quisera ir para casa beijar os filhos. Ambos sabíamos que, na verdade, houvera um lapso que não permitira a autorização do Tribunal para que ele tivesse garantia de assistir à primeira audiência como colaborador do PÁGINA UM. Enfim, mas no âmbito de uma crónica, existe liberdade de interpretação, e mesmo não sendo este o meu estilo, não deveria opor-me à publicação da crónica, que foi publicada, por razões de liberdade de expressão e de opinião.

    Na passada sexta-feira, depois de receber à noite a sua quarta crónica, sobre a última audiência do julgamento Anjos vs. Joana Marques, enviei-lhe uma curta mensagem a sugerir a inserção de uma simples frase de transição entre a introdução e os três blocos seguintes. Sem qualquer conversa prévia por telefone, recebi a seguinte resposta:

    “Acabou a colaboração, depois entrego-te o Cartão de Colaborador. Não tenho idade, vida ou paciência para isto. O texto já está publicado nas minhas redes sociais. Grato pela experiência.
    Bom concerto. Abraço.”

    Hoje, João de Sousa decidiu ainda vitimizar-se nas redes sociais, acusando-me de “tiques de Citizen Kane” e mandando-me mais uns mimos. Eu teria preferido colocar uma pedra sobre o assunto, mas sou agora obrigado a explicar publicamente o meu modus operandi:

    1. Com mais de três anos e meio de existência enquanto projecto de jornalismo independente, o PÁGINA UM acolheu a colaboração de João de Sousa com respeito e integridade, tal como já fez com muitos outros colaboradores, de qualquer quadrante ou ideologia. No caso dele, ainda com maior atenção. Ainda na própria sexta-feira, estive pessoalmente a tratar de uma providência cautelar para contestar judicialmente o indeferimento da sua acreditação por parte da Assembleia da República — providência que, naturalmente, já não será submetida. Este empenho mostra-se incompatível com o desrespeito evidenciado na sua mensagem abrupta e pouco cordata, em que rompe a colaboração por não aceitar que o director de um jornal lhe sugerisse a introdução sequer de uma vírgula.
    2. Ao informar-me que publicara já o texto nas suas redes sociais, a publicação das crónicas no PÁGINA UM deixou de fazer sentido — até por razões legais. Aliás, ao decidir colocar as suas crónicas no site da sua empresa de consultadoria, João de Sousa rompeu de facto com o princípio de exclusividade e de vínculo editorial.
    3. A sua remoção da ficha técnica e a comunicação do fim da colaboração à CCPJ constituem, além de uma imposição legal, uma forma de proteger o PÁGINA UM de quaisquer responsabilidades que possam surgir, a partir da passada sexta-feira à noite, da associação entre o nome de João de Sousa — detentor de cartão de colaborador 1520, passada pela CCPJ — e este jornal.
    4. Como o próprio João de Sousa foi informado no mesmo dia, o podcast A Corja Maldita, que contava com três elementos, foi suspenso até ser possível conversar com o terceiro participante do grupo. Havia, naturalmente, abertura para a continuação do podcast, incluindo com o João de Sousa — possibilidade que agora se afigura pouco provável. Os episódios já realizados do A Corja Maldita mantêm-se disponíveis nas plataformas Spotify e YouTube.

    Conclusão:

    Lamento profundamente que uma colaboração que procurou, desde o início, ser respeitosa e construtiva tenha terminado desta forma precipitada. E sobretudo de forma acintosa por parte do João de Sousa. O PÁGINA UM não aceita condutas que coloquem em causa a seriedade e a responsabilidade editorial que se exige a quem escreve sob a sua chancela — seja como cronista, seja como jornalista. A liberdade de expressão é um valor inalienável, mas no jornalismo deve sempre coexistir com a responsabilidade editorial, o respeito mútuo e o compromisso com os leitores.

    Fizemos este percurso de 43 meses com cerca de 3.500 conteúdos, e deixar de ter este colaborador que escreveu três crónicas acaba por ser somente um pequeno percalço, que apenas a sua vitimização, que pretende colocar em causa a minha idoneidade, faz justificar estas linhas de esclarecimento.

    Fica apenas mais um lamento e um mea culpa: a dimensão do PÁGINA UM — e sobretudo o seu estilo de independência — torna-o vulnerável a tentativas de aproveitamento. Tenho procurado evitar propostas de colaboração, mesmo a título gratuito, que possam insinuar uma futura associação de conveniência com este projecto. Por isso, tenho sido particularmente criterioso nessas decisões. Ainda assim, contra alguns sinais e avisos, aceitei a colaboração de João de Sousa, confiando na sua compreensão das regras do jornalismo e na natureza deste jornal. Enganei-me, até pela sua reacção de vitimização – e de ‘lavagem de roupa suja’ – quando foi ele a decidir ‘bater com a porta’ por uma ninharia editorial. E esse erro (de o aceitar como colaborador) é inteiramente da minha responsabilidade, e um redobrado aviso da vulnerabilidade do PÁGINA UM, da qual tenho consciência.

    Pedro Almeida Vieira

    Director do PÁGINA UM

  • Imigração e desenvolvimento: e que tal retirarmos a carga ideológica?

    Imigração e desenvolvimento: e que tal retirarmos a carga ideológica?


    Durante décadas, Portugal debateu-se com a desertificação do interior, o envelhecimento galopante da população, o encerramento de escolas por falta de crianças, a perda de jovens qualificados para a emigração, a estagnação do mercado interno e a degradação progressiva da sua pirâmide etária. A narrativa dominante nas instituições e nos media era — e em muitos casos ainda é — de que Portugal precisava desesperadamente de gente. Precisava de imigrantes. Precisava de população activa. Precisava de fertilidade — ou, na falta dela, de uma infusão humana vinda de fora para compensar o seu destino estatístico de nação decadente.

    E, aparentemente, conseguimos isso.

    Só nos últimos três anos, entre 2021 e 2023, o país registou um saldo migratório líquido de mais de 400 mil pessoas. Nunca, em democracia, se exceptuarmos o período da descolonização — que remete para um período complexo da vida social e económica do país — se tinha registado um fluxo migratório tão intenso. Mas as diferenças são abissais, não apenas porque os imigrantes do pós-25 de Abril tinham raízes lusófonas e, em certa medida, culturais, como também porque o saldo natural ainda era fortemente positivo: nasciam, naquele período, cerca de 200 mil crianças — e agora são pouco mais de 80 mil.

    city landscape photography during daytime

    Aliás, nos últimos três anos, apesar de todas as campanhas de incentivo à natalidade e da tão proclamada retoma pós-pandémica, o saldo natural (diferença entre nascimentos e mortes) manteve-se consistentemente negativo em cerca de 100 mil pessoas. Ainda assim, a população total cresceu, passando de 10,4 milhões para 10,7 milhões.

    À superfície, este crescimento por via da imigração pareceria um sucesso. Um sinal de revitalização. Uma inversão histórica da decadência demográfica das últimas duas décadas. Mas é precisamente esta leitura apressada, quase eufórica, que precisa de ser contrariada — mas numa óptica de planeamento (futuro) e não de ideologia,que inquina qualquer debate sério.

    Na verdade, nos últimos anos Portugal não assistiu a um qualquer crescimento planeado, equilibrado e sustentável. Deparou-se, pelo contrário, com um choque migratório desorganizado, com profundas assimetrias regionais, impactos negativos na habitação, sobrecarga dos serviços públicos, polarização social e nenhuma correspondência com uma política estruturada de acolhimento e integração.

    A questão não está, pois, em discutir se o país precisa de população. Está, isso sim, em perceber que tipo de crescimento demográfico é possível e desejável num Estado social europeu com limites orçamentais, um parque habitacional envelhecido, um tecido económico frágil e serviços públicos a rebentar pelas costuras.

    Porque — e convém que se diga sem rodeios — crescer demograficamente não é, por si, sinal de progresso.

    Vejamos, numa síntese, aquilo que está em causa

    Um crescimento sem mapa

    Em teoria, uma população pode crescer de forma equilibrada se o ritmo for ‘absorvível’: isto é, se os serviços de saúde, educação, habitação e transportes forem capazes de acompanhar a nova procura. Países com forte planeamento estratégico (como os escandinavos) conseguiram manter durante décadas ritmos de crescimento populacional moderados — na ordem dos 0,7% a 1,0% ao ano —, mas alinhados com investimentos em infraestruturas, formação de quadros, habitação pública e redes de mobilidade.

    Portugal, em contraste, teve nos últimos três anos um crescimento médio superior a 1,2% ao ano apenas por via da imigração, sem que o Estado ou as autarquias tivessem feito qualquer planeamento prévio. Em Lisboa, na Amadora, em Loures ou em partes do Algarve, e mesmo em zonas mais rurais (Odemira é um exemplo gritante, com um crescimento de mais de 3% ao ano), o número de residentes cresceu de forma abrupta, mas sem novas escolas, sem reforço dos centros de saúde, sem redes de transportes ajustadas, sem parques habitacionais acessíveis.

    A resposta do Estado foi a de sempre: nenhuma.

    aerial view of people walking on raod

    Polarização territorial: crescimento desigual e desertificação persistente

    Enquanto se celebrava o crescimento da população ao nível nacional, ignorava-se o facto de que esse aumento foi profundamente desigual.

    Os grandes centros urbanos e metropolitanos absorveram quase todo o acréscimo populacional, alavancados por fluxos migratórios intensos, sobretudo de imigrantes em situação económica vulnerável. Lisboa, por exemplo, registou mais de 24 mil novos residentes entre 2021 e 2024, o que equivale a mais de 22 pessoas por dia, invertendo,de forma abrupta e sem qualquer planeamento, um declínio populacional de quatro décadas. O Porto, Sintra, Braga, Seixal, Amadora ou Cascais seguiram tendência semelhante. Nessas zonas, o crescimento agravou os problemas pré-existentes: congestionamento habitacional, encarecimento da habitação, pressão sobre escolas e centros de saúde, sobrelotação de transportes.

    Em contrapartida, cem concelhos — quase um terço do país — perderam população nesse mesmo período, confirmando a persistência da desertificação e o falhanço continuado das políticas de coesão territorial. Municípios do interior centro e norte, bem como várias zonas do Alentejo e do interior algarvio, viram partir os poucos jovens que ainda restavam, enquanto a população envelhecida se reduzia naturalmente. Esta erosão silenciosa, muitas vezes fora do radar mediático, representa uma perda real de futuro.

    Ou seja, cresceu a pressão nos territórios já saturados e aumentou o deserto nos territórios já esvaziados. É o paradoxo português por excelência: conseguimos perder coesão territorial ao mesmo tempo que ganhámos população.

    E nem o Governo nem as autarquias fizeram algo de significativo para inverter ou atenuar esta tendência. Não houve incentivos sérios à fixação no interior. Não houve reconversão de habitação devoluta. Não houve planeamento dos fluxos migratórios por concelho. Houve, sim, omissão deliberada e aproveitamento político da ilusão de “crescimento populacional saudável”.

    Mercado habitacional: da crise à catástrofe

    Basta olhar para o que se passa no mercado de habitação para se perceber que este crescimento populacional, longe de resolver problemas, amplificou-os até ao limite.

    Com mais de 400 mil pessoas a entrarem no país em três anos — grande parte delas em zonas urbanas — o desequilíbrio entre oferta e procura disparou. O número de fogos construídos anualmente continua a ser residual face às necessidades, e a habitação pública é quase inexistente.

    Resultado: os preços de venda subiram, as rendas explodiram, o alojamento local avançou sobre os bairros populares e muitos migrantes foram empurrados para zonas degradadas, insalubres ou para situações de sobrelotação ou informalidade.

    Sim, Portugal cresceu. Mas à custa de bairros precários, tendas improvisadas, sobrecarga de transportes e famílias portuguesas a serem empurradas para longe dos centros onde vivem há décadas.

    Note-se que, em zonas urbanas, se critica o exagero do alojamento local como causa para a escassez de casas, esquecendo, porém, dois aspectos essenciais. Primeiro, grande parte dos alojamentos locais no casco histórico são fogos de pequena dimensão (T0, T1) ou com características pouco atractivas para famílias jovens (p. ex., sem elevadores, com escadas íngremes, sem estacionamentos, com tráfego condicionado), pelo que só marginalmente contribuem para a crise habitacional — e já sem explorar muito que o parque habitacional de Lisboa e Porto foi recuperado com o boom turístico. Segundo, grande parte dos imigrantes em zonas urbanas — em zonas rurais é a actividade agrícola —, a imigração está associada directa ou indirectamente ao turismo, através da prestação de serviços.

    Limitar ainda mais o alojamento local ou o turismo — cujo crescimento tem de ser limitado, mas por outras razões relacionadas com a própria capacidade de carga dos ‘bens turísticos’ — seria afectar dramaticamente o emprego dessa ‘massa’ de imigrantes, uma vez que a esmagadora maioria ocupa funções de trabalho menos qualificado.

    A group of people walking across a street next to a yellow bus

    Serviços públicos: a pressão (in)visível

    A entrada de centenas de milhares de pessoas numa rede de serviços públicos já fragilizada por anos de subfinanciamento e má gestão resultou naquilo que era previsível: congestionamento.

    Quase não houve novos centros de saúde planeados com base nas novas densidades demográficas. Não houve reforço efectivo dos recursos humanos nos agrupamentos escolares onde a pressão aumentou. A expansão de linhas de transportes urbanos segue a conta gotas. Os serviços públicos, em geral, estão a prestar piores serviços, mesmo com a ajuda tecnológica — aliás, paradoxalmente, por vezes parece que funcionam pior por causa disso.

    O resultado é o que qualquer utente percebe: esperas eternas nos serviços de saúde, turmas sobrelotadas, comboios a abarrotar, urbanizações novas sem transportes.

    Estamos a viver o efeito de um crescimento súbito sem contrapartida de investimento público.

    Um Estado passivo e um discurso simplista

    O mais grave de tudo isto é que, perante este cenário, a comunicação oficial continua a vender a ideia de que Portugal está “a inverter a crise demográfica”, que a imigração está a “compensar a baixa natalidade”, e que “temos finalmente mais população” — e, pior, que debater estes temas da imigração e do crescimento abrupto é coisa para instigar o ódio e fazer o serviço à direita radical e populista (ou, para simplificar e envenenar qualquer discussão, a extrema direita). Isto, sem colocar em causa o discurso a roçar a xenofobia e a discriminação por parte do Chega — mas este é o grande problema: digladiam-se soundbites, não se confrontam ideias.

    E, no entanto, estamos perante realidades cada vez mais incómodas:

    • Que a baixa natalidade continua crónica, com um índice de fertilidade entre os piores da Europa (cerca de 1,4 filhos por mulher);
    • Que o saldo natural permanece negativo, com mais de 30 mil mortes a mais do que nascimentos por ano;
    • Que a maior parte dos imigrantes chega em condições de precariedade, não como resposta a uma estratégia nacional de qualificação, fixação territorial e sustentabilidade fiscal.

    Um dos grandes desafios de um país é saber questionar-se para onde quer ir. Como quer crescer e definir um equilíbrio entre o presente e o futuro. E isso requer perceber, como até faz uma família, em perceber que uma comunidade tem de ser demograficamente equilibrada — e no caso português, seria necessário:

    • Que o crescimento fosse lento, previsível e absorvível (entre 0,7% e 1,0% ao ano);
    • Que houvesse planeamento infraestrutural antecipado, com metas em educação, saúde, habitação, mobilidade e coesão social;
    • Que o Estado regulasse e distribuísse os fluxos, incentivando a fixação em territórios periféricos ou em desertificação;
    • Que se apostasse na integração efectiva e no combate à precariedade, em vez de aceitar a marginalidade como inevitável;
    • E que se fomentasse, paralelamente, uma estratégia séria de incentivo à natalidade, com políticas de conciliação familiar, creches acessíveis e rendimentos dignos para jovens.

    Nada disso está a acontecer.

    Estamos a crescer — mas como um corpo descompensado, que incha num lado e emagrece noutro. Um crescimento assim não fortalece: deforma.

    Podem definir-se diversos modelos para prever o que sucede a um país com o ‘quadro de partida’ de Portugal em 2025. Com este tipo de país, se este crescimento demográfico (e com as bases em que se sustenta), não for acompanhado por um planeamento coerente e por investimento público proporcional, o que parece um sinal de vitalidade poderá transformar-se numa bomba de pressão social e orçamental. E sem incluir a parte social e de choque cultural.

    Com base numa simulação desenvolvida para este cenário, avaliando os efeitos entre 2025 e 2035, fiz uma análise simples, apenas para exemplificar, em quatro eixos principais: cuidados à população idosa, construção de escolas, reforço de centros de saúde e expansão habitacional. A abordagem parte de rácios realistas — e até conservadores — de prestação de serviços e de custos médios por unidade funcional.


    1. O envelhecimento que não desaparece

    Apesar do aumento líquido da população, a estrutura etária mantém-se envelhecida, com cerca de 23% da população acima dos 65 anos — ou seja, mais de 2,6 milhões de idosos em 2025 e quase 2,7 milhões em 2035. Este grupo consome, naturalmente, mais recursos de saúde, pensões e cuidados continuados. Assumindo um custo anual médio de 4.000 euros por idoso para cuidados públicos (entre lares, apoio domiciliário e saúde crónica), Portugal já gasta perto de 10 mil milhões de euros por ano só neste segmento — valor que aumentará para mais de 11 mil milhões em 2035.

    Ou seja, só o envelhecimento populacional representa quase 5% do PIB actual em despesa social contínua, mesmo sem considerar aumentos salariais, inflação médica ou necessidades específicas de dependência severa.

    man and woman sitting on bench facing sea

    2. Educação: crescer sem lugar nas escolas

    A pressão sobre o sistema educativo será desigual. Embora a natalidade se mantenha baixa, o fluxo migratório — em particular de famílias jovens — tenderá a criar focos de aumento de procura escolar nas zonas urbanas e periurbanas, onde o parque escolar é antigo, subdimensionado ou desajustado.

    A simulação indica que será necessário planear entre 43 e 46 novas escolas básicas ao longo da década para dar resposta ao crescimento projectado. Cada unidade representa, em média, 6 milhões de euros de investimento em construção, apetrechamento e pessoal de arranque. Isso traduz-se numa despesa anual da ordem dos 260 a 275 milhões de euros. Estes valores, ainda que relativamente modestos em termos agregados, tornam-se cruciais se forem ignorados — pois qualquer atraso resultará em sobrelotação, degradação da qualidade pedagógica e fuga para o privado, ampliando desigualdades.


    3. Centros de saúde: serviços já saturados

    Actualmente, a maioria dos centros de saúde nas áreas metropolitanas opera no limite da capacidade. Com o crescimento populacional previsto, será necessário construir pelo menos 10 a 12 novos centros de saúde até 2035, apenas para manter a mesma proporção de cobertura (1 por cada 100 mil habitantes, renovado a cada 10 anos). Cada centro exige cerca de 3,5 milhões de euros, totalizando um investimento acumulado de 35 a 42 milhões por ano. No entanto, esse número esconde a realidade: não basta construir paredes — é preciso recrutar médicos, enfermeiros, técnicos e garantir funcionamento efectivo. Os custos operacionais serão, provavelmente, superiores ao investimento em infraestruturas.


    4. Habitação: o verdadeiro elefante na sala

    O crescimento de 1 milhão de pessoas em 10 anos exigirá pelo menos 400.000 novas habitações, assumindo uma média de 2,5 pessoas por casa. Isso corresponde a 40.000 casas por ano, muito acima da capacidade actual de construção em Portugal, que tem oscilado entre 15 mil e 20 mil fogos. A discrepância entre procura e oferta acentuará a inflação imobiliária, expulsará famílias da classe média dos centros urbanos, e potenciará fenómenos de guetização e habitação informal.

    Mesmo assumindo um custo médio de 125 mil euros por unidade habitacional (preço de construção, excluindo especulação e lucro de promotores), isso implicaria investimentos da ordem dos 5 mil milhões de euros por ano, seja por privados, seja com apoio público. A ausência de uma política habitacional estruturada transforma este valor em potencial bolha social.

    a group of men standing on top of a pile of metal

    5. Pressão fiscal e armadilha do crescimento deficitário

    Com um custo anual cumulativo (cuidados a idosos, educação e saúde) a ultrapassar 11,5 mil milhões de euros em 2035 — ou seja, mais de 15% do valor actual —, e com o investimento habitacional exigido a aproximar-se de outros 5 mil milhões por ano, o país enfrentará um desafio orçamental de enorme envergadura. Isso só será sustentável com:

    • Um aumento significativo de contribuintes líquidos no saldo migratório;
    • Um mercado de trabalho que absorva imigrantes com estabilidade e salários dignos;
    • E uma redução da informalidade e da precariedade no trabalho migrante.

    Sem isso, Portugal crescerá populacionalmente e empobrecerá estruturalmente — pois as receitas fiscais não acompanharão o custo do novo modelo social. Em suma, poderá haver mais gente, mas menos coesão, menos redistribuição e mais desigualdade.

    Perante este cenário, queremos mesmo, como povo (e contribuintes) continuar a meter ideologia pelo meio — com as suas diatribes partidárias e guerrilhas infantis — ou já será tempo de exigir que os políticos se comportem como adultos e deixem de disputar o poder de um país que ameaça ruína?

  • A hipocrisia da ‘emergência climática’ que esconde as fraudes contra a saúde pública

    A hipocrisia da ‘emergência climática’ que esconde as fraudes contra a saúde pública


    Numa qualquer semana estival, entre festas de aldeia e campanhas com cânticos ecológicos, volta e meia sopra um ventozinho moral que gela a espinha dos que ainda pensam. Não por causa do que se diz — até porque já se espera tudo —, mas por aquilo que se esquece. E se há caso paradigmático da moral selectiva e da indignação plastificada das consciências contemporâneas, esse caso tem nome: Tesla. E um rosto catalisador: Elon Musk.

    Convém recordar — porque a memória mediática é de curta duração e a moral pública é de plástico biodegradável — que, nos últimos anos, a Tesla tem sido alvo de campanhas de desdém e boicote, não por aquilo que produzia (carros eléctricos, limpos, bonitos e até eficientes), mas por causa do seu CEO. Com efeito, ainda recentemente, e depois de a compra do X (ex-Twitter) ter desencadeado uma onda contra a Tesla, o ódio dos media e de uma certa clique piorou porque, a certa altura, Elon Musk teve o desplante de estar próximo de Donald Trump — imagine-se, o pária-mor da civilização ocidental.

    A futuristic car is on display in a building

    Ainda no início do ano, antes mesmo de se saber a causa — o suicídio de um militar veterano norte-americano — uma explosão em Las Vegas serviu durante dois dias para colocar a Tesla no centro das atenções, induzindo a ideia de que o problema estava no carro — e afinal, por triste ironia, foi a estanquicidade do Cybertruck a evitar danos envolventes maiores.

    Sobretudo ao longo do último ano, tenho assistido a uma verdadeira maré moralista, onde desaguaram todas as figuras da ‘nova espiritualidade parvinha’. Recordo, entre tantas figuras menores, João Manzarra, que não hesitou em declarar publicamente que ia vender o seu Tesla por razões de consciência. À data, as notícias correram, os likes brotaram, os moralistas aplaudiram: o espírito crítico meditava ao volante da coerência. O problema? Não se sabe se vendeu, nem se trocou por um Renault Clio a gasóleo ou por uma bicicleta com travões de cortiça orgânica.

    A verdade é esta: os modismos de indignação funcionam como nuvens de Verão — carregadas de trovões, mas sem consistência. Parece que anunciam o Inverno, mas duram meia hora e desaparecem ao primeiro raio de sol. Os apóstolos da consciência ecológica, tão velozes a apontar o dedo a Musk e ao seu imaginário político, nunca se detiveram a pensar que, se há empresa que verdadeiramente revolucionou o transporte ligeiro — mesmo com impactes ambientais significativos (v.g., baterias de lítio) —, foi a Tesla, com inovação real e lógica disruptiva.

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    Esta é, contudo, apenas a face anedótica de um fenómeno mais grave: a hipocrisia que governa o discurso político e ideológico sobre o ambiente, em particular sobre o clima. Como tenho repetido ao longo das últimas décadas — bem antes de a Greta Thunberg saber apontar para um mapa —, as alterações climáticas são uma realidade, independentemente da causa, mas a noção de emergência climática é uma falácia e acabou por ser criada como instrumento político: serve para abrir caminho à desresponsabilização dos governos e à concentração de fundos públicos em projectos de duvidosa eficácia ambiental, mas altamente rentáveis para empresas amigas. Um mercado paralelo de virtudes.

    E, se dúvida restasse, a realidade tem-se encarregado de a dissipar. A Comissão Europeia, com os seus ‘ministros do carbono’ e os seus ‘comissários do catastrofismo’, vive obcecada com a liderança verde, embora a sua capacidade política e diplomática valha zero sobre políticas ambientais de âmbito mundial. Por exemplo, nas emissões de gases com efeito de estufa, os países da União Europeia emitem cerca de 8% e não determinam aquilo que os Estados Unidos, a Índia e a China emitem, por muito que esbracejem.

    Não liderando nada, a Europa tem vindo, sim, e lamentavelmente, a tornar-se a vanguarda da fraude ambiental — e o sector automóvel é a ilustração suprema desta decadência.

    blue flag on pole near building

    Depois do escândalo do Dieselgate — cujo impacte em termos de saúde pública não foi irrelevante, havendo um estudo que aponta para a causa de 124 mil mortes prematura —, em que a Volkswagen foi apanhada a aldrabar os testes de emissões com softwares aldrabões, parecia que se tinha aprendido a lição. Parecia.

    Esta semana, soube-se que a Justiça francesa abriu um novo processo contra a Peugeot e a Citroën (ambas do grupo Stellantis), por fraude agravada. O motivo? A comercialização, durante anos, de veículos a gasóleo com sistemas informáticos programados para contornar os testes de emissões de óxidos de azoto.

    Segundo a acusação, os veículos estavam “especialmente calibrados” para se comportarem bem apenas durante o teste de homologação — como estudantes que decoram a resposta certa para o exame, mas nada sabem da matéria. No uso real, os níveis de emissão superavam largamente os limites regulamentares, com consequências para a saúde pública: doenças respiratórias e degradação ambiental.

    A acusação vai mais longe: a burla é qualificada como agravada por colocar em risco a saúde humana. E, mais uma vez, os autores da fraude foram empresas acolhidas com louvores em Bruxelas, promovidas como campeãs da inovação sustentável. Em 2021, estas mesmas empresas já tinham sido acusadas por factos semelhantes. O modus operandi repete-se. E repete-se também o silêncio da imprensa portuguesa — sobretudo da mainstream — que há muito se enamorou por figuras como Carlos Tavares, ex-presidente da Peugeot, que deixou de ser CEO da Stellantis em finais do ano passado.

    Na imprensa nacional, Tavares é descrito como uma coqueluche da gestão, um génio da eficiência e da competitividade. Um português de sucesso no Mundo. Mas, à luz dos processos agora abertos, talvez devêssemos perguntar: será uma coqueluche da gestão ou da encenação, do ultraje e da fraude?

    A resposta é incómoda. Mas as evidências são claras. Enquanto se apontam dedos a Musk por piadas ou posicionamentos políticos — e ele põe-se a jeito em muitos casos —, escondiam-se crimes ambientais sistemáticos na santa Europa. Enquanto se vendia a narrativa de que a União Europeia era líder da sustentabilidade, enterravam-se debaixo do tapete os dados reais de emissões poluentes do sector automóvel. E enquanto se usava o selo verde para certificar negócios bilionários, envenenava-se o ar dos cidadãos.

    A moral da história — e é sempre preciso haver uma — é que a verdade ambiental não se mede pelos slogans, mas pelos actos. A Tesla, goste-se ou não do seu CEO, mudou radicalmente a indústria automóvel em direcção à electrificação. As grandes marcas europeias, com décadas de privilégios e lobbying, enganaram clientes e reguladores. E hoje, no pico do Verão, são elas que anunciam o Inverno — não o das alterações climáticas, mas o da confiança pública nas elites políticas, tecnocráticas e industriais.

    Sejamos claros: a hipocrisia ambiental mata mais do que o dióxido de carbono — e quem o diz sou eu, que defendo uma melhoria na eficiência energética e uma contenção no consumo de petróleo (a começar por ser uma matéria-prima demasiado preciosa para ser simplesmente queimada em motores de propulsão). A hipocrisia ambiental, de facto, mata a confiança, mata o rigor, mata o sentido de urgência verdadeiro. E por isso me irrita tanto ver que, enquanto os Manzarras desta vida se preocupam em dar lições de moral ao volante dos seus Teslas de segunda mão, os verdadeiros poluidores continuam a circular à vontade, com selo europeu — e aplausos.

    Infelizmente, ainda, neste novo teatro do mundo, aquilo que parece contar não é a verdade — é a encenação.

  • Gustavo Carona, o ‘herói’ que quer criminalizar o espírito científico

    Gustavo Carona, o ‘herói’ que quer criminalizar o espírito científico


    O CEO da Impresa, Francisco Pedro Balsemão – que se entretém a fazer podcast informativos no semanário Expresso sem ter carteira da CCPJ, enquanto vende e recompra e volta a vender o edifício-sede para não entrar em bancarrota – decidiu convidar ontem para o seu ‘Geração de 80’ o intensivista Gustavo Carona, de quem diz ser “provavelmente o primeiro verdadeiro herói com quem fala”.

    Na imagem partilhada pelo Expresso e pelo próprio Gustavo Carona, o dito não está em estúdio mas repousa em casa, deitado, coberto por uma manta e apoiado num suporte hospitalar de computador Apple. E lê-se uma pergunta retórica que serve de mote a este texto: “Se é proibido fazer comentários racistas, ser xenófobo, porque é que não é proibido desacreditar a Ciência?”. Existem outras frases tão ou mais aterradoras do que estas, mas quero centrar-me nesta por ter ganhado escola duramente a pandemia da covid-19 e estar a servir como argumento principal em qualquer debate.

    A frase, aparentemente ingénua ou “inspiradora” – como muitos admiradores deste herói, feito mártir, julgarão –, encarna o perigo maior da era que atravessamos: a tentativa de blindar a Ciência contra a crítica, elevando-a não ao patamar do rigor, mas ao altar da infalibilidade. E, pior ainda, subentende-se que quem a questiona deva ser, senão punido judicialmente, pelo menos ostracizado, silenciado, deslegitimado.

    Tenho razões pessoais para abordar este tema sem subterfúgios: sou arguido num processo judicial por suposta difamação a Gustavo Carona, movido na sequência de críticas públicas que lhe dirigi durante a pandemia da covid-19 — críticas essas sempre sustentadas em dados epidemiológicos, estudos internacionais e análises racionais. O processo irá a julgamento em Setembro – e sou acusado de mais de 30 crimes e um pedido de indemnização de 40 mil euros, porque Gustavo Carona culpa-me de ser o responsável (presumo único) da sua condição de saúde. De entre os crimes até estão críticas que lhe fiz, gozando, à sua veia (variz) poética.

    Enfim, mas uma coisa deve ficar clara: nada disso me calará – e mesmo se a sua condição de saúde de dá alguma comiseração, não fragilizas as minhas convicções, sobretudo quando o homem diz mais do que disparates: diz coisas perigosíssimas. Aliás, convém referir que a intimidação judicial, quando motivada por divergência de ideias e interpretação científica, é a arma dos que se sentem inseguros na sua posição — ou, pior, dos que confundem prestígio mediático com autoridade epistémica.

    Ora, vamos ao busílis: a frase de Carona é perigosa não apenas pela sua arrogância, mas sobretudo pela sua ignorância. Equiparar “desacreditar a Ciência” a actos de racismo ou xenofobia revela uma incompreensão básica sobre o que é a Ciência, como esta progride, e por que razão deve ser constantemente posta em causa. A comparação, além disso, é altamente falaciosa: o racismo e a xenofobia são ofensas morais e jurídicas, que atingem directamente a dignidade humana. Já criticar ou pôr em causa determinadas posições científicas — ou políticas sustentadas sob o manto da Ciência — é um exercício fundamental da liberdade de pensamento, motor do progresso e da descoberta.

    A frase de Carona é, em si mesma, também uma forma de obscurantismo moderno, travestido de zelo científico. Substitui-se o tribunal da razão pelo tribunal da opinião pública domesticada. Substitui-se o diálogo académico pelo anátema moral. Substitui-se o debate empírico pela acusação de “negacionismo”.

    É fundamental aqui recordar que a Ciência não é um corpo dogmático de verdades, mas um método de aproximação à verdade, sempre falível, sempre provisório. Procura minimizar o erro, mas não tendo medo de errar. Nenhuma afirmação científica é imune à refutação. Até mesmo os paradigmas mais consolidados — heliocentrismo, evolução das espécies, estrutura do átomo — foram, em tempos, considerados “desacreditadores” da ciência vigente. Aquilo que Carona sugere, com retórica de vigilante moral, é que apenas deve ser permitida a crítica “interna”, a dúvida “tolerável” — como se a dissidência só fosse legítima quando aprovada pelo comissariado do consenso.

    Galileu Galilei

    Durante a pandemia, houve quem tivesse tentado — com dados e artigos revistos por pares — para os exageros estatísticos, erros metodológicos, medidas desproporcionadas, conflitos de interesse na investigação e distorções mediáticas da evidência científica. Muitos destes nunca negaram o vírus. Não negaram a existência da doença. Aquilo que se negou foi a ideia de que os modelos matemáticos erráticos, as projeções catastrofistas, as vacinas tratadas como panaceia sem robusto escrutínio de risco-benefício ou os confinamentos massivos tivessem um estatuto de verdade inquestionável.

    O tempo tem dado razão a muitas dessas críticas. Hoje, muitos cientistas e mesmo autoridade nacionais e internacionais admitem que houve exagero e má gestão da informação científica, reconhecendo falhas na comunicação de risco, na avaliação de eficácia vacinal, e na imposição de medidas que ignoraram a complexidade dos determinantes sociais da saúde. Mas no meio dessa revisão tardia, figuras como Gustavo Carona continuam como paladinos de uma ciência dogmática, reclamando uma imunidade moral e judicial da narrativa dominante, como se estivessem acima do contraditório.

    Do ponto de vista epidemiológico, o pensamento de Carona é igualmente anacrónico. “Desacreditar a Ciência”, no contexto pandémico, tornou-se um epíteto para tudo o que fosse discordância da ortodoxia governamental. Falar de taxas de letalidade estratificadas por idade? Negacionismo. Mencionar que o risco de hospitalização em jovens saudáveis era ínfimo? Anticiência. Questionar a eficácia das máscaras em espaços abertos? Crime. Interrogar-se sobre efeitos adversos das vacinas de mRNA? Heresia.

    white microscope on top of black table

    Mas o que diz a epidemiologia de boa cepa? Diz que a Ciência da Saúde Pública e a Epidemiologia – que é uma Ciência multidisciplinar mais próxima (e ‘bebe’ mais) da Estatística do que da Medicina – deve equilibrar risco individual e colectivo, considerando o contexto, a vulnerabilidade, a proporcionalidade das intervenções, e os efeitos secundários das medidas. Nada disto foi feito com rigor. A gestão do medo, a par com a sacralização de figuras mediáticas e o apelo à obediência, substituiu o espírito de prudência. E quando se mistura ciência com medo, o resultado é sempre tecnocracia autoritária, não saúde pública.

    Do ponto de vista filosófico, o apelo à proibição do “desacreditar da Ciência” é uma regressão ao positivismo mais primário, combinado com a pulsão inquisitorial. É a morte do espírito socrático, do método cartesiano, da dúvida metódica. É o triunfo de uma nova religião, em que os cientistas não são investigadores, mas sacerdotes; os consensos, não aproximações, mas dogmas; os críticos, não colegas, mas apóstatas.

    Aquilo que Gustavo Carona – seguindo a linha de muitos outros que ‘nasceram’ mediaticamente na pandemia – propõe é que se substitua o Estado laico e pluralista por uma espécie de teocracia científica, onde só há lugar para a fé no consenso e para a liturgia dos gráficos apresentados no telejornal. Mas a verdadeira Ciência — aquela que constrói conhecimento — nasce sempre da fricção entre ideias, da ousadia de pensar diferente, da coragem de enfrentar a maioria. O que seria de John Snow, de Ignaz Semmelweis e de Barry Marshall ou de tantos outros se o “desacreditar a Ciência” fosse criminalizado?

    A frase de Gustavo Carona revela a deriva perigosa de uma geração de médicos-mediáticos que confundiram protagonismo com sapiência, e influência com autoridade intelectual. Não é por acaso que, nos últimos anos, alguns destes arautos da Ciência televisiva recusaram abertamente qualquer contraditório, afastaram-se de debates abertos e, em alguns casos, responderam com processos judiciais às vozes dissonantes.

    person in black knit cap and gray sweater

    Este episódio deveria servir de alerta: quando a crítica fundamentada à Ciência se torna passível de sanção moral ou judicial, já não estamos no domínio da Ciência — mas no da repressão ideológica. E quando se começa a perguntar, com aparente candura, “porque não criminalizar os que desacreditam a ciência?”, o passo seguinte é perguntar “porque não prendê-los?”, ou “porque não bani-los da vida pública?”. A História conhece bem esse caminho. E nunca acaba bem.

    A Ciência verdadeira não precisa de escudos penais, nem de clérigos corporativos. Precisa de abertura, pluralismo, humildade e debate. Tudo o resto é superstição moderna, com bata branca.

    Nota final: O podcast de Francisco Pedro Balsemão, editado no Expresso, chama-se Geração de 80, porque o CEO da Impresa que nasceu em 1980. Ora, 1980 é geração de 70.

    Nota final 2: Carona informa que sofre dores crónicas resultantes de  síndrome de Lyme pós-tratamento (SLPT). Se fosse mesmo um Homem de Ciência, deveria colocar, mesmo se por hipótese académica, que é uma das vítimas indesejadas (e silenciadas) das vacinas contra a covid-19, sem prejuízo de defender, como defende, que a vacina salvou vida. Aliás, talvez lhe fizesse bem, pelo menos em perceber como funciona a Ciência, a ler estes dois artigos científicos (aqui e aqui) que tratam da doença que o atormenta. Em todo, pode sempre negar lê-los.

  • Ronaldo, Diogo Jota e a moral dos abutres

    Ronaldo, Diogo Jota e a moral dos abutres


    Há uma velha tendência humana – que a imprensa-abutre sensacionalista e as redes sociais elevaram à condição de vício pandémico – de querer vigiar os gestos dos outros, medir-lhes o coração, e acusá-los quando não cumprem aquilo que se julga, não uma regra, mas uma expectativa narcísica da comunidade observadora.

    E é este o ponto fulcral do circo moralista que se formou, como se fosse vigília digital de almas, à volta da ausência de Cristiano Ronaldo no funeral de Diogo Jota. Não tardaram os inquisidores do costume a vociferar contra o egoísmo, a frieza, o desrespeito. Não por amor ao morto, note-se, mas por desejo de escândalo. Por necessidade de recriminar. Por impulso mimético de pertença ao grupo dos bons.

    Foto: D.R.

    Mas que espécie de ética é essa que mede o luto com cronómetro e o amor com a geografia do GPS? Que tipo de moral pedante e vazia exige a presença física num ritual fúnebre como critério de compaixão verdadeira? Só uma moral feita de pose e aparência, só uma ética moldada à selfie e ao post. O mundo moderno, saturado de imagens e sedento de comoção pública, já não aceita a dor íntima, silenciosa, invisível. Precisa de encenações. E se o actor principal – neste caso, Cristiano Ronaldo – não entra em cena, o público reclama reembolso emocional e ensaia vaias morais.

    É preciso recordar aos zeladores do sofrimento alheio que o luto não é um teatro. O luto é muitas vezes um retiro, uma sombra, um recolhimento. É exactamente o contrário de tudo aquilo que os acusadores de Ronaldo parecem exigir. E se ele tivesse comparecido? Muito provavelmente, as mesmas vozes que hoje lhe apontam o dedo diriam que era exibicionismo, que era vaidade, que era marketing. Porque o problema, afinal, nunca é o acto em si, mas quem o comete. E quando se trata de Ronaldo, o público quer vê-lo, não importa a circunstância, para depois poder julgá-lo.

    Foto: D.R.

    Cristiano Ronaldo não é um santo, nem quer ser. E também não é um político, nem deve fingir sentimentos para a câmara. É um homem, um desportista de excelência, e – por mais que custe a quem o odeia – é talvez o português mais admirado e respeitado fora de portas. E será porventura também o mais odiado cá dentro, justamente por isso.

    A mediocridade nacional, sempre tão caseira, sempre tão dada ao despeito, não perdoa que alguém do nosso sangue ouse voar mais alto que o campanário da aldeia. Assim, tudo o que Ronaldo faz – ou deixa de fazer – é analisado com microscópio moral por uma turba que só encontra sentido na existência quando descobre um deslize, uma ausência, um gesto imperfeito.

    A crítica à ausência de Ronaldo no funeral de Diogo Jota não é movida pelo amor ao falecido, nem sequer pelo culto da memória. É apenas o reflexo de um espírito do tempo doente, em que os mortos são usados como pretexto para julgar os vivos. A dor tornou-se espectáculo e o respeito, obrigação teatral. Quem não chora em público é cínico. Quem não publica homenagem é frio. Quem não se curva diante do caixão é insensível. E, paradoxalmente, os que gritam essa moral são os que não toleram o silêncio, que não aceitam que o tributo mais digno possa ser justamente a recusa da encenação.

    Foto: D.R.

    Há algo de profundamente ignóbil nesta ética da comoção obrigatória. É uma espécie de necrofilia moral, onde a morte de alguém só serve para se devassar a vida dos outros. Ninguém sabe o que Ronaldo fez em privado, o que sentiu, se telefonou à família, se rezou em silêncio. E não tem de saber. Porque o luto não se presta a boletins nem a selfies. E, se ainda há alguma dignidade possível neste mundo em que a morte virou argumento de cliques, talvez seja essa: a de respeitar quem escolhe viver o pesar sem o partilhar com a turba.

    Confesso, de resto, que não me agrada que o herói popular português por excelência seja um homem do entretenimento desportivo. Preferiria, por vocação e convicção, que esse papel estivesse reservado à ciência ou à literatura. Talvez alguém das Ciências, ou da História, ou um grande romancista, pudesse ocupar esse lugar simbólico.

    Mas a realidade é o que é. E é inegável que Cristiano Ronaldo, com a sua personalidade determinada, a sua persistência de ferro e uma disciplina que muitos doutores invejariam, construiu um percurso admirável. Consolidou-se como um verdadeiro self made man, saído de um dos estratos mais humildes da sociedade para se afirmar, à escala global, como um dos homens mais reconhecidos e celebrados do nosso tempo. Subiu social e financeiramente, por mérito próprio, até ao topo de uma montanha onde poucos chegam. E por isso, perante o que conquistou e o que também perdeu – e não falo apenas de tempo e energia, mas de anonimato, de liberdade e da possibilidade de ser apenas um homem comum – talvez mereça, até, que se lhe perdoe algumas falhas.

    a statue of an angel surrounded by greenery

    Mas se falhas comete – como qualquer humano – não ir a um funeral não será, de forma alguma, uma delas. O funeral é, para quem vai, um acto de despedida, um rito pessoal. Para quem não vai, pode ser, igualmente, um gesto de recato, um respeito que prefere manter-se em silêncio. O que se vê aqui não é falta de compaixão. É a recusa de alimentar a máquina de voyeurismo que exige que tudo se torne espectáculo, até a dor.

    Quem exige de Ronaldo um luto visível fá-lo não por respeito ao falecido, mas por gula emocional, por instinto de tribunal moral, por frustração mal disfarçada. Ronaldo, quer se goste ou não, continuará a viver como símbolo e projecção de uma ideia de sucesso que incomoda. E os seus críticos, esses, continuarão a usar cadáveres para julgar os vivos – o que, convenhamos, é infinitamente mais vil do que não aparecer num funeral.

  • Tribeca & Moedas: o problema não foi o jantar; foi tudo o que se gastou e escondeu depois da sobremesa

    Tribeca & Moedas: o problema não foi o jantar; foi tudo o que se gastou e escondeu depois da sobremesa


    Durante meses, o único rasto visível nos contratos públicos sobre os gastos do município de Lisboa com o festival Tribeca Lisboa — uma franquia luso-adocicada do evento nova-iorquino apadrinhado por Robert De Niro — era um modesto registo no Portal Base: a aquisição de um jantar por 6.230 euros, adjudicado à empresa As Patrícias, ao abrigo de um ajuste directo.

    Nada mais. Nenhum contrato com a Impresa, a entidade organizadora, nenhuma nota explicativa sobre os reais encargos públicos, nenhuma referência aos montantes transferidos. O silêncio era ensurdecedor. E, não fosse o esforço persistente e meticuloso de um jornalista da revista Sábado, este caso permaneceria submerso no pântano burocrático onde se enterram, diariamente, os vestígios do despesismo estatal.

    Agora soube-se, por via de uma investigação persistente — e é uma pena haver tão poucas — publicada na revista Sábado, que afinal o jantar foi apenas o amuse-bouche. O verdadeiro banquete foi servido à Impresa, grupo privado de comunicação social que detém, entre outros, a SIC e o Expresso.

    Só daqui foram 500 mil euros retirados directamente dos cofres da Câmara Municipal de Lisboa, por empenhos operados a alta velocidade após instruções vindas do gabinete do presidente Carlos Moedas. Acrescem ainda mais 250 mil euros do Turismo de Portugal, que decidiu também financiar o festival — tudo para que a Impresa pudesse pagar os “direitos” do evento norte-americano e assegurar a presença simbólica de De Niro, mesmo que o actor tenha passado despercebido à maioria dos lisboetas.

    Em rigor, o que está em causa não é apenas a saloiice institucional de importar um festival nova-iorquino, ainda por cima mal organizado, para se tirar umas fotografias ao lado de um actor famoso. Nem tampouco o habitual enlevo provinciano de políticos que confundem política cultural com festas mediáticas. O que se passou com o Tribeca Lisboa é mais grave: é um exemplo cristalino de como se instrumentalizam recursos públicos para fins privados, com intermediação política e total opacidade.

    Note-se o padrão: o festival não foi uma organização municipal, nem promovido por qualquer entidade pública. Foi uma operação integral da Impresa, cujo objectivo era — como sempre — reforçar a marca e a influência do grupo. Mas, ao invés de procurar investidores ou assumir o risco financeiro do evento, recorreu-se à “via Moedas”: um atalho de poder que, em apenas três semanas, desbloqueou meio milhão de euros da autarquia. Sem concurso, sem critérios públicos conhecidos, sem transparência.

    Pior: com silêncios reiterados e recusa de entrega de documentos a jornalistas que, desde Novembro de 2024, tentam obter explicações junto da Câmara e da EGEAC.

    Este caso só não é escândalo maior porque o país político já se habituou à promiscuidade entre comunicação social e poder. Entrevistas “fofinhas” — como a de Daniel Oliveira a Carlos Moedas no Alta Definição — tornaram-se moeda de troca num sistema onde os favores circulam, os elogios se compram, e os interesses se protegem. A fotografia ao lado de De Niro — paga com o dinheiro dos lisboetas — resume bem o espírito da coisa: um marketing político montado para alimentar egos, seduzir audiências e garantir reverência jornalística.

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    Tribeca é um conhecido bairro de Nova Iorque e o nome de um festival de cinema norte-americano.

    Se isto fosse apenas vaidade, poder-se-ia sorrir e passar adiante. Mas não é. Trata-se de um modelo de governo assente em peculato de uso: recursos públicos canalizados para eventos que promovem, em primeiro lugar, os próprios decisores. Um sistema que, por falta de escrutínio institucional, se normaliza e perpetua, onde cada euro gasto parece menos um investimento cultural e mais uma operação de auto-publicidade. Não há aqui qualquer racionalidade económica ou cultural, apenas um cálculo político e mediático.

    Pior: estes gastos são deliberadamente escondidos dos cidadãos. São dispersos por diferentes fontes (autarquias, empresas municipais, organismos do Turismo), canalizados por ajustes directos, ocultos sob rubricas vagas e não publicitados em tempo útil. É preciso escavar muito — como agora se viu — para expor o que deveria estar à vista de todos. E isso é, talvez, o sinal mais preocupante do estado a que chegou o exercício do poder local e central: a transparência converteu-se em slogan, não em prática. Carlos Moedas até criou um Departamento de Transparência — mas, ironicamente, nunca respondeu às perguntas sobre os apoios ao Tribeca Lisboa.

    O caso do Tribeca Lisboa mostra como o país político continua a comportar-se como se vivêssemos sobre um poço de petróleo. Gasta-se com ligeireza, distribui-se dinheiro como se nada fosse, sempre com a convicção de que o contribuinte pagará — e, no fim, ainda agradecerá, hipnotizado por uma selfie ao lado de um actor de Hollywood.

    Mas Portugal não é um poço de petróleo. É um país endividado, com escolas por requalificar, hospitais a colapsar e transportes públicos obsoletos, que pouco aposta verdadeiramente na Cultura. Cada euro entregue à Impresa — um grupo privado de comunicação que deveria viver dos seus leitores e espectadores — é um euro que falta noutro lado. Setecentos e cinquenta mil euros daria quase para uma longa metragem em Portugal. E o que Moedas fez não foi apoiar a Cultura. Foi financiar, com o dinheiro dos lisboetas, a vaidade de um festival e a máquina mediática que o serve.

    Em suma, o problema não foi o jantar. Foi tudo o que se gastou e foi escondido depois da sobremesa.

  • Carta aberta ao jornalista Luís Ribeiro, um serventuário

    Carta aberta ao jornalista Luís Ribeiro, um serventuário


    Luís Ribeiro,

    agradeço a deferência — embora algo envergonhada — com que me dedicas umas linhas no X, em resposta à coima que a ERC aplicou à tua empresa, a Trust in News, por difundir conteúdos de publicidade encapotada, usando jornalistas — entre os quais tu próprio és nomeado. A tua tentativa de desvalorizar o assunto, como se estivesses acima das suspeitas, é uma vã manobra para te descolar de uma realidade que, a cada passo, te envolve mais: a de ser jornalista ao serviço de uma empresa com mais dívidas do que escrúpulos.

    E agradeço, porque assim me deste incentivo para esta carta aberta, que para ti não terá préstimo — porque manifestamente não prestas como jornalista nem como pessoa —, mas poderá ter para outros, talvez os mais jovens jornalistas. Como aviso. Até porque, salvo erro, te conheço desde 2001.

    Trabalhas(te) para a Trust in News, um grupo editorial com um capital social de uns meros 10 mil euros — igual ao do PÁGINA UM, por isso nada contra. Mas olhas para o PÁGINA UM com um indisfarçável desdém. Compreendo: há uma grande diferença: PÁGINA UM não deve nada a ninguém, não faz fretes e exerce um jornalismo independente, enquanto o teu estimado empregador carrega um passivo superior a 30 milhões de euros, incluindo calotes ao Estado que ultrapassam os 15 milhões.

    Como se não bastasse, tem o dono e um dos gerentes (Luís Delgado) já uma condenação por abuso de confiança fiscal. É esta a entidade de referência do teu jornalismo — e não, não fui eu quem a classificou como tal, foi a própria Justiça.

    Foi nesse ambiente que, a pedido da tua directora e amiga, Mafalda Anjos, resolveste então deixar a dignidade profissional à porta da redacção e prestar serviço à causa do Ministério do Ambiente e da empresa pública Águas de Portugal, para lhe cuidares do marketing. A pretexto de uns Prémios Verdes, fizeste um fretes multicoloridos. Produziste então meia dúzia de artigos fofinhos, pintados de verde esperança e inocência editorial. E agora vens jurar que foste livre, que não recebeste nada além do salário, como se a ausência de suborno directo fosse um atestado de honra. Ora, Luís, isso não abona sequer da tua inteligência. Se mercadejas a tua pena, ao menos exige as trinta moedas de prata… Fica-te mal prostituíres a profissão e ainda por cima de forma gratuita.

    Tweet de Luís Ribeiro no X

    Não fui só eu que te chamei à pedra. A própria ERC — esse Conselho que dizes “estapafúrdio”, só porque, por uma vez, resolveu ver para além da espuma — referiu o teu nome cinco vezes na deliberação, onde conclui que a Trust in News difundiu conteúdos publicitários disfarçados de jornalismo. Isso tem um nome: publicidade encapotada. E o teu nome lá está, Luís, gravado com tinta que nem o teu desdém consegue apagar.

    Depois, num gesto pueril, resolves atirar contra mim — atacas o mensageiro —, aludindo aos meus “conflitos” com a ERC, como se isso te conferisse superioridade. Mas até aqui falhas o tiro. Sim, tenho conflitos com a ERC. Porque exijo melhor regulação, mais transparência e menos conivência com aldrabices editoriais e poderes instituídos.

    Mas sabes o que mais? Dois dos processos em tribunal foram sim interpostos por mim contra a ERC no Tribunal Administrativo de Lisboa por me negarem acesso a documentos administrativos. Ganhei ambos — vê lá isto! Um jornalista que não cede a um não institucional e até mete a entidade que o regula num tribunal. Perdeu-se o respeitinho, não é, Luisinho? Temos de ser bem comportadinhos, não é? Isso mesmo!

    Além disso, em quase quatro anos de PÁGINA UM, não fui alvo de uma única contra-ordenação, nem de qualquer processo judicial activo. Nem um. Apesar de toda a espuma e névoa que se tem colar contra o projecto editorial do PÁGINA UM inexiste uma qualquer falha, uma qualquer condenação.

    Portanto, falemos de fretes? Eu não faço. Prefiro perder leitores a perder a espinha. Tu, Luís Ribeiro, escolheste o caminho contrário: achaste normalíssimo ajoelhar diante das Águas de Portugal e do Ministério do Ambiente e servir de megafone a patrocinadores públicos, como se o jornalismo fosse uma extensão do gabinete de comunicação do regime. Depois bateste no peito, meteste um cravo à lapela, abriste o X para o mundo e, com solenidade revolucionária de funcionário público em hora extraordinária, proclamaste-te impoluto, livre e independente.

    Pois bem: e a tua consciência, essa, meteste-a no contentor azul — junto dos folhetos recicláveis que andas a assinar.

    O Luís Ribeiro fez artigos noticiosos para cumprir contratos de patrocínio, e ainda defende no X que “TODOS o fazem. A ERC não vive no mundo real”. São os jornalistas que matam o jornalismo.

    E agora ainda tentas, num chilique de vitimização, fingir que estás acima da polémica quando, na verdade, estás mergulhado até à raiz do teclado na lama de um jornalismo serventuário.

    E fica-te bem uma lição final: se não queres ser confundido com um mercador de notícias, então pára de te comportar como um.

    Pedro Almeida Vieira