Há momentos históricos no percurso do PÁGINA UM, e há outros que, podendo não ser históricos, são profundamente sentidos, quase íntimos. A publicação do primeiro livro com a chancela do jornal pertence a esta segunda categoria: não é apenas um marco editorial, é também um gesto de afecto e de compromisso.
Bem sei que se trata de um livro em nome próprio, que assinala o meu regresso à Literatura após uma década de interregno, e que o faço com uma certa imprudente ousadia: ao longo do último ano, dei nova vida a Brás Cubas, a célebre personagem póstuma de Machado de Assis, para analisar, com mordacidade e ironia, a política e a sociedade portuguesa. Caberá aos leitores – e, inevitavelmente, aos críticos – decidir se se trata de um mero pastiche ou de uma homenagem conseguida.
Com o passar dos meses, porém, percebi que estas crónicas não deviam ficar condenadas a uma existência simultaneamente efémera e perene na Internet. Mereciam antes um relicário mais digno: a forma impressa, que continua a ser o altar maior onde a Literatura encontra a sua eternidade. Assim nasceu, o Correio Mercantil de Brás Cubas.
Deixamos para a vossa apreciação (e crítica) prólogo assinado pelo próprio Brás Cubas, bem como três crónicas de amostra – que, confessadamente, são as mais fracas da meia centena que compõe a obra. Pode adquirir o(s) seu(s) exemplar(es) na loja do PÁGINA UM ou escrever-nos para loja@paginaum.pt.
Pedro Almeida Vieira
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Prólogo de papel passado, ou a inconveniência tipográfica da minha ressurreição literária
Estimadas leitoras e veneráveis leitores — sois vós agora, por artimanha editorial, os destinatários de um volume que, em bom rigor e decência metafísica, jamais deveria ter existido. Refiro-me, é claro, a este opúsculo desmesurado, baptizado Correio Mercantil de Brás Cubas, em cujas páginas se alojam, com impunidade tipográfica, as minhas mais recentes epístolas ao mundo dos vivos.
Antes de mais, assinale-se o óbvio: um defunto não escreve livros. Pode, quando muito, soprar crónicas ao ouvido de escribas cansados, insinuar sarcasmos ao teclado de jornalistas descontentes ou, com a audácia dos espectros persistentes, lançar ironias em formato digital, tão voláteis como ectoplasma em dia de vento. Com a sua natureza evanescente, o meio electrónico condiz com a condição ectoplasmática de quem, como eu, já não tem carne, mas conserva os nervos do espírito Agora, transladar tal obra para o papel — esse nobre e vetusto suporte que se esfarrapa, se dobra, se encaderna e, pior ainda, se arquiva — é exercício de teimosia editorial, quase necromancia gráfica. Mas que hei-de eu fazer? Até os mortos têm editores.
Confesso, pois, a minha estupefacção inicial. Um livro? Meu? Novamente? Depois de quase um século e meio de retiro no ossário da Literatura? Que insulto à compostura tumular! O papel, ao contrário do éter digital, compromete, fixa, torna oficial — e, para mal dos meus pecados, cria leitores com marca-páginas. Eis a tragédia: tornar-me autor reincidente sem sequer ter tido tempo para renegociar os direitos de autor com São Pedro.
Dir-me-eis: “E as crónicas, Brás Cubas, essas que compusestes para o PÁGINA UM com desdém filosófico e fel risonho, que destino julgáveis que teriam?” Ó ingénuos! Julgava-as como folhas ao vento, para distrair os espíritos e afligir os vivos. Eram, à nascença, textos para correr mundo com leveza, não para serem impressos com ISBN. Escrevi-as como quem lança garrafas ao mar da internet, não como quem ergue catedrais de sarcasmo. Eis, portanto, a minha justificação: nunca foi minha intenção compor uma obra; apenas uma perturbação intermitente do vosso bom senso.
Mas já que me imprimem — e com capa, lombada e prólogo, veja-se! —, cumpre-me esclarecer o propósito deste volume. Não é um romance, ainda que contenha personagens mais absurdas do que os de Balzac; não é um ensaio, embora se veja nele mais pensamento do que em muitos tratados universitários; tampouco é um panfleto, mesmo que esmurre com elegância vários dogmas do vosso tempo. Trata-se, tão-só, de um modesto inventário da loucura contemporânea, registado por um defunto com bom ouvido, má-língua e infinito tempo para observar as vossas insanidades.
Em cada crónica aqui reunida — sim, crónicas, pois não se lhes pode chamar sermões, nem sentenças, nem editoriais — encontrarão uma tentativa de compreender a grotesca metamorfose do vosso século, essa era em que os reis se fazem bobos para ganharem votos, os moralistas se vendem a fundações, os artistas facturam em nome do sublime e os jornalistas já não investigam, mas reverenciam. O meu olhar não é neutro, porque os mortos não são imparciais: não tendo mais a perder, só nos resta a liberdade de rir.
De António Costa a Cristina Ferreira, do Santo Padre às jerricanocracias lusas, da estética subsidiada à electricidade perdida, e com uma embirração especial para com os jornalistas e o Almirante Gouveia e Melo, percorro — com a ajuda do meu indispensável piparote — as misérias, as farsas, os eufemismos e os escândalos ocultos de uma Pátria que parece hoje menos uma Nação e mais uma anedota com impostos e taxas. As minhas crónicas são, portanto, actas da vossa decadência, redigidas por um escrivão sem corpo, mas com memória.
E se há mérito nesta publicação, não me pertence inteiramente. Há, de facto, um vivo que se prestou ao vexame de me servir de médium e de amanuense, um tal Pedro Almeida Vieira — literato outrora conhecido, depois silente, agora ressurgido, como eu, mas ainda de carne e muitos ossos, muito cabelo e já alguma gordura — que, por nostalgia ou insanidade, vem prestar-me corpo tipográfico. É ele quem assina por mim na contabilidade dos livreiros, embora se saiba que, neste acordo, a alma sou eu. Em boa verdade, é o seu regresso à literatura; no meu caso, é apenas uma recaída.
E assim vos deixo, leitoras de sensibilidade e leitores de coragem, com este compêndio de mordacidade. Não é obra de amor, mas de lucidez; não consola, mas esclarece; não perdoa, mas diverte. Se rirdes, cumpri o meu intento. Se vos ofenderdes, melhor ainda
O PÁGINA UM e o Távola Jazz Club têm a honra de convidar para o lançamento do livro Correio Mercantil de Brás Cubas, da autoria de Pedro Almeida Vieira (e, por via espiritual, do próprio Brás Cubas), a realizar-se na terça-feira, 21 de Outubro, às 19h00, no Távola Jazz Club — Rua Coronel Bento Roma, 16, Lisboa (junto à Avenida dos Estados Unidos da América e a escassos passos da estação de Metro de Roma).
Além do autor, o evento contará com a presença dos escritores Sérgio Luís de Carvalho e Lourenço Cazarré, que farão a apresentação da obra entre citações, ironias e uma ou outra provocação filosófica que nem o defunto Brás Cubas desdenharia.
Depois da sessão literária — que decorrerá entre as 19h00 e as 21h00 — realiza-se, às 22h00, um concerto de jazz ao vivo, como sucede, aliás, todas as noites. Durante o concerto — onde estará, no saxofone, o nosso webdesigner José Maria Gonçalves Pereira (Zé Maria) — será igualmente possível adquirir exemplares do livro e pedir autógrafos ao autor Pedro Almeida Vieira. No entanto, para assistir ao espectáculo, a partir das 22h00, é necessário pagar 10 euros, a debitar no cartão de consumo.
NOTAS IMPORTANTES:
À entrada da sessão literária será entregue um cartão de consumo, apenas cobrado em caso de consumo de bebidas.
Preço do livro (disponível para compra na sessão): 17,5 euros por exemplar.
Pagamentos: transferência bancária, MBWAY ou dinheiro. Caso não lhe seja possível estar presente, pode adquirir o(s) livro(s) através da loja PÁGINA UM: https://paginaum.myshopify.com/products/correio-mercantil-de-bras-cubas-de-pedro-almeida-vieira
Para quem desejar mais de dois exemplares autografados recomenda-se indicar antecipadamente a quantidade pretendida para loja@paginaum.pt.
Entre livros, defuntos e saxofones, o próximo dia 21 promete uma noite em que o humor de além-túmulo encontrará o melhor jazz de Lisboa.
Távola Jazz Club – Lisboa, 21 de Outubro, às 19h00 (Rua Coronel Bento Roma, 16, Lisboa)
Apresentação literária (até às 21h00): Entrada livre
Concerto às 22h00 – Valor: 10 euros
Aviso: Estamos a processar os envios dos livros já adquiridos. Este é um processo lento, que está condicionada pela nossa estrutura pequena, a que acresce os autógrafos personalizados. Além disso, queremos continuar a manter o ritmo noticioso do PÁGINA UM. Já foram enviados cerca de 300 exemplares e nos próximos dias contamos enviar outros tantos.
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Há momentos históricos no percurso do PÁGINA UM, e há outros que, podendo não ser históricos, são profundamente sentidos, quase íntimos. A publicação do primeiro livro com a chancela do jornal pertence a esta segunda categoria: não é apenas um marco editorial, é também um gesto de afecto e de compromisso.
Bem sei que se trata de um livro em nome próprio, que assinala o meu regresso à Literatura após uma década de interregno, e que o faço com uma certa imprudente ousadia: ao longo do último ano, dei nova vida a Brás Cubas, a célebre personagem póstuma de Machado de Assis, para analisar, com mordacidade e ironia, a política e a sociedade portuguesa. Caberá aos leitores – e, inevitavelmente, aos críticos – decidir se se trata de um mero pastiche ou de uma homenagem conseguida.
Com o passar dos meses, porém, percebi que estas crónicas não deviam ficar condenadas a uma existência simultaneamente efémera e perene na Internet. Mereciam antes um relicário mais digno: a forma impressa, que continua a ser o altar maior onde a Literatura encontra a sua eternidade. Assim nasceu, o Correio Mercantil de Brás Cubas.
Deixamos para a vossa apreciação (e crítica) prólogo assinado pelo próprio Brás Cubas, bem como três crónicas de amostra – que, confessadamente, são as mais fracas da meia centena que compõe a obra. Pode adquirir o(s) seu(s) exemplar(es) na loja do PÁGINA UM ou escrever-nos para loja@paginaum.pt.
Pedro Almeida Vieira
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Prólogo de papel passado, ou a inconveniência tipográfica da minha ressurreição literária
Estimadas leitoras e veneráveis leitores — sois vós agora, por artimanha editorial, os destinatários de um volume que, em bom rigor e decência metafísica, jamais deveria ter existido. Refiro-me, é claro, a este opúsculo desmesurado, baptizado Correio Mercantil de Brás Cubas, em cujas páginas se alojam, com impunidade tipográfica, as minhas mais recentes epístolas ao mundo dos vivos.
Antes de mais, assinale-se o óbvio: um defunto não escreve livros. Pode, quando muito, soprar crónicas ao ouvido de escribas cansados, insinuar sarcasmos ao teclado de jornalistas descontentes ou, com a audácia dos espectros persistentes, lançar ironias em formato digital, tão voláteis como ectoplasma em dia de vento. Com a sua natureza evanescente, o meio electrónico condiz com a condição ectoplasmática de quem, como eu, já não tem carne, mas conserva os nervos do espírito Agora, transladar tal obra para o papel — esse nobre e vetusto suporte que se esfarrapa, se dobra, se encaderna e, pior ainda, se arquiva — é exercício de teimosia editorial, quase necromancia gráfica. Mas que hei-de eu fazer? Até os mortos têm editores.
Confesso, pois, a minha estupefacção inicial. Um livro? Meu? Novamente? Depois de quase um século e meio de retiro no ossário da Literatura? Que insulto à compostura tumular! O papel, ao contrário do éter digital, compromete, fixa, torna oficial — e, para mal dos meus pecados, cria leitores com marca-páginas. Eis a tragédia: tornar-me autor reincidente sem sequer ter tido tempo para renegociar os direitos de autor com São Pedro.
Dir-me-eis: “E as crónicas, Brás Cubas, essas que compusestes para o PÁGINA UM com desdém filosófico e fel risonho, que destino julgáveis que teriam?” Ó ingénuos! Julgava-as como folhas ao vento, para distrair os espíritos e afligir os vivos. Eram, à nascença, textos para correr mundo com leveza, não para serem impressos com ISBN. Escrevi-as como quem lança garrafas ao mar da internet, não como quem ergue catedrais de sarcasmo. Eis, portanto, a minha justificação: nunca foi minha intenção compor uma obra; apenas uma perturbação intermitente do vosso bom senso.
Mas já que me imprimem — e com capa, lombada e prólogo, veja-se! —, cumpre-me esclarecer o propósito deste volume. Não é um romance, ainda que contenha personagens mais absurdas do que os de Balzac; não é um ensaio, embora se veja nele mais pensamento do que em muitos tratados universitários; tampouco é um panfleto, mesmo que esmurre com elegância vários dogmas do vosso tempo. Trata-se, tão-só, de um modesto inventário da loucura contemporânea, registado por um defunto com bom ouvido, má-língua e infinito tempo para observar as vossas insanidades.
Em cada crónica aqui reunida — sim, crónicas, pois não se lhes pode chamar sermões, nem sentenças, nem editoriais — encontrarão uma tentativa de compreender a grotesca metamorfose do vosso século, essa era em que os reis se fazem bobos para ganharem votos, os moralistas se vendem a fundações, os artistas facturam em nome do sublime e os jornalistas já não investigam, mas reverenciam. O meu olhar não é neutro, porque os mortos não são imparciais: não tendo mais a perder, só nos resta a liberdade de rir.
De António Costa a Cristina Ferreira, do Santo Padre às jerricanocracias lusas, da estética subsidiada à electricidade perdida, e com uma embirração especial para com os jornalistas e o Almirante Gouveia e Melo, percorro — com a ajuda do meu indispensável piparote — as misérias, as farsas, os eufemismos e os escândalos ocultos de uma Pátria que parece hoje menos uma Nação e mais uma anedota com impostos e taxas. As minhas crónicas são, portanto, actas da vossa decadência, redigidas por um escrivão sem corpo, mas com memória.
E se há mérito nesta publicação, não me pertence inteiramente. Há, de facto, um vivo que se prestou ao vexame de me servir de médium e de amanuense, um tal Pedro Almeida Vieira — literato outrora conhecido, depois silente, agora ressurgido, como eu, mas ainda de carne e muitos ossos, muito cabelo e já alguma gordura — que, por nostalgia ou insanidade, vem prestar-me corpo tipográfico. É ele quem assina por mim na contabilidade dos livreiros, embora se saiba que, neste acordo, a alma sou eu. Em boa verdade, é o seu regresso à literatura; no meu caso, é apenas uma recaída.
E assim vos deixo, leitoras de sensibilidade e leitores de coragem, com este compêndio de mordacidade. Não é obra de amor, mas de lucidez; não consola, mas esclarece; não perdoa, mas diverte. Se rirdes, cumpri o meu intento. Se vos ofenderdes, melhor ainda
1. Contra o Estado-pai: a tutela que infantiliza a cidadania
Assumir-se um defensor da liberdade tornou-se, nos tempos hodiernos (e modernos), um lugar-comum tão consensual quanto inócuo. Políticos de todos os matizes proclamam-na como valor supremo, partidos variados inscrevem-na nas suas constituições ideológicas, e os manuais escolares consagram-na como fundamento inquestionável das democracias liberais. Mas a verdade é mais sombria e paradoxal: vivemos num tempo em que a liberdade é venerada em abstracto e sabotada na prática — sobretudo pelo próprio Estado que a proclama.
O Estado contemporâneo, especialmente nas democracias ocidentais, adoptou uma forma disfarçada de absolutismo — e isso é mais hipócrita do que as ditaduras, que não escondem os seus intentos. Já não se trata de um soberano que impõe pela força a obediência dos súbditos, mas de uma entidade paternalista que, sob o pretexto de proteger, tudo regula, tudo vigia, tudo mede e tudo administra. É o Estado-pai: solícito, omnipresente, aparentemente benevolente — mas incapaz de conceber o cidadão como um adulto. Em nome da segurança sanitária, ambiental, económica ou emocional, este novo Leviatã suave infantiliza o corpo político, desresponsabiliza o indivíduo e dissolve qualquer apelo à autonomia pessoal.
A metáfora do Estado-pai já não é nova, mas ganhou um vigor inesperado nos últimos anos, especialmente durante o período pandémico, em que governos passaram a ditar não apenas onde devíamos estar, mas também com quem, em que condições, a que horas, com que frequência — e até com que expressão facial. A imposição de normas morais disfarçadas de normas técnicas revelou a verdadeira vocação do Estado contemporâneo: tratar os seus cidadãos como menores de idade, incapazes de juízo próprio e necessitados de tutela permanente.
Esta infantilização mostra-se funcional. Um cidadão que se habitua a ser protegido de tudo — do vírus, da pobreza, da tristeza, da insegurança alimentar, do discurso “tóxico” ou desviante — é também um cidadão que abdica de decidir, de julgar, de assumir riscos, de errar. A cultura do risco zero, erigida em valor supremo, não só paralisa os indivíduos e a sociedade como legitima todas as formas de controlo: se um corpo político não suporta mais nenhuma forma de sofrimento, então qualquer autoridade que prometa eliminar o desconforto ganha um mandato tácito para limitar a liberdade. É esse o contrato perverso que define hoje o Ocidente burocrático: entregamos a liberdade em troca de uma segurança asfixiante.
Nada disto implica negar a função social do Estado, nem o dever de protecção em situações excepcionais. A questão está na transição silenciosa da excepção para a regra, do cuidado para o controlo, do auxílio para a dependência. Um Estado que protege demasiado deixa de formar cidadãos: forma dependentes. Substitui a ética da responsabilidade pela cultura do consentimento passivo. A sua pedagogia é a da abdicação: abdica-se da autonomia em nome da protecção, da crítica em nome da deferência, da consciência em nome do automatismo legal.
Nesse processo, o conceito de liberdade esvazia-se — deixa de ser uma capacidade activa de auto-regulação e torna-se um rótulo decorativo para designar o espaço que resta entre dois decretos. O cidadão passa a exercer a sua “liberdade” dentro de um cercado administrativo, onde cada acto está sujeito à aprovação tácita de uma autoridade difusa. Tal como o adolescente que goza da “liberdade” de escolher entre dois cereais matinais permitidos pelos pais, também o adulto contemporâneo é convidado a sentir-se livre dentro do perímetro autorizado pelo Estado-pai.
Importa, pois, recuperar uma concepção adulta de liberdade: uma liberdade que não tema o risco, que não recuse o peso da decisão, que não delegue no poder público o dever de discernimento pessoal. A liberdade é sempre um acto de responsabilidade, e não um privilégio concedido por decreto. Só é livre quem responde por si mesmo — e só existe cidadania plena onde há adultos capazes de dizer não, de duvidar, de resistir, de pensar com a sua própria cabeça.
Por isso, lutar contra o Estado-pai não é um capricho liberal, nem uma fantasia anarcóide — constitui um imperativo ético de quem deseja viver como cidadão e não como cliente, como sujeito político e não como beneficiário passivo. A liberdade política exige maturidade cívica. E a maturidade começa quando deixamos de esperar que alguém nos diga o que pensar, o que temer, o que fazer — e passamos a assumir, com gravidade, o peso da nossa própria consciência.
2. O cidadão menor de idade: a abdicação da liberdade em nome do conforto
Há uma forma de tirania mais eficaz do que a violência e mais duradoura do que a censura: chama-se conforto. Elevado a valor absoluto, o conforto é o novo opiáceo dos povos. E, como todo o narcótico eficaz, embriaga, embala e amolece. Dificilmente se oprime uma multidão disposta a lutar — mas é fácil domesticar uma população que trocou a liberdade por um sofá de pelúcia e uma ligação Wi-Fi estável.
Aquilo que Immanuel Kant, ironicamente nascido num território agora russo (Kaliningrado), nomeava como “menoridade auto-imposta” — isto é, a renúncia voluntária à razão e à autonomia — regressou em força neste século XXI, mas mascarada de modernidade e conveniência. O cidadão pós-moderno já não exige liberdade: exige conforto, tranquilidade, anestesia. Quer uma vida sem dores, sem conflitos, sem riscos, sem ruído, sem esforço. E por isso não apenas tolera, mas solicita o paternalismo estatal, mesmo quando este se exerce com vocação totalitária.
A infantilização não é um efeito colateral da política contemporânea: é o seu alicerce. O cidadão transformado em menor de idade é o ideal de qualquer regime que deseje controlar sem repressão. A educação cívica, em vez de formar consciências livres, forma obedientes adaptados. Em vez de se cultivar a dúvida, promove-se a repetição; em vez da coragem, o conformismo; em vez da responsabilidade, o apelo incessante a que alguém decida por nós. A democracia transforma-se numa fábrica de dependentes esclarecidos — e, por isso mesmo, obedientes.
A abdicação da liberdade em nome do conforto gera uma sociedade que já não sabe decidir, apenas desejar. Deseja protecção, sem perceber que todo o protector guarda chaves. Deseja igualdade, sem compreender que a igualdade imposta exige nivelamento pela força. Deseja segurança, ignorando que a segurança plena só existe onde a liberdade morreu. O resultado é uma democracia pós-liberal, onde se vota de tempos a tempos, mas se vive como súbdito entre eleições.
A linguagem institucional acompanha esta degenerescência moral. Os cidadãos são designados como “utilizadores”, “beneficiários”, “clientes”, “utentes”. A retórica administrativa já não fala de virtudes cívicas, mas de “protocolos”, “agendas”, “planos de mitigação”, “comunicações de risco”. O sujeito político foi apagado, substituído por uma entidade regulada, vigiada, inscrita, catalogada, vacinada, rastreada e, se necessário, bloqueada. Uma entidade menor, por definição — e menor de idade, por vocação.
Este modelo de sociedade, onde o conforto é o novo contrato social, não exige ditadores: exige tecnocratas. A tirania técnica, para ser eficaz, não precisa de tanques — basta-lhe gráficos, directivas, alertas de risco e especialistas mediáticos que, com voz monocórdica e paternal, ensinam o que pensar. Contra ela, o protesto parece histeria, a dúvida parece ignorância, a liberdade parece egoísmo. A crítica, enfim, é vista como um desequilíbrio emocional ou mesmo um perigo público.
Ora, este infantilismo não nasce por geração espontânea: é cultivado; é ensinado; é premiado. Em nome da “inclusão” evitam-se exigências; em nome da “igualdade” desprezam-se méritos; em nome da “ciência” impõe-se dogma. O conforto transforma-se, assim, numa forma refinada de censura: cala-se o pensamento com almofadas.
Uma sociedade que abdica da liberdade por conforto não apenas se desumaniza — desvirtua a própria ideia de civilização. A liberdade, para ser real, exige desconforto. Exige conflito, responsabilidade, frustração, erro. Exige, sobretudo, maturidade. E a maturidade política começa quando preferimos o desconforto da verdade à doçura da mentira.
Voltar a pensar com autonomia representa um verdadeiro acto de maioridade. E talvez seja esse, ainda hoje, o maior desafio da liberdade: resistir à tentação do colo.
3. A liberdade como responsabilidade: a dignidade contra a tutela
Não é por acaso que, agora, a liberdade se afigura, para muitos, como um risco, um capricho ou mesmo uma ameaça. O discurso dominante prefere falar em “equilíbrios”, “limites” e “direitos condicionados” — e raramente naquilo que torna a liberdade possível e moralmente aceitável: a responsabilidade. Porque, sem ela, a liberdade não passa de licença, e o cidadão não é mais do que um hedonista ansioso por gratificações instantâneas.
A liberdade, quando compreendida na sua plenitude, é exigente. Obriga à escolha e à resposta pela escolha. Pressupõe consciência, maturidade e, acima de tudo, dignidade — e esta não se confunde com a honra de catálogo das campanhas institucionais, mas com a disposição firme de não transferir para o Estado ou para qualquer outro ente a responsabilidade da própria vida. O homem livre, em sentido pleno, não é aquele que faz o que quer — é aquele que assume o que faz.
Na nossa época, porém, assiste-se a um processo acelerado de transferência da responsabilidade individual para entidades difusas: o Estado, os peritos, os algoritmos, os reguladores, as comissões. A ilusão da segurança, da neutralidade técnica e da “orientação baseada em evidência” — seja lá o que isso for — alimenta a ideia de que a responsabilidade é demasiado pesada para ser suportada por um simples cidadão. E assim se cria a espiral da tutela: quanto mais protegidos, mais dependentes; quanto mais dependentes, mais tutelados.
A tutela é uma forma moderna de servidão voluntária. Ela dispensa grilhões físicos, porque actua no plano moral: o cidadão deixa de se ver como agente e passa a ver-se como beneficiário. Deixa de decidir — passa a aderir. Deixa de pensar — limita-se a reproduzir. Substitui o juízo pelo cumprimento. Torna-se, no fundo, funcional. E esta funcionalidade é o contrário da liberdade — é uma obediência eficiente sem reflexão.
Ora, a responsabilidade não é apenas um contrapeso ético da liberdade: é a sua justificação política. Só uma sociedade de responsáveis pode aspirar à liberdade civil — e só uma cultura que valorize a responsabilidade pode resistir ao apelo sempre renovado das soluções tutelares: censura em nome da segurança, vigilância em nome da saúde, condicionamento em nome da estabilidade.
A dignidade individual manifesta-se, pois, no acto de dizer “não” a essa tutela. No acto de recusar a redução do cidadão a peça de engrenagem ou cliente do Estado. A verdadeira dignidade não reside em reclamar direitos abstractos, mas em viver como sujeito concreto da própria acção, mesmo que isso implique erro, fracasso ou rejeição.
Neste ponto, a responsabilidade distingue-se da culpa — a culpa paralisa, enquanto a responsabilidade mobiliza; a culpa é passiva, enquanto a responsabilidade é activa. E é apenas nesta segunda que se inscreve a liberdade: não como ausência de regras, mas como capacidade de agir com consciência, de responder pelo acto e de recomeçar depois da falha.
Este tipo de liberdade não cabe nos discursos institucionais nem nas campanhas de sensibilização, porque se apresenta demasiado densa, demasiado concreta, demasiado humana. Por isso, foi substituída pela “liberdade-de”: a liberdade de escolher entre duas marcas, a liberdade de clicar num botão, a liberdade de alterar preferências de privacidade ou de submeter um pedido. Tudo actos sem consequências, onde não há responsabilidade, uma vez que não há efectiva alternativa — apenas simulações de escolha.
A soberania do indivíduo começa quando este reconhece que não é vítima perpétua nem consumidor de serviços estatais, mas agente de sentido; quando compreende que a liberdade é sua — e não para ser simplesmente gozada, mas para ser sustentada. E, sobretudo, sabendo que essa sustentação exige verticalidade, risco, sacrifício — e, amiúde, a renúncia ao conforto do menor tutelado.
A dignidade humana e a responsabilidade individual são, na verdade, os últimos redutos da liberdade verdadeira. Quando se apagam, aquilo que resta é uma cidadania anestesiada, um Estado omnipresente e uma democracia ornamental.
4. A coragem de escolher: entre a consciência e o conformismo
Existem momentos na vida política e moral de uma sociedade em que o principal acto de resistência não é pegar em armas, mas simplesmente recusar repetir aquilo que todos dizem. Em tempos de grande unanimidade, em que o discurso público surge domesticado e a divergência se apresenta como patologia, a coragem deixa de ser um atributo heróico e torna-se numa condição mínima da lucidez.
Num ambiente saturado por discursos autorizados — sejam eles “científicos”, “oficiais” ou “técnicos” —, pensar por conta própria não é só desconfortável: é perigoso. Implica o risco da marginalização, da caricatura, do insulto e da suspeição. Mais do que isso: exige humildade e estudo, mas sobretudo o reconhecimento íntimo de que estar certo não é sinónimo de estar acompanhado por uma esmagadora maioria. A verdade, por vezes, apresenta-se como solidão.
O conformismo — e confortável — é a ideologia dos tempos mornos. Apresenta-se sob a forma de bom senso, de equilíbrio, de razoabilidade. Os seus apóstolos não se declaram conformistas: declaram-se apenas prudentes, informados, responsáveis. São aqueles que aconselham moderação ao condenado e contenção ao explorado. A sua arma não é o argumento, mas o tom. E a sua vitória consiste em fazer parecer insensato tudo o que perturba o consenso.
Por isso, escolher é um acto de coragem. Não apenas no plano político ou filosófico, mas na vida comum. Escolher implica responsabilidade. E a responsabilidade exige consciência — ou seja, um juízo próprio que se exerce mesmo quando colide com a norma. A coragem não surge aqui como temeridade, mas como disposição firme de não trair o próprio juízo para comprar conforto social.
Numa época que idolatra a pertença, o sentido crítico tornou-se quase um pecado. Ser aceite, ser incluído, ser reconhecido: estes tornaram-se os critérios últimos da acção. Mas a verdade não depende do número de partilhas, da aprovação institucional ou da nota de rodapé da autoridade. A verdade tem uma natureza austera: não se impõe pelo volume, mas pela coerência; não se afirma pela maioria, mas pela evidência.
A coragem de escolher é também a recusa da neutralidade cobarde. Aqueles que, perante a injustiça, afirmam que “não se metem em política”, ou que “não têm informação suficiente para opinar”, ou que “preferem esperar por mais dados”, são frequentemente aqueles que já escolheram — escolheram a passividade. E a passividade, quando sistemática, não é prudência: é cumplicidade.
A História não é indulgente com os que optaram pelo silêncio cúmplice quando havia ainda espaço para falar. O cidadão responsável não é aquele que segue a maioria, mas aquele que está disposto a perder estatuto, reputação ou conforto para não trair a sua consciência. E, sobretudo, aquele que não abdica do direito de pensar apenas porque todos os outros já decidiram por ele.
A liberdade começa, especialmente, quando se diz não a uma verdade imposta. Mas dizer não exige coragem — não a coragem teatral, nem aquela coragem sobre um contexto longínquo ou sobre o qual não se tem capacidade de influenciar. A coragem de dizer não é a que tem de sustentar a própria opinião diante da hostilidade, que tem de aceitar o isolamento, que não cede à chantagem emocional do grupo.
O mundo moderno finge valorizar a autenticidade, mas celebra apenas uma conformidade estilizada. O verdadeiro dissidente não é aquele que grita mais alto, mas o que recusa render-se ao veredicto da maioria quando este contraria a realidade. E isso, em tempos de unanimidade forjada, mostra-se mais revolucionário do que qualquer palavra de ordem.
A coragem de escolher, hoje, é a coragem de pensar — e de agir com base nesse pensamento, mesmo quando isso nos torna “problemáticos”, “radicais” ou “inconvenientes”. A liberdade de um povo mede-se, em última instância, pela percentagem de indivíduos dispostos a defender uma escolha impopular com serenidade e firmeza. E, quando essa percentagem se aproxima do zero, a tirania já não precisa de leis: basta-lhe o hábito.
5. O preço da autonomia numa sociedade subvencionada
Num tempo em que a dependência é confundida com protecção e a esmola com solidariedade, a autonomia tornou-se um acto de insubordinação. Numa sociedade onde a subvencionabilidade é critério de existência e o financiamento público um passaporte de respeitabilidade, manter-se de pé fora do círculo das benesses é, simultaneamente, uma afronta e um escândalo.
O Estado — e o seu braço burocrático invisível, alimentado por organismos nacionais e transnacionais — já não apenas regula: premia a obediência e pune severamente a dissidência através de critérios orçamentais. Programas, apoios, concursos, linhas de financiamento, candidaturas sucessivas: eis o léxico da nova servidão. Já não é necessário calar vozes incómodas por decreto. Basta não as incluir nos formulários e nas aprovações de fundos.
A lógica subvencionada não se limita às elites, à cultura ou ao jornalismo: alastrou, como uma névoa pegajosa, ao pensamento, à ciência, à economia e até à moral. O mérito não se mede já pela coragem, pelo engenho ou pela integridade, mas pela capacidade de alinhar o discurso com as prioridades elegíveis. Ser independente é um risco — porque a independência, hoje, não é sinal de mérito, mas de desconfiança.
Neste novo ecossistema, quem ousa sobreviver fora da rede de apoios públicos é visto com estranheza ou suspeita. “Como se mantêm?”, perguntam os jornalistas bem colocados nos quadros institucionais. “Quem os financia?”, sussurram os académicos que vivem de bolsas sucessivas. “Porque não concorrem?”, perguntam os burocratas, perplexos diante de quem recusa o maná estatal.
O problema, porém, não está apenas no poder que dá — mas, sobretudo, naquilo que exige em troca. A autonomia, quando não é ornamental, é um desafio permanente à lógica da submissão: exige trabalho árduo, resiliência, perdas materiais e, acima de tudo, uma renúncia deliberada ao conforto institucionalizado. Quem dela faz bandeira, paga um preço. Não terá palcos, nem convites, nem prémios. Terá, em contrapartida, a rara dignidade de não dever o que diz a quem paga.
Neste cenário, muitos cedem. Não por malícia, mas por pragmatismo. Ajustam as palavras, moderam os gestos, aceitam as regras. Habituam-se à pequena mentira quotidiana, à cautela excessiva, ao silenciamento preventivo. Tornam-se cautelosos, polidos, reverentes. E o seu pensamento, outrora vibrante, torna-se previsível. A subsidiação selectiva não só compra silêncios: produz consensos.
Mas há quem resista. Há quem recuse, por princípio, entrar nos circuitos onde a verba se mistura com a censura subtil. Quem faz da autonomia um valor e não uma condição temporária? Poucos, porque é difícil. Exige-se, ao mesmo tempo, uma profunda crença na liberdade e uma disposição concreta para o sacrifício.
Importa, contudo, reconhecer o reverso: a subvencionação não é apenas um instrumento de controlo político ou ideológico — é, acima de tudo, um anestésico moral. Ao tornar todos um pouco devedores, impede que se apontem dedos com firmeza. O sistema compra os seus críticos pela porta das traseiras: oferece-lhes um lugar numa comissão ou conselho geral, uma medalha de mérito, talvez uma sinecura. Assim se domesticam consciências. E assim se transforma a liberdade em ornamento.
A autonomia, nesse contexto, é um acto de resistência quase litúrgico. Não porque garanta pureza — mas porque impede a podridão. Não há liberdade sem responsabilidade. E não há responsabilidade sem risco. Aqueles que não se ajoelham perante os editais, os concursos e os subsídios sabem que o seu caminho será mais árido — mas também sabem que não estarão reféns. Sabem que poderão, com voz limpa, dizer o que pensam — mesmo que não agrade, mesmo que custe, mesmo que isole.
Num mundo onde tudo se mede em função do apoio recebido, existir sem patrocínio constitui já uma heresia. E talvez por isso seja, hoje, o último refúgio da liberdade.
6. A ética do mérito, da coragem e da coerência
Na civilização da desculpa, poucos conceitos são mais subversivos do que o de mérito. Hoje, invocá-lo já não é sinal de nobreza de espírito, mas quase indício de elitismo reprovável. Na ânsia de corrigir desigualdades estruturais — reais ou supostas —, a cultura dominante embarcou numa cruzada igualitária que tende a nivelar por baixo, desvalorizando o esforço, o talento e a entrega em nome de um relativismo confortável e inócuo. Mas o mérito, longe de ser um privilégio de casta ou um artifício de competição darwinista, é aquilo que confere sentido à acção individual: é o reconhecimento, por vezes silencioso, de que há virtudes que se cultivam e resultados que não caem do céu nem da agenda partidária.
A ética do mérito implica a recusa da indiferença moral. Pressupõe que não é tudo igual, que não se deve premiar o preguiçoso como se fosse diligente, nem nivelar o juízo entre quem estuda e quem se esquiva à aprendizagem, entre quem constrói e quem apenas usufrui. Somente num sistema que premeia o mérito pode florescer uma verdadeira liberdade, porque apenas aí se reconhece a autonomia e a responsabilidade de cada indivíduo como agente da sua própria história. A ausência de mérito, ou a sua substituição por critérios ideológicos, identitários ou corporativos, conduz à estagnação e ao ressentimento: os capazes são punidos pelo seu esforço, e os incapazes são mantidos na dependência de um paternalismo que os infantiliza.
Mas o mérito, por si só, não sobrevive num ambiente adverso se não vier acompanhado da coragem — não no sentido bélico ou retórico, mas na sua forma mais difícil: a coragem quotidiana de manter-se fiel aos próprios princípios quando o ambiente social ou institucional convida à capitulação. O mundo está cheio de talentos que se silenciaram, de inteligências que se esconderam, de consciências que se renderam ao conforto. A coragem é, por isso, uma virtude de resistência: exige aceitar o risco da impopularidade, da marginalização, até da exclusão. Ser corajoso quando se tem garantido o aplauso é fácil — difícil é sê-lo quando ele compromete a carreira, o estatuto ou a paz doméstica.
Na política, no jornalismo, na ciência ou na educação, a falta de coragem tornou-se regra. E o sistema — subtil e eficiente — recompensa justamente a covardia: promove aqueles que evitam conflitos, protege aqueles que repetem o discurso dominante, eleva aqueles que sabem calar-se no momento exacto. A coragem, hoje, não é premiada — é sancionada. E, todavia, só ela permite a acção ética, porque sustenta o mérito perante a adversidade e preserva a coerência perante a tentação do oportunismo.
Chegamos, então, à terceira virtude: a coerência — a mais rara, a mais escassa, a mais preciosa. A coerência não significa rigidez ideológica nem obsessão moralista, mas uma fidelidade entre o que se diz, o que se pensa e o que se faz. Num tempo em que se valoriza a adaptabilidade, a flexibilidade, o cinismo travestido de pragmatismo, a coerência é vista como ingenuidade ou teimosia. Mas só há liberdade onde existe coerência, porque só aí reside a identidade. Quem diz hoje uma coisa e amanhã o seu contrário não está a evoluir: está apenas a desfigurar-se — e um indivíduo que se desfigura ao sabor do vento mostra-se presa fácil de qualquer moda, qualquer tirania ou qualquer algoritmo.
A coerência exige sacrifícios: atesta-se na vida de quem recusa falsos atalhos, de quem se demite de cargos quando os princípios são violados, de quem diz não mesmo quando o sim seria mais lucrativo. Mostra-se coerente quem se mantém inteiro, mesmo quando todos ao seu redor escolhem o mimetismo. Não é um dom: é uma conquista, renovada a cada dia, a cada gesto.
Estas três virtudes — mérito, coragem e coerência — não são apenas atributos individuais. São pilares civilizacionais. E sem esses pilares não há confiança social, não há cultura de responsabilidade, não há verdadeiro progresso. Onde o mérito é ignorado, a coragem punida e a coerência ridicularizada, prosperam os medíocres, os cobardes e os cínicos. A sociedade continua a funcionar — mas como uma engrenagem de fachada, uma caricatura das suas próprias promessas.
Importa, por isso, resgatar estas virtudes para o centro do discurso público. Não apenas como ideal moral, mas como exigência prática. Quem defende uma liberdade sem mérito, sem coragem e sem coerência, quer apenas uma liberdade oca, decorativa, subordinada — e essa é, na verdade, a forma mais insidiosa de servidão.
Os nossos tempos clamam por conforto, por aprovação, por pertença. Mas só aqueles que aceitam o preço de caminhar contra a corrente — por mérito, com coragem, em coerência — estão verdadeiramente livres. E a liberdade, como sempre, é um privilégio dos raros, pertença daqueles que ousam, ainda que sozinhos, manter-se de pé.
Há muito que o Polígrafo deixou de ser um órgão de “verificação de factos” para se tornar um curioso laboratório de legitimação de financiadores. O projecto, que nasceu sob o pretexto da “verificação da verdade”, é hoje uma caricatura daquilo que pretendia denunciar: consolida-se como um veículo de desinformação institucionalizada, moldado aos patrocínios que lhe asseguram os lucros.
O Polígrafo dá a mão a quem lhe dá dinheiro para fazer fact checking.
Se calhar houve mais parcerias que me passaram despercebidas — ou que o seu fundador, Fernando Esteves, se esqueceu de nos revelar. Não se conhecem valores, contratos nem condições editoriais. Conhece-se apenas o resultado: uma deriva editorial que substitui o espírito crítico pelo conformismo rentável.
Nada disto surpreende. O Polígrafo é um projecto torto, nascido do conceito de que a desinformação vem de fora — sobretudo das redes sociais —, quando, na verdade, radica na perda de credibilidade da imprensa e na sua incapacidade de convencer os leitores a usar informação fidedigna e produzir análises rigorosas sem enviesamentos. E fazer secções editoriais a pedido — ou seja, criar secções se houver patrocinador, como sucede num programa televisivo de domingo com o João Baião — é cavar ainda mais a sepultura da moribunda credibilidade jornalística.
E isto com a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) a fingir que nada vê. A ERC, aliás, tem sido cúmplice silenciosa desta perversão: permite, sem pestanejar, que se pratique um “jornalismo a pedido” — não de cidadãos, mas de quem paga. A verificação de factos tornou-se, assim, um serviço de consultoria disfarçado de jornalismo.
Qual a razão para o Polígrafo se dedicar ao futebol agora com afinco? Porque uma empresa de apostas de Malta, a Betclic, lhe começou a pagar para escrever especificamente sobre futebol – e não sobre outros temas quaisquer.
O caso mais revelador desta promiscuidade é a secção Vital — o portal do cancro, financiada pela Fundação Champalimaud —, que tanto surge em site autónomo, com textos não assinados, como no próprio Polígrafo, assinados por jornalistas. Só isso já choca, porque, obviamente, o Polígrafo analisa questões relacionadas com o cancro porque há uma entidade que trabalha nessa área que lhe paga. Se um dia houver uma congregação que lhe mande fazer fact-checking sobre enchidos, aparecerão textos, tal como sucede no futebol e nas finanças.
Enfim, sempre se poderá defender que o tema das doenças oncológicas — onde subsistem muitos mitos e desinformação — é bastante relevante e que, enfim, até justifica que a imprensa possa contribuir para melhorar a informação.
Porém, o Polígrafo, mais uma vez — e com a chancela da Fundação Champalimaud e a pena de jornalistas inexperientes —, aventura-se por terrenos científicos com a ligeireza de quem nunca abriu um artigo numa revista científica, pretendendo combater a desinformação em saúde com um amontoado de simplificações, erros conceptuais e juízos dogmáticos que ofendem a inteligência de quem conhece minimamente o método científico.
Escrever sobre cancros: o espaço alargou-se no Polígrafo por uma só razão: a Fundação Champallimaud paga.
Tomemos o exemplo recente de um artigo sobre a vitamina D, que o Polígrafo classificou como “FALSO”. Segundo a peça, um “alegado médico e escritor de livros de auto-ajuda” teria dito, numa entrevista, que a vitamina D funcionava como uma “vacina para o cancro”. O Polígrafo decidiu pegar na frase — isolada, sem citar o nome do autor nem o contexto — e analisá-la literalmente. Ora, esse é o primeiro erro científico: confundir linguagem metafórica com proposição factual. Quando alguém diz que a vitamina D é “como uma vacina”, a comparação não é imunológica, é simbólica — remete para o potencial preventivo ou terapêutico, não para um mecanismo biológico idêntico ao das vacinas contra bactérias ou vírus.
O segundo erro é mais grave: o Polígrafo ignora a complexidade epistemológica da ciência biomédica e submete o raciocínio ao mesmo esquema binário com que decide se um político mentiu sobre o preço do gasóleo. Em ciência, a dicotomia “verdadeiro/falso” é um disparate. A investigação opera sobre probabilidades, evidências parciais, correlações, hipóteses e margens de erro. Nenhum investigador sério, nem na Fundação Champalimaud, nem em Harvard, classificaria, por regra, um enunciado científico com um carimbo de “FALSO” — porque o conhecimento científico é, por definição, provisório e refutável.
Curiosamente, no caso em apreço, o próprio Polígrafo, ao tentar justificar o seu veredicto, cita estudos que desmontam a sua própria sentença. Refere o ensaio clínico VITAL, publicado no New England Journal of Medicine em 2019, que concluiu que a suplementação de vitamina D não reduziu significativamente a incidência de cancro, mas revelou uma tendência favorável para menor mortalidade em quem já estava diagnosticado. Em português corrente: a vitamina D não previne o aparecimento da doença, mas pode ajudar quem já a tem. Acrescenta ainda uma meta-análise que confirmou o mesmo padrão: ausência de efeito preventivo, mas sinal positivo na sobrevivência.
Analise-se a qualidade da análise do Polígrafo em fact checking de ciência feita por uma jornalista ‘junior’ formada em Comunicação Social.
Ou seja, a própria evidência que o Polígrafo cita demonstra que o enunciado não é “falso” — é, na melhor das hipóteses, não comprovado em termos preventivos e parcialmente corroborado em termos de prognóstico. O jornalismo científico, se o fosse, deveria dizer isto. Mas o Polígrafo prefere a sentença categórica. É mais vistosa. E, sobretudo, mais conveniente para um patrocinador que, ironicamente, é uma fundação ligada à investigação oncológica e que dificilmente apreciaria um artigo a sugerir que a vitamina D possa ter efeitos benéficos que a sua própria instituição ainda não estudou.
Esta ironia é amarga: um projecto financiado pela Fundação Champalimaud escreve artigos de fact-checking que impõem certezas onde a ciência admite dúvidas. Por isso, é o contrário da investigação científica: é a dogmatização do provável.
Em ciência, não se trabalha com selos de “verdadeiro” ou “falso”. Trabalha-se com níveis de evidência: plausível, não comprovado, consistente, em revisão, refutado. Quando um estudo sugere associação, outro contesta e um terceiro encontra efeito apenas num subgrupo, o papel do comunicador científico é explicar essa incerteza, não abafar a discussão. A missão do jornalista na área da ciência não é decretar sentenças, é iluminar zonas de dúvida.
O Polígrafo, porém, transforma o conhecimento em moral, a nuance em pecado e o método científico em catecismo. Usa a retórica da ciência para impor uma autoridade dogmática — e fá-lo em nome da luta contra a “desinformação”. Eis um paradoxo digno de figurar num manual de epistemologia: o verificador que desinforma ao simplificar.
Secções do Polígrafo crescem em função do patrocínio. Os temas editoriais em função de critérios financeiros: a antítese do jornalismo.
A culpa, contudo, não é apenas do Polígrafo: é de um ecossistema mediático e regulatório que permite esta farsa. A ERC, que devia garantir a independência editorial, assiste calada enquanto órgãos de comunicação social se financiam por rubricas temáticas pagas por entidades com interesse directo na narrativa. Até porque secções patrocinadas estão a invadir as redacções e a infeccionar o jornalismo. Já não surpreende se houver laboratórios farmacêuticos a pagar aos jornais para decidir o que é “falso” ou “verdadeiro” em farmacologia. A independência morre, o jornalismo prostitui-se e a verdade torna-se um produto com recibo verde.
Este caso da vitamina D é apenas um exemplo. Amanhã será outro. O Polígrafo, e outros, já abriram a porta. No fundo, aquilo que este episódio revela é um fenómeno mais vasto: a transformação da verificação de factos num mercado de opiniões sancionadas. A verdade já não é investigada; é subcontratada. O Polígrafo é o sintoma perfeito de uma era em que o jornalismo prefere agradar a quem paga — e está intimamente ligado aos temas tratados — do que enfrentar a complexidade do real. Até porque nunca se assumem quais os valores envolvidos.
O verdadeiro jornalista, como o verdadeiro cientista, sabe que a dúvida é a forma mais elevada de honestidade. O Polígrafo, infelizmente, parece ter optado pela certeza remunerada.
Está na moda falar em “defesa da democracia” e na importância de existir uma “imprensa livre”. Ainda bem. Afinal, ninguém no mundo Ocidental quer mergulhar numa era de condicionamento da imprensa nem em regimes autoritários. Portugal já viveu em ditadura e sabe o preço que acarretou para as liberdades fundamentais e para os jornalistas.
O problema é que, até pode estar na moda “defender a democracia” e a “imprensa livre”, mas soa cada vez mais a falso. Parecem palavras ocas num mundo em que a comunicação social se confunde com uma indústria de conteúdos para alimentar as massas de smartphone na mão. E para servir os clientes e parceiros de negócios, que pagam para terem promoção e publicidade, seja através de eventos, seja através de conteúdos pagos mais ou menos disfarçados de informação.
Foto: D.R.
Afinal, o que é isto de “imprensa livre”? Será um mantra para acalmar os receios, perante os sinais de que o passado de autoritarismo no continente europeu ainda deixou sementes que progridem a olhos vistos?
Esta quinta-feira, a partir das 9h00, o director deste jornal vai, de novo, estar sentado no banco dos réus para a segunda sessão de um julgamento que nem deveria estar a decorrer, não fosse pela acção do Ministério Público que se esqueceu que Portugal é um país em que (ainda) existe liberdade de expressão e liberdade de imprensa.
Pedro Almeida Vieira está a ser acusado de mais de três dezenas de crimes de difamação, entre os quais de ter criticado um péssimo poema de Gustavo Carona.
Mas este não é o único julgamento que o director do PÁGINA UM vai ter ainda este ano. Há já datas para as sessões de mais um julgamento. Mais uma tentativa de intimidação e silenciamento.
O facto de se aceitarem sequer estas acções de perseguição judicial para silenciar e intimidar jornalistas (conhecidas como SLAPP) alimenta o “sonho” de outros que almejam esmagar o jornalismo livre, o verdadeiro.
Voltando à questão sobre o que é “imprensa livre”, a resposta é simples. Se alguém tiver dúvidas sobre o que é, basta seguir o rasto dos processos judiciais, as migalhas das ameaças, os e-mails de intimidação.
O jornalismo verdadeiramente livre não teme estas tentativas de silenciamento. Pelo contrário, esses esforços para calar reforçam ainda mais a vontade de se investigar e escrutinar.
O jornalismo verdadeiramente livre é aquele que é respeitado e também temido por aqueles que têm algo a esconder.
Hoje, o jornalismo não é temido. Está, em geral, domesticado. Parece livre, mas não é. Não verdadeiramente.
A imprensa verdadeiramente livre questiona, investiga, escrutina. Exige acesso a informação que deve ser pública. Exige transparência de quem tem de prestar contas à população. Avança com processos na justiça, se necessário, para que a transparência e a lei se cumpram, libertando informação que nunca deveria estar fechada num cofre por ser pública.
É isso que o PÁGINA UM tem procurado fazer. E, por isso, o seu director se senta no banco dos réus. Não porque “difama” ou emite informação falsa. Mas porque faz o que muitos não estão habituados a ter: escrutínio.
A defesa da democracia só é verdadeira se também se defender a verdadeira imprensa livre, a que não serve “clientes” nem “parceiros comerciais”.
Até porque uma imprensa verdadeiramente livre é, em simultâneo, o termómetro da democracia e a bússola que aponta o caminho. Para que não se caia na tentação de seguir por atalhos e desvios que levam ao passado, ao tempo em que a imprensa existia mas tinha um ‘polícia’ a dizer o que se podia investigar e escrever.
Há quem confunda divulgar ciência com a missão de nos salvar de nós próprios. Quando isso acontece, o rigor cede à retórica e o discurso científico transforma-se em catequese pública. O recente ensaio de David Marçal no Público, intitulado “Beber vinho é dar cancro a muitos portugueses”, é exemplo cristalino dessa deriva: uma peça em que o pânico se sobrepõe à ponderação, e a convicção ideológica suplanta a nuance científica.
O título, digno de uma campanha de abstinência radical, revela o propósito: substituir a dúvida metódica pelo susto pedagógico. É a velha pedagogia do medo aplicada ao copo de vinho, de que Marçal foi um apologista durante a pandemia da covid-19 — afinal, não é defeito; é feitio. Marçal, que tem cultivado um estilo de comunicação científica centrado na dramatização — como se o público só aprendesse quando levado ao sobressalto —, parece ter esquecido que o papel do divulgador é informar, não alarmar.
Ao colocar o vinho ao mesmo nível do uísque ou da vodka, o autor ignora diferenças fundamentais de composição, concentração alcoólica, modo de consumo e efeitos metabólicos. É uma equiparação cientificamente falha e conceptualmente grosseira. Além disso, vai buscar uma análise, ainda por cima, nem muito recente, esquecendo de fazer uma abordagem mais holística.
O vinho é uma bebida fermentada, integrada numa matriz alimentar e cultural; os destilados são concentrados etílicos, de ingestão rápida e efeito tóxico superior. Misturar tudo em nome da “mensagem de saúde pública” é um erro metodológico — e, sobretudo, uma forma de transformar complexidade científica em moral simplificada.
O ensaio de Marçal recorre ainda à classificação da Agência Internacional para a Investigação em Cancro (IARC) de forma equívoca. A categoria de “carcinogénio de grupo 1” não significa que uma substância seja igualmente perigosa em qualquer dose — apenas que há evidência de associação causal. A luz solar pertence à mesma categoria, e ninguém propõe o encerramento das praias.
Arvorando-se divulgador de ciência, David Marçal escolheu um tema para ser sensacionalista.
A diferença entre informação e alarmismo é a mesma que separa ciência de propaganda. Uma análise séria exige escala e contexto. O relatório mais recente e abrangente sobre o tema — a Review of Evidence on Alcohol and Health (National Academies of Sciences, Engineering, and Medicine, 2025) — conclui que o consumo moderado de álcool está associado a menor mortalidade global (redução média de 16%), e a menor mortalidade cardiovascular (redução de 18 a 22%, consoante o estudo).
Quanto ao cancro, as evidências são modestas: um ligeiro aumento de risco de cancro da mama (cerca de 10%), mas nenhuma associação consistente com outros tumores em padrões moderados de consumo.
Estes dados, provenientes da mais prestigiada instituição científica norte-americana, mostram que a relação entre álcool e saúde é de gradação, não de absolutos. O risco existe, sim, mas não legitima a retórica do interdito. Estudos têm revelado que o vinho tinto, consumido moderadamente, está associado a menor mortalidade e a melhor saúde cardiovascular mesmo em doentes cardíacos.
A tradição mediterrânica — que integra o vinho nas refeições, em quantidades contidas e socialmente mediadas — tem sido reconhecida pela Organização Mundial da Saúde como modelo de longevidade e equilíbrio nutricional. Ignorar essa evidência para alinhar o vinho com o tabaco é uma forma de revisionismo biológico, em que a história cultural é varrida em nome de uma moral higienista.
A comunicação científica, quando se entrega ao moralismo, deixa de esclarecer e passa a punir. O divulgador que fala em nome da ciência deve distinguir o risco individual do fenómeno populacional, a estatística do dogma. E por isso, quando o discurso se torna sermão, como sucede com David Marçal, a ciência perde a sua razão de ser: a dúvida crítica.
É legítimo alertar para os perigos do consumo excessivo de álcool; é irresponsável transformar esse alerta em catecismo de abstinência. O público merece ser tratado como adulto — capaz de compreender que entre o copo diário e a garrafa diária há um mundo de diferença.
A ciência não é abstinente, é prudente. O vinho não é uma substância maligna, mas uma expressão de cultura e de sociabilidade. E se há algo verdadeiramente cancerígeno no debate público, é o medo travestido de ciência — esse que, de tanto se repetir, começa a corroer o pensamento crítico.
Em última análise, o que deve ser combatido não é o vinho, mas o discurso alarmista e sensacionalista do David Marçal, que reduz a complexidade da evidência científica a slogans de indignação. Beber vinho não é dar cancro — é, quando sensatamente praticado, uma expressão de cultura, de convivência e de equilíbrio. É isso que a ciência, quando é fiel a si própria, continua a demonstrar. E a vida.
O primeiro dever de um jornalista é o da verdade, e o segundo é o da coragem. Entre ambos não pode existir hesitação. O jornalismo não serve para confortar consciências nem para proteger reputações, mas para escrutinar o poder e a influência — sejam de ordem política, económica, social ou cultural.
Dito isto, toda a actividade nobre deve ser reconhecida, mas nenhuma, por mais virtuosa que se proclame, pode ser transformada em reduto imune ao olhar público. A missão do jornalista é, de facto, desconfortável: quando cumpre o seu dever, inevitavelmente fere susceptibilidades. Porém, se o medo das consequências orientar a sua investigação, então já não se pratica jornalismo — pratica-se reverência.
Não coloco em causa o mérito de causas sociais cívicas – fui dirigente nacional da Quercus nos anos 90 – nem o valor de quem as promove; o que coloco em causa é a ideia de que a nobreza de um propósito justifica o silêncio sobre a origem e a aplicação dos dinheiros públicos. O Estado não deve ter beneficiários especiais. Quando a visibilidade mediática se torna porta de acesso privilegiado a fundos públicos, o dever de escrutínio torna-se ainda mais imperativo. As boas intenções não substituem a prestação de contas.
O PÁGINA UM publicou, em dois artigos ao longo desta semana (aqui e aqui), uma investigação documentada sobre os financiamentos públicos recebidos pelo músico Dino d’Santiago — quer através da sua empresa unipessoal, a Batuku Roots, quer através da associação que fundou e preside, a Mundu Nôbu. É uma história que não se resume a música ou a filantropia, mas que envolve quase 1,6 milhões de euros de dinheiros públicos.
A associação, criada há menos de dois anos, garantiu já perto de 800 mil euros em apoios e contratos, incluindo concertos a preço hiperinflacionado. E, apesar de se apresentar como entidade de intervenção social, não divulga os seus órgãos sociais, não revela o número de associados, não promove adesões e não apresenta relatórios e contas aprovados. Aparenta ser um clube de Dino d’Santiago e Liliana Valpaços sob a capa de associação para se livrar do estatuto de empresa, menos escrutinável.
Sublinhe-se: em democracia, ninguém, por muito admirado que seja, está acima do escrutínio. Não é o talento musical, a cor da pele, a fé política ou o empenho comunitário que conferem imunidade à fiscalização pública. Quando um cidadão, como Dino d’Santiago, gere dinheiros do Estado, a opacidade é um insulto a todos os contribuintes. É precisamente em nome da igualdade e da justiça que o jornalismo não pode distinguir entre “bons” e “maus” destinatários de fundos.
Reconheço — e é preciso dizê-lo sem hipocrisia — que investigações como esta podem gerar reacções indesejáveis, e pessoalmente não aprecio absolutamente nada (e até abomino) algumas reacções que li nas redes sociais sobre os artigos do PÁGINA UM. Há quem procure distorcer a crítica legítima em ataque pessoal, ou até em insinuação racial.
Mas o jornalista que se retrai, por receio das interpretações do seu trabalho, trai o próprio sentido da profissão. Um jornalista não é juiz de intenções nem profeta de reacções; é apenas alguém que procura e expõe a verdade factual. Se dessa verdade emergem desconfortos, e reacções inflamadas, que se trate então de os resolver com transparência — não com vitimizações ou ameaças ao mensageiro.
Aquilo que é verdadeiramente se mostra intolerável é transformar o mérito artístico ou o activismo social em arma contra a liberdade de imprensa. Quando um protagonista público, como fez Dino d’Santiago, responde a perguntas legítimas de um jornal com ameaças de processos judiciais e acusações de difamação, demonstra precisamente o contrário do que proclama: falta de abertura e ausência de confiança na força dos seus próprios argumentos. A transparência não teme perguntas; teme-as quem tem algo a esconder.
Não ignoro que existam associações de base voluntária, frágeis na sua gestão e sustentadas por orçamentos diminutos. Essas merecem compreensão e até auxílio técnico. Mas não é esse o caso da Mundu Nôbu: em menos de dois anos, obteve somas avultadas de várias entidades públicas e estabeleceu mais de uma dezena de parcerias privadas. Uma estrutura com tal envergadura deve cumprir escrupulosamente as obrigações legais e morais de prestação de contas – até para dar o exemplo aos jovens que auxilia. Se o não faz, a legítima suspeita instala-se.
Dino d’Santiago, cidadão português nascido em democracia, com plenos direitos e também (presumo) deveres, deve compreender que viver de apoios públicos implica responsabilidade pública. Nenhuma biografia, por mais inspiradora, suspende as regras da República. As causas sociais não são licença para o sigilo, e a popularidade não é escudo contra o dever de transparência. É esse o princípio elementar de uma sociedade decente — e é esse o princípio que o PÁGINA UM defenderá até ao fim.
Deixo, pois, um repto claro: se Dino d’Santiago se julga injustiçado e difamado, que concretize a ameaça e me processe. Terá então oportunidade de nos explicar, em tribunal, como foram geridos os fundos públicos que recebeu. Do meu lado, não espere simpatias. Aliás, porque também sou cidadão, e não aprecio ameaças desta natureza (que andam a aumentar) pedirei à Inspecção-Geral das Finanças e ao Tribunal de Contas uma averiguação rigorosa sobre o destino das verbas públicas entradas na associação de Dino d’Santiago.
A transparência, devia ele saber, não é ofensa; é um dever. E o jornalismo não é instrumento de perseguição; é um serviço público. Quem verdadeiramente acredita na sua integridade não teme a luz da verdade. Que se acendam, pois, todos os holofotes: não apenas para a música de Dino d’Santiago, mas para a sua postura.
Há um limite para tudo — até para a mistificação. O apelo na rede social X de Pedro Coelho — um reconhecido jornalista da SIC e com especiais responsabilidades na formação de futuros jornalistas (é professor da Universidade Nova de Lisboa – a que o Estado e os credores públicos “criem condições” para salvar a revista Visão, é um desses momentos em que o absurdo ultrapassa a fronteira do aceitável.
Lamenta ele que “não alertámos a tempo para a crise da Visão e da TIN [Trust in News]” – abusando da primeira pessoa do plural –, mas anuncia que para “salvar” um título jornalístico há por aí “um grupo de jornalistas corajosos” que “precisam de nós” — mas o que realmente propõe é que se varra para debaixo do tapete uma gestão ruinosa que custou, no mínimo, 15 milhões de euros ao erário público. Em suma, propõe um perdão moral e financeiro a quem conduziu a TIN ao colapso, e uma indemnização indireta à irresponsabilidade. É o mais torpe apelo que um jornalista pode fazer.
A Visão (e as outras revistas) não caem por um acaso, um azar, ou pela conjectura, ou pela desinformação. Caíram porque a TIN foi gerida com leviandade, sem escrutínio interno, e com uma conivência quase eclesiástica entre jornalistas que se julgavam imunes às leis da economia e da decência. Enquanto os jornalistas da Visão recebiam salários, somavam-se dívidas ao Estado e à Segurança Social, acumulavam-se calotes a fornecedores e mascarava-se tudo mentindo e omitindo à ERC e fazendo contabilidade criativa.
E a qualidade jornalística decaía, reflectindo-se na perda de leitores: em 2017, a revista Visão ainda chegou a vender quase 61 mil exemplares por semana e tinha seis mil assinaturas digitais. No último trimestre de 2023 — última vez que houve auditoria da APCT —, a Visão já só vendia 20.047 exemplares em banca por semana e tinha apenas 3.169 assinaturas digitais. Hoje, não havendo sequer números oficiais, apontam-se para menos de 10 mil exemplares.
Post de Pedro Coelho a apelar para que os “credores públicos” criem condições para salvar uma empresa que ainda nem sequer apresentou contas no ano passado e terá uma dívida ao Estado de mais de 15 milhões de euros e um passivo superior a 30 milhões de euros, tudo sob a gestão de uma empresa criada com um capital social de 10 mil euros.
Perante isto, dizer agora que há um grupo de “jornalistas corajosos” prontos a “assumirem o barco” é de uma ironia cruel. Onde estavam esses heróis quando o casco começou a meter água, ainda no tempo da Impresa? Onde estavam quando a TIN acumulava dívidas e escondia balanços? O PÁGINA UM alertou, documentou e publicou uma extensa investigação, a partir de Julho de 2023 (p. ex., aqui, aqui e aqui), aquilo que todos os outros não queriam sequer ver. E fomos ignorados ou mesmo insultados – aliás, a postura corporativista da imprensa é um dos piores males do nosso jornalismo.
Chamaram até “fantasiosas” às notícias do PÁGINA UM que, linha por linha, antecipavam a derrocada inevitável. A própria então directora e publisher da Visão durante anos, Mafalda Anjos, escreveu em carta formal ao PÃGINA UM que não se pronunciava sobre “artigos fantasiosos que versam as contas da TIN”. Mas a sua maior preocupação nesse e-mail estava no facto de usaremos fotografias dela que constavam das suas redes sociais. Hoje, a mesma Mafalda Anjos, desmentida pelos factos, tenta reescrever a história nas redes sociais, como se o descalabro da TIN fosse um relâmpago vindo do nada.
Não é, pois, de coragem que se trata quando se quer “salvar” a Visão – e o mesmo sucede com o Diário de Notícias e o Jornal de Notícias –, mas de oportunismo. Há uma diferença abissal entre quem luta para criar um projecto sustentável e quem pede indulgência pública para manter um título. Se os jornalistas da Visão acreditam que existe mercado para o seu trabalho, façam o que qualquer profissional decente faz: criem uma nova revista, registada na ERC, com outro título, outro modelo e contas limpas. Tão simples como isto.
O PÁGINA UM publicou a primeira notícia sobre a situação financeira da Trust in News em 24 de Julho de 2023, há mais de 26 meses. Mafalda Anjos, sorridente ao lado de António Costa, apelidaria então de “fantasiosas” as notícias sobre esta matéria.
Aliás, a TIN tinha um capital social de apenas 10 mil euros, não é muito: é o mesmo valor do PÁGINA UM. Não precisam de milagres nem de perdões fiscais — precisam de ética, investimento privado e responsabilidade. Uma Empresa na Hora basta – e podem começar a nova revista na próxima semana com essa estrutura e o conhecimento desse “grupo de jornalistas corajosos”. O resto é vitimização.
Bem sei que esta súbita onda de solidariedade não é inocente. É uma tentativa de limpeza simbólica, de apagar os rastos de uma gestão calamitosa que muitos preferiram ignorar enquanto o dinheiro público e privado era esbanjado. Luís Delgado não cavou o buraco sozinho: contou com o silêncio cúmplice de quem, dentro das redacções, fingia que a crise não existia. Contou com a inércia da ERC, que tudo permitiu, e com a cegueira de uma classe jornalística que só reage quando sente o frio do abismo.
A insolvência da TIN – e por arrasto o fim de muitos títulos – é um acto de justiça económica e moral. Não significa o fim do jornalismo, nem a morte da revista Visão enquanto conceito — apenas o encerramento de um ciclo de impunidade. O jornalismo que merece ser salvo é aquele que se sustenta na verdade, não o que se alimenta de subsídios e de nostalgia. Se o Estado se põe agora a “salvar” empresas privadas falidas só porque são do sector da imprensa, estará, além de minar a independência necessária em democracia, a consagrar o princípio de que a irresponsabilidade é um direito adquirido. E isso seria o golpe final na credibilidade do sector.
Mafalda Anjos escreveu em 26 de Julho de 2023 ao PÁGINA UM, de forma voluntária, dizendo que não se pronunciava sobre “artigos fantasiosos que versam contas da TIN”. Apontava depois o erro de não se publisher desde finais de 2022 e de não ter responsabilidades de gestão financeira na Visão. Convém referir que a Lei da Imprensa concede o direito de um director ser informado da situação financeira em detalhe do órgão de comunicação social que dirige.
Não querendo ser moralista, tenho mesmo de defender que está na hora de moralizar o campo mediático. Não desejo o desemprego de ninguém, mas também não aceito que se confunda solidariedade com complacência. A regeneração do jornalismo português passa por enterrar os ‘cadáveres corporativos’ que há demasiado tempo poluem a profissão. É preciso criar novos projectos, independentes e transparentes, que não se escondam atrás de marcas antigas. O cemitério da imprensa está cheio de títulos ilustres — e nenhum ressuscitou pela vontade piedosa do Estado. A Visão é apenas um nome. O que deve importar é a lucidez, a honestidade e a coragem de enfrentar a realidade.
A morte da Visão — enquanto símbolo de um modelo falido — é um acto de higiene estrutural. Que sirva de exemplo. O bom jornalismo não se faz de esmolas do Estado, nem de piedade dos contribuintes. Faz-se de verdade e de carácter. Faz-se até os leitores decidirem – e tem sido essa a máxima do PÁGINA UM: somos aquilo que os leitores querem que sejamos. E se hoje ainda fazemos um jornalismo de nicho, porque ainda escasseia um número suficiente de apoiantes, a solução mais cordata não parece ser endividarmo-nos até ao tutano, aguardando pela salvação do Estado.
P.S. Num comentário na rede social X, Mafalda Anjos continua a viver na sua bolha e acusa-me de “teorias da conspiração” e que escrevo aquilo que escrevo porque “tenho de fazer pela vida”. Mafalda Anjos pensa que ainda vive nos seus gloriosos tempos da pandemia, onde tiradas e rótulo serviam como argumento. Ao contrário de Mafalda Anjos, eu não fui director da Visão e não fugi do ‘barco’ quando estava a afundar e ainda tentei sacar 54 mil euros de indemnização (que acabou por não ser pago, porque o karma é tramado e Luís Delgado deu-lhe também um calote).
Mafalda Anjos; quando uma jornalista tenta reescrever a História (neste caso, o contexto do termo fantasiosos; e da situação grave da TIN em 2023 que “já estavam documentadas”, usando ainda argumentos primários dos tempos da pandemia (teorias das conspiração e ‘tens de fazer pela vida’, que ela bem sou usar), só tem futuro no Jornalismo por empenhos e conhecimentos pessoais. Mas a sua manutenção na classe agrava a seriedade e credibilidade do jornalismo.
E mais: ao contrário da Mafalda Anjos, eu não tenho uma agenda recheada de contactos públicos e privados para, depois do descalabro na Visão, encontrar uma boia de salvação profissional na CNN Portugal (cuja informação é maioritariamente opinião de bitates) e na sempre generosa RTP/RDP. No dia em que a qualidade e a seriedade fossem critérios no jornalismo lusitano, Mafalda Anjos teria de encontrar refúgio apenas numa empresa de marketing e comunicação empresarial a vender marcas e narrativas – nisso, admito, ela tem um imenso jeito e uma esbelta cara de pau.
Há fenómenos mediáticos que revelam menos sobre o assunto em si e mais sobre quem os comenta. A atribuição do Prémio Nobel da Paz a María Corina Machado foi, em Portugal, um desses casos: em vez de se analisar o que significa distinguir uma opositora que, independentemente do contexto político, desafia um regime autoritário e clientelar, preferiu-se brincar aos espelhos ideológicos. Como se viu no Expresso, com David Dinis a traçar um enviesamento narrativo de contornos propagandísticos, o reflexo de Trump na Sala Oval parece ter sido mais importante do que o espelho partido da Venezuela.
Ainda mais porque, ou me engano muito, ele acabará por recebê-lo num dos próximos anos, excepto se houver um qualquer percalço ou fatalidade. Não por mérito moral, mas por inevitabilidade histórica: Trump é o sintoma de uma América que ainda se crê o centro do mundo – e é-o do ponto de vista militar e estratégico –, e é provável que, um dia, para saciar essa mesma crença, o Comité de Oslo ceda e lhe estenda a medalha — talvez não pela guerra, mas por algum acordo improvável, seja no Médio Oriente, seja num tratado de desanuviamento algures entre Jerusalém e o Cáucaso, ainda que ele confunda a Arménia com a Albânia, como sucedeu recentemente.
O mundo não acabará por isso. Já o Nobel sobreviveu a Kissinger — arquitecto da duplicidade vietnamita — e a Obama — laureado antes mesmo de decidir quais as guerras que iria iniciar. Por que não Trump? Se a paz já serviu para premiar generais e estrategas, não há escândalo que um vendedor de ilusões o conquiste por conveniência e vaidade. Antes isso do que guerras…
Mas o que, nesse momento, mais me espanta não é o destino provável de Trump; é a leitura enviesada que a imprensa portuguesa faz do presente. O prémio a María Corina Machado foi descrito como a personificação da “esperança de um futuro diferente, onde os direitos fundamentais dos cidadãos são protegidos e as suas vozes são ouvidas”, em contraponto ao que, por exemplo, David Dinis tem a ousadia de comparar: as supostas autocracias de Maduro e Trump — o que, convenhamos, se mostra ridículo mesmo para um opositor arreigado do trumpismo.
Donald Trump
No meio disto é curioso notar o malabarismo (ou cegueira) dos comentadores sobre a postura de María Corina Machado, até do ponto de vista ideológico. Com efeito, ao invés de ser uma adversária de Trump, a nova laureada da Paz é uma indefectível apoiante do presidente norte-americano. Chamou-o de “visionário” e “corajoso” pela sua política face a Maduro — e não haja dúvidas de que vê numa Administração republicana um aliado mais natural do que teria numa Administração democrata.
A ignorância e o enviesamento na leitura da premiação acabam por ser caricatos, porque idolatraram quem simboliza o pragmatismo trumpista: uma mulher que defende privatizações “massivas” — incluindo a da PDVSA, a petrolífera estatal venezuelana — e que chegou a admitir a presença de forças militares estrangeiras para derrubar o regime. Na verdade, na Venezuela, María Corina é vista como uma liberal radical — e em certa medida, mostra essa postura. Na esquerda latino-americana é tida como de “extrema-direita”; no Brasil, uma “amiga da extrema-direita bolsonarista”.
Em concreto — e aí não há como negar —, a nova Prémio Nobel da Paz tem uma família ideológica: é uma das subscritoras da Carta de Madrid, manifesto lançado em 2020 pela fundação Disenso, ligada ao partido espanhol VOX, e que congregou uma constelação de figuras da direita liberal e conservadora mundial — e que muita imprensa cataloga de extrema-direita: de Giorgia Meloni a Eduardo Bolsonaro, de Santiago Abascal a José Antonio Kast, de Javier Milei e a dezenas de dirigentes de direita da oposição venezuelana. O documento, redigido em tom de cruzada, denuncia o “avanço do comunismo” e o “sequestro da região por regimes totalitários” patrocinados por Cuba, pelo Foro de São Paulo e pelo Grupo de Puebla, defendendo a propriedade privada, o Estado de direito e a liberdade de expressão como baluartes civilizacionais.
Contextualmente, a adesão de Machado a essa plataforma — que não foi isolada, pois conta com mais de trinta opositores venezuelanos — insere-se num movimento transnacional de resistência conservadora ao populismo de esquerda latino-americano, mas também serve, ironicamente, de espelho ao próprio discurso do Nobel, que, sob o pretexto da defesa da democracia, reedita uma batalha ideológica simétrica, em que cada campo acusa o outro de autoritarismo enquanto instrumentaliza a linguagem da liberdade. Não surpreende, assim, que, em Portugal, o Chega tenha saudado María Corina Machado, sublinhando tratar-se de “um triunfo da liberdade contra o socialismo”.
De qualquer modo, a cartografia de rótulos — incluindo o anti-trumpismo primário, que consegue fazer esquecer tudo o resto — revela um problema maior: o debate político global transformou-se numa disputa de caricaturas. Já não se discutem ideias, apenas se escolhem lados. A imprensa — e a portuguesa em particular — tornou-se um eco de trincheira: o que interessa é saber se o vencedor do Nobel “ajuda” ou “derrota” Trump, não se a Venezuela poderá um dia voltar a respirar democracia.
Pessoalmente, não tenho idolatrias nem certezas morais sobre María Corina Machado. Não a vejo como uma Madre Teresa de Calcutá — até porque a política, ao contrário da santidade, exige manobras e compromissos —, mas reconheço nela uma mulher que, com todos os defeitos e excessos, enfrenta um regime corrupto e violento que destruiu o seu país. A sua ideologia é discutível; a sua coragem actual, inegável — e, por agora, pragmaticamente, isso é o mais relevante.
María Corina Machado foi uma das signatárias da Carta de Madrid, promovida pelo Vox (Espanha).
Em todo o caso, mostra-se perturbante ver como se cola ou descola rótulos em função das circunstâncias ou conveniências, endeusando ou diabolizando não em função de acções, mas de utilidades momentâneas. Num mundo polarizado, a lucidez é cada vez mais rara. E hoje há um fascínio mórbido por reduzir pessoas a emblemas e causas a slogans. O verdadeiro debate político — o que deveria discutir a liberdade, a justiça e o equilíbrio entre soberania e direitos — foi substituído por um jogo de espelhos morais: o inimigo do meu inimigo é meu herói, até segunda ordem.
Para mim, María Corina Machado é uma mulher de direita sem disfarces – e isso pode não me agradar –, mas também é o rosto da resistência a um regime que persegue, censura e mata. E se há um mérito no Nobel que recebeu, é o de lembrar que a coragem política ainda existe — mesmo quando vem embrulhada em ideias que não partilhamos. Qualquer outra extrapolação, nesta fase, é mero exibicionismo ideológico. Por isso, o Prémio Nobel da Paz parece-me mais relevante pelo que pode representar para o futuro da Venezuela, mas nada tem de punição contra Trump – pelo contrário.
1. O conceito de soberania: origem, decadência e usurpação
Poucas palavras carregam tamanha densidade histórica e ideológica como o termo “soberania”. Olhada ora como escudo da liberdade colectiva, ora como instrumento de opressão estatal, a soberania é um conceito que, ao longo dos séculos, oscilou entre a justificação do poder absoluto e a consagração da autodeterminação popular. No entanto, é precisamente nesta ambiguidade fecunda que reside a chave para compreender a arquitectura política de qualquer regime que se pretenda democrático. A soberania é, em última instância, uma decisão fundadora sobre quem manda em quem — e porquê.
O jurista francês Jean Bodin foi, no século XVI, talvez o primeiro a sistematizar a ideia moderna de soberania: o poder supremo, indivisível e perpétuo de legislar, isento de qualquer sujeição. A soberania, para Bodin, repousava no monarca — mas não era um despotismo sem limites: deveria submeter-se à lei divina e à ordem natural. O seu conceito viria a ser radicalizado pelo britânico Thomas Hobbes, no século seguinte, que viu no soberano o Leviatã necessário para conter a barbárie da guerra de todos contra todos. A paz social exigia um poder absoluto, não por capricho, mas por necessidade lógica. O francês Jean Jacques Rousseau, por sua vez, operaria uma viragem já na segunda metade do século XVIII: a soberania não pertence ao rei, mas ao povo. E a vontade geral torna-se o novo trono.
Mas a transição histórica da soberania monárquica para a soberania popular não apagou o seu traço fundamental: a soberania é sempre uma fonte última de decisão política. A questão nunca é se há ou não soberania, mas onde reside e a quem serve. E é precisamente essa questão que o nosso tempo procura dissimular com neologismos administrativos como governança, resiliência institucional, cooperação reforçada, multilateralismo funcional — fórmulas pensadas para despolitizar o acto de decidir, camuflando relações de poder sob retóricas de consenso técnico.
Se a modernidade política se construiu sobre o princípio de que o povo é soberano, o século XXI parece ter-se encarregado de esvaziar esse princípio da sua substância. O processo não foi abrupto, mas gradual — e, por isso, mais eficaz. O poder soberano foi-se deslocando silenciosamente para entidades não eleitas – como a Comissão Europeia –, tribunais constitucionais com vocação supranacional, organismos técnicos com competência normativa, bancos centrais com autonomia inquestionável. Aquilo que permanece nos parlamentos nacionais é, cada vez mais, a função de carimbar decisões tomadas noutros areópagos. A soberania transformou-se num ritual constitucional – e ainda por cima desprovido da sua força performativa.
A decadência da soberania não se fez apenas pelo alto, mas também pelo baixo. O cidadão comum, embrutecido por décadas de propaganda globalista, passou a ver a soberania como um resquício reaccionário, uma palavra tóxica associada a muros, autoritarismos e isolacionismo. O cosmopolitismo tecnocrático triunfou ao convencer as massas de que a renúncia à soberania era sinal de progresso, de maturidade democrática, de integração no concerto das nações civilizadas. Assim se forjou o paradoxo contemporâneo: o cidadão vota em representantes que não têm poder soberano, mas confia que os “órgãos competentes” farão o necessário — ainda que sem prestar contas a ninguém.
Esta renúncia voluntária ao exercício da soberania constitui, em si mesma, uma tragédia política. Quando um povo abdica de decidir sobre o essencial — as suas leis, os seus impostos, a sua moeda, os seus tratados, as suas fronteiras —, deixa de ser um corpo político e transforma-se numa clientela social. Os grandes pactos do século XX, como as constituições democráticas ou os contratos sociais pós-guerra, pressupunham a existência de comunidades soberanas. A sua erosão corrói a base sobre a qual repousa qualquer legitimidade política duradoura. Onde a soberania se eclipsa, o Estado torna-se apenas uma agência de execução.
A usurpação da soberania, no entanto, não é – ou não foi – feita com violência, mas com protocolos. Não exige – ou exigiu – tanques nas ruas, mas pareceres jurídicos. Não convoca – ou convocou – assembleias, mas workshops. Não declara – ou declarou – estados de sítio, mas ajustamentos estruturais. O golpe pós-moderno contra a soberania é tecnocrático e silencioso: não precisa de abolir a Constituição, basta interpretá-la à luz dos “compromissos europeus”. A excepção torna-se norma, o provisório torna-se estrutural, e o soberano torna-se amnésico — incapaz de recordar quando perdeu o direito de decidir sobre si mesmo.
O filósofo alemão Carl Schmitt, com a sua célebre frase sobre o estado de excepção, recorda-nos que o verdadeiro soberano é aquele que, num momento de crise, suspende a norma para ‘salvar’ a ordem. Mas no mundo actual, quem decide sobre a excepção? Não são os parlamentos. Não são os cidadãos. São os políticos, mas já com base em conselhos científicos, em directórios financeiros, em consórcios reguladores. Isto equivale a dizer que a soberania não desapareceu — apenas mudou de mãos.
É tempo, portanto, de resgatar o conceito de soberania não como bandeira de guerra, mas como instrumento de emancipação. A soberania não é um fetiche nacionalista, nem um capricho autoritário: é a condição para que uma comunidade se reconheça como autora das suas leis e responsável pelo seu destino. Sem soberania, não há cidadania plena — há obediência condicionada. E uma democracia sem soberania não passa de uma ilusão coreografada, onde todos dançam ao som de uma música que já não compuseram.
A restauração da soberania exige coragem intelectual e acção política. Mostra-se necessário romper com a anestesia discursiva que reduz a política a compliance. É preciso declarar que a legitimidade de um Estado não se mede pelo número de pareceres que respeita, mas pelo grau de autonomia com que decide e responde aos seus cidadãos. E, sobretudo, torna-se fundamental recuperar a ideia simples — mas hoje quase subversiva — de que um povo que não manda em si mesmo, não é livre. É apenas governado.
2. A União Europeia como laboratório da pós-soberania
Se o conceito de soberania passou, nas últimas décadas, por uma erosão sistemática, então a União Europeia é o seu laboratório mais avançado. Nenhuma outra estrutura política contemporânea foi tão eficaz a transformar a abdicação da soberania numa virtude moral, num imperativo económico e numa inevitabilidade institucional. A União Europeia não combateu a soberania de frente: dissolveu-a em regulamentos, derreteu-a em comissões, despolitizou-a em nome do progresso. O golpe foi subtil e inicialmente lento, mas depois mais rápido e profundo: não tirou o poder aos Estados; convenceu-os de que já não valia a pena exercê-lo.
A génese da integração europeia não nasce da vontade de criar uma comunidade política plena, mas de impedir a repetição das tragédias do século XX. Foi um projecto fundado no trauma e erguido sobre a promessa de estabilidade, comércio e convergência. No seu alvorecer, era uma engenharia económica com pretensões civilizacionais. Mas cedo se percebeu que, para que o mercado comum florescesse, seria necessário conter os ímpetos soberanistas dos Estados-membros. A moeda única — introduzida com solenidade e propaganda — foi o dispositivo mais eficaz desse condicionamento.
Ao abdicar da sua política monetária, os Estados aceitaram um novo tipo de tutela: não a de uma potência estrangeira, mas a de uma arquitectura institucional que fala com o timbre neutro da razão técnica. A Comissão Europeia, o Banco Central Europeu, o Tribunal de Justiça da União Europeia — eis os vértices de um poder que decide sem se submeter ao escrutínio de um povo. A legitimidade não é democrática, mas funcional: a União decide “bem” porque decide “com competência”, porque tem “experts”, porque tem “estudos”. Mas quem define o que é “bem”? Quem decide os termos da competência? Quem fiscaliza os experts? O povo europeu, esse mito sem corpo nem voz, não entra na equação.
A União Europeia é, portanto, o lugar onde se inverteu a ordem clássica da soberania: em vez de os Estados fundarem uma união, é a união que reformata os Estados. Os tratados europeus funcionam como constituições não ratificadas: vinculam os parlamentos nacionais a políticas predeterminadas, sujeitam decisões orçamentais a metas comuns, impõem regras que nenhuma maioria eleitoral pode facilmente revogar. O caso grego, durante a crise da dívida, foi paradigmático: um povo inteiro disse “não” nas urnas, mas Bruxelas respondeu com um “sim” irrevogável. O referendo foi apenas uma pausa na austeridade.
Aquilo que temos, portanto, é uma transferência de soberania sem transferência de responsabilidade. Os líderes nacionais escondem-se atrás de “obrigações europeias” para justificar cortes, reformas ou imposições fiscais. A democracia é subcontratada. A impopularidade é externalizada. E assim o pacto entre governantes e governados vai-se dissolvendo numa névoa de relatórios e calendários comunitários. O cidadão não elege quem decide, nem pode demitir quem impõe. O seu único gesto político é o protesto infrutífero ou o voto simbólico num parlamento europeu que não legisla de facto.
A União Europeia, neste modelo, não é um império clássico — porque não conquista territórios — nem uma federação madura — porque não tem povo constituinte. É antes uma tecnocracia expandida, uma cúpula administrativa com pretensões normativas. E como toda a tecnocracia, vive do simulacro de neutralidade: os seus comissários não têm partidos, os seus pareceres não têm ideologia, os seus regulamentos não têm alternativa. Mas o facto de se apresentar como “apolítica” é precisamente o seu acto mais político.
Dir-se-á que tudo isto foi livremente aceite pelos Estados-membros. Mas o que significa “aceite” quando a pressão é feita sob chantagem económica? Quando se financiam campanhas de adesão com fundos europeus, quando se sancionam Estados desobedientes com cortes ou bloqueios, quando se condiciona o acesso a fundos a reformas estruturais que alteram profundamente o modelo social — o que resta da soberania senão um selo cerimonial? A adesão voluntária torna-se adesão extorquida.
A retórica da solidariedade europeia apenas esconde a assimetria de poder entre os Estados centrais e periféricos. A soberania não é apenas erodida; é hierarquizada. A França e a Alemanha têm direito ao déficit estratégico. Os pequenos Estados têm a obrigação da austeridade virtuosa. Os grandes bancos são salvos. As pequenas economias são auditadas. A soberania é selectiva — e, portanto, é privilégio.
Por isso, o projecto europeu, tal como hoje está desenhado, exige uma crítica profunda, não para ser destruído, mas para ser desmitificado. Já não se trata de um projecto comum de povos soberanos, mas de uma engrenagem institucional que sobrevive melhor quanto menos soberanias lhe resistirem. A verdadeira questão europeia deixou de ser o estar dentro ou fora da União — é se dentro dela ainda podemos ser donos do nosso destino.
Recuperar a soberania no contexto europeu não significa recuar para o isolacionismo, mas restaurar o princípio de que só há legitimidade política quando há capacidade efectiva de decidir com autonomia. Uma Europa de nações soberanas não é uma contradição: é uma necessidade democrática. Mas para isso, é preciso dizer o óbvio: uma união que exige obediência cega, que impõe regras sem voz, que apaga fronteiras sem fundar um povo — não é uma união, é uma simulação.
3. Soberania fiscal e monetária: o mito da convergência e a verdade da dependência
A perda de soberania raramente se anuncia em fanfarras. Não há decretos com brasões dourados, nem tanques a cruzar fronteiras. Há, isso sim, gráficos com curvas descendentes, relatórios de convergência, decisões técnicas ditas “inevitáveis”. E no centro desse processo silencioso está a renúncia ao controlo fiscal e monetário — os dois nervos centrais da autonomia de um Estado moderno. Um país que não pode determinar os seus impostos nem emitir a sua moeda já não é plenamente soberano: é um gestor subalterno da vontade alheia.
No caso europeu, a promessa da moeda única foi apresentada como um instrumento de convergência: os países do sul poderiam beneficiar da estabilidade germânica, e os países do norte ganhariam mercados estáveis para os seus produtos e capitais. A teoria era elegante, mas como em muitas fábulas da integração europeia, a prática revelou-se assimétrica. A convergência prometida tornou-se divergência estrutural. Os países mais frágeis perderam a capacidade de ajustar a sua economia através da desvalorização cambial e da flexibilidade monetária. E em troca receberam metas orçamentais rígidas, reformas impostas e vigilância permanente.
A independência do Banco Central Europeu (BCE), celebrada como garantia de estabilidade, tornou-se um dogma tecnocrático imune ao escrutínio popular. O BCE não responde a governos eleitos, nem a cidadãos. Decide com base em modelos macroeconómicos, projecções inflacionistas e pressões dos mercados. A sua missão não é a prosperidade de cada Estado-membro, mas a estabilidade da moeda — uma moeda que, não tendo dono político, acaba por ser capturada pelas conveniências do mais forte. Os juros sobem ou descem, não em função das necessidades de Lisboa ou Atenas, mas do humor de Frankfurt.
Este modelo cria uma divisão fundamental entre Estados de dívida soberana e Estados de dívida tutelada. A Alemanha pode emitir dívida sem grande risco de especulação. Portugal, Grécia ou Itália estão permanentemente sob ameaça de reacções adversas nos mercados. O resultado é uma transferência de soberania orçamental: quem quer emitir dívida deve convencer primeiro os mercados — e depois, implicitamente, o BCE. Não há autonomia fiscal sem margem orçamental. E não há margem orçamental sob uma moeda única desenhada sem união política.
Os Pactos de Estabilidade e Crescimento, os Semestres Europeus, os Programas de Ajustamento, os Planos de Recuperação e Resiliência — todos estes dispositivos transformaram a política orçamental interna numa extensão da política de contenção da inflação. A despesa pública é vigiada, os investimentos são avaliados por critérios de sustentabilidade financeira, as reformas estruturais são exigidas em troca de fundos. A política torna-se contabilidade. E o sufrágio universal, uma formalidade sem alcance real.
A dependência que daí resulta é mais profunda do que uma simples subordinação técnica – ela corrói a legitimidade interna. Governos eleitos com promessas de investimento público ou de justiça fiscal veem-se impedidos de cumpri-las por constrangimentos externos. Cria-se uma dissonância permanente entre o que se promete em campanha e aquilo que se executa no governo. Os políticos fingem governar; os burocratas fingem não mandar. No meio, o eleitorado afasta-se.
O euro, longe de ser um instrumento de coesão, funcionou como acelerador de desequilíbrios. Os países periféricos passaram a importar mais do que exportam, acumularam défices externos e viram os seus sectores produtivos fragilizarem-se. Sem possibilidade de ajustamento cambial, a única via de “competitividade” tornou-se a compressão de salários e o desmantelamento de direitos laborais. A famosa “austeridade expansionista” foi um eufemismo para dizer: empobreçam-se os povos para salvar a moeda.
O caso português é exemplar. Desde a entrada no euro, perdeu-se controlo sobre a moeda, sobre os juros, sobre as reservas. A política orçamental tornou-se prisioneira de metas externas e de agências de rating. A margem para uma política económica contra-cíclica desapareceu. Ficou a retórica europeísta como consolo simbólico. Mas perdeu-se mais do que ferramentas técnicas: perdeu-se a capacidade de decidir com base na realidade nacional.
Há quem acredite que tudo isto é o preço da integração e que a resposta será mais Europa — uma união fiscal, um governo económico comum. Mas essa proposta ignora a assimetria de interesses dentro da própria União Europeia. Uma união fiscal sem união política será apenas a formalização da tutela. Uma união política sem povo comum será um simulacro de democracia. E enquanto se espera por esse horizonte longínquo, a realidade continua a ser a de Estados que não podem decidir quanto gastar, onde investir, como tributar. Estados amputados da sua vontade.
Assim, recuperar a soberania fiscal e monetária não é um capricho nacionalista, mas uma exigência democrática. Significa devolver à deliberação política aquilo que nunca deveria ter sido expropriado pela gestão tecnocrática. Significa aceitar que o risco faz parte da liberdade — e que a estabilidade imposta de fora é, muitas vezes, apenas um outro nome para a servidão voluntária.
A moeda não é neutra. A dívida não é apolítica. O orçamento não é uma mera folha de Excel. São instrumentos de poder, de decisão, de justiça social. E um povo que os entrega sem resistência abdica, não apenas do seu presente, mas da sua possibilidade de futuro.
4. A soberania sanitária e o novo paradigma bio-administrativo
Durante séculos, a soberania assentava-se em dois pilares: o território e a autoridade sobre os corpos em caso de conflito — seja através da guerra, seja por meio da justiça criminal. O poder decidia sobre a vida e morte: quem podia matar, quem devia morrer, quem era punível. O Estado exercia o seu domínio por fora do corpo, ou sobre o corpo, mas não a partir de dentro.
Com o advento da biopolítica — conceito inaugurado por Michel Foucault e actualizado nas suas implicações mais sombrias por Giorgio Agamben —, a soberania desloca-se para um domínio mais insidioso: o da vida nua, do corpo gestionado, do ser humano transformado em vector de risco e unidade estatística.
A pandemia da COVID-19 não foi a origem desta mutação, mas recentemente comportou-se como um catalisador. De súbito, a gestão da saúde pública passou a sobrepor-se a todas as restantes dimensões da existência política: liberdades suspensas, direitos relativizados, deveres impostos. Não por imposição de um tirano, mas com o aval de peritos, agências sanitárias e instituições supranacionais. A obediência tornou-se uma virtude, e a dúvida — mesmo que científica — foi rotulada de negacionismo. O corpo deixou de ser sujeito político para ser tratado como possível ameaça bioestatística.
Este novo paradigma — que aqui designo como bio-administrativo — funda-se na tecnocracia médica, mas vai muito além da medicina: é uma fusão entre gestão, estatística, vigilância e narrativa. O risco sanitário substitui o risco político como fundamento da acção governamental. Os cidadãos tornam-se simultaneamente pacientes e suspeitos. A liberdade de movimento, de trabalho, de reunião e até de expressão passou a estar subordinada ao imperativo sanitário, gerido não por parlamentos mas por comités de crise.
Nada disto se mostra possível sem uma profunda mutação ideológica na percepção do bem comum. Em nome da saúde pública, aceitaram-se restrições impensáveis poucos meses antes. O confinamento compulsivo de saudáveis, o encerramento de escolas, a imposição de injecções periódicas, o rastreio digital de contactos, a segregação de não-vacinados — tudo isto foi normalizado, muitas vezes celebrado. As garantias constitucionais foram suspensas ou reinterpretadas à luz de uma urgência sanitária que passou a ser o novo estado de excepção.
Esta soberania sanitária não se exerce apenas sobre os corpos, mas sobre os dados dos corpos. A saúde digital, os certificados de vacinação, as plataformas de rastreio e os registos centralizados transformam o cidadão num fluxo contínuo de informação. E essa informação, longe de ser neutra, torna-se fundamento para decisões automatizadas: quem pode viajar, quem pode trabalhar, quem pode entrar num edifício, incluindo num restaurante ou num ginásio. A democracia transforma-se, assim, numa arquitectura condicional: os direitos tornam-se permissões.
A suposta neutralidade científica que sustenta as decisões é uma das maiores falácias deste novo modelo. O discurso técnico mascarou opções políticas, muitas vezes ideologicamente carregadas. A censura de alternativas terapêuticas, o monopólio narrativo das terapias genéticas catalogadas de vacinas, a criminalização de protestos — tudo foi justificado com base numa autoridade científica tão consensual quanto opaca. E quem ousou divergir, por mais qualificado que fosse, foi ostracizado, silenciado ou até perseguido judicialmente.
É neste contexto que a soberania sanitária revela o seu verdadeiro rosto: não é a saúde que comanda a política, mas a política que instrumentaliza a saúde para reforçar o seu poder. O corpo torna-se a última fronteira da soberania: um corpo disciplinado, injectado, rastreado, isolado, sacrificado se necessário. A medicina já não cura — administra. E o cidadão já não decide — consente, por vezes impelido a consentir mesmo sem compreender.
Este paradigma bio-administrativo tem ainda uma dimensão moral. A saúde passa a ser um imperativo ético, e quem o recusa é visto não como alguém com uma opção legítima, mas como um delinquente cívico. A vacinação ou a administração de um fármaco, por exemplo, torna-se um dever social, a máscara um sinal de obediência, o confinamento um acto de solidariedade. A política de saúde converte-se em liturgia, com os seus rituais, dogmas e heresias. E os apóstatas — os que questionam — são tratados como perigos públicos.
Esta nova forma de soberania é particularmente perigosa porque invisível e até desejada. Não exige polícias nem exércitos — basta uma aplicação, uma directiva sanitária, um boletim epidemiológico. A submissão não é forçada: é interiorizada. O cidadão exige ser controlado, pede que os outros sejam vigiados, denuncia infractores. A servidão é voluntária, porque se acredita estar a salvar vidas.
Mas o que se perde neste processo é incalculável: perde-se a ideia de que a liberdade é um valor em si, mesmo em tempos de risco. Perde-se o princípio de que o Estado existe para garantir direitos, e não para suspender vidas. Perde-se a distinção entre cuidado e controlo. E ganha-se uma sociedade mais segura, talvez — mas menos humana, seguramente.
É por isso defender a ponderação da soberania sanitária não é um apelo ao obscurantismo, nem uma recusa da ciência. É, pelo contrário, a exigência de que a ciência permaneça livre, que o debate permaneça aberto, e que a saúde nunca seja usada como cavalo de Tróia para destruir as liberdades que ainda nos restam. A soberania sanitária deve ser, acima de tudo, uma soberania cidadã — não um decreto de emergência perpétua.
5. Soberania energética e a ideologia da transição verde
Se outrora a soberania energética significava a capacidade de um Estado controlar as suas fontes de energia, vital para a sua independência económica e até política, gerir os seus recursos estratégicos e garantir o abastecimento em nome da autonomia nacional, o discurso contemporâneo — dominado pela retórica da transição verde — dissolveu essa noção num nevoeiro ideológico. Sob a aparência virtuosa do combate às alterações climáticas, assiste-se hoje à edificação de um novo sistema de dependências, mais difuso e tecnológico, mas não menos assimétrico e coercivo.
Durante o século XX, a soberania energética estruturava-se segundo os 4S clássicos: Security (Segurança), Sustainability (Sustentabilidade), Supply (Abastecimento) e Smartness (Racionalidade Tecnológica). Estes quatro princípios procuravam equilibrar as dimensões geopolítica, ambiental, económica e científica da energia: garantir fornecimento estável, reduzir a poluição – e não apenas a questão das emissões de dióxido de carbono, mas também a conservação de áreas sensíveis e a qualidade de vida das populações –, assegurar autonomia de recursos e aplicar a inovação com prudência.
Com a globalização digital e a financeirização da energia, contudo, este equilíbrio foi capturado por lógicas corporativas e tecnocráticas. O poder decisório passou dos Estados para oligopólios tecnológicos e financeiros, que controlam redes, algoritmos e fluxos de dados, substituindo a prudência política pela eficiência algorítmica. O apagão de Abril de 2025 na Península Ibérica veio demonstrar essas fragilidades.
O abandono progressivo dos combustíveis fósseis é hoje apresentado como um imperativo científico inquestionável, um dogma moral acima de qualquer divergência. Contudo, a substituição do petróleo (um produto demasiado precioso para ser simplesmente como combustível) e do gás natural por energias renováveis e mobilidade eléctrica não dissolve as lógicas geopolíticas da energia — apenas as transmuta. As torres eólicas, os painéis fotovoltaicos e as baterias de lítio não emergem do ar nem se alimentam do sol: dependem de cadeias de valor globais, assentes em matérias-primas críticas, tecnologias proprietárias e processos de extracção frequentemente violentos e ambientalmente agressivos.
A nova soberania energética não é nacional, mas corporativa. Aquilo que outrora era domínio das políticas públicas tornou-se mercado regulado por fundos de investimento, tratados climáticos e bolsas de carbono. A Europa, que antes edificara a sua segurança energética sobre uma base industrial diversificada, rendeu-se à ‘teologia da neutralidade carbónica’, aceitando como inevitável a dependência de semicondutores asiáticos, de lítio sul-americano, de cobalto africano e de turbinas chinesas. Em nome do clima, sacrificou-se a autonomia e até sectores ambientais relevantes como a preservação de habitats e da paisagem natural.
Não se trata de negar a necessidade de uma transição energética — mas de questionar o modo como ela é conduzida: verticalmente, sob hegemonia tecnocrática, fora do escrutínio democrático e do debate plural. E com pouco ênfase para a eficiência. A transição verde, em vez de projecto emancipador, tornou-se um processo pós-político, onde as decisões são impostas por agências multilaterais que definem metas, calendários e custos à revelia das comunidades. Qualquer dissidência é rapidamente considerada patológica: quem ousa criticar é rotulado de negacionista climático ou reaccionário energético, anulando-se o espaço para uma ecologia crítica e plural. Mimetiza-se o que se fez na pandemia.
A retórica verde oculta também a violência material da sua própria infraestrutura. A mineração intensiva de lítio, a expropriação de terras para megaparques eólicos e solares, a precarização laboral e os danos ecológicos são efeitos colaterais silenciados, apresentados como preço inevitável de um futuro limpo. Não há neutralidade quando os custos recaem sobre o Sul global e os benefícios se concentram no Norte financeiro.
Neste quadro, o conceito de soberania energética converteu-se em ornamento discursivo. Os Estados já não governam os seus recursos: executam agendas internacionais, medindo o êxito não pela resiliência dos cidadãos, mas pela adesão a metas de descarbonização definidas em conferências e gabinetes. A democracia energética cedeu lugar à governança tecnocrática, onde a legitimidade deriva de algoritmos, e não do voto.
Mais preocupante ainda é o uso do paradigma verde como nova gramática de austeridade. Sob o pretexto da sustentabilidade, impõem-se políticas regressivas: tarifas elevadas, proibição de veículos de combustão, taxação de carbono e imposição de obras coercivas de eficiência habitacional. Os ricos compensam com painéis solares e viaturas Tesla; os pobres pagam a factura da virtude climática. Assim, a transição verde corre o risco de reproduzir as desigualdades que prometia corrigir.
Há também uma dimensão simbólica nesta nova dependência. A bandeira ecológica tornou-se instrumento de legitimação política, substituindo a promessa de prosperidade pela retórica da sobrevivência. Os governos já não prometem direitos, mas metas ambientais; já não garantem bem-estar, mas salvação climática. A energia, outrora domínio da soberania, transforma-se em credo moral, onde a dúvida é heresia e a obediência é cidadania.
E, como em todas as cruzadas morais, os lucros concentram-se. Os fundos globais dominam as redes de distribuição, as multinacionais monopolizam a inovação, e as plataformas digitalizam e comercializam a pegada de carbono. O verde deixa de ser cor da terra: é o novo verniz do capital financeiro.
O verdadeiro desafio, portanto, não é recusar a transição energética, mas repolitizá-la. O combate às alterações climáticas não pode servir de cavalo de Tróia para a erosão da soberania e o agravamento das desigualdades. Uma autêntica soberania energética deve assentar em quatro princípios: diversidade de fontes, resiliência territorial, transparência dos custos e participação cidadã.
A dependência verde é, na verdade, sempre uma dependência; a soberania amputada é mera gestão da escassez com selo ecológico. Devolver à energia o seu estatuto de bem comum, e não de activo financeiro é, sim, a verdade emergência – e só uma cidadania energética consciente poderá converter o imperativo ambiental em instrumento de liberdade, e não em novo grilhão dourado da servidão tecnológica.
6. Soberania alimentar e a submissão aos mercados globais
A alimentação, por mais banal que pareça no quotidiano dos supermercados, é a forma mais íntima de dependência de um cidadão face ao seu Estado. A soberania alimentar, portanto, não é uma questão de agricultura nem de ambiente — é uma questão de poder. E, como acontece frequentemente na história dos impérios, a perda de controlo sobre os alimentos assinala a queda silenciosa da soberania.
No discurso político contemporâneo, a expressão “segurança alimentar” tornou-se uma espécie de calmante semântico, como se estivesse em causa uma mera classificação biológica. Tudo parece garantido desde que os lineares estejam cheios. Mas o que se omite neste conforto aparente é o seguinte: os alimentos chegam, mas a que custo? De onde vêm? Quem os produz? O que se adiciona? Quem os controla? E sobretudo: quem define o que comemos e como comemos?
A globalização dos sistemas alimentares criou uma estrutura em que as cadeias de produção são tão longas quanto opacas. Um tomate consumido em Lisboa pode ter sido produzido com sementes patenteadas por uma multinacional suíça, cultivado em estufas espanholas com mão-de-obra marroquina, embalado na Holanda e distribuído por uma cadeia sediada na Alemanha. Nada neste processo é soberano. Tudo é funcional a um mercado global onde as decisões são tomadas por empresas cotadas e intermediários logísticos. Os Estados limitam-se a assegurar que não haja protestos populares — ou, quando muito, no limite, que haja alimentos suficientes para as escolas e os quartéis.
Esta submissão é frequentemente disfarçada de modernidade. Fala-se em eficiência da globalização, em segurança no controlo alimentar, em produtividade, em livre comércio. Mas por trás desta retórica, oculta-se a verdade crua: a dependência alimentar da Europa — e de Portugal em particular — é estrutural, estratégica e crescente. Por exemplo, a produção nacional de cereais é anémica, com excepção do arroz, a balança comercial de bens alimentares é deficitária, e as políticas agrícolas são cada vez mais determinadas por directivas comunitárias negociadas entre gabinetes e lobbies, em Bruxelas, onde a terra é apenas uma abstração.
A Política Agrícola Comum (PAC), que foi frequentemente apresentada como um pilar de coesão europeia, tem funcionado sobretudo como um instrumento de uniformização e submissão dos sistemas produtivos nacionais. Sob o pretexto de eficiência e competitividade, a PAC impôs quotas, penalizações e modelos de financiamento que favorecem grandes explorações mecanizadas e penalizam o agricultor tradicional, aquele que, com o corpo e o saber, sustenta a fertilidade de uma comunidade. Em Portugal, a PAC contribuiu para a liquidação do sector pesqueiro e leiteiro tradicional, o abandono da cultura cerealífera e a reconversão forçada de zonas produtivas em áreas de conservação “passiva”, geridas por burocratas e organizações não-governamentais que vivem do culto do “reverdecer sem cultivar”.
Mas o problema não é apenas externo. A degradação da soberania alimentar é também cultural e institucional. A pressão regulatória, ambiental e sanitária sobre os pequenos e médios produtores tem conduzido à desertificação rural e ao colapso de estruturas locais de produção. A agricultura de proximidade é tratada como folclore ecológico, boa para feiras de fim-de-semana e relatórios de responsabilidade social. O modelo dominante é o da agricultura intensiva para exportação — ou da monocultura subsidiada —, gerida por operadores financeiros mais interessados em fluxos de capital do que em alimentos.
É nesta lógica que se impõe a ditadura do “custo por quilo” ou do “preço à saída da fábrica”, como se a alimentação de um povo devesse ser gerida com os critérios de uma cadeia de montagem. A qualidade nutricional, a resiliência do território, a justiça intergeracional ou a saúde pública tornam-se externalidades ignoradas. E quando surgem crises — guerras, pandemias, disrupções logísticas —, descobre-se que não há cereais suficientes, que os fertilizantes vêm todos de fora, que os circuitos de distribuição estão concentrados, que os preços disparam e que o país é apenas um entreposto.
A própria relação com os alimentos tornou-se precária e artificial. O saber culinário — que outrora garantia variedade, aproveitamento e saúde — foi substituído por uma dependência de alimentos ultra-processados, formatados para vício e longevidade de prateleira. A perda da soberania alimentar começa também na ignorância do que se come. E continua na renúncia voluntária a cozinhar, a plantar, a guardar sementes, a cuidar do solo e a conhecer o seu ciclo.
Mais recentemente, a subordinação alimentar assumiu contornos ainda mais inquietantes com a entrada em cena das novas narrativas tecnológicas: agricultura de precisão, carnes sintéticas, proteínas de insecto, agricultura vertical, alimentos geneticamente modificados. Tudo é apresentado como solução moderna e inevitável – e sempre com um selo científico. Mas quem controla estas tecnologias? Quem detém as patentes? Quem define as normas? A promessa de inovação serve, muitas vezes, para encobrir uma nova camada de dominação — agora biotecnológica — sobre os sistemas alimentares. A soberania, outrora exercida pela terra e pelas mãos, cede agora lugar ao algoritmo e à licença.
Estas novas formas de controlo alimentar têm ainda uma componente neocolonial. Os países do Sul global são, cada vez mais, tratados como “armazéns vivos” de terras aráveis, aquíferos e mão-de-obra barata. Os fundos soberanos, multinacionais alimentares e grandes investidores de tecnologia agrícola compram, em silêncio, milhões de hectares em África, Ásia e América Latina. Aquilo que aí se produz já não alimenta os povos locais — alimenta os mercados de capitais e as projecções de lucros dos fundos de investimento. E esta apropriação silenciosa da terra reverte-se, num dia, em chantagem alimentar sobre os que, nas cúpulas diplomáticas, dizem querer combater a fome no Mundo.
E não faltam novos sacerdotes deste culto alimentar: consultores do Fórum Económico Mundial, filantrocapitalistas entusiastas da agricultura sem solo, ecologistas que pregam o fim da pecuária e da cozinha tradicional, políticos que recitam metas de sustentabilidade sem nunca ter plantado um nabo. Todos dizem agir pelo bem do planeta, mas raramente pelo bem do cidadão concreto, que apenas quer pão digno, carne limpa, leite de verdade, preços justos e um campo vivo.
A soberania alimentar, em sentido estrito, não significa auto-suficiência integral – estamos muito preconizar políticas na linha da famigerada Campanha do Trigo que devastou campos agrícolas no Alentejo durante o Estado Novo. Significa, isso sim, a capacidade de um povo determinar o seu modelo agrícola, proteger os seus produtores, garantir o acesso justo aos alimentos e decidir, sem imposições externas, aquilo que come e o que recusa comer. Significa também saber dizer não à chantagem das sanções, aos diktats dos tratados de comércio, às imposições fitossanitárias que mascaram guerras económicas. E significa recusar a lógica que transforma a alimentação numa, em mais uma, mercadoria volátil ao sabor dos mercados de futuros.
Reabilitar a ideia de soberania alimentar como pilar de independência política é, por isso, uma prioridade. Um povo que não se alimenta a si mesmo não decide por si mesmo. Um Estado que não protege os seus produtores entrega-se, aos poucos, à servidão económica. E uma sociedade que aceita comer o que lhe mandam, não perde apenas um dos pilares da sua soberania – perde o último resquício de liberdade.
7. Soberania digital e o império dos algoritmos
A soberania, que outrora se media pelo controlo da moeda, do território ou das fronteiras, é hoje silenciosamente dissolvida nos cabos de fibra óptica, nos servidores remotos e nos centros de decisão algorítmica que orbitam acima da soberania clássica dos Estados. Aquilo a que se chama “transformação digital” é, na sua essência, uma operação de desmaterialização do poder, mas não da sua concentração. A materialidade do mundo político cedeu espaço à opacidade do ciberespaço, e a democracia passou a ser modulada por métricas, plataformas e inteligências artificiais que não prestam contas a ninguém — excepto aos seus accionistas. E são inalcançáveis aos cidadãos.
Quando se diz que os dados são o novo petróleo, diz-se mais do que se imagina. O petróleo serviu para alimentar a revolução industrial, mas também para cimentar hegemonias e alimentar guerras. Os dados não são diferentes. São matéria-prima, mas também instrumento de controlo. E os Estados que não controlam os seus dados, nem as infra-estruturas onde eles circulam, tornaram-se protectorados tecnológicos, mesmo que mantenham as cores da sua bandeira e os hinos da sua soberania.
O cidadão médio, iludido pela ubiquidade do digital, imagina-se mais livre por ter mais acesso à informação, mais meios de comunicação, mais serviços online. Mas esta aparente emancipação é, na verdade, uma nova forma de sujeição. A economia da atenção extrai da mente humana o seu rendimento mais cobiçado — o comportamento previsível. Através de sistemas de vigilância consentida, as grandes plataformas analisam padrões, antecipam decisões, moldam preferências e, a pouco e pouco, anulam a liberdade. A manipulação algorítmica não é ficção distópica — é prática corrente.
O modelo das plataformas é hoje a forma dominante de organização digital, e a sua arquitectura não é neutra. Foi desenhada para maximizar lucros por via da captura de dados, da modulação do comportamento e da intermediação de relações. A própria linguagem da rede — os gostos, as partilhas, os seguidores — transformou-se em sistema simbólico de legitimação, onde o mérito foi substituído pela visibilidade e a verdade pelo engajamento. O algoritmo substituiu o editor. E quando o algoritmo se torna a autoridade editorial, a censura deixa de ser um acto explícito: torna-se um desvio estatístico.
Não há aqui apenas um problema de concentração económica. Há um problema de concentração civilizacional. Nunca, em tempo algum, meia dúzia de empresas privadas teve tanto poder sobre a linguagem, a memória, a comunicação e a imaginação de biliões de seres humanos. E nenhuma destas empresas é europeia. O velho continente, ao abdicar da sua soberania digital, colocou-se numa posição de subalternidade histórica, à semelhança de colónias tecnológicas que importam ferramentas, lógicas e dependências, sem ousar construir alternativas.
Os governos, quando não colaboram, acobardam-se. Em nome da segurança digital, da inovação ou da luta contra o “discurso de ódio”, crimes de pornografia infantil ou abusos de opinião, aceitam mecanismos de vigilância e de filtragem de conteúdos que nunca passariam por referendo popular. Delegam nas plataformas privadas o policiamento da linguagem, entregam dados sensíveis a operadores externos e compram sistemas críticos a fornecedores estrangeiros. A soberania digital, entendida como a capacidade de um Estado garantir o controlo estratégico das suas redes, dos seus dados e das suas infra-estruturas, é sacrificada em nome da conveniência.
Durante a pandemia, este processo acelerou-se de forma brutal. Os passaportes sanitários digitais, os sistemas de rastreio, a monitorização de movimentos e a partilha compulsiva de dados médicos tornaram-se normalizados. A privacidade foi tratada como luxo burguês ou excentricidade conspirativa. Quem questionava os mecanismos digitais de controlo era silenciado, rotulado, banido. O que era provisório tornou-se estrutural. E as populações habituaram-se a não decidir, mas apenas a clicar.
Mas a perda de soberania digital não é apenas uma questão de governança técnica – é um problema filosófico. A substituição da mediação humana por sistemas automatizados implica uma nova ontologia do poder. O algoritmo não apenas executa uma ordem: interpreta, decide, antecipa. A inteligência artificial, mesmo quando limitada, actua como filtro da realidade e, por conseguinte, como poder constituinte. E se esse poder não é sujeito a controlo democrático, então temos uma nova forma de tirania — uma tirania sem rosto.
Repare-se como os sistemas de inteligência artificial já são usados para decidir sobre crédito bancário, admissões universitárias, prioridades de tratamento médico e medidas de vigilância policial. E como, perante decisões erradas ou discriminatórias, não há responsabilidade pessoal: o erro é do sistema, que não pode ser julgado, nem processado, nem removido por voto. Cria-se assim uma imunidade estrutural, onde os novos tiranos não usam uniforme nem ceptro, mas código e contrato de adesão.
Recuperar o conceito de soberania digital como parte integrante da soberania política é um dos desafios dos próximos anos. Isso implica exigir transparência algorítmica, limitar a concentração de plataformas, proteger dados sensíveis, reforçar infra-estruturas públicas de comunicação e, acima de tudo, promover uma cultura de autonomia tecnológica. Um país que não domina os seus sistemas digitais – e isso já se verifica, uma vez que, por exemplo, a ANACOM não tem intervenção diercta sobre as plataformas – está condenado a ser governado por entidades que não controla de facto por mais regulação e ameaças de multa que prometa.
Mais do que “inclusão digital”, o que mais falta é uma independência digital. Mais do que “competências digitais”, o que se precisa é de visão estratégica. A Europa, em particular, tem de decidir se quer ser uma colónia digital dos Estados Unidos e da China, ou se pretende construir uma civilização tecnológica própria, assente nos seus valores — incluindo o da liberdade.
E para isso, talvez seja preciso recusar o encantamento com a inovação pelo simples facto de ser nova. Nem toda a tecnologia é emancipadora. Nem todo o progresso é libertador. A soberania digital, enquanto condição de liberdade, exige não só engenharia, mas também coragem intelectual e vontade política. Exige dizer não ao servilismo tecnológico, e sim a uma nova ideia de civilização — onde os algoritmos não sejam senhores, mas servos.
8. Soberania institucional e o ocaso da legitimidade democrática
Uma instituição viva não se distingue de uma estrutura decadente por via de uma longevidade formal, nem pela pompa dos seus rituais, mas sim pela confiança que nela depositam os cidadãos que a sustentam. Por isso, uma democracia, enquanto arquitectura institucional, depende menos de sufrágios e mais de legitimidade. Mas essa legitimidade está hoje profundamente corroída no mundo ocidental — não por golpes de Estado, ou por riscos dessa natureza, mas por um longo processo de esvaziamento simbólico e captura funcional. Hoje, as instituições continuam de pé, mas muitas já não se têm de pé.
O apelo contemporâneo à “estabilidade”, à “transparência” e ao “progresso” transformou-se, paradoxalmente, num instrumento de legitimação da excepção política. Em nome da estabilidade, legitimaram-se na Europa governos tecnocráticos sem mandato popular directo, como na Itália de Mario Monti ou na Grécia de Lucas Papademos, ambos investidos em 2011 por via parlamentar e sob tutela da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu, quando o discurso da urgência financeira permitiu suspender a lógica representativa. Em nome da transparência, aceitaram-se decisões opacas de organismos supranacionais, que fixam directrizes políticas sem qualquer sufrágio. E, em nome do progresso, normalizou-se a imposição de políticas públicas — fiscais, sanitárias ou ambientais — por peritos não eleitos, cujo saber técnico se tornou uma nova forma de autoridade moral.
Esta mutação semântica — em que valores emancipatórios são invocados para restringir a deliberação colectiva — representa um dos traços mais insidiosos da modernidade política. O filósofo alemão Jürgen Habermas descreveu este fenómeno como a “colonização do mundo da vida”: o momento em que a racionalidade burocrática e económica subjuga a comunicação pública, substituindo o diálogo pelo imperativo técnico. A estabilidade e o progresso, outrora promessas de emancipação, converteram-se afinal em narrativas de contenção, justificando governos de excepção.
Em Portugal, esta inversão atingiu o seu ponto mais visível durante a intervenção da troika (2011–2014). Sob o pretexto da salvação nacional, impuseram-se reformas estruturais — cortes salariais, privatizações e desmantelamento de serviços públicos — sem mandato eleitoral e sob condicionalismos externos. As eleições mantiveram-se, mas a soberania material foi transferida para instâncias externas, num modelo que aparentava legalidade democrática, mas operava segundo lógicas de tutela. Um padrão semelhante reapareceu durante a crise pandémica, quando restrições severas de direitos fundamentais foram legitimadas por autoridades sanitárias e comités científicos, frequentemente imunes a escrutínio.
O pensador italiano Giorgio Agamben identificou neste tipo de situações a consolidação do “estado de excepção permanente”: um regime em que a suspensão temporária da norma se torna condição habitual do poder. E se outrora a excepção era uma resposta transitória ao caos, hoje ela ameaça ser a gramática da governação. A autoridade democrática dissolve-se na gestão de crises, e o cidadão é convidado a obedecer em nome da sua própria protecção.
Neste cenário, a crítica e a contestação social, que constituem a essência da cidadania, são frequentemente requalificados como desvios. Quem exige escrutínio, contesta consensos ou questiona a retórica da inevitabilidade é rotulado de “populista”, “negacionista” ou “antissistema”. Este mecanismo de deslegitimação cumpre uma função disciplinadora: neutraliza a divergência e restaura o monopólio interpretativo das elites políticas e mediáticas, ainda mais quando a própria comunicação social se encontra, cada vez mais, sequestrada financeiramente por grupos económicos associados ao poder político.
Contudo, o verdadeiro problema não se encontra na desobediência dos povos, mas na deslealdade das instituições face ao seu pacto fundacional. Como advertiu o pensador francês Pierre Rosanvallon, as democracias correm o risco de se transformar em “contrademocracias invertidas” — isto é, sistemas em que o voto permanece, mas o poder de decidir se esvai. As estruturas políticas tornam-se autorreferenciais, orientadas não pelo bem comum, mas pela autopreservação.
Em Portugal, este desvio tem-se manifestado na crescente delegação da decisão soberana em agências reguladoras, tribunais e peritos sob a forma de task forces ou comissões – supostamente independentes, mas quase sempre controladas –, cujos critérios escapam ao controlo público. Sob a aparência da competência técnica, esconde-se uma lógica de distanciamento democrático. O cidadão, reduzido a espectador, é convidado a confiar em vez de deliberar. E quando o consentimento substitui o juízo, o espaço público converte-se num ritual vazio.
O sociólogo alemão Ulrich Beck defendia que vivemos já na “sociedade do risco”, em que o medo se torna agora um método de governo. A antecipação do perigo — financeiro, sanitário, climático — serve de justificação para medidas extraordinárias: governa-se pelo alarme, e o medo converte-se em legitimidade.
A crise das democracias, portanto, não é uma crise de participação, mas de representação e responsabilidade. O desafio do nosso tempo é restituir sentido político às instituições, reconectando-as ao juízo cívico e à pluralidade de vozes que lhes dá legitimidade. A estabilidade não pode ser pretexto para abdicar da soberania; a transparência não pode servir de cortina à opacidade; e o progresso não pode impor-se por decreto. Enquanto o contraditório for tratado como heresia, a democracia será apenas um eco do poder, e não a sua medida. As democracias liberais do pós-guerra construíram-se sobre a ideia de representação, separação de poderes, garantias de direitos e controlo público da autoridade. No entanto, à medida que a globalização e o neoliberalismo se tornaram hegemónicos, essas instituições foram sendo adaptadas a uma nova realidade em que a política se subordinou à tecnocracia e o eleitor se transformou num espectador irrelevante.
A União Europeia é, neste ponto, um caso de estudo: o Parlamento não tem iniciativa legislativa, a Comissão não é eleita, o Conselho decide à porta fechada. A soberania institucional foi sacrificada à eficiência burocrática. Em simultâneo, os parlamentos nacionais foram-se tornando caixas de ressonância de partidos cartelizados, mais atentos às sondagens do que à soberania popular. A separação entre poder executivo e legislativo diluiu-se, a fiscalização perdeu vigor, e os poderes de controlo — como tribunais, entidades reguladoras ou órgãos de comunicação social — passaram a agir em simbiose com o poder, não como seu limite. O sistema deixou de ser um jogo de pesos e contrapesos e tornou-se um circuito fechado de legitimação mútua.
Na administração pública, a situação é igualmente preocupante. A lógica de “governança” substituiu a ideia de serviço público, transformando direcções-gerais em plataformas de execução de políticas externas ou interesses corporativos. A permeabilidade a grupos de pressão e fundações ditas “filantrópicas” compromete a independência decisória, e os organismos de supervisão são frequentemente habitados pelos próprios supervisionados, numa dança de cadeiras que anula qualquer aparência de imparcialidade.
Mas o mais grave é que esta erosão institucional decorre muitas vezes com o aplauso — ou a indiferença — da cidadania. Viciada no ruído mediático, absorvida por escândalos episódicos, anestesiada por políticas identitárias superficiais, a opinião pública deixou de exigir responsabilidade estrutural. Substituiu a crítica pela indignação – amiúde apenas nas redes sociais –, a acção pela denúncia moral, a participação pelo comentário. E as instituições, percebendo isso, adaptaram-se: tornaram-se mais performativas, mais mediáticas, mais decorativas.
No plano internacional, a subordinação das instituições democráticas a organismos multilaterais de contornos nebulosos acelerou a perda de soberania real. Decisões com impacto directo na vida dos cidadãos — como políticas sanitárias, fiscais ou ambientais — são frequentemente tomadas em fóruns onde não há representantes eleitos nem mecanismos de escrutínio. A democracia nacional torna-se uma ficção mantida por rotinas eleitorais, enquanto o essencial do poder escapa à deliberação popular.
Esta crise de legitimidade não é invisível: manifesta-se também em taxas crescentes de abstenção, desconfiança nas instituições, voto de protesto em partidos populistas e surgimento de movimentos alternativos — alguns genuinamente democráticos, outros perigosamente oportunistas. Mas a resposta institucional tem sido, quase sempre, reforçar os mecanismos de blindagem: criminalização da contestação (mesmo que apenas por palavras), censura disfarçada, reformas eleitorais que limitam a pluralidade, concentração dos media em grandes grupos, cooptação de movimentos sociais. Em vez de ouvir o clamor popular, o poder instituído procura abafar-lhe o eco.
E, contudo, mesmo assim há resistências. Há cada vez jornais de nicho, com linhas editoriais livres. Há plataformas jurídicas e académicas que desmontam narrativas oficiais e expõem as contradições normativas. Há cidadãos que, mesmo sem rede nem tribuna, insistem em escrever cartas, organizar debates, contestar decretos. São minorias — mas são esses elementos que preservam a ideia de que as instituições não são apenas mecanismos, mas formas de dignidade colectiva.
Se observarmos bem, a soberania institucional começa por uma ideia simples: a de que o poder deve prestar contas. E que não basta ser legal — é preciso ser legítimo. Ora, a legitimidade exige transparência, participação, pluralismo, justiça e memória. Quando as instituições se tornam opacas, exclusivas, dogmáticas, punitivas ou amnésicas, deixam de ser democráticas, mesmo que conservem os nomes e os edifícios. Passam a ser simulacros.
Recuperar a soberania institucional não é uma tarefa administrativa — é uma missão civilizacional. Exige reconquistar o valor da palavra dada, o peso da responsabilidade, a coragem da dissidência, a centralidade do bem comum. Exige que se diga, sem medo nem cálculo, que o rei vai nu — e que há mais dignidade na verdade solitária do que na mentira partilhada.