Etiqueta: Editorial

  • O Humor nos tempos do puritanismo: até o Diabo será censurado e encarcerado

    O Humor nos tempos do puritanismo: até o Diabo será censurado e encarcerado


    Vivemos em tempos perigosos para o pensamento. Tempos de lápis azul digital, de fogueiras morais disfarçadas de virtude cívica, de censores de toga que não se chamam Torquemada mas se julgam apóstolos da redenção social. Tempos em que, dos jornais aos tribunais, passando por grupos de puritanos ideologicamente diversificados — com o zelo puritano dos convertidos —, se decide quem pode ou não fazer humor, quem pode ou não rir e, sobretudo, de quem se pode ou não fazer troça.

    A condenação do humorista brasileiro Léo Lins a mais de oito anos de prisão, por fazer piadas, marca um momento histórico sinistro — não apenas no Brasil, mas no mundo civilizado que supostamente defende a liberdade. Léo Lins foi acusado de “racismo recreativo”, um neologismo ideológico que traduz uma ideia perigosa: a de que o riso é admissível apenas quando sancionado pelos dogmas do politicamente correcto. Um riso domesticado, asséptico, higienizado — como se a função do humor fosse reforçar consensos em vez de os questionar.

    Léo Lins

    O caso de Léo Lins não deve ser olhado de forma isolada. Representa o sintoma máximo de uma metástase que alastra: a ideia de que as palavras ferem como punhais, que piadas são crimes, que perpetuam preconceitos e estereótipos, que a ironia é perigosa se não vier acompanhada de uma cartilha de inclusão. O humor sempre foi uma forma de transgressão simbólica. A sua função, desde Aristófanes aos Monty Python, passando até pelo nosso Gil Vicente, não é confortar nem elogiar, mas desestabilizar. Rir do poder, das convenções, dos dogmas — e também das fragilidades humanas. O humor é o último reduto da liberdade de pensamento porque recusa ser domesticado. A democracia não pode querer domesticar o humor, qualquer que ele seja, mesmo que se trate de uma má piada.

    Mas essa liberdade está agora em risco porque se está a impor uma nova moral que recusa a transgressão. Cada grupo social, cada identidade, cada tribo autoproclamada ofendida exige imunidade à crítica e santidade de tratamento. E quando todos exigem ser tratados como santos, o mundo torna-se um imenso altar de porcelana — onde ninguém ousa mexer sob pena de blasfémia. A consequência é terrível: o humor deixa de ser arte e torna-se liturgia. Não se pode rir de um judeu, de um indígena, de um obeso, de um deficiente, de uma mulher, de um transexual — e não tarda, não se poderá rir sequer de um banqueiro, de um político, de um padre ou de um juiz. Porque todo o riso, mesmo o mais leve, será interpretado como violência simbólica.

    Este moralismo não nasce da bondade — nasce de um desejo de controlo. Da vontade de impor o silêncio àquilo que perturba, àquilo que ironiza ou rasga o véu da perfeição socialmente encenada. E o problema não é a necessidade de defesa das minorias. O problema é a sua canonização — e a transformação da crítica, do sarcasmo e da caricatura num acto sacrílego.

    Pergunto-me: que escreveria hoje Gil Vicente? Ou melhor: que fariam hoje a Gil Vicente, se escrevesse agora aquilo que escreveu no século XVI?

    O dramaturgo português, pai do teatro em língua portuguesa, escreveu há mais de 500 anos peças onde ridicularizava padres libidinosos, almocreves aldrabões, prostitutas sem escrúpulos, velhas devassas, judeus gananciosos, frades desonestos, corregedores corruptos, sapateiros trapaceiros e, sobretudo, a falsa santidade dos que se julgavam virtuosos. A sua obra-prima — Auto da Barca do Inferno — é um desfile de estereótipos: o frade leva consigo a amante Florença; o judeu tenta comprar indulgência; o sapateiro gaba-se da sua religiosidade enquanto vende calçado falsificado; o cavaleiro quer entrar no Céu porque morreu em combate, esquecendo-se dos seus pecados de soberba e opressão. É o julgamento universal, sim, mas feito com escárnio e maldizer.

    Praticamente todas as personagens vicentinas seriam hoje canceladas à primeira leitura. Representar o Frade seria tido como ofensa à fé católica. A Florença, exemplo flagrante de objectificação misógina. O Judeu, manifesto de antissemitismo. O Almocreve, caricatura abjecta de classe. A Velha do Auto da Cananéia, puro idadismo intolerável. A moça de A Sibila Cassandra, mais um caso de misoginia estrutural. Os pastores e vaqueiros, alvo de acusação por ridicularização grotesca das populações rurais. E, inevitavelmente, algum zelador académico denunciaria Gil Vicente por exercer “violência simbólica interseccional”.

    Aquilo que hoje passa por sensibilidade é, na verdade, censura travestida de virtude. A arte, incluindo a ficção, está a perder o direito de ofender. E até o humor está a perder o direito de errar. Porque todo o erro é lido como malícia, toda a sátira como agressão, toda a caricatura como opressão.

    É certo que há limites — sempre houve. Mas esses limites eram antes atribuídos pelo bom senso, pelo gosto, pela reacção do público — pela sociedade no seu todo, não por um tribunal inquisitorial. Quando um juiz define o que é aceitável no humor, o riso morre. E quando o riso morre, nasce o medo. O medo de escrever, o medo de representar, o medo de rir.

    Chegamos à conclusão de que Gil Vicente viveu, afinal, com mais liberdade do que os artistas de hoje. Escreveu as suas peças na transição entre a Idade Média e o Renascimento, quando Portugal ainda não conhecia a Inquisição formal — e mesmo depois desta surgir, o seu génio sobreviveu porque o ridículo era aceite como forma de crítica social. Hoje, porém, não vivemos um Renascimento, mas aparentemente uma nova Idade das Trevas, onde os censores não queimam livros — cancelam ou prendem pessoas.

    Eis a hipocrisia do nosso tempo: grita-se liberdade enquanto se ergue um muro de vigilância moral à volta de cada palavra. Dissimula-se a censura com o pretexto da inclusão. E, enquanto isso, o humor, que é um acto de coragem, torna-se um acto de risco judicial.

    Os novos inquisidores têm medo do riso porque sabem que ele desmonta as verdades absolutas. Rir de alguém não é odiá-lo — é reconhecê-lo como humano. A sátira aproxima mais do que afasta. Vivemos um tempo de pseudohipocriasia: essa mistura tóxica de hipocrisia e exigência histérica de perfeição, que quer proteger os indivíduos do mundo em vez de os preparar para ele.

    Se Léo Lins fosse condenado por incitar à violência, à perseguição, ao ódio concreto, não haveria polémica. Mas foi condenado por palavras ditas num espectáculo de comédia — por piadas. E isso deve aterrorizar-nos, porque o que hoje se aplica ao humorista, amanhã aplicar-se-á ao cronista, ao romancista, ao jornalista, ao historiador.

    O problema do nosso tempo não é a ofensa — é a intolerância a qualquer dissonância. Não é a violência das palavras — é a fragilidade de quem se recusa a ouvi-las. E, quando a fragilidade se transforma em arma de poder — então sim, já não rimos. Trememos.

  • O valor do jornalismo, o preço da independência

    O valor do jornalismo, o preço da independência


    Numa postura de transparência que sempre me impus no início do projecto do Página Um, em finais de 2021, apresentamos e divulgamos os resultados financeiros de 2024da microempresa que gere este jornal. Quando os vejo, e tendo presente tanto os contratos despesistas do Estado como os balanços catastróficos das grandes empresas de media em Portugal, não posso deixar de sorrir — mas é um sorriso com amargura.

    O PÁGINA UM conseguiu, em 2024, mais um milagre. Sem publicidade. Sem parcerias comerciais. Com acesso livre a todos. Recebemos mais de 61 mil euros em donativos de leitores generosos e conscientes. Parece muito dinheiro — e é, tendo em conta o panorama actual da imprensa —, mas não é suficiente. O nosso orçamento mensal ronda os 5.000 euros, valor que cobre os custos operacionais do site, comunicações, despesas logísticas, renda da redacção, e o pagamento — em montantes que envergonhariam qualquer tabela sindical — de dois jornalistas fixos. Não há desperdício. Não há luxos. Não há salários dourados.

    man in white t-shirt sitting beside woman in white t-shirt

    Todos os dias, ao consultar o extracto bancário do PÁGINA UM, agradeço em silêncio cada apoio que surge. Só a falta crónica de tempo — esse tempo que se gasta a investigar, confirmar, redigir, editar — impede que cada contributo tenha o agradecimento personalizado que merece. Mas todos os nossos apoiantes sabem que este jornal não seria possível sem eles. E sabem também que nunca fizemos dívidas, nunca apresentámos prejuízo.

    Com um capital social de apenas 10 mil euros, a empresa que detém o PÁGINA UM cumpre religiosamente todas as obrigações fiscais e sociais. O único valor registado no passivo de 2024 referia-se ao IRC — que, aliás, já está pago. Temos orgulho nesse rigor. Somos pequenos, sim, mas somos íntegros.

    Esse rigor é também o que nos permite apontar o dedo à promiscuidade e à irresponsabilidade reinantes noutros lados da imprensa. Veja-se o caso paradigmático da Trust in News. Com o mesmo capital social de 10 mil euros, conseguiu, não se sabe bem como, manter uma operação com mais de duas centenas de empregados — mas acumulou também um passivo superior a 30 milhões de euros, dos quais metade são dívidas ao Fisco e à Segurança Social. E o seu dono, Luís Delgado, continua serenamente a acumular dívida, enquanto atira a credibilidade do jornalismo português para a sarjeta.

    white and black typewriter on table

    No PÁGINA UM, recusamos esse caminho. Preferimos não crescer a qualquer preço. E essa decisão tem custos. Apesar de tudo aquilo que conseguimos construir nos últimos três anos — credibilidade, impacto, notoriedade — há uma frustração que persiste nos números. Temos hoje cerca de meio milhar de apoiantes regulares, que nos financiam com o que consideram justo e possível. É, na prática, a aplicação espontânea e honesta do conceito económico de willingness to pay — a disposição individual a pagar por um bem imaterial que se reconhece como valioso.

    Esse princípio, aliás, é uma viagem à raiz do mais puro e nobre jornalismo: um contrato de confiança entre quem informa e quem quer ser informado com rigor, isenção e coragem. Não temos paywalls. Não exigimos quotas obrigatórias. Confiamos no julgamento dos leitores. E por isso cada euro doado vale mais do que mil de publicidade: é uma demonstração de respeito mútuo.

    Mas os desafios são reais. O crescimento das visitas — temos tido sistematicamente mais de 300 mil acessos mensais, chegando nalguns meses a ultrapassar os 400 mil — traz consigo uma exigência acrescida. Chegam-nos denúncias sérias, sugestões fundamentadas, propostas de investigação com potencial noticioso. E nós, por falta de meios humanos, por absoluta escassez de tempo, não conseguimos sempre responder. Sabemos o quanto isso é frustrante para os leitores. É também frustrante para nós.

    letter wood stamp lot

    Estamos, pois, num dilema. Não queremos desarmar. Mas temos consciência de que será cada vez mais difícil sustentar um projecto que se recusa a vender a alma, mas que está a exigir-me os limites. Precisamos de encontrar formas complementares de financiamento, para conseguir aumentar uma redacção que tem limites físicos, sem ceder um milímetro nos princípios que nos trouxeram até aqui. E a todos os que nos leem, vos deixo uma garantia: no dia em que sentir que a independência jornalística do PÁGINA UM está em risco de ser trocada por sobrevivência, será também o dia em que encerrarei este projecto.

    Mas esse dia não chegou. e nem quero que chegue — se continuarmos a merecer a confiança dos nossos leitores. Por isso, este é também um apelo: continuem connosco. Ajudem-nos a resistir. Acreditem que vale a pena fazer jornalismo livre, mesmo num país pequeno e com tantos interesses instalados. E saibam que, enquanto tivermos forças, estaremos aqui. Porque há coisas que ainda precisam de ser ditas. E, mais importante ainda, há verdades que ainda precisam de ser contadas.

    Obrigado a todos.

    Pedro Almeida Vieira

  • Gouveia e Melo: um populista de farda como epitáfio da democracia

    Gouveia e Melo: um populista de farda como epitáfio da democracia


    Portugal vive hoje sob um regime político que se apresenta como democrático, mas que já não o é. Persistem as eleições, os parlamentos, os jornais, os partidos, os discursos inflamados na Avenida da Liberdade para comemorar o 25 de Abril. Não há perseguições nem presos políticos. Mas falta-lhes todo o resto. Falta já a substância.

    A democracia portuguesa – e, por extensão, a de toda a União Europeia – tornou-se um teatro de sombras, onde os actores se movimentam obedientes a um guião traçado por interesses supranacionais, alheios à vontade popular. A liberdade política esvai-se sem tiros nem quarteladas, numa erosão subtil, mas implacável, em que o cidadão comum é reduzido a figurante.

    Gouveia e Melo com Isaltino Morais.

    Tal como em Matrix, os portugueses continuam a acreditar que vivem numa democracia porque ainda votam, ainda discutem política, ainda protestam de vez em quando. Mas já não mandam. Já não decidem. Já não influenciam. O poder efectivo – aquele que determina o rumo da Economia, os modelos de governação, os critérios de financiamento, as regras sociais, os limites da acção individual e colectiva – reside noutras mãos. Mãos frias, cinzentas, instaladas em Bruxelas, Estrasburgo e Frankfurt. Mãos de burocratas não eleitos, ou eleitos por cliques governamentais sem qualquer representação directa de vontades nacionais. A Comissão Europeia, hoje desprovida de qualquer sentido de solidariedade ou humanismo, tornou-se uma instância autocrática que olha para os cidadãos como carne para canhão, peças sacrificáveis num tabuleiro de xadrez onde só importa proteger o rei e os bispos.

    Onde antes se vislumbrava um projecto de desenvolvimento económico e social, temos agora um modelo de gestão tecnocrática e autoritária, que invoca a “governança” para justificar a opressão fiscal, a vigilância digital, a neutralização da dissidência e o esvaziamento do Estado-Nação. Em nome da estabilidade, da transição ecológica, da saúde pública ou da “resiliência”, tudo é permitido – menos resistir.

    A comunicação social mainstream, falida e dependente cada vez mais do ‘oxigénio’ das corporações e do Estado – porque os seus clientes tradicionais, os leitores, já não lhe concedem a credibilidade e o valor económico de outrora –, traiu os seus princípios. Neste novo cenário, deixou de ser watchdog para ser o petdog, abanando a cauda a cada migalha do poder.

    Portugal, outrora nação soberana, é hoje um protectorado sem identidade política – mais submisso aos ditames dos comissários europeus do que o foi à Coroa espanhola entre 1580 e 1640. A diferença é que, ao menos, o domínio filipino não disfarçava a sua natureza. Hoje, os nossos dirigentes sorriem, assinam, bajulam e até agradecem por sermos tutelados. E não são apenas os burocratas estrangeiros os culpados: são, sobretudo, os nossos próprios políticos, que cedo perceberam que em Bruxelas há mais poder, mais visibilidade e melhores poisos do que em São Bento. De Durão Barroso a António Costa, temos assistido a uma sucessão de ambiciosos que trocaram a lealdade à pátria pela ascensão nas hierarquias internacionais. Portugal serve já apenas como trampolim.

    E, no entanto, os tempos difíceis não surgem apenas do exterior. A deriva antidemocrática alastra também no plano interno, disfarçada sob novas roupagens. Se muitos se escandalizam com o Chega – e bem, diga-se, pois a retórica populista não oferece soluções, apenas ressentimentos –, poucos se apercebem de que o verdadeiro risco está na emergência de uma nova direita pretensamente respeitável, que nasce das borralhas de um antigo PSD e CDS e que se tenta reabilitar à boleia de uma figura tão popular quanto perigosa: o Almirante Gouveia e Melo.

    Há quem trema com os apoiantes do Chega. Eu tremo tanto ou mais com os que se juntam, discretamente, em redor de Gouveia e Melo. Começa-se pelo novo BFF (best friend forever) do Almirante: Isaltino Morais, o velho cacique que gere Oeiras como um paxá num feudo medieval. Junte-se-lhe Rui Rio, o ex-presidente do PSD, agora mandatário da candidatura a Belém, com contas a ajustar com os seus ‘fantasmas’ que o impediram de ser primeiro-ministro. Adicione-se ‘senadores’ reformados do PSD ou derrotados do CDS, bem da vida por terem aproveitado da rede de contactos políticos uma existência inteira, mas saudosistas das luzes da ribalta, como Ângelo Correia, António Martins da Cruz e Francisco Rodrigues dos Santos. Esta frente discreta, mas não menos inquietante, de figuras em busca de redenção ou vingança compõe um coro de sombras que encontra em Gouveia e Melo uma âncora, um novo D. Sebastião vestido de almirante. É isso que tentam vender.

    Gouveia e Melo com Rui Rio.

    Aliás, de entre os sete fundadores e membros da direcção de apoio ao AlmiranteHonrar Portugal, que curiosamente repete uma denominação com laivos de Estado Novo de um grupo de pensamento do Chega no Facebook –, não é de admirar que haja quatro especialistas em marketing, porque Gouveia e Melo é um produto apenas com embalagem: Carlos Sá, Catarina Santos Cunha, Manuel Vaz e Tiago Mogadouro. De facto, bem precisam de vender um senhor que de carisma tem zero, sem um pensamento teórico, político ou social minimamente estruturado sobre assunto algum, que lê o teleponto como um boneco de cera – talvez seguindo as recomendações de Tiago Mogadouro, que é director-geral do Museu Madame Tussaud, em Nova Iorque.

    Mas mais preocupante ainda é ver neste grupo avançado de lugares-tenentes de Gouveia e Melo – que se tornou conhecido por ter sido o director logístico de um produto (vacinas contra a covid-19) durante três trimestres – uma constitucionalista, Teresa Violante, que já defendeu, sem pudor, que houve, sim, atropelos constitucionais durante a pandemia, mas que tal problema se resolve facilmente: basta mudar a Constituição. Talvez também queira mudar a Constituição para que os atropelos cometidos por Gouveia e Melo, na sua sanha justiceira a bordo do NRP Mondego, se tornem legais.

    É este o perigo de se embarcar em populistas – que é exactamente aquilo que Gouveia e Melo é. Se a lei incomoda, muda-se a lei. Se os direitos atrapalham, cortam-se os direitos. Tudo pela eficácia – e ele já defendeu ser contra a burocracia, porque, hélas, promove a corrupção. A democracia, com os seus equilíbrios, os seus freios e contrapesos, os seus incómodos, é hoje vista como um obstáculo.

    O problema da crise dos partidos tradicionais, que fizeram crescer os populismos e os extremismos, faz também ‘nascer’ este tipo de figuras que, tal como André Ventura, querem mudança – mas essa mudança vem acompanhada de veneno. Em vez de vir revestida de ideias, vem mascarada com palavras como “modernização”, “responsabilidade” ou “realismo”. Traz, na verdade, um conteúdo bem mais sinistro: menos democracia, mais controlo.

    Gouveia e Melo é o rosto ideal para esta operação – e será talvez o mais desejado aliado, mesmo que involuntário, de André Ventura. Se Gouveia e Melo for eleito para Belém, aí teremos um populista sem ideias – ou com ideias feitas por outros –, mas com farda e voz grave. Um produto de marketing, com teleponto e conselheiros. Um símbolo de autoridade artificial, que seduz quem anseia por ordem, mas não percebe que está a abrir caminho ao autoritarismo. A ascensão de Gouveia e Melo não representa apenas um risco político: representa um sinal de desespero democrático. Quando o povo deposita as esperanças num almirante vazio de pensamento, é porque já perdeu a confiança nos partidos, nas instituições, na democracia em si mesma.

    Portugal vive, pois, um tempo de simulacro: simulacro de soberania, simulacro de debate, simulacro de escolha. E como em todos os simulacros, o espectáculo continua – com Gouveia e Melo em Belém seguirá, pois, em agonia, já sem alma, sem sentido e sem verdade.

  • Portugal apaga o português na Expo 2025 Osaka: uma vergonha diplomática, um acto de ignorância desmedida

    Portugal apaga o português na Expo 2025 Osaka: uma vergonha diplomática, um acto de ignorância desmedida


    Na Exposição Universal de Osaka, em pleno 2025, sobre a qual hoje escrevi para falar dos gastos, fiquei estupefacto com uma constatação: o pavilhão de Portugal optou por apresentar-se ao mundo sem uma única mensagem em português. Nas projecções que “recebem” os visitantes, apenas se lêem mensagens em japonês e em inglês. Presumo que a palavra Portugal apareça como Portugal porque assim se escreve em inglês.

    Esta aberração num projecto de quase 26 milhões de euros — que é o que custará aos cofres públicos a presença portuguesa em Osaka — não se trata de um lapso trivial. Trata-se de uma vergonha. Uma vergonha diplomática. Uma vergonha cultural. E, sobretudo, um acto de ignorância desmedida da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) sobre a própria História de Portugal — precisamente no Japão, um país onde o português foi, durante décadas, a língua da diplomacia, da fé, do comércio e da ciência.

    Ricardo Arroja e as “alminhas” da AICEP podem não saber da riqueza histórica entre Japão e Portugal, nem sempre pacífica quando mundos se contactam pela primeira vez. Mas, se tiveram mais de 13 milhões de euros para montar um edifício com 10 mil cordas, talvez por meia dúzia de patacas (não as de Macau, que isso é China) pudessem contratar um historiador.

    Se tiveram 200 mil euros para contratar a Ernst & Young para lhes fazer a contabilidade, poderiam ter contratado a decência para lhes explicar que, quando se promove Portugal, só se promove com a língua portuguesa, porque, como escreveu bem Fernando Pessoa (ou Bernardo Soares), “minha pátria é a língua portuguesa”.

    Num país que se envergonha pelo que faz no presente, parece agora querer vilipendiar o passado. Quer apagar da História Universal que o primeiro grande contacto da Europa com o Japão moderno foi feito por intermédio dos portugueses. Em 1543, três navegadores — António da Mota, António Peixoto e Francisco Zeimoto — ancoraram nas ilhas nipónicas, dando início a uma relação de trocas e fascínio mútuo que marcaria profundamente ambos os povos.

    Fernão Mendes Pinto, na sua Peregrinação, misto de verdade e ficção, reclama para si um lugar nesse feito inaugural, descrevendo com minúcia a sua chegada ao Japão, o assombro dos locais perante as armas de fogo portuguesas e o espanto recíproco perante os costumes e a cultura. É dele um dos primeiros retratos europeus do Japão — colorido, cheio de admiração e revelador de um encontro entre civilizações.

    Na sua narrativa, refere a entrega de espingardas a um senhor feudal japonês e o impacto profundo que esse gesto teve, ao ponto de modificar para sempre o modo como os japoneses concebiam a guerra. Mais do que uma crónica de aventuras, a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto é um testemunho vivo da presença portuguesa no Japão do século XVI. E é, também, um monumento literário que dá voz à nossa língua nas lonjuras do Oriente.

    Recorde-se ainda que Francisco Xavier, missionário jesuíta português, foi um dos primeiros evangelizadores do arquipélago. A cidade de Nagasáqui foi doada aos jesuítas portugueses. A primeira gramática da língua japonesa foi redigida por um português. A imprensa de tipos móveis foi introduzida por missionários portugueses. A língua portuguesa foi, até ao século XVII, o veículo oficial da comunicação dos japoneses com o mundo. Que país mais poderá reivindicar tal feito no Japão?

    E como poderemos honrar, com esta postura, esse insigne vulto que foi Wenceslau de Moraes, que nos deixou um legado sobre o Japão em tantos escritos? Logo ele que, por lamentável ironia, até foi cônsul em Osaka…

    E, no entanto, o Portugal de 2025 apresenta-se no Japão ignorando a sua própria língua — como se o português fosse um fardo do passado, um acessório irrelevante, uma relíquia a esconder. Como se a língua de Camões e de António Vieira, de Eça e de Pessoa, não merecesse aparecer agora num dos países que primeiro a escutaram no Extremo Oriente. Este apagamento não é casual. É sintoma de um Estado que já não se entende como Nação, que prefere o inglês da conveniência ao português da identidade.

    Numa era em que o multiculturalismo é brandido como bandeira, Portugal é dos poucos países que insiste em esconder a sua Cultura para parecer moderno. Mas não há modernidade possível sem memória. E não há presença internacional digna quando se abdica da própria língua — sobretudo quando essa língua é um dos maiores legados da presença portuguesa no Japão.

    O pavilhão português em Osaka já não é apenas um edifício; é uma metáfora da forma como o Estado português se vê a si mesmo: envergonhado da História, ignorante do seu papel no Mundo, submisso aos ditames de uma comunicação global onde tudo se quer nivelado, uniformizado, sem raízes.

    Não sou dado a sentimentalismos patrioteiros nem a arroubos diplomáticos, e muito menos me comovem cortejos de bandeiras ou salamaleques culturais. A minha pátria — como bem disse Pessoa — continuará a ser a língua portuguesa. Não me indigno demasiado com quem tropeça no português por ignorância — isso tem cura. Mas o que já me enoja é a opção consciente de apagamento da língua que nos define, como se se varresse Camões para debaixo de um tapete institucional ou se riscasse Pessoa das vitrinas da História.

    Com a indiferença burocrática dos que não percebem que se pode vender um país em silêncio, bastando para isso omitir-lhe a fala, a AICEP não cometeu apenas um deslize administrativo — trata-se de um acto simbólico de rendição cultural. E a rendição, quando feita sem disparar um só alfabeto, é ainda mais vergonhosa — porque já nem é traição: é desistência.

  • Lisboa não é Portugal: como a cegueira elitista urbana alimenta a ruptura politica no país real

    Lisboa não é Portugal: como a cegueira elitista urbana alimenta a ruptura politica no país real


    Mais do que a confirmação de não ser necessária a ética para se ser primeiro-ministro em Portugal – com a vitória em minoria (39% do Parlamento) de Luís Montenegro –, as eleições legislativas de ontem deixaram claro que o país político que habita a cidade de Lisboa está cada vez mais desligado do restante território nacional. A velha máxima “Portugal é Lisboa, e o resto é paisagem” já não tem graça — tornou-se um diagnóstico clínico da arrogância das elites urbanas, políticas e mediáticas, sobretudo à esquerda do Partido Socialista, que vivem encerradas nas suas redomas ideológicas, incapazes de compreender os sinais de desconforto e insatisfação que se acumulam há anos fora da capital política e mediática.

    A evolução entre os resultados eleitorais de 2024 e 2025 no concelho de Lisboa e no país – e mesmo na Área Metropolitana de Lisboa – é reveladora dessa dissonância. E não tanto pelo chamado Bloco Central, que governa alternadamente desde 1975, e que pragmaticamente não são assim tão diferentes na praxis política. Na capital, é certo que estas forças partidárias desceram, no seu conjunto, de 58,52% no ano passado para 54,95%, mas não fogem muito do desempenho nacional: no ano passado, o Bloco Central registou 56,84%, enquanto este ano ficou, por agora, nos 56,10%.

    Mariana Mortágua, ontem a votar: um hara-kiri político quando se olham para os problemas do país com ideologite. Foto: BE

    No caso do Chega, a sua votação no concelho de Lisboa é francamente pior do que no global do país. No ano passado, o partido de André Ventura teve apenas 11,73% na capital, quando teve 18,07% no país (diferença de 6,34 pontos percentuais); ontem, contabilizou 14,53% em Lisboa e 22,56% no país (8,03 pontos percentuais).

    A grande diferença está no facto de, em Lisboa, existir uma forte presença dos partidos da ‘esquerda alternativa’ – a denominação que prefiro; ou ‘radical’, como muitos lhes chamam –, ou seja, no Livre, Bloco de Esquerda e PCP. Estes partidos, e o seu eleitorado urbano, conseguiram suster o crescimento da simplificadamente chamada ‘extrema-direita’ sem se aperceberem das mudanças sociais, dos desafios, das necessidades do país, porque já não saem sequer das suas freguesias e da sua bolha. Atacam com eficácia o ‘papão da extrema-direita’ que gravita nos media, mas não criaram condições para atacar os problemas sociais e económicos que alimentam o dito ‘papão’.

    Senão vejamos: no concelho de Lisboa, o Chega continua com ‘dificuldades’ de penetração, porque a ‘esquerda alternativa’ mantém os seus bastiões. Nas eleições de ontem, no seu conjunto, Livre, Bloco de Esquerda e PCP conseguiram 15,76%, superando os 14,53% do partido de André Ventura. Repetiram 2024: Livre, Bloco de Esquerda e PCP tiveram na capital 16,25% dos votos; o Chega ficou então pelos 11,73%.

    Luís Montenegro, vitória com 39% dos deputados no Parlamento, confirma que a ética se afastou definitivamente da política. Foto: PSD.

    No entanto, Lisboa é um excelente exemplo do falhanço da ‘esquerda alternativa’ – porque do Bloco Central não se pode esperar muito perante o esgotamento de 50 anos de ‘serviços’ prestados à Nação. Achar que as questões de segurança e de imigração – os bastiões do Chega – são falácias e meras percepções, ou que são discursos xenófobos ou racistas, encerrando-se o tema colocando-o como tabu, foi um dos erros crassos da esquerda.

    E basta olhar para algumas freguesias, colocando uma singela pergunta: qual a razão para que, mesmo em Lisboa, na elitista freguesia de Belém, o Bloco Central tenha contabilizado 59,78% e o Chega apenas 9,95% (ficou em quarto, atrás da Iniciativa Liberal), mas em Marvila o partido de André Ventura tenha vencido com 31,09%, tendo o Bloco Central registado apenas 47,08%? Ou então, como é possível a ‘esquerda alternativa’, tradicionalmente mais preocupada com os injustiçados, conseguir menos eleitores na ‘marginalizada’ Marvila (10,96%) do que nas abastadas freguesias de Belém (12,91%), Campo de Ourique (15,71%) e Avenidas Novas (14,21%)?

    O fenómeno de perda de noção do país por parte de uma certa clique política, social e da comunicação social lisboeta adensou-se com a crescente endogamia profissional, cultural e ideológica. Os jornalistas e opinion makers vivem e trabalham nos mesmos bairros, frequentam os mesmos círculos sociais e partilham códigos morais e linguísticos que os afastam da maioria da população. Esta homogeneidade de visões faz com que, mesmo sem má-fé, olhem para o país a partir de uma lente distorcida. Incapazes de escutar o que se diz nas ruas de Marvila, nos subúrbios de Sintra ou nas praças de Beja, produzem análises e manchetes que apenas confirmam o que já pensavam antes de sair da redacção — se é que saem.

    Rui Tavares: Livre reforçou a sua presença no Parlamento num contexto de perda de influência da ‘esquerda alternativa’, e ganhando votos sobretudo nas zonas mais elitistas. Foto: Livre.

    Os resultados estão agora à vista. Basta atravessar o Tejo ou afastar-se alguns quilómetros do Marquês de Pombal para ver como o país já está divorciado de Lisboa. No próprio distrito da capital, o Chega foi o partido mais votado em cinco concelhos: Alenquer, Azambuja, Sintra, Sobral de Monte Agraço e Vila Franca de Xira — este último com mais de 26% dos votos. Ou seja, a escassos 30 minutos da capital, o Chega ultrapassa largamente os 14,5% obtidos no concelho lisboeta, chegando em alguns casos a mais do dobro da sua expressão na cidade.

    No distrito de Setúbal, o cenário é ainda mais paradigmático: o Chega venceu o distrito e foi o partido mais votado na Moita, Montijo, Palmela, Seixal, Setúbal, Sesimbra e Sines. São territórios urbanos e suburbanos densamente povoados, com historial de voto tradicionalmente à esquerda, agora convertidos em bastiões de um partido que tem como bandeiras a segurança, a imigração e o combate à corrupção. O Chega venceu também em Faro – como já ocorrera no ano passado, o que mostra que não foi um acaso –, em Portalegre e até em Beja. Não é o “Portugal profundo” que está a mudar — é o país metropolitano não lisboeta que se revolta contra uma elite urbana que o ignora sistematicamente.

    É aqui que reside o problema. A comunicação social, enraizada quase exclusivamente em Lisboa, e que tem como estratégia brandir o ‘bicho-papão’ da ‘extrema-direita’, continua a olhar para o país com lentes deformadas. Ignora ou menospreza os temas que verdadeiramente mobilizam milhões de eleitores, sobretudo fora dos grandes centros urbanos mais ricos. Pior: quando esses temas emergem com força eleitoral — como a imigração e a segurança — são imediatamente classificados como “discursos de ódio”, “populismo” ou “alarmismo”. Esta resposta reflexa, moralista e simplificadora não só revela uma profunda incompreensão da realidade, como também contribui para o crescimento do fenómeno que se pretende combater.

    Apenas três anos depois da mairia absoluta de António Costa, em Janeiro de 2022, o Partido Socialista tem o pior resultado das últimas quatro décadas e arrisca nem sequer liderar a Oposição. Foto: PS.

    É um erro crasso da esquerda política e comunicacional pensar que pode derrotar o Chega silenciando as suas bandeiras. A segurança e a imigração não são fantasmas inventados por agitadores — são preocupações reais, mesmo que nem sempre sustentadas por estatísticas. E, em política, como se sabe, as percepções são quase tão relevantes como os factos. Quando uma família em Loures sente medo de sair à noite, ou quando um trabalhador rural no Alentejo vê os salários a baixar devido à exploração de mão-de-obra estrangeira em condições precárias, não adianta dizer-lhe que tudo está dentro dos parâmetros europeus. A sensação de insegurança e injustiça instala-se. E quem a vocaliza com clareza ganha terreno.

    A esquerda urbana, em vez de enfrentar estas questões, refugia-se numa superioridade moral que aliena os eleitores. Fala de inclusão, diversidade e cosmopolitismo com o fervor de quem nunca precisou de partilhar um hospital público superlotado ou de viver em zonas onde o Estado já mal chega. Esta esquerda prefere desconstruir conceitos a resolver problemas, prefere aulas sobre “privilégios inconscientes” a propostas sobre habitação acessível promovida pelo Estado (e não tectos mno arredamento) ou policiamento de proximidade.

    Se quer recuperar influência junto do eleitorado popular, a ‘esquerda alternativa’ precisa de abandonar a sua torre de marfim e olhar o país nos olhos. Isso significa tratar a segurança como uma prioridade legítima — mesmo que, em muitos casos, o problema seja mais de percepção do que de realidade. Significa também promover um debate sério sobre imigração, livre de dogmas e preconceitos, que reconheça as necessidades económicas do país, mas também a pressão social que uma imigração mal gerida pode causar. E mais: sobre as condições desumanas em que vivem muitos destes imigrantes. É preciso encontrar um equilíbrio entre integração e exigência, entre acolhimento e responsabilidade, entre as condições de vida dos imigrantes e os direitos das populações locais.

    André Ventura: líder da extrema-direita, populista ou aproveitador da insatisfação? Quaisquer que sejam as causas do crescimento do Chega, o país está a divorciar-se das elites. Foto: Chega.

    Ignorar estes temas só serviu e servirá para os entregar de bandeja a quem os instrumentaliza com discursos fáceis. E não basta agora correr atrás do prejuízo com campanhas de fact-checking ou projectos de literacia mediática. O eleitorado não é estúpido nem manipulável ao sabor dos moralismos do momento. É informado, é atento, sente na pele o que vive, e sabe distinguir quem lhe fala com frontalidade de quem o trata como incapaz de compreender o que se passa à sua volta.

    O resultado das legislativas de ontem prova ainda o esgotamento do bipartidarismo tradicional, e isto também não são boas notícias para os partidos da ‘esquerda alternativa’, sobretudo se ficarem abaixo dos 10% ou, pior ainda, dos 5%, porque o método de Hondt os aniquila. Com a ascensão do Chega, o Bloco Central resiste, mas enfraquece: PSD e PS, juntos, valem hoje pouco mais de metade dos votos. O crescimento do Chega, a par da agonia do PCP, da irrelevância do BE e da (ainda) fragilidade do Livre e da Iniciativa Liberal, demonstra que os eleitores estão à procura de alternativas. Não se trata apenas de uma mudança de nomes — é uma exigência de respostas concretas. O eleitorado quer menos retórica e mais soluções, menos censura moral e mais escuta activa.

    É sintomático que os círculos de opinião mais activos nos media continuem a defender que o país sofre de um “problema de populismo”. Aquilo de que o país sofre, na verdade, é de um problema de elitismo urbano. Um elitismo que acha que votar Chega é uma aberração moral, mas que aceita como natural viver num país onde o acompanhamento médico se degrada, onde a escola pública está em colapso, onde os salários não chegam para pagar rendas nem alimentação, onde não há vigilância policial e o pequeno crime (que nem chega às estatísticas) prolifera até ameaçar ser grande, e onde os gastos públicos absurdos e sem transparência são um convite para a corrupção. A indignação selectiva é um luxo de quem pode escolher os seus problemas. O povo não pode.

    Partido Comunista Português: eleição após eleição, apenas fica satisfeito por sobreviver. Ver o Chega vencer em Beja e Setúbal é sobretudo um sinal da sua perda de capacidade de responder a uma população diviorciada das elites políticas. Foto: PCP.

    O Parlamento que agora se forma é mais plural, mais fragmentado e, paradoxalmente, mais representativo. Resta saber se os partidos que perderam influência saberão fazer a sua própria reflexão. A ‘esquerda alternativa’, em particular, que perdeu uma oportunidade de crescer em 2024 – mas não quis criticar o PS para então não fazer crescer o peso relativo do Chega –, tem de decidir se quer continuar a falar para si própria — ou se quer voltar a ser relevante para o país. A comunicação social, por sua vez, precisa de reencontrar a sua função: não é catequizar o eleitorado, mas informá-lo com rigor, escutá-lo com respeito e servi-lo com humildade.

    Se Lisboa continuar a querer falar sozinha, continuará a não ser ouvida. E Portugal seguirá o seu caminho — com ou sem ela. Nisto, há uma enorme virtude na democracia: Lisboa, e as suas elites, já não valem nada, embora tenham muito tempo de antena no media. Ou melhor, proporcionalmente, valem somente o seu peso demográfico. Nada mais.

  • O Pfizergate, o New York Times e o caso português do PÁGINA UM (a aguardar sentença há 28 meses)

    O Pfizergate, o New York Times e o caso português do PÁGINA UM (a aguardar sentença há 28 meses)


    Durante a pandemia, uma parte significativa do jornalismo português ajoelhou-se perante os altares da Comissão Europeia e dos Governos nacionais. A crítica, o contraditório e a investigação foram substituídas por uma militância sanitária que assumiu como missão promover vacinas, esconder contratos, silenciar dúvidas e rotular como perigosos ou irresponsáveis os que ousassem fazer perguntas.

    Por exemplo, logo após o nascimento do PÁGINA UM em Dezembro de 2021, a direcção editorial da CNN Portugal (com o apoio da Ordem dos Médicos) encomendou ao então estagiário Henrique Magalhães Claudino uma notícia para me associar aos ditos movimentos negacionistas da covid-19. Tive de lutar meses junto da ERC pela justeza da minha notícia rigorosa para, pelo menos, conseguir publicar direitos de resposta em alguns dos jornais que propalaram esta patifaria da CNN.

    Ursula von de Leyer com o CEO da Pfizer, Albert Bourla.

    Para evitar a publicação do direito de resposta, o jornal Público chegou mesmo a colocar, em meados de 2022, uma providência cautelar, através do advogado Francisco Teixeira da Mota – conhecido paladino da liberdade de imprensa –, em que se acusava que o PÁGINA UM “manifestamente, tinha tomado posições claramente atentatórias contra a necessidade de se criar consenso social em favor da vacinação, algo que o jornal [PÚBLICO] assumiu e defendeu desde a primeira hora”.

    Ou seja, durante a pandemia, a imprensa mainstream e muitos jornalistas não hesitaram em atribuir-me epítetos por não seguir linhas editoriais de propaganda vacinal e de gestão da pandemia, funcionando mais como departamentos de comunicação da DGS do que como órgãos de comunicação social que se exigem livres e plurais.

    Nesse contexto, não surpreende que a imprensa portuguesa — com raríssimas excepções — nunca tenha demonstrado qualquer interesse em saber o que realmente se passou nos bastidores das negociações das vacinas, tanto a nível europeu como nacional. Quando, em 2022, o The New York Times avançou com um processo contra a Comissão Europeia para obter as célebres mensagens trocadas entre Ursula von der Leyen e o CEO da Pfizer, Albert Bourla, a imprensa nacional mal lhe dedicou uma nota de rodapé. Uma ou duas linhas tímidas, e logo voltou ao conforto das pachorrentas conferências de imprensa, onde as perguntas difíceis eram proscritas.

    Agora, em Maio de 2025, o Tribunal Geral da União Europeia condenou a Comissão Europeia por violação dos princípios de boa administração ao recusar a entrega dessas mensagens – e os mesmos jornais que se calaram ou atacaram quem exigia transparência rejubilam agora. O Público até tem a ousadia de escrever que o “desfecho do caso Pfizergate é uma vitória para o The New York Times, a liberdade de imprensa e a transparência”.

    O Público agora rejubila com a vitória da liberdade de imprensa e da transparência…

    A hipocrisia na sua plenitude: quem ontem negou o jornalismo, hoje celebra o jornalismo dos outros — desde que venha com o selo do New York Times e sem incomodar os interesses nacionais.

    Mas mais grave do que esta hipocrisia mediática é o facto de, em Portugal, também haver um “caso Pfizergate” — ou melhor, um “caso DGSgate”, igualmente associado à compra de vacinas da covid-19, mas este, intentado pelo PÁGINA UM, arrasta-se há mais de dois anos, sem que o Tribunal Administrativo tenha decidido o que há muito já deveria estar resolvido. Ou melhor dizendo, porque os tribunais (e as suas decisões) são feitos por pessoas, pela juíza do processo, Telma Nogueira.

    Com efeito, em 22 de Novembro de 2022, requeri à DGS, ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos, um pedido claro, inequívoco e fundamentado de acesso integral aos contratos celebrados com as farmacêuticas fornecedoras de vacinas contra a covid-19, incluindo todos os anexos, cadernos de encargos, guias de transporte e trocas de correspondência administrativa.

    A juíza associada à intimação do PÁGINA UM tem permitido ao Ministério da Saúde e à DGS um exercício prolongado de opacidade com verniz burocrático: quando está em causa decidir se existe legitimidade para o acesso, é permitido que se negue o inegável, que se traduzam documentos (sem se ver os originais), e expurguem partes, retirando qualquer valor informativo real. E, na verdade, ‘apenas’ se quer consultar os originais. E anda-se há 28 meses — a intimação foi apresentada no último dia de 2022 — numa encenação de transparência, onde se finge cooperação para, na prática, se negar o acesso à informação pública.

    E a juíza permanece, despacho após despacho, sem proferir sentença ao fim de 28 meses, num processo classificado de urgente. Ainda que fosse desfavorável, seria preferível uma sentença, porque, ao menos, seria possível recorrer ao tribunal superior.

    Ainda este mês, sabendo bem que aquilo que a DGS tem carreado para o processo em nada corresponde ao que foi solicitado em 2022, a juíza Telma Nogueira deu um despacho para que nos pronunciemos se estamos satisfeito com aquilo que temos. Anda-se neste ‘enrola-enrola’ há dois anos. Se o formalismo jurídico permitisse seguiria uma única palavra e em maiúsculas: NÃO. E a seguir, um rogo: “decida, se faz favor”.

    person holding white plastic bottle

    Talvez não seja de bom tom, com um caso em curso, estar a debruçar-me e a criticar a condução deste caso. Mas ao jornalismo cabe a obrigação da denúncia, mesmo se em casos que digam respeito ao próprio jornalista, porque, neste caso, existe interesse público. E a questão jurídica do Tribunal Administrativo nestes casos é simples: não lhe cabe ser árbitro entre o que o requerente pediu e aquilo que o requerido quer dar. Cabe-lhe dizer, com clareza e firmeza, se há ou não legitimidade no pedido, se a DGS tem ou não obrigação de entregar os documentos originais sem rasuras, se o cidadão e, em particular, o jornalista têm ou não o direito de escrutinar os contratos que foram pagos com dinheiro público em nome de uma emergência sanitária. E decidir com a celeridade que a lei determina para as intimações. E 28 meses são 28 meses — não há conceito lato de urgência que encaixe todo este tempo.

    Ao contrário do que muitos insinuaram durante a pandemia, não há qualquer pulsão negacionista em se querer saber como foram negociadas e contratadas as vacinas ou se geriu a pandemia. Aquilo que há é jornalismo — esse mesmo que agora tantos fingem celebrar quando a vitória é de um jornal estrangeiro.

    O ‘caso DGSgate’ – e um outro relacionado com uma base de dados dos internamentos, que se eterniza apesar de um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 2023 – é, por isso, um teste à democracia. Se a Justiça portuguesa confirmar que a recusa da DGS foi ilegal, estará a dar uma resposta clara em favor da liberdade de informação e contra a opacidade institucional. Mas se continuar em silêncio, estará a dizer-nos que, em Portugal, certos contratos públicos estão acima da lei — e que, ao contrário do que se exige aos cidadãos, o Estado pode desobedecer impunemente àquilo que ele próprio legisla.

    Assim, se Von der Leyen foi condenada por esconder mensagens de WhatsApp, o que se deve dizer de uma DGS que esconde contratos inteiros, facturas, guias de remessa e cartas em papel timbrado? E o que dizer de uma Justiça que, passados mais de dois anos, ainda não respondeu?

    Enfim, não basta aplaudir o New York Times e dizer que a liberdade de imprensa venceu em Bruxelas. É tempo de exigir que a liberdade de imprensa também vença em Lisboa. E que se denuncie, em simultâneo, os hipócritas — sobretudo os escribas de certa imprensa, que tão maltrataram os princípios do jornalismo durante os anos da pandemia.

  • O regresso cego ao ‘business as usual’ e o preço da negligência energética

    O regresso cego ao ‘business as usual’ e o preço da negligência energética


    A cultura do business as usual é a mais insidiosa forma de irresponsabilidade institucional. Mais ainda no rescaldo de um apagão eléctrico que mergulhou Portugal na escuridão, depois de o MIBEL ter andado a ser ‘vendido’ como modelo de negócio com garantias de “segurança no abastecimento de electricidade”, ainda mais depois de Portugal ter encerrado a central a carvão do Pego, que embora causasse problemas ambientais, concedia inércia à rede electrica nacional, auxiliando o amortecimento de variações súbitas de frequência.

    Nas últimas duas semanas, a REN – a empresa monopolista de segurança e continuidade do serviço de eletricidade e pela gestão do sistema elétrico nacional – tem-se desdobrado em declarações à imprensa acrítica – sobre o apagão espanhol que colapsou Portugal como um baralho de cartas. Ouvem agora declarações de prudência e de monitorização “em permanência”, mas sem que se vislumbre uma explicação sobre as actuais fragilidades portuguesas e sem se mexer uma palha naquilo que verdadeiramente conta: a estrutura técnica do sistema. Enfim, fazem-se figas e toca a negociar de novo – em Portugal, o business as usual quer dizer irresponsabilidade.

    closeup photo of lighted bulb

    É certo que as investigações internacionais ainda decorrem e já há quem prognostique que as causas do ‘incidente’ do passado dia 28 de Abril demore meses – este prazo é muito conveniente para que a culpa se esqueça ou morra solteira. Mas não nos haja iluões: a morosidade processual é muitas vezes um biombo conveniente para adiar decisões e manter tudo como está – e confiar na sorte. E achar aceitável continuar a operar uma rede eléctrica com os mesmos erros que nos levaram, literalmente, ao colapso.

    Os sinais são, infelizmente, de um país a regressar tranquilamente à rotina. Portugal já retomou as importações de electricidade de Espanha, embora agora com supostas restrições nas horas de maior produção fotovoltaica. A medida, apresentada como prudente, nada resolve.

    Aliás, ao reduzir e condicionar a importação de electricidade fotovoltaica em função do período horário, a REN acaba por revelar, de forma implícita mas inequívoca, onde esteve a génese do apagão de 28 de Abril: na conjugação entre forte produção solar intermitente, demasiada importação de Espanha, baixa inércia do sistema nacional e ausência de mecanismos de resposta rápida. A própria REN, ao limitar agora as importações diurnas, indicia o risco que não ousa nomear frontalmente — e ao fazê-lo, reconhece tacitamente que o sistema eléctrico ibérico, e o português, não está preparado para absorver grandes fluxos renováveis sem ferramentas técnicas modernas.

    Limitar a importação solar, portanto, não é uma precaução neutra — é uma confissão técnica. E mais: é a manutenção deliberada de um sistema que falhou, à espera que falhe outra vez.

    Uma das grandes vantagens do apagão foi, em certa medida, permitir que muitos especialistas independentes pudessem expor as fragilidades do sistema eléctricio português, porque aparentemente temos uma Entidade Reguladora do Sector Energético que anda a vir navios.

    De entre as propostas que, não sendo eu especialista em detalhe nesta matéria – direi que ‘tenho umas luzes’ – se afiguram muito realistas e exequíveis, destaco as seguintes causas para estarmos continuamente sob risco de sucessivos apagões.

    Primeiro, a ausência de Fast Frequency Reserve (FFR), ou seja, de capacidade de injectar ou retirar potência da rede em milissegundos após uma perturbação. Esta reserva rápida, que actua como um “airbag” eléctrico, é hoje considerada essencial em redes com elevada penetração de renováveis. Portugal tem neste momento zero megawatts contratados, enquanto, por exemplo, a Irlanda opera com 330 MW e o Reino Unido gasta mais de 200 milhões de libras anuais para garantir este tipo de resposta.

    Foto: D.R./ REN

    Segundo, a persistência de relés de protecção mal calibrados, com valores de RoCoF (Rate of Change of Frequency) excessivamente conservadores. Com o actual limiar, variações superiores a 1 Hz/s disparam desligamentos automáticos de centrais e linhas devido à variação excessiva da frequência — uma resposta defensiva que, em vez de estabilizar, pode precipitar colapsos em cascata como o que ocorreu a 28 de Abril. A solução, consta, é simples e está estudada: reprogramar os relés para aceitar ±1 Hz/s, o que evitaria desligamentos prematuros. Mas nada foi feito.

    Terceiro, a actual baixa inércia do sistema, que se agravou com a substituição de centrais térmicas por fontes renováveis intermitentes. Esta fragilidade, não sendo recente, poderia ser mitigada com a chamada inércia sintética — conversores especiais ‘grid-forming’, baterias e até veículos eléctricos com tecnologia V2G. A REN sabe disto. O Governo também. E, no entanto, nenhuma meta foi definida, nenhum plano foi anunciado.

    Quarto, a ausência de digitalização e controlo dinâmico. A integração em tempo real de produção distribuída, pequenos produtores, veículos eléctricos e baterias requer uma infraestrutura de gestão moderna, com sistemas de gestão de energia (EMS) actualizados. Continuamos com uma infraestrutura pouco digitalizada e com baixa capacidade de resposta automatizada.

    light bulb

    Perante tudo isto, o mais grave é a tentativa de empurrar a responsabilidade para um vago “ainda não se sabe” ou para Espanha. Porque se sabe. Sabe-se, tecnicamente, que o sistema ibérico estava numa situação crítica às 11h33 de 28 de Abril.

    Sabe-se que houve uma quebra abrupta de 2200 MW na produção do sul de Espanha, provavelmente fotovoltaica, e que a ausência de FFR provocou uma queda de frequência tão rápida que os relés foram disparados em cascata. Sabe-se que os mecanismos de defesa do sistema — supostamente para o proteger — causaram precisamente o seu colapso.

    Se nada for feito, o próximo apagão é uma questão de estatística, não de surpresa. E, nessa altura, será lícito perguntar: quantas vezes precisa o país de cair para se lembrar de erguer os pés?

    black solar panels on purple flower field during daytime

    A REN, como operadora do sistema, tem a obrigação de preparar a rede para a realidade que já existe. E o Estado, como garante do interesse público, tem o dever de agir, regular e proteger. Aquilo que não pode suceder é continuar-se como se nada tivesse ocorrido, enquanto se esperam relatórios que apenas confirmarão o que os engenheiros e analistas já sabem de cor.

    Regressar ao business as usual serve os interesses dos operadores do MIBEL, mas é um luxo que portugueses já não podem pagar, até porque pagam já uma factura de electricidade já demasiada alta.

  • 10 vezes mais casos de sarampo na Europa em 2024: e a culpa também foi do Trump?

    10 vezes mais casos de sarampo na Europa em 2024: e a culpa também foi do Trump?


    Apesar de se terem registado na Europa dez vezes mais casos de sarampo na Europa em 2024 face ao ano anterior, eis que nos últimos meses, com o previsível automatismo ideológico, os holofotes da comunicação social viraram-se para os Estados Unidos. Ou melhor, para Robert F. Kennedy Jr. e Donald Trump por via de diversos pequenos surtos que contabilizam 935 casos e três mortes, até ao passado dia 1, num país de 340 milhões de habitantes – uma incidência de 2,75 casos por milhão, o segundo valor mais elevado na década, depois de 2019 (1.274 casos).

    Se observarmos o relatório publicado na semana passada pelo European Centre for Disease Prevention and Control, nos 30 países do Espaço Económico Europeu houve 23 com uma incidência maior do que registada até agora nos Estados Unidos, em algumas nações com números anormalmente elevados. Por exemplo, a Roménia registou no ano passado 30.692 casos de sarampo, o que representa uma incidência de 1.610,7 casos por milhão. A Áustria registou 59,5 por milhão, a Bélgica de 44,9, a Irlanda de 39,6, a Itália de 17,9 e até Portugal, com 35 casos, teve uma incidência de 3,3, ou seja, superior à dos Estados Unidos este ano.

    A evolução do sarampo na Europa mostra-se preocupante: em 2020 registou-se uma incidência de 4,6 casos por milhão, desceu depois em 2021 e 2022,e cresceu para 9,1 casos por milhão em 2023 para depois atingir os 77,4 por milhão. Note-se bem: se os Estados Unidos tivessem no presente ano esta incidência contabilizariam mais de 26.300 casos, não os 935 casos que registam.

    Mas ninguém deseja olhar para os números quando se quer imprimir uma narrativa já escrita de antemão: a culpa dos surtos de sarampo nos Estados Unidos deve ser assacada a Trump, a Robert Kennedy Jr., aos “populistas”, à “extrema-direita”, aos “negacionistas”. Pouco importa que os dados, as evidências, os relatórios oficiais e os avisos prévios desmontem essa simplificação vergonhosa. No jornalismo do nosso tempo e numa “ciência” cheia de tiques missionários, a verdade vem depois da manchete. E, às vezes, nem chega a vir.

    É certo que Robert Kennedy Jr., ao longo dos anos, tem manifestado publicamente dúvidas sobre alguns ingredientes e potenciais efeitos secundários das vacinas infantis, embora nada disto tenha mudado a postura actual do CDC. Aliás, esta entidade mostra um gráfico no seu site, que aqui apresento, onde a eficácia das vacinas contra o sarampo se revela de forma marcante na redução drástica de casos desde os anos 60 do século passado. É igualmente verdade que Trump tem mantido uma postura ambivalente sobre temas científicos, misturando intuições com políticas erráticas. Mas será intelectualmente honesto responsabilizar estas duas figuras por surtos de sarampo que decorrem num país com 340 milhões de habitantes, numa era em que as políticas públicas são decididas por múltiplos actores e factores?

    Evolução dos casos de sarampo nos Estados Unidos desde a introdução da vacina. Fonte: CDC.

    A resposta é, obviamente, não. Sejamos honestos: por mais que se antipatize com o estilo e acções de Trump, o surto de sarampo em curso nos Estados Unidos surge num contexto onde a Administração Biden esteve no poder durante quatro anos consecutivos, período durante o qual os próprios Centers for Disease Control and Prevention (CDC) lançaram vários alertas sobre a diminuição da cobertura vacinal em múltiplas áreas. Em Outubro de 2024 — sublinhe-se, ainda sob a presidência de Joe Biden —, investigadores do CDC reportavam que a cobertura nacional com as vacinas MMR (sarampo, papeira e rubéola), DTaP (difteria, tétano e tosse convulsa), varicela e polio entre crianças em idade de jardim-de-infância tinha descido para níveis abaixo dos 93%, após uma década estável nos 95%. A cobertura com a vacina MMR caiu para 92,7%, a DTaP para 92,3%, e contra a varicela para 92,4%.

    Mais ainda: o relatório da CDC mostrava que 14 estados tinham no ano passado isenções vacinais acima de 5%, e que as excepções não-médicas representavam mais de 93% dos casos, revelando um fenómeno de desconfiança ideológica — não necessariamente religiosa ou científica — para com a vacinação em geral. Ou seja, muito antes de Trump voltar a ocupar o centro do palco político ou de Kennedy Jr. assumir qualquer papel relevante no debate institucional, já se verificava um declínio estatisticamente significativo da vacinação tradicional nos Estados Unidos. Os dados estavam disponíveis, públicos e sublinhados pela própria autoridade federal de saúde. Os surtos deste ano nos Estados Unidos não são o reflexo da eleições de Trump: surgem de trás.

    Então, qual a razão para não se discutir com seriedade as verdadeiras causas da retracção de uma vacina que apresenta, contra o sarampo, mais de 60 anos de sucesso? Porque seria necessário encarar, com honestidade, os efeitos colaterais da estratégia político-mediática durante a pandemia da covid-19. E isso não interessa nem ao jornalismo mainstream nem à elite político-científica que dela se alimentou.

    Evolução do número de casos de sarampo nos Estados Unidos desde o ano 2000.Valores de 2025 até 1 de Maio.Fonte: CDC.

    A verdade desconfortável — e já admitida timidamente pela CDC — é que existe uma transferência de hesitação vacinal da covid-19 para as vacinas tradicionais. E para compreender isso, é preciso fazer o que quase ninguém faz: distinguir o que é, tecnicamente, uma vacina tradicional daquilo que foram os ‘produtos farmacêuticos’ contra a covid-19.

    Durante mais de um século, a vacinação baseou-se na administração de agentes biológicos inactivados, atenuados ou purificados que imitavam a infecção natural e conferiam imunidade duradoura, frequentemente com um ou dois reforços. A vacina da poliomielite, por exemplo, usa vírus inactivado; a DTaP utiliza toxinas tratadas quimicamente; a MMR recorre a vírus atenuados. Estas vacinas não apenas conferem protecção pessoal, como também reduzem significativamente a transmissão, construindo o tal ‘escudo comunitário’ da imunidade de grupo.

    Em contraste, por muito que se tenha propalado inicialmente o contrário, as chamadas “vacinas contra a covid-19” de tecnologia mRNA (como a da Pfizer e Moderna) ou de vector viral (como a da AstraZeneca e Janssen) não usam qualquer forma do vírus inactivado ou atenuado, nem conferem imunidade duradoura no modelo tradicional. Mais importante: não impediram a infecção nem a transmissão viral — e lembremo-nos como se impôs o vergonhoso certificado digital para excluir não-vacinados, mesmo aqueles com imunidade natural adquirida —, tendo-se tornado evidente, ao fim de poucos meses, que seria necessário revacinar ciclicamente. Enfim, sabe-se hoje que, independentemente da discussão sobre eficácia e segurança, a natureza destes produtos é, na verdade, mais próxima de terapias profilácticas temporárias do que de vacinas clássicas.

    a baby being examined by a doctor and nurse

    Porém, a confusão incutida e mesmo alimentada foi tanta que, em 2021, o próprio CDC alterou a definição oficial de vacina, eliminando a referência a “imunidade” e substituindo-a por “protecção” — uma mudança sem precedentes, feita discretamente, para adaptar a linguagem institucional ao insucesso clínico da nova tecnologia quanto à componente da imunidade. Onde antes se dizia que uma vacina era “um produto que estimula o sistema imunitário a produzir imunidade contra uma doença específica”, passou a dizer-se que é “um produto que estimula a resposta imunitária contra uma doença”. É a diferença entre garantir e tentar.

    Esta manobra semântica — e politicamente conveniente — gerou um dano profundo no capital de confiança das vacinas como conceito científico e instrumento de saúde pública. Muitos cidadãos, perplexos com a multiplicidade de doses, a ausência de eficácia sustentada e os relatos de efeitos adversos (alguns graves, outros silenciados), passaram a questionar todas as vacinas, mesmo aquelas com décadas de provas dadas.

    E quando, por pressão política e empresarial, a definição de “vacina” foi alargada sem distinção clara entre tecnologias, arrastou-se para o descrédito todo o edifício construído em torno das vacinas tradicionais, que durante décadas demonstraram segurança, eficácia e aceitação pública.

    baby under purple blanket

    Hoje, enfrentamos as consequências dessa imprudência. Famílias expostos a meses de propaganda acrítica e depois a notícias de efeitos adversos das chamadas ‘vacinas contra a covid-19’ ocultados ou relativizados, passaram a desconfiar do conceito de vacina como um todo. Sucedeu em todo o Mundo — e sucedeu nos Estados Unidos, e aqui não porque tenham lido Robert Kennedy Jr. nem porque votaram em Donald Trump, mas porque sentiram na pele a quebra do contrato de confiança entre Ciência, política e cidadania.

    É esta quebra que a comunicação social se recusa a discutir. Prefere a narrativa do bode expiatório. Prefere a facilidade do insulto ao rigor do inquérito. Mas quem quiser, com seriedade, evitar futuros surtos — de sarampo ou de pensamento binário — deve começar por recuperar a distinção entre tecnologias, reconstituir a credibilidade perdida e, talvez o mais importante, reverter a redefinição oportunista do que é uma vacina. A confiança não se impõe por decreto nem se reconquista por censura. Constrói-se com transparência, memória e verdade. E, já agora, sem ‘ideologite’ e sabendo um pouco (ou muito) de Matemática.

  • Spinumviva: o jornalismo da esponja e a nódoa que persiste

    Spinumviva: o jornalismo da esponja e a nódoa que persiste


    Em democracia, há momentos em que a história se repete, não como farsa, mas como ensaio da decadência. A queda do Governo de Luís Montenegro, provocada por um escândalo ético (pelo menos) envolvendo a sua empresa familiar Spinumviva -cujo único activo era ele próprio, não pelo conhecimento jurídico mas influência política –, parecia inaugurar um momento de depuração cívica.

    Mas bastaram poucos dias para que se reinstalasse o mecanismo rotineiro da absolvição mediática, essa máquina bem oleada que, em vez de investigar, serve para enxaguar a nódoa. Luís Rosa, jornalista do Observador, que se apresenta como repórter de investigação, apresentou uma suposta investigação jornalística que serviu para uma narrativa muito conveniente para uma ‘limpeza ética’ de Luís Montenegro e preparar um nível de vitimização para ‘desaconselhar’ um enfoque no caso Spinumviva.

    A peça assinada por Luís Rosa e João Paulo Godinho, publicada em tom triunfal no dia 19 de Março, garantia ter sido baseada na consulta de mais de mil documentos sobre a actividade da Spinumviva — documentos que alegadamente comprovavam, de forma irrefutável, que os serviços prestados tinham sido reais, substanciais, legítimos. Porém, o leitor mais atento — e qualquer jornalista com um mínimo de exigência — deparou-se com uma ausência total de provas visíveis: na peça não surgia nenhum fac-símile, nenhum relatório, nenhum contrato, nenhum e-mail, nenhuma factura, nada. Apenas o anúncio da existência dos documentos, talvez por fé, talvez por conveniência. Em vez de jornalismo de investigação, tivemos jornalismo de proclamação.

    Não há desculpa plausível para um jornal digital, que opera sem os constrangimentos de espaço do papel, não apresentar aos seus leitores, nem que fosse em anexo, uma pequena amostra dos tais documentos. E as imagens publicadas, com dossiês e folhas amontoadas, pareciam mais uma produção estética do ChatGPT do que uma prova documental genuína. Não se vislumbrava sequer uma citação, nada.

    A operação foi tudo menos inocente: serviu para projectar a ideia de que o caso estava encerrado, de que Montenegro era uma vítima da má-língua e do “clima de suspeição”, e de que tudo não passava de uma cabala. A imprensa convencional não perdeu tempo: replicou a narrativa sem pestanejar, sem escrutinar, sem perguntar.

    Imagens destacadas na peça do Observador de 19 de Março sobre a Spinumviva com os dossiês usados na investigação jornalística. Não foi apresentrado qualquer documentos concreto. Foto: DR.

    E assim se passou, durante algum tempo, uma esponja sobre a razão primordial da queda do Governo: a promiscuidade entre funções públicas e interesses privados, a opacidade das avenças, o potencial conflito de interesses, e a recusa em afastar-se de uma empresa familiar com ligações activas a entidades com relações com o Estado. E mais:percebeu-se também que, por coincidência, um cliente da Spinumviva é pai de um candidato do PSD à Câmara de Braga.

    Nestas eleições, mais do que confirmar ou não um sistema político de governos minoritários – o que, numa democracia, até deveria ser saudável e saudado –, está em causa se o eleitorado sanciona ou não aquilo que representa o caso Spinumviva. Não foi a oposição que forçou a queda do Governo: foi o próprio Luís Montenegro que apresentou uma moção de confiança. Caiu não por perseguição política, mas porque perdeu a legitimidade ética.

    Agora, já em vésperas da campanha eleitoral, surgiu afinal uma nova lista de empresas que constam como clientes da Spinumviva, com destaque para a ITAU e a Sogenave – ambas do ramo alimentar e que têm contratos volumosos com entidades estatais que, por exemplo, fornecem cantinas de escolas e hospitais em ajustes directos – e ainda a Portugalenses Transportes, a metalomecânica bracarense Beetsteel, a consultora espanhola INETUM Portugal, e a Grupel, que actua no sector da energia.

    ‘Investigação jornalística selectiva’: sem revelar fonte nem mostrar qualquer documentação em concreto, Luís Rosa ‘sentenciou’ que a Spinumviva não era empresa de fachada, mas ficam agora em aberto várias questões essenciais. Em (supostas) mil páginas de documentos da Spinumviva, nada constava das ‘novas’ empresas agora conhecidas? Não era suposto ter tido acesso a toda a documentação? Aceitou fazer revelações taxativas sem ter tido acesso a todos os contratos da empresa de Montenegro?

    Estranhamente, ou talvez não, esta informação surgiu através de uma declaração do próprio Luís Montenegro à Entidade para a Transparência – que supostamente o primeiro-ministro pensaria que viesse a ser confidencial – não veio pela mão de Luís Rosa. Nem do Observador. Nem de qualquer outro órgão que tenha ecoado, sem filtro, a narrativa de reabilitação.

    Recordemos para memória futura; Luís Rosa garantiu em Março passado ter lido acesso a mais de mil páginas de documentos sobre a Spinumviva. E então, não recebeu a informação sobre esta (novas) empresas. Ou não a quis mostrar? O que é pior? Ter sido ingénuo e manipulado por fontes próximas de Luís Montenegro – ou pelo próprio –, acreditando que tinha toda a verdade? Ou ter recebido apenas parte da informação e, mesmo assim, ter decidido avançar, consciente de que servia uma operação de maquilhagem? Em qualquer dos casos, fica manchada a integridade jornalística.

    A função do jornalismo de investigação não é salvar políticos caídos em desgraça, nem reescrever as razões das suas quedas, nem participar em operações de cosmética eleitoral. É perguntar, duvidar, incomodar. Não há investigação jornalística sem provas, mas estas têm de ser apresentadas como critério e seriedade. E não há jornalismo sério quando se confunde o acesso exclusivo com a fidelidade à fonte. Luís Rosa, neste episódio, não foi jornalista; foi transmissor.

    O Observador ‘lamenta’ agora que se está de novo a discutir o caso da Spinumviva (que justificou a queda do Governo), “enquanto o que interessa ao país não é discutido”. Não interessa ao país discutir a ética por detrás de um primeiro-ministro?

    Se Montenegro ganhar as próximas eleições, não será por ter explicado de forma clara os contornos da ligação da Spinumviva aos seus clientes e sobre as razões da sua contratação. Será porque a imprensa — a começar pelo Observador — contribuiu para apagar, na consciência colectiva, o escândalo que levou à dissolução da Assembleia. Será porque uma parte do jornalismo português continua a ver os políticos como aliados ou como clientes, não como sujeitos a escrutínio. Será porque a exigência democrática se diluiu no espectáculo da vitimização e da propaganda.

    É neste exacto ponto que a nossa democracia desce mais uns graus na escala da decência. Não porque o cidadão vota mal, mas porque lhe mentem; porque lhe ocultam; porque lhe vendem moral em troca de prestígio editorial. E porque, no final de contas, quem escreve não responde pelos actos de quem governa, mas deveria, no mínimo, prestar contas pelo silêncio conveniente e pelas investigações de papel.

    Neste caso da Spinumviva, a esponja (do jornalismo) está gasta; e aquilo que resta é a nódoa.

  • O Estado desertou. A energia nacional é hoje um negócio estrangeiro. E pagámos o preço

    O Estado desertou. A energia nacional é hoje um negócio estrangeiro. E pagámos o preço


    O apagão de 28 de Abril não foi um incidente imprevisto. Foi a manifestação física de uma política energética leviana, de uma estratégia de privatizações cegas e da rendição sistemática do Estado português aos interesses financeiros internacionais.

    Portugal entregou, voluntariamente, uma das suas infraestruturas mais críticas — a gestão da rede eléctrica nacional — a entidades cujo único objectivo é maximizar lucros. A REN, concessionária da rede de transporte de electricidade, foi separada da produção no ano 2000 para cumpri um objectivo da União Europeia de liberalização do mercado energético com a separação jurídica de empresas para não existirem conflitos de interesses e haver maior transparência e competividade.

    transmission towers and wind turbines on the field

    De boas intenções estáo inferino chei. E em pouco anos, um sector vital para a Economia portuguesa não só sai do controlo do Estado português como de empresas nacionais. Hoje, a REN é detida em 25% pela State Grid do Governo da China, em 12% pela Pontegadea Inversiones do espanhol Amancio Ortega, em 7,7% pelo fundo norte-americano Lazard Asset Management, em 5,3% pela Fidelidade (também de capitais chineses), e em 5% pela Red Eléctrica de Espanha (Redeia). O resto dispersa-se entre fundos privados. Em termos de investidores institucionais somente 11% do capital está em mãos portuguesas, embora com parcelas disperas. E o Estado português? Um espectador impotente.

    Esta situação, criada e consolidada sobretudo sob o Governo de Pedro Passos Coelho, não apenas retirou capacidade soberana de decisão sobre o funcionamento da rede nacional — expôs o país a uma vulnerabilidade estrutural que ontem explodiu em toda a sua crueza.

    No final da manhã de ontem, Portugal operava com cerca de 30% da sua carga eléctrica abastecida através de importações de Espanha. Esta dependência diária, quase invisível para a maioria da população, é a herança directa do encerramento das centrais térmicas nacionais — primeiro as de carvão, depois o progressivo esvaziamento da capacidade de resposta das centrais a gás — em nome de uma “transição energética” feita sem cautela, sem reservas e sem responsabilidade.

    silver round accessory on black textile

    Mas a irresponsabilidade não parou aí. Aquilo que ontem aconteceu foi ainda mais grave, porque demonstra que a REN procura maximizar o lucro em detrimento da segurança, no sentido do fornecimento de electricidade sem riscos de apagão. Ontem, independentemente da causa, aquilo que poderia ser um mero incidente descambou num colapso de todo o sistena eléctrico nacional.

    Com efeito, ao amanhecer, num dia de previs+ivel forte incidência solar, as centrais hidroeléctricas nacionais — um dos poucos activos capazes de garantir flexibilidade e estabilidade ao sistema, agora cheias com as chuvas dos últimos meses — foram deliberadamente desligadas. Porquê? Para maximizar a importação de electricidade de Espanha a preços mais baixos e, em boa parte, canalizar essa electricidade para processos de armazenamento, como a bombagem hidroeléctrica.

    Mas o sistema eléctrico, importa sublinhar, não distingue consumo final de armazenamento. Para a rede, tudo é carga. Tudo consome energia em tempo real. Quando o somatório da procura — doméstica, industrial e de armazenamento — ultrapassa a geração disponível, a rede desestabiliza: a frequência baixa perigosamente e, sem resposta rápida, desencadeia-se o apagão geral. Foi exactamente isso que sucedeu.

    white windmill during daytime

    Portugal passou a operar o seu sistema eléctrico no fio da navalha: altamente dependente de importações, com a produção interna dominada por renováveis intermitentes (solar e eólica) e sem uma capacidade de resposta interna suficiente para lidar com falhas externas. Um modelo que qualquer manual de engenharia de sistemas eléctricos classificaria como imprudente — e que ontem demonstrou, sem misericórdia, a sua falência.

    Pior ainda: tratou-se de uma falência por opção consciente. Um Estado que não controla a sua infraestrutura energética; uma operadora que gere o sistema com critérios de maximização de margens financeiras; uma política energética que sacrificou a segurança pela cosmética da “transição verde” a qualquer custo.

    Ontem, não faltou apenas electricidade. Faltou soberania. Faltou competência. Faltou prudência. Faltou Estado.

    No sector energético há três S fundamentais que estão a falhar: segurança, soberania e sustentabilidade. A Segurança energética exige a existência de uma capacidade firme de produção nacional, uma gestão prudente e responsável das redes eléctricas, bem como a manutenção de reservas de contingência prontas a ser activadas em caso de necessidade.

    black solar panels on purple flower field during daytime

    A Soberania implica que um país preserve o controlo efectivo sobre os seus activos estratégicos, recusando a sua entrega a capitais estrangeiros cuja lógica é movida apenas pelo lucro e não pelo interesse nacional.

    Já a Sustentabilidade, se for verdadeira e madura, exige uma transição energética realizada com inteligência e prudência, respeitando o equilíbrio técnico do sistema e não sacrificando, em nome de modas políticas, as bases que garantem a sua estabilidade e resiliência.

    E a responsabilidade não é apenas da REN nem dos operadores privados, porque esses visam o lucro legítimo. Ela recai directamente sobre os decisores políticos que, com leviandade e voluntarismo, abdicaram de proteger o interesse nacional em nome de interesses económicos de curto prazo.

    Se nada for feito — se o Estado não recuperar instrumentos de controlo, se não se reconstruir uma capacidade de reserva energética interna robusta e independente —, o apagão de 28 de Abril não será recordado como um acidente isolado, mas como o prelúdio de colapsos futuros. Não é uma questão de “se”. É já apenas uma questão de “quando”.

    clear light bulb lot

    A energia de um país não é um bem comum qualquer. É o sangue que corre nas suas veias económicas e sociais. Entregá-la a lógicas puramente financeiras, sem responsabilidade, sem estratégia e sem soberania, é um acto de autodestruição.

    O Estado desertou. Os apagões, agora, são apenas a consequência natural.