Categoria: Saúde

  • IGAS ‘protege’ Gouveia e Melo, deputado Miguel Guimarães e ministra Ana Paula Martins

    IGAS ‘protege’ Gouveia e Melo, deputado Miguel Guimarães e ministra Ana Paula Martins

    Em Janeiro do ano passado, a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) abriu formalmente um “processo de esclarecimento” sobre a vacinação contra a covid-19 de quase quatro mil médicos não-prioritários em Fevereiro de 2021, no decurso de uma combinação, ao arrepio das normas da Direcção-Geral da Saúde, entre o almirante Gouveia e Melo e o então bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães. O acordo envolveu também um pagamento de mais de 27 mil euros ao Hospital das Forças Armadas, mas apesar da factura ter sido emitida em nome da Ordem dos Médicos, o pagamento saiu de uma conta pessoal co-titulada por Miguel Guimarães e Ana Paula Martins, actual ministra da Saúde, que geriram, numa contabilidade paralela e pejada de ilegalidades, cerca de 1,4 milhões de euros doados sobretudo de farmacêuticas. Catorze meses depois do início do “processo de esclarecimento”, aproximando-se uma prescrição, e face ao silêncio do inspector-geral Carlos Carapeto, o PÁGINA UM entrou com uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa para saber que ‘investigação’ a IGAS andou a fazer. Ou a não fazer.


    A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) está a esconder as conclusões de um “processo de esclarecimento”, aberto há 14 meses, sobre a forma pouco ortodoxa como Miguel Guimarães – antigo bastonário da Ordem dos Médicos e actual deputado do PSD – e o agora almirante Gouveia e Melo – antigo líder da task force durante a pandemia e actual Chefe de Estado-Maior da Armada – combinaram a vacinação contra a covid-19 de médicos não-prioritários desrespeitando as normas em vigor da Direcção-Geral da Saúde. E o caso também envolve indirectamente a actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, uma vez que foi ela que, no âmbito de uma campanha de solidariedade, concedeu autorização para um pagamento às Forças Armadas para compensar pela ajuda na administração das vacinas fora dos procedimentos legais.

    O processo de esclarecimento é uma das quatro tipologias inspectivas da IGAS, sendo a fase prévia que pode avançar, consoante os casos, para processo disciplinar, processo de inquérito ou processo de inspecção. No ano passado, segundo o mais recente relatório da IGAS, foram abertos 28 processos de esclarecimentos, que têm um prazo de 18 meses para conclusão, de contrário beneficiam de uma prescrição automática. Deste modo, o processo de esclarecimento às vacinas prescreverá, se não for arquivado ou avançar para outra fase, no próximo mês de Julho.

    Gouveia e Melo, actual Chefe do Estado-Maior da Armada, foi coordenador da task force e permitiu vacinações em Fevereiro de 2021 ao arrepio de uma norma da DGS. O Hospital das Forças Armadas beneficiou do esquema.

    O desbloqueio de mais uma obstrução à transparência por parte da IGAS está agora nas mãos do Tribunal Administrativo de Lisboa, por via de uma nova intimação do PÁGINA UM com vista a obrigar o inspector-geral Carlos Carapeto a libertar todos os documentos produzidos sobre esta matéria desde 15 de Janeiro do ano passado, data em que “foi determinada a abertura de um processo de esclarecimento, com o objectivo de avaliar se existe matéria que deva e possa ser avaliada”. Saliente-se que é a terceira vez que o PÁGINA UM tem de recorrer ao Tribunal Administrativo de Lisboa para que a IGAS faculte documentos administrativos em assuntos politicamente comprometedores.

    De acordo com a lei, mesmo em processos não concluídos, como será este o caso, o acesso por terceiros ” acesso aos documentos administrativos preparatórios de uma decisão ou constantes de processos não concluídos “pode ser diferido até à tomada de decisão, ao arquivamento do processo ou ao decurso de um ano após a sua elaboração, consoante o evento que ocorra em primeiro lugar”. Ora, muitas das diligências já terão mais de um ano, se é que foram feitas.

    O anúncio em Janeiro do ano passado deste processo de esclarecimento por parte da IGAS surgiu após a investigação do PÁGINA UM à gestão de uma campanha de solidariedade publicamente dinamizada pelas Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos, mas minada de ilegalidades, que envolveu cerca de 1,4 milhões de euros da indústria farmacêutica, sendo a contabilidade feita de forma paralela, com facturas falsas e outras ilegalidades fiscais, através de uma conta pessoal co-detida por Miguel Guimarães e Ana Paula Martins, actual ministra da Saúde. Foi no decurso dessa investigação que o PÁGINA UM detectou na documentação – cuja consulta foi possível somente após uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa – que, em Fevereiro de 2021, Miguel Guimarães e Gouveia e Melo reuniram e conversaram várias vezes para contornar a Norma 002/2021 da Direcção-Geral da Saúde (DGS).

    Ana Paula Martins e Miguel Guimarães foram os co-titulares de uma conta pessoal que geriu 1,4 milhões de euros de uma campanha de solidariedade pejada de irregularidades e ilegalidades, incluindo facturas falsas e fuga ao Fisco. Também serviu para pagar ao Hospital das Forças Armadas uma factura passada em nome da Ordem dos Médicos pelo serviço de vacinação.

    Esta norma, publicada em 30 de Janeiro de 2021, determinava então que na Fase 1 deveriam ser vacinados apenas os “profissionais de saúde diretamente envolvidos na prestação de cuidados a doentes”, os profissionais de lares (ERPI) ou de instituições similares e da rede de cuidados continuados, as pessoas com 80 ou mais anos, as pessoas de mais de 50 anos com determinadas comorbilidades e ainda “os profissionais das forças armadas, forças de segurança, serviços críticos e titulares de órgãos de soberania e altas entidades públicas”. Para a Fase 2, que então não estava ainda a decorrer em Fevereiro de 2021, estava prevista a vacinação do grupo etário dos 65 aos 79 anos e pessoas dos 50 aos 64 anos com determinadas comorbilidades. Somente no final da Primavera de 2021 começaram a ser vacinados os menores de 50 anos, quando já não se colocavam problemas de escassez de doses. Essa ‘hierarquia’ não agradava ao actual deputado do PSD que, não conseguindo como bastonário convencer a DGS a alterar a norma, encontrou em Gouveia e Melo, que geria a disponibilização das vacinas, alguém mais prestimoso. Aliás, meses mais tarde, Gouveia e Melo seria homenageado pela Ordem dos Médicos pelo “novo fôlego” que deu à campanha de vacinação que, obviamente, incluiu a violação da norma da DGS para benefício dos médicos não-prioritários.

    Assim, no seguimento dessas conversações em Fevereiro de 2021 – para as quais Gouveia e Melo não detinha então sequer competências para as fazer – , acabou por se acordar a disponibilização de vacinas (entregues por ordem do agora almirante) e a sua administração em instalações militares para cerca de quatro mil médicos não-prioritárias, dos quais 1.382 no pólo do Porto do Hospital das Forças Armadas, 2.004 no de Lisboa, 623 no Centro de Saúde Militar de Coimbra e 189 no centro hospitalar do Algarve. Em vésperas do processo de vacinação destes médicos não-prioritários – e que deveriam aguardar pela vacina em função da idade –, Miguel Guimarães até quis que a comunicação social acompanhasse toda a operação, mas esta acabou por se realizar de forma discreta. Foram vacinados quase 3.700 médicos. Obviamente, as vacinas tiveram de ser “desviadas” do circuito oficial num período então de grande escassez.

    Este processo paralelo, e perfeitamente irregular – uma repetição de situações ocorridas no Hospital da Cruz Vermelha, que causara a demissão de Francisco Ramos, substituído em Gouveia e Melo –, teve ainda contrapartidas financeiras que beneficiaram as Forças Armadas. Apesar das vacinas serem gratuitas, e a sua administração ser assegurada pelo Serviço Nacional de Saúde, somente foram disponibilizadas contra a cobrança unitária de 3,7 euros para supostamente suportar custos do Hospital das Forças Armadas. No Portal Base não consta que esta entidade tenha contratado quaisquer serviços externos para vacinar os médicos. Recorde-se que, apesar de liderar a task force, Gouveia e Melo continuava com altas funções na hierarquia das Forças Armadas – e não na Marinha, de onde provinha –, uma vez que acumulava então as funções de Adjunto para o Planeamento e Coordenação do Estado -Maior-General das Forças Armadas, mostrando-se tecnicamente improvável desconhecer as contrapartidas financeiras envolvidas nesta vacinação à margem das normas da DGS.  

    Carlos Carapeto, inspector-geral das Actividades em Saúde. Pela terceira vez, o PÁGINA UM recorre ao Tribunal Administrativo para consultar documentação.

    A factura do Hospital das Forças Armadas, num total de 27.365 euros – pela administração de 7.396 doses – foi emitida em 18 de Julho do ano passado para pagamento pela Ordem dos Médicos, e a forma como este pagamento foi processado e pago tem contornos de ilegalidade, neste caso envolvendo mesmo a actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins. De facto, a Ordem dos Médicos quis ficar com os louros de vacinar associados não-prioritários, mas também com o dinheiro nos seus cofres. E assim, em 26 de Abril de 2021, a tesoureira do Conselho Nacional, Susana Garcia de Vargas, escreveu um ofício aos gestores do fundo e titulares da conta bancária (Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves) pedindo-lhes 30.000 euros para custear o processo de vacinação aos médicos não-prioritários. Era expectável que o pedido fosse aceite – por via do próprio bastonário da entidade que pedia apoio ser uma das três pessoas que decidia se era concedido –, e assim sucedeu.

    Porém, como a factura passada pelo Hospital das Forças Armadas pelas operações de administração estava em nome da Ordem dos Médicos, deveria ter sido esta entidade a proceder ao pagamento, e depois receber o donativo de 30.000 euros da conta solidária. Porém, não foi isso que sucedeu.

    Na verdade, apesar de a factura se manter na Ordem dos Médicos, e em seu nome, o pagamento ao Hospital das Forças Armadas proveio do fundo “Todos por Quem Cuida”, de acordo com o pedido de operação bancária assinado em 4 de Agosto do ano passado pela actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, e por Eurico Castro Alves, como co-titulares da conta pessoal (e não institucional). Mais tarde, a Ordem dos Médicos tratou de passar declarações a quatro farmacêuticas, entre as quais a Gilead – onde então já trabalhava Ana Paula Martins – como se estas tivessem feito donativos directos para a vacinação. Estas declarações são absolutamente falsas, porque nunca houve qualquer transferência bancária das quatro farmacêuticas para uma conta titulada pela Ordem dos Médicos.

    Uma vez que ao fim de mais de 14 meses desde o anúncio do início do processo de esclarecimento, a IGAS nada comunicou ao PÁGINA UM – e ignorou um pedido formal no mês passado –, a intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa visa a libertação dos documentos para conhecer as diligências tomadas por esta entidade agora tutelada por Ana Paula Martins. Tal como sucedeu com um processo disciplinar ao pneumologista Filipe Froes – que acabou arquivado em vésperas de prescrição, com diligência medíocres ao longo de quase ano e meio –, a probabilidade de este “processo de esclarecimento” ter ficado em ‘banho-maria’ desde Janeiro de 2023 é bastante elevada.

    Na verdade, o incómodo político e judicial sobre esta matéria tem-se mostrado patente também no facto de, ao longo de mais de um ano, a Procuradoria-Geral da República não ter jamais respondido às solicitações do PÁGINA UM sobre esta matéria e sobretudo sobre a gestão da campanha ‘Todos por uma Causa’, pejada de facturas falsas, fuga ao fisco, abuso de benefícios fiscais e contabilidade paralela.  


    N.D. Amanhã comemora-se os 50 anos da Revolução dos Cravos, que concedeu, antes de mais, a Liberdade e, por consequência, a liberdade de imprensa (e de expressão), ao qual estaria também associado o acesso à informação. Pode-se comemorar uma efeméride, em números redondos ou quadrados, ou de outra configuração geométrica, mas não existem muitos motivos para festejar uma efectiva liberdade de acesso à informação quando um jornal tem, para aceder a documentos detidos por entidades públicas, de recorrer mais de duas dezenas de vezes nos últimos dois anos ao Tribunal Administrativo, que ainda por cima é lento nas decisões. O caso da IGAS é um paradigma: é a terceira vez que o PÁGINA UM apresenta uma intimação para obter documentos. Não é admissível que tal suceda numa democracia. Talvez o objectivo seja cansar o PÁGINA UM (que é o único órgão de comunicação social que recorre por sistema aos tribunais face a uma recusa no acesso à informação), mas não nos cansaremos enquanto, do lado dos nossos leitores, nos derem força e apoios financeiros através do FUNDO JURÍDICO.


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  • Debate sobre Tratado Pandémico fez subir a temperatura no Parlamento

    Debate sobre Tratado Pandémico fez subir a temperatura no Parlamento

    Os ânimos exaltaram-se, ontem, no Parlamento, durante um debate sobre o plano de preparação para pandemias que está a ser negociado pelos países no âmbito da Organização Mundial de Saúde (OMS). Acusações de “negacionismo” e discussões entre bancadas dos partidos, evitou um debate profundo sobre o Tratado. O tema chegou ao Parlamento por força de uma petição e também de um Projecto de Resolução do Chega, que defendia a não adesão de Portugal ao Tratado, mas que teve apenas o apoio da Iniciativa Liberal. Já os partidos da esquerda acusaram os peticionários de serem negacionistas – um dos insultos que foi muito usado durante a pandemia de covid-19. A autora da petição, a médica dentista Marta Gameiro, lamentou os insultos aos peticionários, mas disse estar “contente” porque a iniciativa “foi um sucesso”, já que forçou os partidos a debater o plano pandémico da OMS, que sofreu profundas alterações últimos dois meses. Afinal, os direitos humanos e as liberdades fundamentais já não vão ser ‘riscados’ do plano pandémico, o qual poderá ser adoptado pelos países já no final de Maio, se não houver um adiamento.


    Muita parra e pouca uva. Ainda não foi desta que houve no Parlamento um debate profundo sobre o plano de preparação para pandemias que está a ser negociado no âmbito da Organização Mundial de Saúde (OMS). O debate agendado para ontem descambou em insultos e altercações, com o presidente da Assembleia da República a ter de dar vários ‘puxões de orelhas’ aos deputados.

    Os deputados foram ontem obrigados a debater o chamado Tratado Pandémico da OMS por força de uma petição, da autoria da médica dentista Marta Gameiro, que pedia um referendo para decidir a adesão de Portugal ao plano. Também foi debatido um Projecto de Resolução do partido Chega que recomendava ao Governo a não adesão ao Tratado e que só mereceu o apoio da Iniciativa Liberal.

    Num clima aceso e intenso, geraram-se discussões cruzadas entre deputados de diferentes bancadas, mostrando que está hoje ainda bem viva a polarização observada na pandemia de covid-19, cuja gestão acabou por ser politizada, nem sempre com a imposição de medidas fundamentadas em pressupostos científicos. O ruído e desordem obrigaram à intervenção do presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, que teve de impor ‘ordem na casa’, chegando mesmo a levantar o tom de voz para conseguir acalmar os ânimos, que estavam exaltados.

    O presidente da AR (ao centro), num dos momentos em que se viu forçado a intervir para impor ‘ordem’ no Parlamento. (Foto: Captura de imagem do Canal Parlamento)

    “Senhores deputados: apelo ao sentido de autodisciplina e de auto-responsabilidade para que não tenha de ser o presidente da Assembleia da República a ter que fazer o condicionamento do uso da palavra, que eu não desejo, não gosto e não sou assim”, afirmou Aguiar-Branco após uma das altercações entre bancadas.

    “Mas, se vossas excelências me obrigarem a isso, eu tenho que ir para outro tipo de intervenção que é aquela que vai ao encontro sequer da minha personalidade para que nesta Assembleia possamos fazer um debate democrático e fazer um debate democrático tem como pressuposto ouvir os outros”, salientou.

    Mas, afinal, para quê tanta celeuma em torno do chamado Tratado Pandémico? Em causa está um plano da OMS que tem vindo a ser negociado pelos diversos países e envolve duas partes – alterações ao Regulamento Sanitário Internacional e a criação de um Tratado para pandemias. As últimas versões do plano já excluem as propostas mais extremistas e polémicas, como a eliminação do conceito de direitos humanos e das liberdades fundamentais do Regulamento, tal como o PÁGINA UM noticiou na segunda-feira.

    A petição de Marta Gameiro, que foi assinada por cerca de 7.500 pessoas e já tinha sido debatida em sede de comissão da Saúde, foi criada antes das alterações recentes ao plano da OMS.

    Os apoiantes da petição que pedia um referendo sobre a adesão de Portugal ao Tratado Pandémico preencheram simbolicamente de ‘branco’ as galerias da Assembleia da República durante o debate. (Foto: Captura de imagem do Canal Parlamento)

    O debate começou com a deputada Rita Matias do Chega a apresentar a proposta do seu partido. A deputada aproveitou para criticar a gestão da pandemia de covid-19 em Portugal, dizendo, nomeadamente, que “falta fiscalizar, falta apurar, falta escrutinar a má gestão da pandemia, o excesso de mortalidade”. “Acima de tudo, falta julgar a passadeira vermelha para a corrupção e para o tráfego de influências que foi estendida durante a pandemia”, disse na sua intervenção.

    A Iniciativa Liberal indicou que votaria favoravelmente a proposta do Chega, mas foi o único partido a fazê-lo.

    Dos partidos que formam o actual Governo, do lado PSD, o deputado Miguel Guimarães, antigo bastonário da Ordem dos Médicos, evitou o tema em concreto do debate, preferindo promover o plano “One Health” da União Europeia, que visa uma abordagem mais abrangente do que é a saúde humana.

    O deputado do CDS-PP foi a voz da moderação. João Pinho de Almeida defendeu que “temos que estar preparados” para uma pandemia e que “a discussão sobre isso deve ser feita com um princípio fundamental que é o princípio do bom senso, não extremarmos posições, não negarmos evidências e não enfiarmos a cabeça na areia para não assumirmos responsabilidades”.

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    A gestão da pandemia na maioria dos países – com excepção da Suécia – causou graves danos na população, incluindo um enorme excesso de mortalidade, e também na economia e muitas das políticas não tinham fundamentação na evidência científica. Além disso, foi censurada informação verdadeira, nomeadamente em torno de temas como imunidade natural, máscaras e vacinas contra a covid-19.

    Lembrou que na covid-19 “vivemos limitações à liberdade que nunca imaginámos viver e mal é que não questionemos sobre a pertinência e a adequação das mesmas”, salientando que “ninguém no seu perfeito bom senso pode dizer que todas as limitações foram perfeitamente justificadas e que não temos que debater nada sobre isso”.

    Recordou que “houve muita gente prejudicada, houve muitas empresas prejudicadas, houve muitas famílias desfeitas, houve pessoas que não se puderam despedir dos seus familiares que morreram nesse período” e questionou: “nós não nos questionamos sobre essas limitações à liberdade? Claro que temos de questionar”. Defendeu que “quando discutirmos soluções para eventualmente lidarmos com estas situações no futuro nós temos que estar preparados para saber o que é mais ou menos adequado”, tendo sempre “o princípio da liberdade” presente.

    Na conclusão da sua intervenção, o deputado centrista lembrou que o Tratado Pandémico não está aprovado na OMS mas, “se disser aquilo que é dito na petição e se disser aquilo que vem no projecto do Chega, vai muito para além daquilo que á aceitável do ponto de vista da soberania nacional”. Disse que “o que temos de fazer é manter o bom senso e pronunciarmo-nos no momento próprio e, sobretudo, não entrarmos em limitações de liberdade nem limitação do escrutínio, sem ter a responsabilidade e sem se ser avaliado”.

    Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS, tem pressionado para que o plano pandémico seja assinado pelos países mas as dúvidas têm vindo a crescer e nos últimos dois meses as propostas mais polémicas acabaram por cair, incluindo a tentativa de eliminação dos direitos humanos e liberdades fundamentais do Regulamento Sanitário Internacional. (Foto: D.R.)

    A postura moderada do deputado do CDS-PP contrastou com a de outros partidos e o clima tenso. Os partidos da esquerda foram unânimes no uso do ‘chavão’ habitual na pandemia de covid-19, acusando de “negacionismo” os peticionários. Sentada na galeria, Marta Gameiro teve ainda de ouvir a deputada Isabel Pires do Bloco de Esquerda a tentar ‘colar’ os peticionários a movimentos ‘anti-vacinas’. A deputada bloquista dedicou boa parte do seu discurso a enumerar a evolução da aplicação de vacinas em Portugal, sem, contudo, endereçar os aspectos concretos em causa na negociação do plano pandémico da OMS.

    A deputada do Bloco acabou por lançar ‘farpas’ ao Chega, dizendo tratar-se de um debate de “mentiras e hipocrisia” e acusou o partido de André Ventura de ter ficado do lado das farmacêuticas na covid-19, por ter chumbado uma iniciativa do Bloco que propunha ‘levantar’ as patentes das vacinas. Isabel Pires defendeu que “as vacinas não deviam ser um negócio milionário”, que a “saúde não devia ser um negócio milionário” e que a “Pfizer não devia ter lucros de 22 mil milhões de euros à custa da vacina”.

    O deputado único do Livre, Rui Tavares, também mencionou o tema das vacinas e não fez referências específicas ao que está na mesa de negociações na OMS.

    Marta Gameiro, médica dentista, defensora da medicina baseada na evidência científica e autora da petição, esteve na comissão de Saúde a defender a petição. A médica organizou já dois congressos internacionais, em 2022 e 2023, um sobre a gestão da pandemia e outro sobre saúde mental e propaganda durante a covid-19.
    (Foto: Captura de imagem do Canal Parlamento)

    O deputado socialista João Paulo Correia elogiou a gestão da pandemia que foi feita pelo seu partido quando era governo e criticou a petição e a proposta do Chega.

    Outros deputados recorreram ao termo pejorativo “negacionismo”, incluindo o deputado do PCP António Filipe e a deputada única do PAN, Inês Sousa Real. “De facto, o negacionismo e o populismo têm alguns aspectos curiosos, é que negam as evidências científicas”, disse Sousa Real no início da sua intervenção, sem, contudo endereçar o conteúdo concreto da petição ou as propostas que estão na mesa na elaboração do plano da OMS.

    No final do debate, foi a vez de André Ventura, presidente do Chega, reagiu às críticas e insultos de alguns deputados. “Se fosse transparência, senhor deputado Rui Tavares, nós hoje sabíamos onde estão aquelas vacinas encomendadas e pagas pelo Estado português, (…) sabíamos onde foram parar os ventiladores que pagaram com o dinheiro dos contribuintes e nunca aqui puseram em Portugal, (…) sabíamos porque é que a presidente da Comissão Europeia não dá à polícia as mensagens sobre a compra de vacinas em toda a União Europeia, como lhe foi pedido”.

    Dirigindo-se ao deputado socialista, Ventura afirmou que “não deixa de ser caricato que o PS termine a sua intervenção dizendo o mundo precisa “deste Tratado Pandémico”. “Senhor deputado, tenho uma grande novidade para si, olhos nos olhos: não é o mundo que precisa de um Tratado Pandémico, são os grandes grupos económicos que dominam o mundo, que querem encher as carteiras à custa da liberdade dos cidadãos”, concluiu.

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    Marta Gameiro alertou que está a ser criada uma “indústria de pandemias” focada na venda de produtos e medicamentos a nível global. (Foto: D.R.)

    O debate terminou com algumas manifestações por parte de pessoas presentes nas galerias, o que gerou mais um aviso de José Pedro Aguiar-Branco, que também acabou por ser um recado para os deputados: “as galerias não se podem manifestar e se nós, enquanto deputados, dermos o exemplo disso, seguramente não se manifestarão”.

    Apesar de ter de assistir aos insultos contra os peticionários, Marta Gameiro mostrou-se satisfeita com o resultado alcançado. “Estou contente. A petição acabou por ser um sucesso porque teve de haver um debate”, afirmou ao PÁGINA UM, após o debate. Lamentou os insultos e que não se tivesse antes discutido em concreto o que está em causa no plano da OMS. Respondendo à deputada do Bloco, disse que o que fez foi “extrapolar” e usar referências a vacinas que constam da petição para “atacar injustamente o mensageiro” em vez de debater o plano pandémico.

    Questionada sobre como vê os insultos e o uso da palavra “negacionismo”, Marta Gameiro disse que “de certa forma, já estava à espera”. Mas “esperava também ouvir dos deputados argumentos mais baseados em evidências”. Acusou alguns deputados de viveram “numa bolha” e não entenderem que hoje, a OMS “está focada em vender produtos, como testes, medicamentos, vacinas, apps de rastreio”. Disse ainda que não é “contra tratados internacionais”, mas criticou “a urgência” que está a haver para adopção do plano pandémico da OMS. “O que está a ser criada é uma indústria de pandemias”, afirmou.

    Na sua ida ao Parlamento, Marta Gameiro foi acompanhada de apoiantes da petição, vestidos de branco, incluindo Joana Amaral Dias, psicóloga e candidata às eleições europeias pelo partido ADN, bem como Bruno Fialho, presidente deste partido que foi uma das surpresas das últimas legislativas.

    Os países irão decidir na 77ª Assembleia Mundial da Saúde, que começa no dia 27 de Maio, se adoptam ou não o texto do ‘Tratado Pandémico’, bem como as emendas ao Regulamento Sanitário Internacional. Contudo, crescem os apelos para que a decisão sobre os dois textos seja adiada, para que os países possam ter tempo para rever as propostas que estão na mesa e construir textos mais sólidos.


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  • A Liberdade não tem preço, mas comemorá-la em Portugal não sai barato

    A Liberdade não tem preço, mas comemorá-la em Portugal não sai barato

    Poucas autarquias quiseram ficar arredadas das comemorações dos 50 anos da Revolução dos Cravos, e por isso houve uma ‘corrida’ aos ‘músicos de intervenção’ ainda no activo, como Paulo de Carvalho, Sérgio Godinho, Fernando Tordo, Vitorino, Janita Salomé e Brigada Vitor Jara. Mas, visto em detalhe mais de uma centena de contratos, constata-se que quem recebe os maiores cachets são os ‘do costume’. O PÁGINA UM decidiu percorrer mais de uma centena de contratações já celebradas e inseridas no Portal Base associadas aos espectáculos que marcam os 50 anos de uma revolução que nos concedeu a Liberdade, hoje algo limitada. E mostra que, apesar de todos os eventos promovidos por autarquias serem ‘vendidos’ como gratuitos, a conta pública já está acima dos 2,4 milhões de euros. E ainda só lá cantam alguns dos contratos de 72 municípios e de três juntas de freguesia.


    Além das comemorações de Estado, protagonizadas por uma comissão específica, quase não vai haver autarca que queira passar à margem das festividades do meio centenário do 25 de Abril de 1974. Em cada município, pelas redes sociais, pela imprensa, de norte a sul, de este a oeste, surgem apetitosas agendas culturais com debates, exposições, teatro, música e pirotecnia. Praticamente todo oferecido aos cidadãos para lembrá-los que a Liberdade não tem preço, e deve ser mantida como o mais valioso dos bens pessoais e colectivos.

    Porém, em abono da verdade, tal como nunca há almoços de borla, também não há comemorações sem custos – neste caso, monetários. E beneficiários – neste caso, os músicos, embora alguns, admita-se, ate o sejam muitos justamente.

    A Revolução dos Cravos está intimamente associada à música – e, em especial, nas fases posteriores à música de intervenção. Zeca Afonso a e a sua (nossa) ‘Grândola Vila Morena’ tornou-se um Hino da Liberdade, mesmo mais do que “E depois do adeus’, de Paulo de Carvalho, que serviu de primeira senha para o início do golpe que fez cair a ditadura do Estado Novo.

    Não surpreende assim que abundem agora os concertos ‘saudosistas’ (no bom sentido do termo) – e, felizmente, com uma parte daqueles que foram intervenientes nessa esperançosa fase em que se cantavam os amanhãs – ou que os amanhãs cantavam. Os portugueses já há muito não contam com a presença de Zeca Afonso, que partiu em 1987, cinco anos depois de Adriano Correia de Oliveira. Também a pena de Ary dos Santos se perdeu cedo, e já não está entre nós um dos ‘príncipes da canção de intervenção’, José Mário Branco, falecido em 2019.

    Mas ainda estão no activo, e bem no activo, um bom punhado de cantores de intervenção, já todos septuagenários – e talvez já algo acomodados, diga-se. Aos 76 anos, Paulo de Carvalho é um deles. No próximo dia 26 dará um concerto em Vizela, com músicos convidados, pelo qual o município pagará 21 mil euros, mas tem estado particularmente activo este ano com espectáculos associados ao 25 de Abril contratados por autarquias, nomeadamente as de Gondomar (21.702 euros), de Grândola (109.705 euros, neste caso também por causa do cachet do seu filho Agir), de Loures (63.850 euros) e de São João da Madeira (7.000 euros).

    Paulo de Carvalho, em 1974, cantando ‘E depois do adeus’, que se transformaria na primeira senha para o avanço da Revolução dos Cravos.

    Fernando Tordo – autor de ‘Tourada’ e ‘Adeus tristeza’ – , com a mesma idade de Paulo de Carvalho, ainda aparenta estar mais activo, embora com cachets mais baixos. Não vai parar de amanhã até sábado em concertos, um por dia. Primeiro na Sertã (8.500 euros), segue-se Moimenta da Beira (10.420 euros), depois Coruche (9.465 euros) e finaliza na Azambuja (7.00 euros). O cantor parece ter recuperado nos últimos anos um certo élan – desde o início de 2023 conta 12 contratos públicos no Portal Base com autarquia que já ultrapassam os 100 mil euros –, tendo chegado a emigrar para o Brasil em 2014 durante o Governo de Passos Coelho. Regressou poucos anos depois, mas em 2022 ameaçou sair de novo se a direito ganhasse as eleições. Não aconteceu nesse ano, sucedeu agora.

    O ‘decano’ Vitorino (81 anos) e o seu irmão Janita Salomé (76 anos), em registo com raízes alentejanas, também cantarão Abril nos próximos dias, sobretudo o primeiro e, pelo menos numa ocasião, em conjunto. Amanhã, no Teatro José Lúcio da Silva, na cidade de Leiria, o concerto dois irmãos, acompanhados de Filipe Raposo e pela Orquestra Filarmónica das Beiras, vai custar ao erário público 25 mil euros. No sábado passado, os dois irmãos estiveram na Marinha Grande num concerto de antecipação ao 25 de Abril, pelo qual a autarquia não pagou muito: apenas 5.950 euros, ainda por cima por incluir orquestra. Aliás, segundo os contratos já inseridos no Portal Base, Vitorino vai dar mais dois concertos nos próximos dias com cachets mais apreciáveis: na Sertã (amanhã) por 12 mil euros e no dia 26 em Castelo de Paiva por 23 mil euros.

    Quem também se mostra imparável nesta fase é Sérgio Godinho que, aos 78 anos, tem estado na estrada com o seu projecto musical Liberdade 25, que já o levou duas noites em Março passado ao Coliseu de Lisboa, estando agora a aproveitar o interesse de muitos municípios para abrilhantar as comemorações do meio centenário do 25 de Abril. Amanhã, o autor do célebre ‘Liberdade’ e ‘Com um brilhozinho nos olhos’ vai estar na eborense Praça do Giraldo num concerto com “entrada livre”, porque a Câmara Municipal de Évora desembolsou 18.200 euros. No dia 25 vai estar em Loulé e depois no Auditório Municipal de Lousada no sábado, regressando a Lisboa no domingo. Estes três últimos concertos, que terão sido pagos por municípios, deverão ter custado valores entre os 10 mil e os 18 mil euros, intervalo que, por regra, o músico pratica, o que nem se pode considerar demasiado elevado tendo em conta os músicos que o acompanham.

    Sérgio Godinho continua a ser um dos músicos mais associados ao 25 de Abril.

    Aliás, ao nível dos cachets, os músicos e grupos associados directamente ao 25 de Abril até se mostram como os mais baratos. Por exemplo, os Brigada Vítor Jara levam á autarquia local pelo concerto de amanhã na Marinha Grande menos de 32 mil euros – e convém referir que este histórico grupo fundado em 1975 tem nove membros. Talvez por serem de Coimbra, fizeram um preço mais em conta para o concerto no próprio dia 25 de Abril, cobrando apenas 7.100 euros ao município.

    Também Carlos Alberto Moniz não cobra em demasia. Os dois contratos associados ao 25 de Abril, na Chamusca (amanhã) em Castelo Branco (na quinta-feira) custaram, respectivamente, 6.175 e 7.000 euros aos municípios, de acordo com os contratos publicitados no Portal Base. Um outro histórico, Jorge Palma, que vai estar em Pombal no próximo sábado, irá cobrar, por sua vez, 12 mil euros.

    Na verdade, independentemente de ainda estarem no activo muitos dos músicos e cantores que vivenciaram a passagem da Ditadura para a Liberdade, os tempos são como são, e quem tem os maiores cachets são aqueles com maior popularidade actual.

    De acordo com a pesquisa feita hoje pelo PÁGINA UM aos contratos já celebrados e inseridos no Portal Base – e nos últimos dias têm-se somado muitos –, o espectáculo com o maior orçamento realizar-se-á em Lisboa e tem como cabeça de cartaz Rodrigo Leão, embora de forma virtual. Produzido pela empresa Idade das Ideias, e tendo como adjudicante a empresa municipal EGEAC, a Praça do Comércio será o palco para a Orquestra Sinfonietta de Lisboa, o Coro de Santo Amaro de Oeiras, o Coro da Escola Artística do Instituto Gregoriano de Lisboa e vários solistas interpretarem canções de José Afonso, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Fausto, Adriano Correia de Oliveira, Fernando Lopes Graça e Carlos Paredes. Além de um videomapping composto por fotografias de Alfredo Cunha e música de Rodrigo Leão, haverá ainda um espectáculo piromusical. Tudo gratuito, apesar de a empresa do município liderado por Carlos Moedas ter de pagar, com dinheiros públicos, um total de 271 mil euros.

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    Praça do Comércio onde esta quarta-feira se pagará a maior factura por uma noite de comemorações.

    Sem especificar em concreto os gastos de forma discriminada, a factura das comemorações em Almada também não fica barata: 146 mil euros para um conjunto de eventos culturais que tem o apogeu amanhã à noite com um concerto de Dino d’Santiago. O músico algarvio de ascendência cabo-verdiana levará, porém, uma pequena parte deste montante, uma vez que os seus cachets em concertos individuais situam-se entre os nove mil e 13 mil euros.

    Bem mais elevados são os cachets de Rodrigo Leão, que amanhã se apresentará ao vivo num concerto em Matosinhos. A autarquia socialista fez dois contratos para este espectáculo: um para pagar directamente a actuação do ex-membro dos Madredeus, no valor de 51.297 euros, e outro para pagar um espectáculo multimédia em si mesmo, no valor de 66 mil euros. Ou seja, uma noite de comemorações em Matosinhos a custar mais de 117 mil euros. Se somarmos o concerto no dia 26 de Salvador Sobral com a Orquestra Jazz de Matosinhos, a conta pública alimenta mais 47.614 euros.

    Em todo o caso, e talvez sem surpresa, os nomes grandes da música portuguesa levam os maiores cachets, independentemente de se tratar de comemorações em redor da liberdade ou não. Na lista de concertos nos próximos dias, os Xutos & Pontapés são reis & senhores na hora de desembolsar dinheiros públicos. Para o seu concerto de amanhã em Santiago do Cacém cobram 57.650 euros; no dia seguinte, descendo para a vizinha Odemira, levam um pouco menos: 42.385 euros. O município de Odemira, apesar de contar menos de 30 mil habitantes, ainda vai pagar 28 mil euros pelo concerto de amanhã de Richie Campbell, e mais 25.500 euros à banda de hip hop Wet Bed Gang, que foi escolhida em votação pela população local, e 12.500 euros aos Capitão Fausto.

    Xutos & Pontapés: são os mais bem pagos, sempre.

    Por sua vez, Pedro Abrunhosa também não se pode queixar de Abril. Nem de Isaltino de Morais. A autarquia de Oeiras já celebrou o contrato de 40 mil euros para o seu concerto da noite desta quinta-feira. Também aqui o concerto é considerado “gratuito”. Para contratar Mariza Liz, António Zambujo e os Wet Bed Gang a autarquia de Setúbal teve de desembolar, em pacote, cerca de 104 mil euros.

    Na lista entretanto inventariada pelo PÁGINA UM constam mais nomes de peso com cachets relevantes, destacando-se Rui Veloso (32 mil euros pelo concerto de amanhã em Alcácer do Sal) e José Cid (30.100 euros pelo concerto de amanhã no Portimão Arena). Abaixo dos 30 mil euros, D.A.M.A. e Bandidos do Cante repartem os 28.250 euros que a Câmara de Beja vai gastar num concerto na noite de quinta-feira, enquanto Luís Represas, que se notabilizou nos finais do século passado como vocalista dos Trovante, vai receber 23.250 euros por um concerto na Moita, um pouco mais do que os 18.675 euros que cobrará por similar apresentação em Moura. Pelo concerto em Arronches, no próximo sábado, Represas receberá um cachet de um pouco menos de 16 mil euros. Por sua vez, os Anjos levam para casa 20 mil euros depois de actuarem em Aljustrel na noite de amanhã.

    Já abaixo da fasquia dos 20 mil euros estão outros músicos ou grupos conhecidos como os GNR (concerto em Odivelas por 19.500 euros), The Gift (concerto em Alcochete por 18 mil euros), Quinta do Bill (concerto na alentejana vila de Cuba por 17 mil euros), Carminho (concerto em Sernacelhe por 16 mil euros), David Fonseca (concerto em Leiria por 13.250 euros). Gisela João (concerto em Amarante por 12.500 euros), João Gil (concerto em Carnide por 12.425 euros), Ana Bacalhau (concerto em Silves por 12.000 euros), Sofia Escobar (concerto em Montalegre por 11.900 euros. em parceria com o cantor FF), Cristina Branco (concerto na Póvoa de Varzim por 11.500 euros, a que acresce outro, no valor de 10 mil euros, na Covilhã), Camané (concerto em Castro Verde por 11.000 euros) e os históricos Taxi (concerto nos Olivais por 10.500 euros, a que acresce outro, no valor de 9.250 euros, em Castelo Branco).

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    Além destes espectáculos musicais, o PÁGINA UM detectou outros eventos culturais – onde se destaca uma estranha ópera para jovens escrita pelo humorista Diogo Faro, pela qual a autarquia de Palmela pagou quase 37 mil euros – e também um vasto conjunto de contratos para serviços exclusivamente de pirotecnia, isto é, fogo de artifício. Para já, são oito – Setúbal, Almada, Oeiras, Moura, Beja, Castro Verde, Cuba, Vila Viçosa – que totalizam quase 185 mil euros. Na parte da logística são, por agora, uma dezena, que chegam aos 116 mil euros.

    Assim, estando ainda a procissão no adro – ou seja, ainda haverá muitos contratos em falta no Portal Base –, a conta das comemorações apurada até hoje á noite pelo PÁGINA UM para eventos sobretudo musicais das comemorações do meio centenário da Revolução dos Cravos ultrapassa os 2,4 milhões de euros, estando apenas contabilizadas despesas de 72 municípios e de três juntas de freguesia.


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  • Tratado Pandémico: Propostas mais polémicas caem mas risco de ‘cheque em branco’ mantém-se

    Tratado Pandémico: Propostas mais polémicas caem mas risco de ‘cheque em branco’ mantém-se

    O plano de acção em futuras pandemias, em discussão na Organização Mundial de Saúde (OMS), sofreu novas e profundas alterações na semana passada, a segunda vez nos últimos dois meses. As novas propostas para as emendas ao Regulamento Sanitário Internacional incluem importantes cedências aos defensores dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. Mas, em compensação, o texto do chamado Tratado Pandémico ‘chuta’ para o futuro muitas definições, o que está a ser visto como perigoso, por ser um ‘cheque em branco’ à OMS. Se não houver adiamento, as propostas podem ser adoptadas já em Maio. Em Portugal, este tema vai ser alvo de apreciação em reunião plenária no Parlamento, por força de uma petição que forçou os deputados e os partidos a debater publicamente um tema que vai afectar todos os portugueses no futuro. Por agora, só o Chega tomou uma posição contrária ao polémico Tratado Pandémico, propondo a não-assinatura pelo Governo português.


    Será bom demais para ser verdade. É assim que defensores dos direitos humanos e das liberdades fundamentais estão a ver as recentes cedências que constam das propostas para a criação de um plano que visa preparar o mundo para futuras pandemias e crises de saúde públicas.

    Se as novas propostas para as emendas ao Regulamento Sanitário Internacional, originalmente criado em 2005, traduzem um forte recuo nas polémicas intenções iniciais – e mantêm os direitos humanos e liberdades individuais -, já o novo texto para aprovar um ‘Tratado Pandémico’ – uma espécie de plano de acção concreto – mostra-se vago e perigoso por deixar eventualmente os países sujeitos à ‘politização’ de medidas, que podem ser mesmo adicionadas ‘à la carte’.

    Os receios em torno das propostas que estão na mesa surgem numa era pós-covid-19, em que medidas que foram impostas na generalidade dos países – com a excepção da Suécia – deixaram um rasto de danos e desconfiança. Medidas como confinamentos, fecho de escolas, imposição ou pressão para a vacinação e adopção de um passe de ‘segregação’ deixaram um rasto de excesso de mortalidade e outros efeitos negativos na população, sobretudo os mais frágeis, além dos danos causados na economia.

    Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS, tem pressionado para que o Tratado e as emendas ao Regulamento sejam aprovados já em Maio, mas há dúvidas sobre as propostas que estão na mesa e sobre a pressa na sua aprovação.

    As novas propostas ao texto do Tratado, saídas das reuniões do ‘Intergovernmental Negotiating Body’ da OMS, foram colocadas ‘preto no branco’ a 13 de Março. Este organismo está encarregue de negociar e definir o texto do futuro Tratado que, por agora, é denominada “Convenção da OMS, Acordo ou outro Instrumento de Prevenção, Preparação e Resposta a Pandemias”. A ideia deste Tratado surgiu no auge da pandemia e já foram realizadas nove reuniões formais, sendo que a última reunião foi suspensa e será retomada na próxima segunda-feira, prevendo-se a sua conclusão em 10 de Maio.

    Em todo o caso, apesar de alguns recuos em propostas iniciais que davam demasiado poder à OMS – um organismo não-democrático e permeável aos lobbies farmacêuticos, políticos e de financiadores e investidores –, mantêm-se as críticas ao novo texto. “É, na prática, um cheque em branco que é passado à OMS”, defendeu Marta Gameiro, autora da petição que pede um referendo à adesão de Portugal ao Tratado, e que será amanhã debatida em plenário no Parlamento português.

    Curiosamente, mesmo a indústria farmacêutica aponta críticas ao texto. “Temos três preocupações chave que podem levar a incerteza e iriam beneficiar de critérios claros científicos e de evidência científica para evitar politização”, afirmou hoje a International Federation of Pharmaceutical Manufacturers and Associations (IFPMA) em comunicado. Entre as suas preocupações, esta federação considera, por exemplo, serem “excessivamente vagas” as definições de conceitos como “Pandemias”.

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    Quanto às novas propostas de alteração ao Regulamento, foram conhecidas apenas na passada quarta-feira, dia 17, sendo que durante esta semana decorrerá a última reunião do Grupo de Trabalho que se debruça sobre o novo texto do Regulamento.

    Das alterações propostas são evidentes algumas cedências, como a manutenção de conceitos como os “direitos humanos” e “liberdade fundamentais das pessoas”, nomeadamente no Artigo 3º. Por outro lado, fica garantido que as recomendações da OMS serão “não vinculativas” (‘non-binding’) para os países. Ou seja, cada país mantém a autonomia de aceitar as recomendações do organismo nacional sem temer quaisquer penalidades se definir uma estratégia própria – como, aliás, fez a Suécia na pandemia da covid-19.

    Contudo, o actual texto em discussão mantém diversas propostas polémicas, nomeadamente a necessidade dos países reforçarem “capacidades” para prevenir e combater riscos para a saúde pública, onde são incluídos “riscos de comunicação” e “desinformação”, não se sabendo sequer quem define o rigor científico que por definição, é dinâmico.

    Recorde-se que, durante a pandemia de covid-19, foram classificados como sendo ‘desinformação’ factos e estudos científicos verídicos e foi censurada informação verdadeira, incluindo em torno de temas como a imunidade natural ou a vitamina D. Por isso, alguns críticos ficam de pé atrás e aplicam o ditado ‘gato escaldado de água quente tem medo’, já que, numa futura crise ou pandemia, consideram que pode ficar aberta a porta a uma nova politização da crise e a perseguição e repressão de informação verídica, mas que não é ‘aprovada’ pela OMS ou ou outras autoridades de saúde ou governos.

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    Ainda há outros temáticas que levantam celeuma, nomeadamente em torno de questões como financiamento específico, incluindo aos países mais pobres. Os críticos da medida falam em ‘novo colonialismo’ e desconfiam da ‘bondade’ na disponibilização de dinheiro para a aplicação de recomendações na área da saúde. “No fundo, teme-se que estas alterações venham, sobretudo, permitir às farmacêuticas criar um gigante mercado, usando fundos públicos para escoarem os seus produtos”, disse Marta Gameiro.

    Os países irão decidir na 77ª Assembleia Mundial da Saúde, que começa no dia 27 de Maio, se adoptam ou não o texto do ‘Tratado Pandémico’, bem como as emendas ao Regulamento Sanitário Internacional. Contudo, crescem os apelos para que a decisão sobre os dois textos seja adiada, para que os países possam ter tempo para rever as propostas que estão na mesa e construir textos fundamentados e sólidos.

    Para já, em Portugal, onde a questão do Tratado Pandémico e o poder da OMS pós-pandemia da covid-19 passou ao lado do debate eleitorial nas recentes legislativas, tem sido a sociedade civil a obrigar os políticos a falarem deste assunto. Amanhã será, aliás, apreciada em reunião plenária na Assembleia da República uma petição para referendar a adesão de Portugal ao Tratado Pandémico da OMS, uma iniciativa dinamizada pela médica dentista Marta Gameiro e que contou com quase 7.500 assinaturas. Esta petição foi analisada na comissão de Saúde, no Parlamento, em 16 de Fevereiro do ano passado, então com fraca adesão dos deputados. Apesar disso, Marta Gameiro defende que “o objectivo da petição foi cumprido, porque queríamos ver os partidos a debater o tema” e isso foi atingido”.

    Nos últimos meses, o Chega tem mostrado um maior interesse sobre estas matérias, e na próxima quarta-feira será mesmo debatido um seu projecto de resolução para “recomendar que o Estado português não adira ao Tratado Pandémico. André Ventura até prometeu constituir uma comissão de inquérito sobre os efeitos da pandemia e o excesso de mortalidade, embora já não possa ‘obrigar’ tão depressa o Parlamento a ‘concordar’, através de um direito potestativo, uma vez que já gastou até ao próximo ano essa possibilidade com o caso das gémeas luso-brasileiras.


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  • Gastos da pandemia: ‘Truque jurídico’ e completo descontrolo escondem compras milionárias (e algumas ilegais)

    Gastos da pandemia: ‘Truque jurídico’ e completo descontrolo escondem compras milionárias (e algumas ilegais)

    Durante a pandemia, para agilizar procedimentos – e ‘salvar vidas’ – foi criado um regime de excepção para as compras urgentes por entidades públicas no sector da Saúde: bastava uma factura e pagava-se sem haver um tecto. Ficou, porém, prometida a publicação de todos os contratos no Portal Base – algo que não é garantido ter acontecido – e a realização de um relatório a publicar no site da empresa pública Serviços Partilhados do Ministério da Saúde. Mas o relatório acabou por não ser feito, até agora, graças a um ‘truque jurídico’. Apesar de a SPMS prometer que o vai fazer, adianta já que só tem conhecimento de um ajuste directo em regime simplificado… Um caso anedótico, se não fosse grave, pois, na verdade, um levantamento do PÁGINA UM aos contratos em regime de excepção inscritos no Portal Base revelam – e podem faltar muitos – largos milhares de compras por ajuste directo em regime simplificado, totalizando mais de 90 milhões de euros. Só em quase mil ventiladores comprados gastou-se cerca de 27 milhões de euros. Alguns destes contratos estão feridos de evidentes ilegalidades, incluindo o maior: quase 20 milhões de euros do polémico antiviral Paxlovid foram comprados pela Direcção-Geral da Saúde à Pfizer quando este regime de excepção já não podia ser usado por o Governo o ter revogado há três meses. Esse contrato esteve escondido do Portal Base durante cerca de 11 meses. Mas há mais… para daqui a uns tempos o Tribunal de Contas se entreter depois a fazer um relatório crítico que dará em nada.


    Milhões e milhões de euros gastos sem controlo. Ou descontrolo absoluto. Quase um ano depois da declaração sobre o fim da pandemia (como emergência global) pela Organização Mundial da Saúde, em Portugal ninguém sabe quanto se gastou e quem gastou em aquisições de bens e serviços usando um regime simplificado de ajuste directo, porque nunca foi elaborado e publicado um relatório conjunto a ser elaborado por entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde por via de um ‘truque legislativo’.

    A obrigação deste relatório estava consignada num diploma inicialmente publicado em Março de 2020 – e sistematicamente alterado nos meses seguintes – que possibilitava a aquisição de ajuste directos independentemente do montante sem necessidade de quaisquer procedimentos formais, ou seja, sem contrato escrito e com uma simples factura e ordem de pagamento, sem sequer especificar em concreto, em diversos casos, os bens e serviços adquiridos. E sobretudo sem fiscalização prévia do Tribunal de Contas. Foi enquadrado nesta simplificação que se compraram, sobretudo nas primeiras fases da pandemia, os famigerados ventiladores a empresas chinesas – alguns que nunca funcionaram –, e também muito equipamentos de protecção individual e alguns fármacos.

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    Independentemente da obrigação de colocar estas compras no Portal Base, as entidades autorizadas a fazerem estas compras – entre as quais a Direção-Geral da Saúde, a Administração Central do Sistema de Saúde, o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge e a Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) – tinham também de comunicar estas adjudicações aos ministros das Finanças e da Saúde. E mais: ficou expressamente estabelecido que estas entidades deveriam elaborar um relatório conjunto a ser publicado no prazo de 60 dias após o período de vigência do decreto-lei.

    E é aqui que começa o imbróglio legislativo que, na verdade, implica, na interpretação da SPMS, a desobrigação legal de elaboração e conhecimento público cabal destes gastos sem controlo.

    Com efeito, apesar de 83 dos 91 artigos desse diploma terem sido revogados, grande parte dos quais a partir de Setembro de 2022, significa assim que algumas normas de pormenor ainda o colocam como estando em vigor. De entre os poucos artigos que ainda se aplicam está a prorrogação dos vistos de permanência em território nacional que tenham perdido a validade desde Março de 20200, que se genericamente se manterá até 30 de Junho deste ano. Ou seja, em concreto, estando-se em Abril de 2024, não se poderia sequer dizer que havia legalmente um atraso na elaboração do relatório e a sua publicação no site da SPMS, como previsto na primeira metade de 2020.

    Porém, houve um ‘truque jurídico’ cometido pelo anterior Governo, e mesmo que entretanto o Governo Montenegro ‘encerre’ a vigência da totalidade do diploma – ou seja, que o revogue na íntegra –, a exigência da elaboração do relatório deixou de ter cabimento legal, porque o artigo que o previa foi primeiro, deixando de estar em vigor desde 1 de Outubro de 2022. Ou seja, a norma que exigia a elaboração do relatório já não existe quando o diploma onde essa norma esteve inicialmente integrada for ‘eliminado’. Uma ‘eficácia jurídica’ absoluta.

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    Esta é, aliás, a interpretação da presidente da SPMS, Sandra Cavaca, que em resposta a um pedido de documentação administrativa pelo PAGINA UM diz que “a elaboração e a publicação daquele relatório conjunto inicia a sua contagem apenas após o período de vigência do decreto-Lei nº 10-A/2020”, mas tal prazo ainda não se aplica porque “o diploma globalmente considerado permanece vigente”. Mas acrescenta que como o artigo 2º-A, aquele que previa o relatório, foi expressamente revogado, “verdadeiramente não se mantém essa obrigação”.

    Em todo o caso, Sandra Cavaca diz que a SPMS “encetou antecipadamente  diligências no sentido da elaboração do relatório em questão, cuja preparação já se encontra em curso”, não revelando a datada sua conclusão. Porém, esta responsável adianta, desde já, que se “apurou apenas uma adjudicação ao abrigo do procedimento de ajuste directo simplificado”.

    Ora, é aqui que surge mais uma estranheza – ou estupefacção – neste processo de ‘compras à Lagardère’, porque no Portal Base encontram-se alguns milhares de contratos por ajuste directo simplificado celebrados ao abrigo do diploma de excepção – e podem estar muitos casos em falta. Num rápido levantamento do PÁGINA UM, contabilizam-se 1.436 contratos desta natureza com valor superior a 18.000 euros. Note-se que, em situações normais, o regime simplificado para aquisição de bens e serviços só é possível em aquisições até 5.000 euros.

    Sandra Cavaca, presidente da Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS).

    De acordo com este levantamento, o montante destas compras durante a pandemia acima de 18.000 euros totalizam mais de 91 milhões de euros, destacando-se nove compras acima de um milhão de euros e mais 15 ajustes directos em regime simplificado com montantes entre 250 mil e um milhão de euros.

    No topo dos contratos está, na verdade, um contrato ferido de ilegalidade, já desvendado pelo PÁGINA UM em Novembro passado: a Direcção-Geral da Saúde celebrou um contrato no valor de 19,95 milhões de euros do antiviral Paxlovid em 31 de Dezembro de 2022, ou seja, quase três meses após a revogação da possibilidade de fazer uma compra desta ordem de grandeza através de regime simplificado. Ainda por cima, a DGS escondeu esse contrato do Portal Base durante cerca de 11 meses. O Tribunal de Contas ainda não se pronunciou sobre esta evidente ilegalidade.

    Outra compra polémica no sector da farmacologia, feita ao abrigo deste regime de excepção, beneficiou a farmacêutica Merck Sharpe & Dohme que conseguiu convencer a Direcção-Geral da Saúde gastar 3,05 milhões de euros de mulnopiravir em 22 de Setembro de 2022, poucos dias antes da revogação da norma que permitia ajustes directos em regime simplificado, daí que nem sequer se saiba o número de unidades adquiridas. Relembre-se que o molnupiravir, sob a marca comercial Lagevrio, obteve autorização em finais de 2021 na Europa e foi logo bastante elogiado por vários especialistas, estando à cabeça, em Portugal, o actual bastonário da Ordem do Farmacêuticos, Hélder Mota Filipe, e o pneumologista Filipe Froes, um médico do SNS, consultor da Direcção-Geral da Saúde e um dos mais promíscuos consultores de farmacêuticas.

    Porém, o molnupiravir acabou ingloriamente os seus dias em Julho do ano passado, depois de evidência da sua completa ineficácia. Mas antes da retirada do mercado, confirmada pelo Infarmed em 17 de Julho, a Merck embolsou com este “embuste”, e com a conivência de reguladores e o apoio de influencers de Medicina, um total de 5,7 mil milhões de dólares em receitas só em 2022. Recentemente, este fármaco foi mesmo considerado, num artigo científico, como promotor de mutações do SARS-CoV-2

    O segundo maior contrato por ajuste directo simplificado ultrapassou os 10,8 milhões de euros para aquisição de 243 ventiladores à empresa chinesa Guangdong H&P. Comprados em Agosto de 2020, casa unidade ficou a 44.500 euros. O terceiro maior foi também para comprar mais ventiladores: neste caso em Maio de 2020 à empresa chinesa WinWin Machinery no valor de quase 5,2 milhõe4s de euros. Como a compra foi de 300 unidades, o custo unitário pouco ultrapassou os 17 mil euros. Os preços especulativos dos ventiladores foram uma imagem de marca nos primórdios da pandemia: houve um contrato de Março de 2020 com um preço unitário de apenas 10 mil euros.

    Os ventiladores foram, na verdade, os itens mais ‘valiosos’: de entre os 25 maiores contratos por ajuste directo em regime simplificado, 11 estão associados a ventiladores. Somando os contratos que discriminam o número de ventiladores, Portugal terá adquirido através de uma simples factura pelo menos 976 ventiladores que custaram quase 27 milhões de euros, com um preço médio unitário de cerca de 27.570 euros.

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    Nesta análise preliminar do PÁGINA UM também se mostra evidente que houve abusos no uso do regime de excepção, não controlados sequer pelo Tribunal de Contas. Com efeito, este procedimento “só pode[ria] ser promovido pela Direção-Geral da Saúde, pela Administração Central do Sistema de Saúde, I. P., pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, I. P., e pela Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, E. P. E. (SPMS, E. P. E.), relativamente a bens que se destinem a entidades sob tutela do membro do Governo responsável pela área da saúde”.

    No entanto, houve outras entidades de âmbito público que o usaram sem sequer deterem competências específicas no sector da saúde. Por exemplo, em Agosto de 2020 o município de Cascais vendeu ao município de Mafra “equipamento (vestuário) de protecção, no âmbito do COVID [sic]” no valor de 400.842 euros. Não existe informação sobre qual o equipamento e quantas unidades.

    Mais estranho ainda foi o contrato por ajuste directo em regime simplificado no valor de 158.800 euros entre a Leque – Associação de Pais e Amigos com Necessidades Especiais e a Casa da Música. Sem prejuízo de se poder considerar necessária, durante a pandemia, a “aquisição de serviços de componente artística de inclusão social”, não se consegue entender como este contrato pôde beneficiar de uma norma de um diploma de Março de 2020 quando, de acordo com a informação no Portal Base, foi celebrado em 5 de Setembro de 2019, ou seja, seis meses antes da chegada oficial do SARS-CoV-2 em território português. Note-se que este contrato irregular seria divulgado apenas em Setembro de 2021, isto é, dois anos após a data do contrato. Como se está perante um ajuste directo em regime simplificado nem sequer se sabe qual foi o prazo de execução.

    Ofício da presidente da SPMS adianta ter conhecimento de apenas “uma adjudicação ao abrigo do procedimento de ajuste directo simplificado” previsto no Decreto-Lei nº 10-A/2020. Numa consulta no Portal Base, podendo faltar muitos, listam-se vários milhares.

    Há ainda outros dois contratos em regime simplificado um pouco acima dos 100 mil euros, ambos a beneficiarem a MEO, que foram celebrados por entidades não ligadas ao sector da saúde: a autarquia de Odivelas e a Autoridade para as Condições do Trabalho. Neste caso, o abuso é duplo, porque estas duas entidades recorreram ao regime de excepção para a aquisição de computadores.

    Ora, o diploma, saliente-se, somente era permitido para a “aquisição de equipamentos, bens e serviços necessários à prevenção, contenção, mitigação e tratamento de infeção por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, ou com estas relacionados, designadamente equipamentos de proteção individual; bens necessários à realização de testes à covid-19; equipamentos e material para unidades de cuidados intensivos; medicamentos, incluindo gases medicinais; outros dispositivos médicos; [e] serviços de logística e transporte, incluindo aéreo, relacionados com as aquisições, a título oneroso ou gratuito, dos bens referidos” anteriormente, “bem como com a sua distribuição a entidades sob tutela do membro do Governo responsável pela área da saúde ou a outras entidades públicas ou de interesse público às quais se destinem”.


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  • Pandemia em Cascais: Conheça os felizes contemplados com o ‘rico bodo’ de 24,6 milhões de euros

    Pandemia em Cascais: Conheça os felizes contemplados com o ‘rico bodo’ de 24,6 milhões de euros

    Durante a pandemia, a Câmara de Cascais não fez apenas estranhos negócios com uma empresária chinesa que envolveu a produção de máscaras e transação de propriedades. Destacou-se também como a autarquia que mais contratos celebrou para comprar máscaras e testes, pagar pessoal de enfermagem e reabilitar edifícios e o mais que houvesse associado à pandemia. Dinheiro não faltou e 58 empresas esfregaram as mãos com a distribuição de mais de 24,6 milhões de euros, sobretudo uma, a Enerre, cujo dono lucrou tanto com a pandemia que até foi correr o Rally Dakar. No meio deste ‘bodo’, mas para ricos, até uma cidadã da Letónia conseguiu impingir equipamento para alegadamente eliminar o SARS-CoV-2 por 277 mil euros, através de uma empresa criada poucos meses antes e que se ‘esfumou’ entretanto.


    Além de ter encetado um estranho negócio para a produção de máscaras de protecção facial – que também envolveu transação de propriedades, alvo ontem de buscas pela Polícia Judiciária –, a autarquia de Cascais destacou-se durante a pandemia a nunca olha a custos. Quase sempre através de ajustes directos.

    De acordo com um levantamento exaustivo do PÁGINA UM no Portal Base, a Câmara Municipal de Cascais, liderada por Carlos Carreira – que era ‘coadjuvado’ por Miguel Pinto Luz, actual ministro das Infraestruturas –, gastou em pouco mais de dois anos cerca de 24,6 milhões de euros em equipamentos e serviços associados ao combate à pandemia, envolvendo um total de 98 contratos que beneficiaram 58 empresas. Apenas cinco contratos, de pequena dimensão, foram realizados após consulta prévia. A autarquia usou e abusou da faculdade de escolher a dedo os fornecedores.

    E há uma em especial que não se pode jamais queixar: a Enerre. Para esta empresa lisboeta, que antes da pandemia fazia brindes e estampagem de t-shirts, a covid-19 foi a sorte grande. Tanto assim que o seu proprietário deu-se logo em finais de 2020 em fazer o Rally Dakar. Pudera: nesse ano registou lucros de quase 18,2 milhões de euros, cerca de 60 vezes mais do que no ano anterior à pandemia.

    Carlos Carreiras tornou-se, como edil de Cascais, o principal ‘cliente pandémico’ da Enerre, que ainda criaria em 2021 a Enerre Pharma. Antes do surgimento do SARS-CoV-2, a Enerre apenas tivera um contrato com a autarquia cascalense de cerca de 59 mil euros em 2019 para a produção de brindes. Mas depois, foi um fartote. Incluindo a sua subsidiária, a Enerre facturou mais de 14,8 milhões de euros, dos quais quase 12 milhões logo no primeiro da pandemia. Sempre sem competição.

    Os cinco maiores contratos associados à pandemia celebrados por Carlos Carreiras foram todos para a Enerre, sendo que o maior foi assinado em 7 de Abril de 2020. Pela ‘módica quantia’ de 4.857.500 euros foram adquiridas 1,2 milhões de luvas, 2 milhões de máscaras cirúrgicas, 250 mil máscaras FFP2, 200 mil batas e 50 mil viseiras. No caderno de encargos não foi sequer discriminado o preço unitário, sendo certo que o preço médio por cada item adquirido chega a quase 1,3 euros. Foi o tempo da especulação. Mas esse contrato até foi apenas um ‘reforço’ de um outro ajuste directo em 20 de Março, pelo preço de quase 1,2 milhões de euros para adquirir 1,7 milhões de máscaras cirúrgicas, 50 termómetros, dois mil viseiras e dois fatos macacos.

    Não foi apenas a vender equipamentos de protecção individual que a Enerre ganhou dinheiro. De entre os contratos desta empresa, dos quais 12 acima dos 400 mil euros (ou de valor igual), sempre por ajuste directo, estão também vendas de testes e de máquinas dispensadoras de máscaras, bem como de consumíveis para a produção de máscaras. Os dispensadores de máscaras, que acabaram vandalizados, custaram 800 mil euros.

    Carlos Carreiras, edil de Cascais, ostentando um galardão entregue pelo ISCTE como reconhecimento pelo Programa Máscaras Acessíveis e Fábrica de Máscaras em Novembro de 2020.

    Bastante afastada da Enerre, o segundo maior beneficiário das compras de Carlos Carreiras foi uma empresa de segurança, a PSG. Entre 2020 e 2022, esta empresa obteve sete ajustes directos no valor total de mais de 1,4 milhões de euros, o primeiro dos quais em Abril de 2020. O grosso da facturação foi para vigilância dos centros de rastreio e de apoio à vacinação. O último foi assinado em Setembro de 2022, no valor de 212 mil euros, embora fosse também para vigilância de centros de acolhimento.

    Também com facturação acima de um milhão de euros associados à pandemia encontram-se mais duas empresas, a Briticasa (com quase 1,2 milhões de euros) e a Blue Ocean Medical (com 1,15 milhões de euros). A primeira empresa foi escolhida por Carreiras para quatro empreitadas por ajuste directa. Em Junho de 2020 pelas obras de reconversão de um armazém pagou-se mais de 342 mil euros; depois em Janeiro do ano seguinte foi mais uma empreitada para criação de sete gabinetes médicos no Centro de Congressos do Estoril (com um custo de 72 mil euros) e até ao meio de 2021 dois ajustes directos para empreitadas de reabilitação destinadas a centros de vacinação, que totalizaram 780 mil euros.

    Quanto à segunda empresa, trata-se de uma prestadora de trabalho temporária, neste caso de pessoal de enfermagem para os centros de vacinação. Por quatro ajustes directos, a autarquia de Cascais celebrou sem pestanejar – ou seja, nem sequer fez consulta de mercado – quatro contratos por ajuste directo entre Março de 2021 e Março de 2022. O primeiro contrato, no valor de 150 mil euros, celebrado em Março de 2021 deveria ter tido uma duração de 304 dias, mas acabaria por ser ‘reforçado’ por mais três, dois de 350 mil euros e outro de 300 mil.

    A pandemia permitiu ao dono da Enerre, Lourenço Rosa, aumentar em 60 vezes o lucro de 2020 face ao ano anterior. Como ‘prémio pessoal’, foi participar no Rally Dakar. A autarquia de Cascais foi o seu melhor cliente, facturando 14,8 milhões de euros.

    Excluindo um ‘contrato interno’ – em Julho de 2020, a autarquia pagou 540 mil euros à sua empresa municipal Cascais Dinâmica pelo aluguer de 60 dias do Centro de Congressos do Estoril –, também se destaca nesta distribuição de dinheiros públicos a celebração de dois contratos no valor de um milhão de euros com dois importantes laboratórios de análises: os de Joaquim Chaves e os de Germano de Sousa. O primeiro contrato, porém, só resultou no pagamento de pouco mais de 28 mil euros, enquanto o segundo acabou por dar uma despesa de pouco mais de 65 mil euros. Estes testes serviam para detectar a presença de anticorpos após a infecção pelo SARS-CoV-2, mas a autarquia não se mostrou interessada em monitorizar a eficácia protectora da vacina e da imunidade natural.

    No meio dos contratos com valor mais elevado destaca-se ainda um completamente estapafúrdio. A empresa municipal Cascais Próxima decidiu comprar a uma empresária da Letónia, a morar no Porto, de seu nome Liene Strode, um “equipamento de purificação e desinfecção de ar com eficácia contra o SARS-COVID 19 [sic], incluindo o transporte, descarga e entrega”. O caderno de encargos está ausente no Portal Base, sabendo-se apenas que foi pago 277.200 euros em Fevereiro de 2021.

    A empresa, denominada Real Amplitude, foi criada apenas em 2 de Junho de 2020, mas só conseguiu convencer mais uma entidade pública dos seus ‘magníficos’ equipamentos, que a Agência de Protecção Ambiental norte-americana (EPA) diz “não ser suficiente para proteger as pessoas da covid-19” –, tendo vendido em Março de 2021 por 4.466 euros um outro equipamento de purificação e desinfecção para a covid-19 ao município de Torre de Moncorvo. Como foi celebrado por ajuste directo simplificado nem sequer houve contrato escrito.

    Miguel Pinto Luz, actual ministro das Infraestruras e Habitação, ocupou até Janeiro deste ano a vice-presidência da autarquia de Cascais.

    A empresa da cidadã letã não apresentou contas em 2022 e não tem sequer um site se encontra qualquer site, o que é estranho para quem, no objecto social, se apresenta como “agentes do comércio por grosso de máquinas, equipamento industrial, embarcações e aeronaves; agentes do comércio por grosso misto sem predominância como por exemplo, produtos médicos e de higiene; comércio por grosso de produtos químicos; comércio por grosso de outros bens intermédios”.

    Mas, afinal, a venda deste ‘equipamento’ a Cascais só custou 277.200 euros, pouco mais de 1% daquilo que o município de Carlos Carreiras distribuiu a dezenas de empresas sem qualquer controlo.

    Saliente-se ainda que, ao contrário do que disse Carlos Carreiras, o actual ministro das Infraestruturas, Miguel Pinto Luz, não esteve alheado dos contratos associados à pandemia. Foi ele que em Junho de 2020 se destacou na promoção da unidade de produção de máscaras na tal unidade com equipamentos vindos da China, e que prometiam tornar o município auto-suficiente e até vender para outras autarquias. Acabou tudo em logro, até porque a sua maquinaria rapidamente avariou.


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  • Pandemia: Suicídios bem para cima em Espanha, mas para baixo em Portugal

    Pandemia: Suicídios bem para cima em Espanha, mas para baixo em Portugal

    Dados actualizados no início deste mês pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) mostram que se contabilizaram em Portugal menos suicídios em 2020 e 2021, face aos anos anteriores, embora informações do Eurostat mostrem que houve um aumento relevante nos menores de 25 anos. Porém, na Espanha a gestão da pandemia ‘bateu forte’, com um aumento de 28% no total das mortes auto-infligidas no biénio de 2020-2021 quando comparado com os dois anos anteriores à pandemia. Um estudo agora divulgado numa revista científica sobre a realidade espanhola disseca as causas e os grupos de risco, expondo os fortes danos causados por medidas que levaram ao isolamento social. Também uma recente revisão sistemática que analisou 34 estudos científicos recomenda uma análise mais aprofundada aos anos pós-pandemia para se avaliar os verdadeiros impactes das restrições impostas durante a pandemia, com perda de laços sociais e degradação da situação económica.


    Afinal, Portugal registou menos suicídios nos dois primeiros anos da pandemia, mantendo inalterada a tendência decrescente da última década, mas na vizinha Espanha – que foi alvo de um exaustivo estudo sociodemográfico agora publicado numa prestigiada revista científica – os números aumentaram, ultrapassando a fasquia das 4.000 mortes em 2021.

    Os dados portugueses foram agora actualizados pelo Instituto Nacional de Estatística, no passado sábado com a divulgação da causa de morte em 2021, e indicam que afinal foram 934 as pessoas que tiraram a sua própria vida. Estes números são ligeiramente mais baixos (menos 18 óbitos) do que os avançados pelo Instituto de Medicina Legal para o mesmo período, que em 2022 divulgou que, no ano anterior, se tinham registado 952 suicídios. Certo é que os números agora indicados pelo INE são os mesmo que constam no Eurostat. Os números de 2021 são também inferiores aos de 2020, que contabiliza 945. Comparando este biénio com o de 2018-2019, observa-se um decréscimo de 5,5%.

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    Esta descida nos suicídios em território nacional ocorreu num período de confinamentos, encerrament0 de escolas e outras medidas políticas geraram um forte impacto negativo na saúde mental da população. Embora os dados do INE não mostrem informação por grupo etário, a base de dados do Eurostat revela que em Portugal tiraram a vida 80 jovens com menos de 25 anos no biénio 2020-2021, quando esse número se situou nos 66 no biénio 2018-2019. Recorde-se que Portugal optou por seguir a maior parte dos países europeus e impor fortes medidas restritivas, enquanto a Suécia manteve a sua economia a funcionar e, em geral, com ligeiras excepções, não impôs confinamentos, nem fechou escolas nem comércio e não recomendou o uso de máscara facial. Note-se que no caso da Suécia, o suicídio jovem (menos de 25 anos) diminuiu durante a pandemia, embora este seja um país tradicionalmente com uma muito elevada prevalência mortes auto-infligidas (oficialmente, cerca de três vezes superior à portuguesa=.

    A tendência observada pelos dados do INE está também em forte contraciclo com os suicídios registados em Espanha durante a pandemia. Segundo um estudo científico da edição do próximo mês de Maio, mas já online, da revista revista European Neuropsychopharmacology as mortes por suicídio em Espanha nos dois primeiros anos da pandemia foram de 3.941 em 2020 e de 4.003 em 2021. Estes são os números mais elevados pelo menos desde 2013, de acordo com a base de dados do Eurostat. Comparando 2020-2021 com os dois anos anteriores à pandemia, a subida é de 28%.

    O estudo sociodemográfico elaborado por uma equipa multidisciplinar de Espanha, Estados Unidos e México confirma “um número crescente de vítimas de suicídio na Espanha durante a pandemia”, concluindo que “a influência da covid-19 nos factores de risco de suicídio [por exemplo, falta de redes de apoio social] desempenha[ram} um papel crítico na tendência crescente de grupos sociodemográficos específicos”.

    Evolução do número de suicídios na Espanha (esquerda) e em Portugal (direita) entre 2013 e 2022. Fonte: Eurostat. Nota: A população espanhola é 4,59 vezes a portuguesa.

    Apesar de os investigadores terem observado “um aumento global, independentemente dos principais grupos sociodemográficos”, concluíram que se registou “um número significativamente maior de suicídios também foi observado para adultos de meia-idade, grandes áreas urbanas e pessoas solteiras”.

    Os investigadores destacaram ainda que, “as medidas de distanciamento social permitiram reduzir as oportunidades de fazer e fortalecer as redes sociais em pessoas solteiras”. Recordaram que “as medidas de distanciamento social foram mais rigorosas nas capitais de província e nas grandes áreas urbanas, aquelas com acesso limitado a espaços verdes ao ar livre”. Assim, “a implementação de medidas de distanciamento social levou definitivamente a uma redução drástica dos contactos sociais através do distanciamento físico, confinamentos domiciliários e o encerramento temporário de muitas atividades sociais nas grandes áreas urbanas (restaurantes, bares, ginásios,…)”.

    O impacte da gestão da pandemia nas doenças mentais e na promoção de factores de risco do suicídio tem vindo a merecer uma reforçada atenção da investigação científica. Por exemplo, uma recente revisão sistemática, publicada em Fevereiro passado na revista Social Psychiatry and Psychiatric Epidemiology concluiu, após analisar 34 estudos realizados em mais de 40 países e regiões, que “nenhuma mudança significativa nas taxas de suicídio foi observada durante a pandemia de covid-19 de uma perspectiva global para os períodos examinados”. Mas os autores do estudo intitulado sugeriram que fosse realizado “um acompanhamento mais longo pode fornecer informações adicionais sobre essas tendências de suicídio globalmente”.

    Para a psicóloga Joana Amaral Dias, ainda é prematuro tirar conclusões destes dados divulgados pelo INE relativos a Portugal. “Como investigadora e especialista, não confio nos novos dados. Por um lado, sabemos que foram baralhadas as mortes por covid-19 com as mortes por outras causas. Por outro lado, os dados estiveram escondidos e demoraram tempo a ser divulgados”, afirmou em declarações ao PÁGINA UM.

    Primeira página do artigo científico da edição de Maio da revista European Neuropsychopharmacology, já disponível online desde o mês passado, aborda em detalhe o forte impacte da pandemia nos suicídios em Espanha durante a pandemia.

    Salientando que a aparente tendência de descida dos suicídios em Portugal na pandemia, indicada pelos números oficiais, não batem certo com a epidemia de doenças do foro mental, a psicóloga relembra que “as pessoas foram sujeitas a pressão sobre a sua saúde mental devido às restrições impostas”. “Houve um acréscimo brutal de casos de ansiedade e depressão na população, que é a base que leva aos suicídios”, salientou.

    Para Joana Amaral Dias defende a necessidade de aguardar pelos dados de 2022 e 2023 para se poder tirar alguma conclusão, referindo que em 2020 e 2021 a população entrou em “modo de sobrevivência devido ao medo imposto, nomeadamente através da comunicação social”, havendo consequências que demoram a surgir. “É como quando estamos a correr e caímos e magoamos o joelho. Inicialmente, porque o corpo está quente, conseguimos levantar e andar e quase não sentimos dores. Mas, quando ficamos frios, aí as dores surgem e vamos dar-nos conta dos reais danos”. No caso dos suicídios em Portugal, “temos de esperar pelos dados de 2022 e 2023 para ver o que realmente aconteceu na pandemia”. Para a psicóloga, os dados divulgados pelo INE “são insuficientes para se traçar um perfil” do que sucedeu na pandemia em matéria de evolução dos suicídios.

    Por outro lado, Joana Amaral Dias recordou que muitos portugueses recorreram ao consumo de álcool ou de estupefacientes para lidar com os confinamentos e as fortes restrições impostas à população. “Disparou o consumo de antidepressivos e ansiolíticos e somos campeões no consumo de benzodiazepinas”, lembrou.

    Com efeito, um relatório do Conselho Internacional de Controlo de Narcóticos colocou Portugal no grupo de países com maior consumo de psicotrópicos, como o diazepam, que começou a ser comercializado sob a marca Valium. Já o relatório anual deste organismo da Nações Unidas refere que, em 2022, o Uruguai registou o maior nível de consumo de zolpidem (um fármaco hipnótico) a nível mundial, seguido de Portugal. O mesmo relatório aponta que de acordo com dados sobre a cetamina (um anestésico não barbitúrico) detectada nas águas residuais, as quantidades mais elevadas foram encontradas em cidades da Dinamarca, Itália, Portugal e Espanha.

    Joana Amaral Dias (Foto: Júlia Oliveira/PÁGINA UM)

    Quanto ao consumo de estupefacientes, o relatório anual de 2022 sobre ‘A Situação do País em Matéria de Drogas e Toxicodependência‘, o número de casos de overdoses em 2021 atingiu o valor mais alto deste 2009, tendo ocorrido 81 mortes em 2021, mais 29% do que em 2020, o valor mais elevado dos últimos sete anos. E destacou ainda que, “em relação aos 339 óbitos registados em 2021 com a presença de substância ilícita ou seu metabolito e atribuídos 119 a outras causas de morte (acidente, morte natural, homicídio e suicídio), a cannabis foi predominante, tendo sido detectada em 159 casos (47%)”.

    Já os dados referentes a 2022, referem que as outras mortes com a presença de drogas (367) – atribuídas a morte natural (41%), acidentes (26%), suicídio (15%) e homicídio (6%) – têm vindo a aumentar desde 2016, atingindo em 2022 o valor mais alto desde 2008.

    Também no consumo de álcool, as medidas impostas acabaram por ter consequências na saúde mental e comportamentos aditivos. Segundo o relatório anual de 2022 sobre ‘A Situação do País em Matéria de Álcool‘, “vários indicadores ultrapassaram já em 2021 os níveis pré-pandémicos, entre eles, os readmitidos em tratamento por problemas relacionados com o uso de álcool (o valor mais elevado desde 2012), os internamentos hospitalares com diagnóstico principal ou secundário atribuíveis ao consumo de álcool e as sinalizações e diagnósticos de exposição de crianças/jovens a comportamentos relacionados com o consumo de bebidas alcoólicas que afetam o seu bem-estar e desenvolvimento (ambos com os valores mais altos dos últimos cinco anos)”.

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    (Foto: D.R.)

    Para Joana Amaral Dias, além de ser relevante uma maior transparência nos dados sobre suicídios divulgados em Portugal, também sublinha a importância de se debater publicamente o tema para melhorar o nível de literacia da população e melhor prevenir os suicídios. A psicóloga classifica de “completamente idiota a posição de não se divulgarem os casos de suicídio na comunicação social por receio de serem copiados”. “Tudo é contágio social! É preciso perceber que o próprio temor induzido pelos media na covid-19 causa contágio social”, alertou.

    Segundo a psicóloga, “não se noticiar e não se falar no tema causa mais prejuízo, porque é preciso desmistificar” e também defende a “criação de uma política pública mais responsável de abordar o tema de forma séria”.


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  • Autoridade de segurança alimentar em França põe em xeque águas minerais da Nestlé

    Autoridade de segurança alimentar em França põe em xeque águas minerais da Nestlé

    É um ‘escândalo das águas minerais’ por agora apenas em França, mas que poderá vir a ter repercussões em todas as marcas. A Agência Francesa para a Segurança Alimentar, Ambiental e da Saúde no Trabalho (ANSES) concluiu, num relatório oficial confidencial divulgado ontem pelo jornal Le Monde, que as nascentes da Nestlé Waters, líder mundial do mercado de águas minerais, apresentam problemas de poluição bacteriológica e de contaminantes persistentes, e acusa o grupo suíço de recorrer a técnicas não autorizadas de purificação. Em declarações ao PÁGINA UM, a directora de comunicação da Nestlé Waters na França defende que as águas comercializadas pelo grupo suíço são “regularmente” testadas pelas autoridades, mas não quis comentar o relatório, alegando desconhecer o seu conteúdo. Apesar de uma presença residual da Nestlé Waters no mercado nacional, onde comercializa sobretudo a marca Aquarel (engarrafada em Espanha), na França este caso está a causar grande polémica, e a eurodeputada Marie Toussaint, do partido Les Écologistes, já exigiu que sejam retiradas das prateleiras dos supermercados as garrafas de águas minerais deste grupo suíço, como a Hépar, Contrex, Vittel e Perrier, que provêm de nascentes de Vosges e Vergèze.


    A multinacional Nestlé, líder mundial no sector das águas minerais, está sob a mira das autoridades francesas depois de ser revelado um relatório oficial que alerta para a “qualidade sanitária” das águas minerais engarrafadas pelo grupo suíço. Apesar de ser um segmento residual, com 3,5% do total das vendas do grupo, as águas da Nestlé representaram vendas de 3,4 mil milhões de euros em 2023 a nível mundial, embora a quota em Portugal seja marginal, vendendo sobretudo as marcas Aquarel e Perrier.

    O jornal Le Monde e a France Info revelaram ontem que um relatório da Agência Francesa para a Segurança Alimentar, Ambiental e da Saúde no Trabalho (ANSES) afirma que as águas minerais do Nestlé Waters não têm garantida de qualidade sanitária. Esta conclusão surge depois de um outro relatório desta entidade enviado ao Ministério da Saúde em Outubro do ano passado recomendar uma monitorização mais intensa aos procedimentos de captação e engarrafamento das águas minerais. Apesar de ter outras nascentes, em diversas países, as principais fontes da Nestlé Water, que comercializa sobre as marcas Hépar, Contrex, Vittel e Perrier, entre outras, localizam-se em Vosges e Vergèze, em território francês. Em Portugal, a Nestlé comercializa a Aquarel, proveniente de nascentes em Herrera del Duque, na Extremadura, e no Parque Natural de Montesny, na Catalunha.

    Foto de uma garrafa de água mineral da marca ‘Vittel’, da Nestlé. (Foto: D.R.)

    As aguas minerais naturais (AMN) são águas de circulação subterrânea, consideradas bacteriologicamente próprias, com características físico-químicas estáveis na origem, distinguindo-se das águas de nascentes que, para serem comercializadas apenas necessitam de ser bacteriologicamente puras. Por lei, com excepção de alguns tratamentos físicos específicos, nenhuma destas águas pode ter qualquer adição de produtos de purificação ou de alteração das características organolépticas, como cor e sabor.

    As suspeitas sobre a qualidade das águas da Nestlé surgiram depois de um denunciante do Grupo Alma em 2021 ter desencadeado sucessivas investigações por parte da agência de controlo do consumidor francesa (DGCCRF) sobre as práticas dos produtores franceses de água engarrafada. Da investigação, saiu a descoberta de que a Nestlé Waters utilizaria métodos de desinfecção proibidos, como purificação por luz ultravioleta, tratamentos com carvão activado e microfiltração inadequada. Esses métodos são geralmente usados em tratamento de água para torneira, vendida obviamente a preços mais muitíssimo mais baixos.

    De acordo com o Le Monde, as autoridades públicas francesas passaram meses a desvendar gradualmente até que ponto os fabricantes de águas minerais engarrafadas estavam a usar tratamentos proibidos para lidar com a deterioração da qualidade das nascentes. Em teoria, o interesse comercial, e de marketing, das águas minerais é de serem provenientes de zonas isentas de poluição bacteriana ou química.

    (Foto: D.R.)

    No documento da ANSES, ontem citado pela imprensa francesa, confirmava-se a contaminação generalizada com bactérias, pesticidas, produtos perfluoroalquiladas (PFAS) – considerados contaminantes sintéticos de longa duração – das fontes naturais de água mineral exploradas pelo grupo Nestlé em França. Os especialistas apontam também um “nível de confiança insuficiente” para garantir “a qualidade sanitária” das águas minerais naturais engarrafadas das marcas Perrier, Contrex, Vittel e Hépar, entre outras, propriedade do grupo. 

    Perante um caso que já é considerado como o “escândalo da água”, o partido francês Les Écologistes, onde se destaca a eurodeputada Marie Toussaint, exigiu hoje a retirada das águas da Nestlé dos supermercados.

    Já no final de Janeiro deste ano, a Radio France e o Le Monde revelaram que um relatório da Inspeção-Geral dos Assuntos Sociais, apresentado ao Governo em Julho de 2022, que estimava que pelo menos 30% das marcas de água engarrafada utilizavam tratamentos proibidos por regulamentos, incluindo todas as marcas operadas pela Nestlé.

    O PÁGINA UM colocou questões à Nestlé Portugal sobre estas revelações e sobre os impacte no mercado nacional. As respostas vieram, porém, da própria directora de comunicação da Nestlé Waters em França, Elodie Lemeunier, não esclarecendo as questões concretas sobre as águas comercializadas em Portugal. Segundo esta responsável, “nos últimos três anos, a Nestlé Waters France empreendeu um plano de transformação com total transparência e sob o controlo das autoridades, partilhando com elas todos os
    dados relativos às nossas águas minerais naturais nas nossas duas unidades de produção em Vosges e Vergeze”, acrescentando que ainda não tiveram acesso ao relatório da ANSES “referenciado nos meios de comunicação social, pelo que não estamos em posição de comentá-lo”.

    Partido Les Ecologistes exige retirada das águas da Nestlé.

    E reitera que “a Nestlé Waters France sempre operou sob um sistema integrado de gestão da qualidade”, baseando-se “num sistema de filtragem combinado com um programa rigoroso de limpeza das tubagens de água e na análise de mais de 1.500 parâmetro, incluindo parâmetros físico-químicos, microbiológicos e sensoriais, para garantir a segurança das águas minerais naturais durante todo o processo produtivo”.

    Elodie Lemeunier garante também que houve reforços no controlo através de análises que “são constantemente partilhados com as autoridades que testam regularmente as nossas águas minerais, tanto na origem como no produto acabado, para confirmar a conformidade com os requisitos regulamentares aplicáveis, incluindo padrões de segurança e qualidade alimentar”.


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  • Ministra da Saúde geriu em conta pessoal 1,3 milhões de euros dados por farmacêuticas sem pagar imposto de selo

    Ministra da Saúde geriu em conta pessoal 1,3 milhões de euros dados por farmacêuticas sem pagar imposto de selo

    Ana Paula Martins, a nova ministra da Saúde, teve um papel determinante numa campanha solidária durante a pandemia em parceria com a Ordem dos Médicos e o seu bastonário Miguel Guimarães, actual deputado do PSD, que angariou mais de 1,4 milhões de euros; destes cerca de 1,3 milhões vieram de farmacêuticas. Mas apesar das boas intenções, as irregularidades e ilegalidades marcaram a gestão dos dinheiros. Em vez de uma conta institucional, foi criada uma conta pessoal, tendo Ana Paula Martins como um dos três co-titulares, e não foi pago um imposto de selo devido de mais de 125 mil euros. Além disso, embora os pagamentos de géneros se realizassem através dessa conta pessoal, as facturas foram emitidas em nome da Ordem dos Médicos, podendo dar azo a um ‘saco azul’. Para as farmacêuticas terem benefícios fiscais, também foram promovidas centenas de falsas declarações, incluindo até de hospitais e da Associação Nacional de Farmácias e da Liga dos Bombeiros. Esta é uma investigação do PÁGINA UM iniciada ainda em 2022, e ainda não concluída; tal como não concluída parece estar uma auditoria externa prometida há dois anos.


    A nova ministra da Saúde vai entrar em funções com um ‘elefante na sala’ que muitos tentam negar a existência, apesar do seu volume. Durante a pandemia, em colaboração com a Ordem dos Médicos, Ana Paula Martins foi, enquanto bastonária da Ordem dos Farmacêuticos, co-gestora de uma campanha de solidariedade que amealhou, entre outros pequenos donativos, mais de 1,3 milhões de euros da indústria farmacêuticas, mas a contrário daquilo que seria expectável, a entrada e saída de dinheiro vivo foi feita através de uma conta por si titulada, em nome pessoal, em parceria com Miguel Guimarães – antigo bastonário dos médicos e actual deputado do PSD – e Eurico Castro Alves, ex-secretário de Estado da Saúde no curto segundo mandato de Passos Coelho.

    Apesar da suposta bondade desta campanha – atribuir sobretudo material e equipamentos de protecção contra a covid-19 a instituições de solidariedade social e unidades hospitalares –, de entre as irregularidades e ilegalidades detectadas pelo PÁGINA UM – que investiga a gestão do fundo “Todos por uma causa” desde 2022, estando ainda a aguardar-se o cumprimento de uma sentença do Tribunal Administrativo por parte da Ordem dos Médicos –  incluem-se contabilidade paralela, fuga ao fisco e falsas declarações para obtenção de benefícios fiscais e facturas falsas.

    Ana Paula Martins e Miguel Guimarães foram protagonistas de uma campanha solidária cheia de irregularidades e ilegalidades (D.R./Ordem dos Médicos)

    Criada logo no início da pandemia em Portugal, a campanha “Todos por Quem Cuida” teve por base um protocolo assinado em 26 de Março de 2020 entre as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos e a Apifarma, que apresentava toda a aparência de um fundo solidário com bons propósitos, e que serviria numa primeira fase apenas para canalizar “contributos monetários (…) ou em espécie” de farmacêuticas para “o apoio à aquisição de equipamentos hospitalares, equipamentos de protecção individual e outros materiais necessários aos profissionais de saúde que se encontra[ssem] a trabalhar nas instituições de saúde”.

    Porém, no início do mês de Abril de 2020 – e também por via de um despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que alargava a possibilidade de benefícios fiscais por donativos aos hospitais –, as três entidades decidiram alargar o âmbito da campanha para um “fundo solidário” público, nomeando, de acordo com os documentos consultados pelo PÁGINA UM, Manuel Luís Goucha como “embaixador da iniciativa”.

    E foi aqui que começaram as irregularidades. Ao invés da conta solidária ser assumida pelas duas ordens profissionais – ou apenas por aquela com maior protagonismo, a Ordem dos Médicos – foi decidido que a conta com o NIB 003506460001766293021, aberta no balcão da Caixa Geral de Depósitos na Portela de Sacavém seria titulada por três pessoas: José Miguel Castro Guimarães, Ana Paula Martins Silvestre Correia e Eurico Castro Alves.

    Ana Paula Martins, ontem, na tomada de posse como ministra da Saúde.

    A partir daqui as irregularidades surgiram em catadupa. Sendo que a conta não era institucional – mas sim de três pessoas, independentemente dos cargos ocupados –, o pedido de autorização ao Ministério da Administração Interna para a angariação de fundo omite o facto de que o NIB em causa não era das entidades promotoras: a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticas. Aliás, são indicadas no final do pedido duas contas que nunca foram usadas na angariação. Ou seja, os donativos em vez de segurem para uma conta institucional das entidades anunciadas como promotoras destinaram-se afinal para uma conta de três pessoas.

    Por outro lado, o pedido de autorização apenas foi feito em 27 de Julho de 2020, quando a angariação de donativos se iniciou em 6 de Abril daquele ano, ou seja, mais de três meses antes. À data do pedido de autorização ao Ministério da Administração Interna já a conta titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves tinha um saldo de 716.501,51 euros. Por lei, a angariação deve ser precedida da autorização ministerial.

    Por outro lado, nessas circunstâncias jamais se poderia aplicar a lei do mecenato ou outro tipo de benefício na obtenção de donativos, porque em termos formais estava-se perante uma recolha de donativos para uma conta de três pessoas. Nessa medida, Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves deveriam ter pago solidariamente o imposto de selo no valor de 10% de todos os donativos recebidos acima dos 500 euros.

    Pedido de autorização para angariação de donativos omite que a conta solidária não era titulada pela Ordem dos Médicos e Ordem dos Farmacêuticos.

    Ora, face aos montantes das diversas transferências da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma), todas individualmente acima dos 500 euros, a actual ministra da Saúde e os seus parceiros deveriam ter declarado à Autoridade Tributária e Aduaneira o recebimento de 1.2561.251 euros, o que implicaria o pagamento de 125.125,10 euros de imposto de selo. Na documentação consultada pelo PÁGINA UM, nomeadamente extractos bancários, não existe qualquer saída de dinheiro para esse cumprimento fiscal.

    Existiram pelo menos mais 13 transferências bem acima de 500 euros que também não terão sido declaradas às Finanças nem pago o imposto de selo, a saber: ASPAC (35.000 euros), Bial (20.000 euros), Bene (20.000 euros). Ipsen (12.000 euros), Atral (10.000 euros), Falinhas Mansas (10.000 euros), Angelini (10.000 euros), Apormed (5.000 euros), Rial Engenharia (5.000 euros), Medicina G Medeiros Marques (1.500 euros), Forex ACI (1.500 euros), Gin Lovers (1.080 euros) e Multiclínicas Far (1.000 euros).

    Contas feitas, segundo os cálculos do PÁGINA UM com base nos extractos bancários, Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves receberam 41 donativos superiores a 500 euros e deveriam ter pagado 138.333,10 euros de imposto de selo. E nunca o fizeram.

    Confirmação de que a conta solidária tinha como titulares Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, ou seja, não era uma conta institucional.

    Além desta grave falha fiscal – independentemente dos objectivos da da campanha –, os três titulares da conta solidária deveriam ter declarado no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed, por serem profissionais de saúde, todos os donativos de farmacêuticas, incluindo da Apifarma, que ultrapassaram mais de 1,3 milhões de euros. Ana Paula Martins – que, depois de abandonar a liderança da Ordem dos Farmacêuticos, ainda passou vários meses na Gilead –, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves nunca fizeram essa declaração obrigatória. Saliente-se que Ana Paula Martins terá a partir de agora a tutela do Infarmed.

    Além destas irregularidades e incumprimentos fiscais, o uso da conta solidária em nome de três pessoas permitiu uma estranha e ilegal contabilidade paralela de todas as operações de aquisição, designadamente de facturação e pagamentos, dos equipamentos e materiais a serem doados.

    Na consulta à documentação contabilística da campanha “Todos por Quem Cuida”, o PÁGINA UM identificou 34 facturas no valor total de 978.167,15 euros que entraram na contabilidade da Ordem dos Médicos (pela aquisição de equipamento de protecção individual, câmaras de entubamento e ventiladores), mas sem que esta entidade tenha alguma vez feito qualquer pagamento. Na verdade, quem pagou foi a conta titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves. As facturas assumidas pela Ordem dos Médicos, mas que foram afinal pagas com a conta solidária (à margem da Ordem dos Médicos) podem ser consultadas AQUI.

    Uma das ordem de pagamento assinadas por Ana Paula Martins foi para transferir 27.365,20 euros ao Hospital das Forças Armadas como contrapartida pela disponibilização de locais e pessoal de enfermagem para vacinar, contra as regras da Direcção-Geral da Saúde, médicos considerados não-prioritários em Fevereiro de 2021, uma iniciativa pessoal de Miguel. Esta decisão, com a concordância do então coordenador da task force Gouveia e Melo, após diversas reuniões, continua a ser analisada (há mais de um ano) pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS). A factura das Forças Armadas foi, contudo, emitida em nome da Ordem dos Médicos. E a Ordem dos Médicos viria depois a emitir declaração (falsas) de recepção de donativos por parte de quatro farmacêuticas. Uma dessas falsas declarações de donativo, no valor de 3.725,20 foi passada em Março de 2022 à Gilead. Nesta altura, Ana Paula Martins – que terminara o mandato em Fevereiro na Ordem dos Farmacêuticos – já ocupava o cargo de directora dos negócios governamentais desta farmacêutica norte-americana.

    Sendo legal que um terceiro possa proceder ao pagamento de facturas de uma determinada entidade – ou seja, era legítimo que Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves usassem a sua conta solidária para saldar as compras dos géneros a doar –, essa informação teria, porém, de constar na contabilidade da Ordem dos Médicos. Como tal não sucedeu – ou pelo menos, nunca foi apresentado ao PÁGINA UM qualquer documento comprovativo –, na prática significa que a Ordem dos Médicos foi acumulando despesas – até chegar aos 978.167,15 euros – sem ter saído qualquer verba dos seus cofres.

    Esse ‘crédito informal’ criou condições, pelo menos em teoria, para se formar um ‘saco azul, ou mesmo um desvio de verbas. Para tal, bastaria que responsáveis da Ordem dos Médicos com acesso às contas oficiais fossem retirando os valores exactos das facturas que iam recebendo dos fornecedores dos bens comprados no âmbito da campanha “Todos por Quem Cuida”.

    Através da conta pessoal de que era co-titular, Ana Paula Martins assinou uma ordem de transferência bancária ao Hospital das Forças Armadas num acordo com a task force liderada por Gouveia e Melo para pagar a vacinação contra a covid-19 de médicos não-prioritários numa altura de escassez de vacinas. Mas a factura das Forças Armadas foi emitida em nome da Ordem dos Médicos.

    Vejamos um exemplo. A factura nº 551 passada pela Clotheup em 2 de Outubro de 2020 pela aquisição de batas descartáveis no valor de 110.700 euros foi emitida à Ordem dos Médicos. Tendo sido uma aquisição a pronto de pagamento, não houve saída de dinheiro da Ordem dos Médicos, porque quem a pagou foi a conta solidária de Ana Paula Martins e dos outros dois co-titulares. Ora, nesse dia, poderia ter sido “desviada” a verba de 110.700 euros da conta bancária oficial da Ordem dos Médicos, não havendo assim o mínimo sinal de qualquer desfalque, uma vez que existia uma factura a suportar essa saída. Esse expediente pode aplicar-se a qualquer outra das 31 aquisições identificadas pelo PÁGINA UM.

    Houve, porém, mais irregularidades fiscais. Apesar de todos os donativos terem tido como destinatário a conta solidária – titulada, repita-se, por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves –, as farmacêuticas quiseram aproveitar os benefícios fiscais da Lei do Mecenato, que um despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais alargou, em Abril de 2020, também para os hospitais públicos.

    Nessa medida, os serviços operacionais da Ordem dos Médicos instruíram as largas dezenas de IPSS e outras entidades – que incluíram mesmo a PSP, a Liga dos Bombeiros, a Associação Nacional de Farmácias e até hospitais públicos e privados – a passarem declarações atestando que, afinal, receberam donativos em géneros das farmacêuticas, que lhe eram especificamente indicadas.

    Deste modo, um dos trabalhos (mais meticulosos) da equipa da Ordem dos Médicos, que Miguel Guimarães colocou na gestão operacional da “sua campanha”, passou por preencher intrincados “puzzles” entre os donativos em dinheiro fornecidos à conta solidária e os valores dos géneros recebidos pelas instituições. Assim, em vez das declarações de recepção dos donativos pelas diversas entidades beneficiadas serem passadas à conta solidária – em termos formais, aos três titulares da conta – ou à Ordem dos Médicos, foram encaminhadas para determinadas farmacêuticas.

    Ana Paula Martins, actual ministra da Saúde, e Miguel Guimarães, actual deputado do PSD, ganharam protagonismo com a pandemia. A gestão de um ‘bolo’ de 1,4 milhões de euros numa campanha solidária, financiada sobretudo pelas farmacêuticas, deu uma ajuda.

    Logo, a título de exemplo – e é mesmo um só exemplo, porque existem largas centenas de casos, reportados e fotografados pelo PÁGINA UM durante a consulta dos dossiers contabilísticos e operacionais da campanha “Todos por Quem Cuida” –, é falsa a declaração de 23 de Março de 2021 da Liga dos Bombeiros Portugueses, bem como a competente carta de agradecimento do então presidente Jaime Marta Soares, de que foi a farmacêutica Gilead que lhes entregou 4.984 batas cirúrgicas, 1.661 litros de álcool gel, 831 máscaras cirúrgicas, 2.492 óculos reutilizáveis, 664 fatos integrais tamanho M e 664 tamanho L, e ainda 4.153 viseiras, tudo no valor de 103.400,60 euros.

    Neste caso particular – que é extensível a todas as outras farmacêuticas envolvidas nesta campanha –, a Gilead terá sim apenas entregado, através da Apifarma, um donativo de valor desconhecido, para uma campanha solidária, titulada por três pessoas. Formalmente, teriam de ser as três titulares dessa conta (Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves), e não as entidades beneficiadas com os géneros doados, a passar uma declaração de recepção desse donativo à Gilead (e às outras farmacêuticas). Porém, se assim fosse, as farmacêuticas não teriam hipóteses de usufruir de qualquer benefício fiscal, uma vez que o Estatuto do Mecenato não abrange donativos a pessoas singulares – e nem a Ordens profissionais, acrescente-se.

    Outro caso paradigmático passou-se com a Associação Nacional de Farmácias que em 10 de Fevereiro de 2021 declarou que a Merck Sharpe & Dohme lhe doou 107.574 máscaras cirúrgicas no valor total de 50.000 euros. Nada poderia ser mais falso. Aquilo que sucedeu foi a Merck Sharpe & Dohme ter doado 50.000 euros a Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves que, depois aproveitaram para usar esse dinheiro para pagar máscaras a uma empresa – que emitira uma factura à Ordem dos Médicos –, sendo esses equipamentos de protecção individual entregues então à Associação Nacional de Farmácias.

    Documento na posse da Ordem dos Médicos, consultado pelo PÁGINA UM após uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, com a lista de entidade que concederam donativos à conta solidária titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves.

    A emissão de centenas de declarações falsas – trata-se mesmo de centenas, que englobam muitas pequenas IPSS – configura até fraude fiscal, porque as entidades beneficiadas assumiram que os donativos em géneros vieram directamente de farmacêuticas, algo que não é verdade, nem as farmacêuticas conseguirão comprovar qualquer compra através de facturas. Certo é que, com este estratagema, as farmacêuticas conseguiram enquadrar os seus donativos no mecenato social – e, em casos específicos, no mecenato ao Estado – para levar a custos um valor correspondente a 130% ou 140% do valor entregue. Algo que não sucederia se tivesse sido tudo feito como sucedeu: os donativos foram entregues a três pessoas (Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves), foram feitas compras e entregues os géneros às IPSS, associações e unidades hospitalares.

    Assim, com este esquema falso as farmacêuticas terão conseguido declarações num montante total de cerca de 1,3 milhões de euros, e terão acabado por assumir, em termos contabilísticos, custos da ordem dos 1,82 milhões de euros, Em conclusão, este expediente – a utilização abusiva de um benefício fiscal – terá lesado o Estado, segundo estimativas do PÁGINA UM, em cerca de 145 mil euros. Note-se que este esquema, profundamente à margem da lei, envolveu também hospitais públicos, conforme o PÁGINA UM revelou detalhadamente no final de 2022.

    Apesar da logística desta campanha ter sido protagonizada sobretudo pela Ordem dos Médicos, e pelo então seu bastonário Miguel Guimarães, a actual ministra teve um papel bastante activo, e não apenas como co-titular da conta. Ana Paula Martins procedeu a várias ordens de pagamento de géneros – cujas facturas foram encaminhadas para a Ordem dos Médicos – e também participou em diversas reuniões específicas da campanha. De acordo com as actas consultadas pelo PÁGINA UM, a actual ministra da Saúde participou em pelo menos oito reuniões da comissão de acompanhamento entre 11 Maio de 2020 e 5 de Maio de 2021. Mesmo depois da sua saída da liderança da Ordem dos Farmacêuticos em Fevereiro de 2022, manteve-se como titular da polémica conta solidária.

    Além de ser co-titular e co-gestora da conta solidária, e autorizar transferências de dinheiro para pagamento de facturas que, afinal, eram emitidas à Ordem dos Médicos, Ana Paula Martins acompanhou pelo menos durante um anos as operações logísticas da campanha ‘Todos por Quem Cuida’.

    Aquando da primeira notícia desta investigação do PÁGINA UM, em Dezembro de 2022 – após uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa que obrigou as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos a disponibilizar os documentos integrais da campanha solidária –, Ana Paula Martins não responder a um conjunto de 11 perguntas a si dirigidas, optando por uma resposta conjunta com Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves através de advogada.

    Nessa resposta são omissas quaisquer justificações para a não abertura de uma conta institucional nem qualquer argumento para o não-pagamento de impostos de selo nem sobre as declarações falsas nem sobre as facturas assumidas pela Ordem dos Médicos quando não foi esta a entidade que pagou os géneros.


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  • Vacinas: Governo cessante autoriza despesa de 210 milhões de euros em mais doses que acabarão no lixo

    Vacinas: Governo cessante autoriza despesa de 210 milhões de euros em mais doses que acabarão no lixo

    Antes de sair, António Costa manteve as ordens recebidas de Bruxelas, através de uma Resolução de Conselho de Ministros de última hora publicada hoje em Diário da República: Portugal vai continuar a comprar vacinas contra a covid-19 como se estivéssemos no auge da pandemia. Este ano ficou garantida uma despesa de 103,3 milhões de euros, mantendo prevista a compra de mais 107 milhões de euros em 2025 e 2026. Desde Outubro do ano passado, já só foram administradas menos de dois milhões de doses, e se se mantiver o ritmo dos reforços até ao Inverno de 2026-2027, o desperdício financeiro (em benefício das farmacêuticas) atingirá os 550 milhões de euros, porque haverá cerca de 35 milhões de doses literalmente deitadas ao lixo por perda de validade. Quando a covid-19 deixou de ser um problema de Saúde Pública – este mês representa 0,17% das mortes –, e sabendo-se que há 1,7 milhões de cidadãos sem médico de família, esta estratégia mostra os paradoxos das políticas de Saúde Pública em Portugal.


    Preso pelos acordos secretos da Comissão von der Leyen com as farmacêuticas, o Governo cessante de António Costa decidiu no domingo passado, em Conselho de Ministros extraordinário, reprogramar as despesas pelas compras de vacinas contra a covid-19, autorizando para o ano de 2024 gastos da ordem dos 103,3 milhões de euros. Uma parte desta verba será para suportar encargos feitos no ano passado, mas apenas a serem pagos agora por causa de alegados atrasos de visto no Tribunal de Contas.

    Com a reprogramação desta despesa – a que acrescerão mais quase 107 milhões de euros em 2025 e 2026 –, confirma-se um desastre financeiro e de Saúde Pública: num país com mais de 1,6 milhões de cidadãos sem médico de família, vai continuar a haver dinheiro para comprar doses de vacinas contra a covid-19 que serão enviadas literalmente para o lixo, face à cada vez mais diminuta procura. Com efeito, estando a covid-19 endémica e com uma baixíssima mortalidade – este ano causou 197 óbitos, representando 0,6% dos óbitos totais, mas este mês de Março encontra-se abaixo dos 0,2% –, a procura tem sido bastante baixa.

    De acordo com os dados da Direcção-Geral da Saúde, entre Outubro do ano passado e o domingo passado, 24 de Março, foram administradas um total de 1.990.226 doses de reforço. Considerando o preço médio unitário de 15,5 euros, indicado num relatório do Tribunal de Contas, a despesa total terá ascendido a 30,8 milhões de euros, caso não existissem compromissos assumidos pela Comissão von der Leyen com a concordância dos diversos Governos da União Europeia de se comprar mais do que o necessário.

    people collecting trash in garbage truck
    Vacinas desperdiçadas: não serão enviadas para o lixo urbano, obviamente, mas serão inutilizadas cerca de metade das doses que serão adquiridas por Portugal desde 2020 até 2026.

    O Tribunal de Contas, num relatório de Setembro do ano passado, já apontava para um elevado desperdício financeiro pela inutilização de doses não administradas. O valor provisório então indicado, referente ao final de Dezembro de 2022, era de um desperdício de 3,5 milhões de doses com um valor de 54,5 milhões de euros. Porém, esse montante pecava já por defeito.

    Uma análise do PÁGINA UM, com base em informação oficial, mostrava que apesar de Portugal ter encomendado 61.19.803 doses de vacinas até 2022 somente tinha administrado, até então, 28.200.460 doses, considerando os dados do European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC). Ou seja, como a partir dessa altura até agora acresceram cerca de dois milhões de doses, administradas, chega-se a um desperdício de mais de 40 milhões de doses.

    Mas entretanto, ainda se comprou muitas mais doses, e mais se comprarão, atendendo à cativação das verbas desde 2020 pelo Governo de António Costa. Apesar de os contratos celebrados pela DGS continuarem escondidos – o PÁGINA UM tem um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa que corre há quase 15 meses, embora seja considerado urgente –, fica-se a saber, através de sucessivas Resoluções de Conselho de Ministros quanto se gastou e se continuará a gastar em vacinas contra a covid-19 até, pelo menos, 2026.

    person holding white plastic bottle

    A primeira compra foi autorizada em 20 de Agosto de 2020, antes mesmo da aprovação das vacinas. Montante: 20 milhões de euros. Ainda nesse ano, em 17 de Dezembro, em vésperas da administração da primeira dose, o Governo de António Costa autorizou, para o ano seguinte, a realização de despesas de aquisição de vacinas e de logística no total de 195,5 milhões de euros.

    Menos de cinco meses depois, em 6 de Maio de 2021, uma nova autorização para realização de despesa adicional: mais 241.537.472 euros. Em 23 de Dezembro desse ano, autorizou-se mais compras de vacinas contra a covid-19 para 2022: e assim se concedeu liberdade para se gastar mais 291,4 milhões de euros. Mas não acabou por aí: em 17 de Novembro de 2022, o Governo Costa autorizou mais compras no valor de quase 70,6 milhões de euros. E menos de um mês depois, em 15 de Dezembro, ainda se adicionou mais uma autorização no valor máximo de mais de 57,8 milhões de euros.

    Nesta lógica de dividir uma factura cada vez mais crescente, em 7 de Setembro do ano passado, o Conselho de Ministros determinou que em 2023, apesar de a covid-19 deixar de ser uma preocupação pública relevante, se gastariam ainda mais 65,4 milhões de euros em 2023, mais cerca de 50 milhões de euros em 2024, mais 53,5 milhões de euros em 2025 e outro tanto em 2026.

    A decisão do passada domingo de um Governo em gestão altera os montantes de 2023 e 2024 – sem afectar a despesa previamente definida, e assegura a despesa pré-determinada para os anos de 2025 e 2026 – mostra sobretudo que Portugal, tal como os outros parcerias comunitários, está completamente preso aos negócios secretos assumidos secretamente por Ursula von der Leyen.

    António Costa e Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, que negociou contratos secretos com as farmacêuticas que resultarão seguramente, apenas em Portugal, no desperdício de 35 milhões de doses e quase 550 milhões de euros

    Somando toda a despesa feita e assumida desde 2020 pelo Governo português, Portugal deverá assumir encargos de 1,1 mil milhões de euros associadas à compra e armazenamento de vacinas contra a covid-19, dos quais 210 milhões de euros entre 2024 e 2026. Se o preço unitário rondar os 15,5 euros por dose, o valor indicado pelo Tribunal de Contas, então estará garantida a compra de quase 71 milhões doses.

    Contudo, contabilizando as doses já administradas (cerca de 30 milhões) e se o processo de reforço nos Invernos de 2024-2025, 2025-2026 e 2026-2027 for similar ao do mais recente, o nosso país apenas administrará 36 milhões de doses, o que significará que desperdiçará praticamente metade das doses adquiridas. Contas feitas, o processo de aquisição sob a batuta da Comissão Europeia entregará cerca de 550 milhões de euros aos cofres das farmacêuticas beneficiadas sem qualquer préstimo, uma vez que aproximadamente 35 milhões de doses serão deitadas para o lixo por nem sequer haver quem as queira receber de borla.


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