Categoria: Saúde

  • Ministério Público arquiva processo instaurado por ministra da Saúde contra o PÁGINA UM

    Ministério Público arquiva processo instaurado por ministra da Saúde contra o PÁGINA UM


    O Ministério Público arquivou o inquérito-crime por alegada difamação movido contra o director do PÁGINA UM, que juntava, no mesmo lado da barricada, a actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, o deputado social-democrata Miguel Guimarães, Eurico Castro Alves — amigo pessoal de Luís Montenegro, com quem passou férias no Brasil —, a Ordem dos Médicos, a Ordem dos Farmacêuticos e a indústria farmacêutica, através da APIFARMA. A decisão, saída do DIAP de Lisboa e firmada em despacho com cerca de 72 páginas, conclui, sem ambiguidades, que a investigação jornalística do jornalista Pedro Almeida Vieira não preenche o tipo legal de crime de difamação.

    Em causa estava um conjunto de reportagens e artigos de opinião sobre a campanha “Todos por Quem Cuida”, nascida sob os melhores propósitos em Março de 2020 e transformada, com o correr dos meses, num labirinto de regras elásticas, contabilidade paralela e uma arquitectura bancária difícil de explicar em qualquer manual de boas práticas. Na altura, a ministra da Saúde era bastonária da Ordem dos Farmacêuticos e Miguel Guimarães ocupava a mesma função na Ordem dos Médicos, e foram os estrategos e ‘gerentes’ da referida campanha, que lhes concedeu reconhecimento público.

    Ana Paula Martins, ministra da Saúde, juntou-se à indústria farmacêutica para processar o PÁGINA UM. O Ministério Público arquivou o processo-crime. / Foto: D.R.

    A narrativa oficial foi durante muito tempo a do altruísmo: num país então assustado e um sistema de saúde sob pressão, duas ordens profissionais — a dos Médicos e a dos Farmacêuticos —, com o apoio da indústria farmacêutica, ergueram um canal para comprar e fazer chegar equipamento a quem dele carecia. A narrativa factual, reconstituída pelo PÁGINA UM com base em documentação administrativa, bancária e contabilística — que somente foi obtida após uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa —, revelou um esqueleto muito diferente escondido num armário de promiscuidades e impunidades.

    Desde logo, a conta por onde circularam cerca de 1,4 milhões de euros não era institucional. Não pertencia à Ordem dos Médicos, nem à Ordem dos Farmacêuticos, nem sequer à APIFARMA. Era uma conta particular, aberta a 2 de Abril de 2020, titulada por Miguel Guimarães (como primeiro titular), Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, movimentada com duas assinaturas. Estavam, portanto, três pessoas — independentemente dos cargos que ocupavam — a gerir donativos que o público associava a duas corporações profissionais.

    Acresce que, a par desta singularidade, foram emitidas facturas em nome da Ordem dos Médicos, que deram entrada na sua contabilidade, mas os pagamentos eram satisfeitos através daquela conta privada, criando um “entre-dois” contabilístico que vem nos livros com outro nome: contabilidade paralela com possibilidade de criação de um ‘saco azul’ na Ordem dos Médicos. Nestas circunstâncias, e por definição, a linha entre a excepcionalidade administrativa e o expediente torna-se demasiado ténue.

    Miguel Guimarães, antigo bastonário da Ordem dos Médicos e actual deputado do PSD: a pandemia, onde inquisitorialmente perseguiu colegas médicos com opiniões contrárias à sua, apesar de ser um mero urologista, deu-lhe projecção política. / Foto: D.R.

    É aqui que a investigação jornalística assinalou — e documentou — outras fracturas. Os donativos superiores a 500 euros estavam sujeitos a Imposto do Selo de 10%; a estimativa conservadora apontava para cerca de 125 mil euros não liquidados ao qual Ana Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves se furtaram, independentemente da campanha ser altruísta. Além disso, a esmagadora maioria dos apoios de origem farmacêutica não foi publicitada no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed, como a lei exige, e foi montada uma coreografia de declarações de mecenato para que as doadoras pudessem aproveitar benefícios fiscais reforçados, sem que houvesse o correspondente espelho documental de compras efectuadas por essas mesmas doadoras.

    Isto é, o dinheiro entrou na conta de três particulares (Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves), as aquisições foram pagas por essa conta, os bens foram entregues a hospitais, IPSS e outros destinatários, embora as declarações destinadas a sacar benefícios fiscais tenham aparecido em nome das farmacêuticas. O efeito combinado foi o de maximizar deduções, à margem da lei e das regras fiscais, de quem deu o dinheiro e dissolver o lastro financeiro entre quem pagou, quem facturou e quem recebeu.

    Uma posterior auditoria encomendada pela Ordem dos Médicos à BDO — apresentada como “prestação de serviços de auditoria às actividades e contas do fundo solidário” — confirmou o IBAN público, mas não equacionou a anomalia essencial: a conta não era institucional. E, no capítulo crucial, não enfrentou o desfasamento entre facturação na Ordem dos Médicos e pagamentos por terceiros, como se a mecânica fosse irrelevante para o relato da lisura. Quando o PÁGINA UM questionou a BDO sobre estas matérias, o seu representante legal, Pedro Guerra Alves, ameaçou com um processo judicial antes mesmo de ter sido publicada a notícia.

    João Almeida Lopes, presidente da Apifarma: a indústria farmacêutica, que enviou cerca de 1,3 milhões de euros para uma conta conjunta de Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves durante a pandemia, conseguiu depois articular-se com os ‘gerentes’ da campanha “Todos por Quem Cuida” e as duas ordens profissionais, para contratarem a onerosa sociedade de advogados Morais Leitão. / Foto: D.R.

    Saliente-se que a documentação operacional da campanha “Todos por Quem Cuida” esteve blindada cerca de dois anos. O acesso só sucedeu por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, circunstância que, por si, diz muito sobre a cultura de transparência a Ordem dos Médicos e da Ordem dos Farmacêuticos, na altura dirigidos por Miguel Guimarães e Ana Paula Martins, respectivamente.

    Já sob a liderança de Carlos Cortes, os relatórios e contas de 2022 e 2023 da Ordem dos Médicos introduziram, pela primeira vez, uma nota às demonstrações financeiras a explicar que os três responsáveis pela campanha “ficaram fiéis depositários” de contribuições e, no “uso criterioso desses fundos”, canalizaram material para instituições e profissionais. Uma ‘lavagem’ mal feita.

    Com efeito, a expressão — “fiéis depositários” — não tem, neste contexto, enquadramento judicial, não correspondendo ao que o Código Civil chama depósito, e mais parece uma retroversão narrativa para dar cobertura a um desenho que, em termos formais, jamais deveria ter acontecido. Tão relevante como o que se escreve é o que não se escrevia antes: nos relatórios de 2020 e 2021, a mesma campanha surge sem rasto equivalente, como se a sua dimensão financeira e o circuito dos pagamentos coubessem numa nota de rodapé invisível. O contraste não é um detalhe; é um indício.

    Eurico Castro Alves, ao centro (o único sem máscara): amigo especial de Luís Montenegro, ministro-sombra da Saúde, foi o elo de ligação da indústria farmacêutica na campanha “Todos por Quem Cuida” que geriu 1,4 milhões de euros com contabilidade paralela, fuga aos impostos e benefícios fiscais indevidos.

    No âmbito da campanha, houve possibilidade para vários ‘favores’. Por exemplo, Miguel Guimarães permitiu que um donativo de máscaras se transformasse num esquema lucrativo da farmacêutica Merck. Também com dinheiros da campanha negociou-se com Gouveia e Melo, e com o Hospital das Forças Armadas, a vacinação de médicos não prioritários em Março de 2021, ultrapassando-se competências e a norma da Direcção-Geral da Saúde.

    No âmbito desse processo, Miguel Guimarães — que ascenderia depois a deputado social-democrata — aproveitou também para dar uma ‘boleia ilegal’ a uma “personalidade política” para que lhe fosse administrada uma dose de vacina contra a covid-19, não estando nas prioridades, por uma “questão de necessidade e oportunidade”. Nunca foi revelada a identidade nem de que “necessidade e oportunidade” se tratavam, e uma auditoria da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS), liderada por Carlos Carapeto, não se mostrou interessada em desvendar. Passou uma esponja sobre este assunto.

    Foi neste contexto que, perante a baixa repercussão pública e mesmo judicial das denúncias do PÁGINA UM, os visados se sentiram seguros da sua impunidade e se juntaram numa queixa por difamação, pedindo ao direito penal que tratasse como delito o que é, por natureza, escrutínio público. E curiosamente, todos se juntaram para serem representados pela sociedade de advogados Morais Leitão. Ou seja, a indústria farmacêutica e a ministra da Saúde fizeram uma ‘vaquinha’ para contratarem o mesmo advogado.

    Carlos Cortes, actual bastonário da Ordem dos Médicos: apesar de as queixas contra o PÁGINA UM terem provindo do seu antecessor, Miguel Guimarães, nunca explicou a contabilidade paralela da campanha “Todos por Quem Cuida” que fez entrar facturas sem fluxo financeiro de saída, o que permitia a criação de um ‘saco azul’. Apesar deste arquivamento, a Ordem dos Médicos tem outro processo activo contra o PÁGINA UM que irá para julgamento em Novembro. / Foto: D.R.

    Porém, o Ministério Público não se comoveu com a procissão de títulos, cargos e poder financeiro e político dos acusadores. O procurador Nuno Morna de Oliveira arrolou as peças jornalísticas com data e hora, reuniu as versões em confronto, cotejou documentos, anotou justificações sobre a urgência pandémica, a dupla assinatura nos movimentos bancários, a existência de regulamentos e comissões e as alegadas isenções fiscais, e fez o que a lei manda: ponderou honra e liberdade de expressão, direito penal e interesse público.

    O despacho do procurador recupera a Constituição, invoca a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que tem, há décadas, uma linha firme: figuras públicas e instituições com poderes e dinheiros devem suportar um nível mais elevado de crítica; a crítica pode ser dura, pode recorrer à hipérbole e à ironia, desde que ancorada em base factual suficiente e dirigida à conduta pública, não ao insulto gratuito. E foi nesta moldura que o magistrado escreve o essencial: “a conduta imputada ao arguido [Pedro Almeida Vieira] não integra o crime de difamação”, pelo que se determinou o arquivamento do processo.

    A relevância deste despacho ultrapassa o seu efeito imediato. Primeiro, porque não é um cheque em branco passado às práticas que foram expostas. O Ministério Público considera que não é difamação, no contexto dos factos revelados pelo PÁGINA UM, revelar que não é valida nem legal a opção da ministra da Saúde e do agora deputado social-democrata Miguel Guimarães por uma conta privada para gerir donativos que o público associava às ordens profissionais, de acusar a omissão no Portal do Infarmed, de destacar o não pagamento de Imposto do Selo, e de apontar contabilidade paralela e declarações falsas destinadas a benefícios fiscais.

    Extracto do e-mail de 17 de Março de 2021 enviado por Miguel Guimarães a Gouveia, admitindo a administração de uma dose “em Lisboa a uma personalidade política, por uma questão de necessidade e oportunidade”. Este e-mail era um dos documentos a que o PÁGINA UM teve acesso, por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, para verificar a gestão da campanha “Todos por Quem Cuida”, cujo dinheiro serviu para negociar com Gouveia e Melo, a troco de 27 mil euros entregues ao Hospital das Forças Armadas, a vacinação de médicos não-prioritários contra as normas então em vigor da Direcção-Geral da Saúde (DGS).

    Diz apenas — e é muito — que não se criminaliza jornalismo que trabalha com documentos, cronologia, números e perguntas legítimas. Segundo, porque reinstala a liberdade de imprensa como função institucional do Estado de Direito: onde há dinheiro, função pública, apoios e regulação, há interesse público máximo e, por isso, tolerância reforçada para a crítica que desmonta narrativas convenientes.

    Há, ainda, a pedagogia que interessa reter. Quando duas ordens profissionais, com capacidade financeira e influência pública, optam por uma engenharia financeira que dispensa as suas próprias contas oficiais e deposita 1,4 milhões de euros numa conta de três pessoas, o ónus de explicação não é de quem pergunta: é de quem decidiu, assinou e geriu – e depois ainda é ‘galardoado’ com cargos públicos que mexem com verbas que tornam 1,4 milhões de euros em trocos.

    Note-se, contudo, que a ministra da Saúde, em articulação com a indústria farmacêutica (Apifarma), e demais queixosos, pode requisitar à sociedade de advogados Morais Leitão para que requeira abertura de instrução para levar o caso à barra do tribunal. Dinheiro para isso, não faltará nunca, certamente.

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    Artigos analisados pelo Ministério Público publicados pelo PÁGINA UM

    i) em 09.12.2022, um artigo com o título “Fundo solidário de farmacêuticas deu condições para criar “saco azul” de mais de 968 mil euros na Ordem dos Médicos… e há muito mais”;

    ii) em 11.12.2022, um artigo de opinião com o título “Senhor Doutor Miguel Guimarães, o seu fundo é de barro e não é nada à prova de bala”;

    iii) em 23.02.2024, um artigo com o título “Miguel Guimarães e Ana Paula Martins geriram em conta pessoa fundo solidário de 1,4 milhões pejado de irregularidades. Não se sabe onde para a auditoria prometida”;

    iv) em 03.04.2024 e 04.04.2025, respectivamente, um artigo intitulado “campanha solidária na pandemia pejada de ilegalidades e irregularidades fiscais – Ministra da Saúde geriu em conta pessoal 1,3 milhões de euros dados por farmacêuticas sem pagar imposto de selo” e “Das forças e das fraquezas da imprensa mastodôntica”;

    v) em 19.07.2024, um artigo intitulado “Farmacêuticas doaram cerca de 1,3 milhões de euros a Ana Paula Martins e Miguel Guimarães – Pseudo-auditoria da BDO tenta limpar ilegalidades de campanha gerida por conta pessoal da ministra da Saúde e de Deputado do PSD”.

  • SNS apaga campanha de sensibilização que incluía ‘virtudes’ das drogas

    SNS apaga campanha de sensibilização que incluía ‘virtudes’ das drogas


    Uma campanha de informação sobre o uso de drogas, lançada este mês pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS), acabou por se tornar tão tóxica que foi eliminada das redes sociais.

    Em causa estão publicações do SNS nas redes sociais, designadamente no Facebook e Instagram, com informação sobre o uso de substâncias, como canábis e cocaína. A polémica estalou porque a campanha mencionava os “efeitos” provocados pelas drogas e que arriscavam servir de incentivo ao consumo das substâncias, por parecerem até ser positivos.

    Foto: Os “slides” polémicos que faziam parte da campanha de informação do SNS ainda estão disponíveis na Internet, tendo como referência a página do SNS no Facebook.

    A campanha de informação do SNS sobre cada substância era composta por quatro “slides” com informações separadas e o objectivo, no último slide, era facultar os contactos para quem precisasse da ajuda do Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD), a entidade pública identificada na campanha. O principal problema é que, separado dos restantes, um dos slides destacava os efeitos ou alegadas ‘virtudes’ dos estupefacientes, o que poderia induzir à experimentação.

    No caso da campanha sobre o uso de canábis, publicada no início deste mês, o SNS referia que os efeitos do consumo da substância incluem: relaxamento; alteração da percepção do tempo; aumento do apetite; e euforia leve.

    Já na campanha de informação relativa ao uso de cocaína, publicada no dia 10 de Outubro, o SNS destacava que os efeitos do consumo da droga incluem: euforia; aumento de energia; sociabilidade; e diminuição da fadiga. Este slide em particular está a ser partilhado nas redes sociais, separado dos restantes slides, para criticar o SNS pelo conteúdo da campanha de sensibilização.

    O director-executivo do SNS, Álvaro Almeida (em baixo, o segundo a contar da esquerda), e os membros do conselho de gestão do SNS (da esquerda para a direita): Francisco Matos, Ana Oliveira, Ana Rangel, Helder Sousa e Fernando Pereira. / Foto: D.R.

    A campanha, apurou o PÁGINA UM, foi elaborada pelo SNS e validada pelo ICAD, em termos científicos, mas não recebeu criticas positivas dos utilizadores das redes sociais que viram nos “slides” polémicos o risco de servirem como incentivo ao consumo daquelas substâncias que causam dependência.

    Apesar de terem sido apagadas das redes sociais, as imagens da campanha do SNS ainda se encontram espalhadas na Internet. Fazendo uma pesquisa nos motores de busca, encontram-se as imagens, que remetem para a página do SNS no Facebook. Mas quando se clica nas imagens, já não se encontram na página do SNS naquela rede social. Ou seja, existem indícios de que estiveram no perfil oficial desta entidade.

    O PÁGINA UM confirmou junto de uma fonte oficial que a campanha sobre o uso de canábis e cocaína é verídica e que as publicações foram eliminadas das redes sociais pelo SNS, para serem alvo de “reflexão”.

    Foto: Os quatro “slides” que constituem a campanha do SNS sobre o uso de cocaína e que ainda se encontram disponíveis na Internet, apesar de terem sido apagadas da página do SNS no Facebook.

    Para o psiquiatra Luís Patrício, um dos pioneiros no tratamento das toxicodependências em Portugal e autor da página ‘Mala de Prevenção‘, “felizmente, tendo em conta o conteúdo, foi apagado” das redes sociais. Mas, salientou que, “infelizmente, está na rede [Internet]”.

    O especialista recordou “um outro disparate dos anos 90, quando também nos serviços do Ministério da Saúde foi publicada uma informação também disparatada” sobre heroína, em que foi usada uma frase similar a esta: “a gota sedutora que escorre”. Ora, a heroína, é “um produto/droga de consumo abusivo, geradora de intensa dependência”.

    “Estes factos devem-nos fazer pensar que algo tem de mudar em termos de exigência e de competência”, defendeu o psiquiatra.

    No caso da campanha que agora foi apagada das redes sociais, Patrício alertou que, quem vir apenas o slide sobre os efeitos do uso das drogas, “de forma isolada, pode pensar não se tratar de uma informação no âmbito da prevenção sanitária social, mas de um slide integrado numa campanha com perspectivas geopolíticas económicas”.

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    Foto: D.R.

    O psiquiatra observou que quem publicou a campanha “ou não valorizou, porventura, o risco, no âmbito da educação para a saúde/prevenção, na perspectiva sanitária e social, ou teria apenas talvez alguma boa intenção”.

    Luís Patrício salientou que, com o slide polémico, “quem não sabe [quais são] os efeitos, fica a saber” e, “alguém menos informado ou mais frágil, até pela vivência grupal, queira comprovar os efeitos da “gulosa” assim é o nome em calão [para a cocaína]”. Por outro lado, “quem esteja em sofrimento directo ou indirecto relacionado com cocaína, poderá sentir alguma tristeza ou até revolta dados os estragos provocados pela cocaína nos que, sem desejarem, ficaram agarrados, dependentes”.

    O psiquiatra destacou que, na sensibilização sobre o uso de drogas, “um dos equívocos reconhecidos foi, nos anos 70 e 80, serem publicitados os efeitos da substância no âmbito da prevenção” que causou um “efeito contrário ao desejado”. Mas, “porventura, em Portugal, ainda há quem não tenha sido ensinado ou compreendido”.

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    Foto: D.R.

    Defendeu que “é preciso repensar a prevenção em Portugal”, com “mais competência, mais exigência, mais profissionalismo” porque “as boas vontades são simpáticas, mas não chegam”.

    Em resposta a questões do PÁGINA UM, fonte oficial do SNS indicou “que a direcção executiva do Serviço Nacional de Saúde não tem intervenção nessas campanhas, nem na publicação dos conteúdos das redes sociais do SNS”. Formalmente, o ICAD não comentou a polémica. O PÁGINA UM fez também várias tentativas de contacto com a porta-voz da ministra da Saúde, Ana Paula Martins, para obter um comentário, mas até ao momento não nos foi comunicada qualquer resposta.

    A par da campanha sobre o uso de canábis e de cocaína, o SNS também publicou recentemente uma campanha nas redes sociais a alertar para os riscos do consumo de álcool, mas, neste caso, a publicação do SNS não deixou rasto tóxico e mantém-se disponível.

  • Direito à informação: Juiz em início de carreira quis fazer ‘jeitinho’ ao Conselho Superior da Magistratura, mas três desembargadoras não deixaram

    Direito à informação: Juiz em início de carreira quis fazer ‘jeitinho’ ao Conselho Superior da Magistratura, mas três desembargadoras não deixaram


    Um juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa, nomeado a título definitivo há apenas um ano, quis criar uma “regra especial” para o Conselho Superior da Magistratura (CSM), defendendo que este órgão não teria de cumprir a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA).

    No entanto, os seus “superiores” — leia-se, três desembargadoras da Secção Administrativa Comum do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS) — revogaram por unanimidade a decisão, através de um curto mas demolidor acórdão, considerando que o juiz confundiu conceitos jurídicos e aplicou uma norma errada, afastando-se injustificadamente de jurisprudência consolidada sobre o direito de acesso à informação administrativa.

    Em causa estava um pedido do PÁGINA UM para acesso às actas e deliberações originais e integrais do Conselho Permanente e do Conselho Plenário do CSM, relativas aos anos de 2023 e 2024. Embora essas actas esteja disponível no site da cúpula da Magistratura Judicial, o órgão opta por rasurar nomes e dados processuais sempre que as classificações de juízes são medíocres ou envolvem matéria que eles considerem discricionariamente sensível, mesmo se relativas a processos judiciais que interessariam às partes.

    Porém, o CSM divulga, sem pudor, os nomes daqueles que obtêm avaliações excelentes. Ou seja, as reasuras nada têm a ver com alegada protecção de dados pessoais, tanto mais que esse preceito nem se aplica quando estão em causa actividades públicas.

    Foi precisamente devido a estas rasuras selectivas que o PÁGINA UM requereu ao CSM em Fevereiro passado o acesso às actas integrais, devidamente assinadas, das reuniões ordinárias e extraordinárias, tanto das secções de assuntos gerais e disciplinares como das plenárias.

    Exemplo de uma acta com inúmeras rasuras (sobretudo com X) onde abundam exemplos de rasuras arbitrárias.

    O CSM — como já havia feito noutra ocasião — negou o pedido do PÁGINA UM com base num parecer da sua encarregada de protecção de dados, o que levou o jornal a apresentar uma intimação ao Tribunal Administrativo em Março passado, repetindo, aliás, o que já ocorrera anteriormente noutros processos semelhantes.

    Contudo, de forma insólita, a sentença proferida em primeira instância, no passado mês de Maio, pelo juiz Paulo Ricardo Varela Sezefredo, concluiu pela “incompetência material” dos tribunais administrativos para apreciar o caso. O magistrado sustentou que os actos praticados pelo CSM estariam excluídos da jurisdição administrativa, por força do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF).

    Segundo a sua interpretação, o pedido do PÁGINA UM dizia respeito a “actos materialmente administrativos praticados pelo CSM e seu Presidente” e, como tal, apenas o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) poderia decidir. Ou seja, este juiz considerava que seria o Supremo Tribunal de Justiça, liderado por Cura Mariano, a decidir se a recusa no acesso a actas por parte do Conselho Superior da Magistratura, também liderado por Cura Mariano, era legal. A ser possível, não se consegue encontrar melhor exemplo de ‘juiz em causa própria’ numa situação de acesso à informação.

    João Cunha Mariano, presidente do Supremo Tribunal de Justiça é, por inerência, presidente do Conselho Superior da Magistratura. O juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa Paulo Varela Sezefredo queria que fosse o Supremo Tribunal de Justiça a decidir se a recusa no acesso a actas por parte do Conselho Superior da Magistratura era legal.

    Em suma, Varela Sezefredo equiparou qualquer acto administrativo — incluindo o pedido de informação — a uma decisão jurisdicional. Na sua interpretação, o PÁGINA UM teria de recorrer de uma decisão do Presidente do CSM para o Supremo Tribunal de Justiça, que é… presidido pelo mesmo Presidente do CSM.

    Agora, em acórdão datado de 25 de Setembro, a decisão foi considerada “manifestamente errada” por um colectivo de três desembargadoras — Joana Costa e Nora, Marta Cavaleira e Ana Lameira — que concluíram que o juiz confundiu duas realidades jurídicas distintas: o pedido de acesso a documentos (que visa garantir o direito à informação) e a impugnação de um acto administrativo.

    “A intimação para a prestação de informações (…) é o meio processual próprio para reagir contra qualquer forma de recusa de informação”, escreveram as magistradas, frisando que a exclusão do CSM prevista no ETAF não se aplica a pedidos de acesso a documentos administrativos apresentados por cidadãos ou jornalistas.

    brown wooden stand with black background

    A decisão do TCAS é particularmente relevante porque confirma a competência dos tribunais administrativos para julgar litígios relacionados com o direito de acesso à informação pública, incluindo quando envolvem órgãos de soberania como o CSM ou o STJ.

    Aliás, já existiam decisões anteriores — tanto do Tribunal Administrativo de Lisboa como do próprio TCAS — que obrigaram o STJ a divulgar documentos administrativos. Chegou mesmo a haver uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa que impôs uma sanção pecuniária compulsória ao Presidente do STJ por incumprimento de uma decisão judicial sobre o acesso ao inquérito da distribuição do processo Marquês. E o presidente Cura Mariano viu-se na obrigação de acatar para não lhe ‘irem ao bolso’, uma vez que estas multas são aplicadas aos titulares e não às entidades.

    A posição assumida por Paulo Varela Sezefredo destoava, assim, frontalmente da jurisprudência anterior. Este juiz, que apenas se tornou efectivo em 2024, passou grande parte da sua carreira como jurista no Exército Português, tendo concluído um mestrado em Direito há pouco mais de cinco anos sob a orientação do professor Domingos Farinho, docente da Faculdade de Direito de Lisboa, acusado de ter sido o redactor (“ghost writer”) da tese de José Sócrates, num processo que terminou com a suspensão provisória e o pagamento de 10 mil euros.

    Na sentença agora revogada, Varela Sezefredo chegou a defender que o PÁGINA UM deveria ter apresentado a intimação directamente no Supremo Tribunal de Justiça, invocando a “especialidade” do CSM — um argumento considerado sem sentido pelos desembargadores. Além disso, de forma pouco habitual, dispensou o contraditório, apesar de o CSM nem sequer ter respondido ao tribunal, o que é obrigatório. Alegou “manifesto desinteresse e inutilidade”.

    A decisão agora revogada pelo TCAS determina o regresso do processo ao tribunal de origem para ser devidamente apreciado. Ou seja, apesar da sentença obtusa que obrigou a um recurso — com perda de tempo e recursos para corrigir um erro elementar — será o mesmo juiz Paulo Varela Sezefredo a ter de reapreciar o caso. Se voltar a decidir contra o PÁGINA UM, o jornal terá de recorrer novamente para o tribunal superior, embora, nesse caso, ser ‘reprovado’ duas vezes no mesmo processo pode ser visto como uma situação anómala para efeitos da sua classificação.

    N.D. Os processos do PÁGINA UM nos tribunais são apoiados pelos leitores através do FUNDO JURÍDICO.

  • Sanção de 12 meses para médico que mostra “uma ignorância extrema da anatomia e das técnicas cirúrgicas’ está engavetada na Ordem dos Médicos há mais de um ano

    Sanção de 12 meses para médico que mostra “uma ignorância extrema da anatomia e das técnicas cirúrgicas’ está engavetada na Ordem dos Médicos há mais de um ano


    O Conselho Disciplinar Regional do Sul (CDRS) da Ordem dos Médicos recusa explicar por que motivo ‘engavetou’ o processo disciplinar relativo a dois cirurgiões do Hospital de Faro acusados, desde Abril de 2023, de um conjunto de negligências graves.

    O despacho de acusação confidencial a que o PÁGINA UM teve agora acesso — tem data de 23 de Julho de 2024, ou seja, mais de 14 meses — e propõe suspensões de 12 meses para o cirurgião Pedro Cavaco Henriques e de seis meses para o antigo director de serviço de Cirurgia, Gildásio Martins dos Santos, ex-presidente da Administração Regional de Saúde (ARS) do Algarve e vogal do Conselho Nacional do Sindicato Independente dos Médicos (SIM).

    Edifício principal da sede da Ordem dos Médicos, na Avenida Gago Coutinho, em Lisboa.

    Contactado pelo PÁGINA UM, a ausência de explicações sobre a fase processual e os motivos do atraso são justificados pelo CDRS, liderado por Diogo Pais, por obra e graça do “princípio da presunção da inocência [que] deve ser salvaguardado”. Um argumento que contrasta com a postura da Ordem dos Médicos que durante a pandemia divulgava publicamente a simples abertura de processos disciplinares por delito de opinião, expondo e estigmatizando médicos que manifestavam visões críticas das políticas sanitárias oficiais.

    Neste caso, porém, as acusações contra Pedro Henriques e Gildásio Martins dos Santos não se prendem com opiniões, mas com acções clínicas. E muito graves porque estiveram e estão em causa vidas humanas. O despacho de acusação, assinado pelo relator Vítor Rocha, é de uma severidade invulgar, apenas justificável pela gravidade dos erros descritos.

    Num relatório de cerca de 150 páginas — que analisa uma dezena de intervenções cirúrgicas e ainda a divulgação ilícita de dados clínicos da denunciadora, a médica Diana Pereira —, o relator evidencia perplexidade quanto à conduta ética e técnica dos arguidos. Sublinha que a ausência de autocrítica, humildade e rigor técnico de Pedro Henriques pode transformar o acto cirúrgico em fonte de dano, e a autoridade hierárquica de Martins dos Santos num instrumento de abuso.

    Diogo Pais, presidente do Conselho de Disciplina Regional do Sul; mais de dois anos depois, casos gravíssimos ainda não tiveram conclusão disciplinar.

    No caso concreto de Pedro Henriques, embora o relator reconheça que é “comprovadamente detentor de formação avançada em cirurgia colo-rectal”, assinala que o cirurgião revela “uma ignorância extrema da anatomia e das técnicas cirúrgicas, o que lhe dá muito pouco sentido crítico”.

    Num balanço devastador, o relator adverte ainda que, quando se alia “o pouco respeito pela integridade do outro” à violação reiterada do princípio hipocrático primum non nocere, “o resultado pode ser catastrófico”.

    O despacho recorda que devem existir sempre limitações ao exercício da actividade cirúrgica: a primeira, “intrínseca”, radica “na excelência da formação técnica e humana e no sentido de autocrítica”; a segunda, “institucional”, decorre do “controlo hierárquico e da avaliação do erro”, nomeadamente através da análise inter pares das complicações e da mortalidade operatória. Sem essas salvaguardas, alerta o relator, “o sistema clínico degrada-se e coloca em risco a vida dos doentes”.

    gray surgical scissors near doctors in operating room

    Vítor Rocha insiste ainda na humildade e cooperação como condições essenciais à aprendizagem médica. “Para que seja possível ao cirurgião evoluir através do erro, é fundamental ter a humildade necessária para o reconhecer e, depois, o analisar em conjunto com os seus pares”, escreve, sublinhando que só assim se pode corrigir falhas e melhorar a prática clínica. “Há uma característica humana que deve ser comum a todos os médicos — a compaixão e o sofrimento comum por aqueles que sofrem e precisam de ajuda médica”, acrescenta.

    O relator lamenta que, no exercício do contraditório, “em momento algum o Dr. Pedro Henriques reconhece os erros e as complicações”, algumas das quais “graves e que produziram sequelas irreversíveis”. Nota ainda que essa recusa se deveu “à sua obstinação cirúrgica validada pelo director de serviço [Martins dos Santos]”, comportamento que considera “contrário ao mais elementar bom senso e altamente censurável para um cirurgião”.

    O relatório descreve também falhas reiteradas nos registos clínicos e a violação do dever de documentar ocorrências intra-operatórias, o que impediu a correcta identificação das negligências denunciadas. Segundo o despacho, os dois médicos “não cumpriram este dever de registo, de forma reiterada em todos os casos avaliados”, configurando um ilícito disciplinar por violação do artigo 40.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos.

    Trecho com a proposta de sanção para os dois médicos. Já passou mais de 14 meses deste a conclusão do despacho de acusação e quase 30 meses desde o conhecimento público dos factos.

    Em matéria de confidencialidade, a acusação é igualmente severa. O relator demonstrou que “o Dr. Pedro Henriques acedeu efectivamente à Plataforma de Dados de Saúde e consultou informação pessoal e clínica da participante [Diana Pereira]” sem autorização, e que o director de serviço, “Dr. Martins dos Santos, publicou e partilhou efectivamente, no dia 21 de Abril de 2023, no grupo WhatsApp criado para os médicos do Serviço de Cirurgia I, o relatório médico referente à consulta a que a participante compareceu”.

    O objectivo seria denegrir a imagem pública da médica denunciadora — uma acção que ecoou depois em notícias do Expresso, usadas para desacreditar as suas denúncias. O despacho conclui que ambos violaram o dever de sigilo e acederam indevidamente a dados de saúde, “preenchendo, em abstracto, o tipo de crime de violação de segredo previsto no artigo 195.º do Código Penal”.

    Nesta linha, Vítor Rocha censura duramente Gildásio Martins dos Santos, lembrando que, sendo “assistente graduado sénior e director de serviço de um hospital universitário”, tinha o dever acrescido de garantir qualidade e segurança na prática cirúrgica. Contudo, “não explicou o motivo das complicações [cirúrgicas] nem a forma de as evitar”, preferindo “um ataque permanente de carácter à participante [Diana Pereira], tentando fazer passar a ideia de insanidade mental desta”.

    No fecho do despacho, o relator conclui que os dois médicos “agiram voluntária e conscientemente, não respeitando as normas deontológicas a que estão adstritos, havendo negligência grosseira e até dolo eventual”. Considera, assim, demonstrada “má prática médica e imperícia”, esta última apenas imputável a Pedro Henriques.

    Apesar de o relatório propor suspensões de 12 meses para Pedro Henriques e de seis meses para Gildásio Martins dos Santos, a decisão permanece sem homologação 15 meses depois.

    Recorde-se que, no mês passado, a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) propôs apenas 40 dias de suspensão para Pedro Henriques, estando o processo disciplinar de Gildásio Martins ainda pendente. Paralelamente, este último moveu um processo judicial contra Diana Pereira, reclamando 172 mil euros de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes das denúncias.

    Despacho de acusação demorou mais de um ano a ser produzido. E depois de Julho de 2024, com as propostas de sanção, nada mais se soube nem a Ordem dos Médicos quer revelar.

    Contactado pelo PÁGINA UM, o presidente do SIM, Jorge Roque da Cunha, afirma “manter plena confiança pessoal e institucional no Dr. Gildásio Martins dos Santos, dirigente sindical com mais de 35 anos de serviço sem qualquer mácula”. Recorda que o antigo director de serviço “chegou a ser suspenso [preventivamente] pela Ordem dos Médicos, decisão entretanto anulada nessa mesma sede”, acrescentando que “também o inquérito da IGAS relativo aos factos denunciados foi arquivado”.

    Saliente-se, no entanto, que o arquivamento da IGAS não é definitivo, uma vez que decorrem ainda processos no Ministério Público. “Neste contexto, entendemos que cumpre respeitar os mecanismos próprios de justiça e de regulação, não cabendo ao sindicato antecipar julgamentos nem retirar legitimidade a quem continua a desempenhar funções representativas”, conclui Roque da Cunha.

  • Vacinação contra a covid-19 associada a um aumento do risco de vários cancros

    Vacinação contra a covid-19 associada a um aumento do risco de vários cancros


    Um estudo de grande escala publicado na sexta-feira passada na prestigiada revista científica Biomarker Research – integrada no grupo editorial Springer Nature – veio reacender um debate que as autoridades sanitárias em Portugal e na Europa têm preferido silenciar no pós-pandemia da covid-19.

    A investigação de cientistas sul-coreanos, de diversas instituições de Seul, abrangeu mais de 8,4 milhões de cidadãos, com dados recolhidos entre 2021 e 2023, e, na comparação dos riscos entre vacinados e não vacinados – utilizando modelos estatísticos ajustados por múltiplas variáveis –, encontrou uma possível associação entre pessoas vacinadas e um aumento da incidência de vários tipos de cancro ao fim de um ano. Os resultados apontam para aumentos estatisticamente significativos no risco de cancro da tiroide (risco relativo de 1,35), do estômago (1,33), do cólon (1,28), do pulmão (1,53), da mama (1,20) e da próstata (1,69), em comparação com os não vacinados.

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    O chamado risco relativo é uma medida que permite comparar a probabilidade de um evento ocorrer entre dois grupos distintos — neste caso, vacinados e não vacinados. Um valor igual a 1 significa que não há diferença entre os grupos; valores superiores a 1 indicam um risco mais elevado entre os vacinados; e valores inferiores a 1 sugerem o contrário. Assim, um risco relativo de 1,53 para o cancro do pulmão significa que os vacinados tiveram uma probabilidade 53% maior de desenvolver esse cancro em relação aos não vacinados.

    De acordo com os autores, as vacinas de cDNA, ou vacinas de ADN recombinante, estiveram associadas a aumentos de risco para os cancros da tiroide, estômago, cólon, pulmão e próstata. Estas vacinas utilizam fragmentos de ADN sintético que codificam a proteína spike do vírus SARS-CoV-2, introduzindo o material genético no núcleo das células, onde serve de molde para a produção do mRNA que, por sua vez, origina a proteína viral. Essa proteína estimula o sistema imunitário a reconhecer o vírus e a gerar resposta protectora.

    Este tipo de vacina foi sobretudo usado em países asiáticos como a Coreia do Sul, o Japão e a Índia, sendo distinto das vacinas de mRNA (como as da Pfizer-BioNTech e Moderna) e das vacinas de vector viral (como as da AstraZeneca e Janssen), não tendo sido utilizado na União Europeia nem nos Estados Unidos.

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    Já as vacinas de mRNA, por seu lado, apresentaram aumentos semelhantes nos riscos dos cancros da tiroide, cólon, pulmão e mama; e os esquemas heterólogos – ou seja, a combinação de diferentes tipos de vacinas nas doses – mostraram correlação com maior incidência de cancro da tiroide e da mama.

    Embora os resultados revelem correlações consistentes, os investigadores sublinham que estes dados não demonstram uma relação imediata de causalidade e defendem a necessidade de mais estudos para compreender se certas estratégias vacinais poderão ser mais seguras ou adequadas para determinados grupos populacionais.

    Em todo o caso, este estudo surge num momento de crescente escrutínio sobre a opacidade das autoridades de saúde em matéria de farmacovigilância das vacinas da covid-19, do qual Portugal tem sido um triste exemplo. O PÁGINA UM tem denunciado, desde 2022, o irresponsável alheamento das autoridades de saúde em Portugal relativamente às reacções adversas às vacinas e a completa ausência de acompanhamento sistemático e cronológico dos casos suspeitos, incluindo os mais graves, com mortes e incapacidades elevadas.

    Primeira página do artigo científico publicado na Biomarker Research, pertencente ao mesmo grupo editorial da revista Nature.

    Em Portugal, o Infarmed, liderado por Rui Santos Ivo — que, para cúmulo, foi este ano nomeado presidente da Agência Europeia do Medicamento (EMA) — tem-se destacado como a entidade que recusa intencionalmente disponibilizar a base de dados integral sobre efeitos adversos.

    Essa ocultação foi já considerada ilegal. Depois de uma série de mentiras e justificações absurdas, um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul obrigou, no ano passado, o Infarmed a entregar ao PÁGINA UM os registos completos de farmacovigilância, após uma “batalha judicial” de mais de dois anos.

    Contudo, a decisão continua sem execução plena. O Infarmed optou por enviar versões truncadas que impedem qualquer reconstituição de casos individuais ou análise da evolução temporal, o que desde logo denuncia a ausência de uma farmacovigilância digna dessa denominação. Mesmo assim, o PÁGINA UM conseguiu mostrar que pelo menos 19.224 portugueses com reacções adversas foram completamente desprezadas pelo Infarmed.

    Rui Santos Ivo; presidente do Infarmed: a ocultação de dados do Portal RAM também terá contribuído para a sua eleição para a liderança da Agência Europeia do Medicamento.

    Perante esta desobediência de Rui Santos Ivo, o PÁGINA UM tem actualmente um processo no Tribunal Administrativo de Lisboa para a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória – ou seja, uma multa diária – ao presidente do Infarmed e também à EMA, visando obrigá-los a cumprir a decisão judicial.

    É neste contexto de opacidade institucional que o estudo sul-coreano adquire maior relevância pública. Mesmo que as suas conclusões devam ser lidas com prudência — por carecer de análises de sensibilidade, controlos negativos e períodos de latência adequados —, o simples facto de investigadores independentes se debruçarem sobre potenciais efeitos de longo prazo das vacinas contra a covid-19 contrasta com a inércia das autoridades europeias, que têm abdicado de investigar sistematicamente a segurança das vacinas após a sua introdução massiva.

    Em todo o caso, convém destacar que este estudo sul-coreano constitui ainda um ponto de partida sobre o possível efeito oncogénico das terapias genéticas associadas à vacina contra a covid-19. A janela temporal de 12 meses é ainda demasiado curta para sustentar uma relação causal com tumores sólidos, cuja formação se prolonga por anos.

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    Coreia do Sul: um dos países mais avançados do Mundo em ciências médicas não tenta evitar encontrar ‘verdades incómodas’.

    Os autores usaram técnicas estatísticas para reduzir vieses de selecção (propensity score matching) e equilibrar grupos de vacinados e não vacinados, mas não divulgaram as tabelas de balanço que comprovassem a equivalência entre ambos em factores determinantes como idade, hábitos de vida, rastreios ou comorbilidades.

    Outro ponto crítico é a ausência de correcção estatística para múltiplas comparações. Foram testados vinte e nove tipos de cancro, além de subgrupos por sexo, idade e tipo de vacina. Num universo de dezenas de testes, é previsível que algumas “significâncias” surjam por mero acaso. Além disso, o período 2021-2023 coincidiu com a retoma dos rastreios suspensos durante a pandemia, fenómeno que pode ter inflacionado a incidência nos vacinados, mais propensos a procurar cuidados médicos.

    Ainda assim, a dimensão invulgar da amostra e o contexto sul-coreano tornam alguns destes vieses menos prováveis, embora não impossíveis. Num país com cobertura universal de saúde, elevada literacia médica e disciplina social reconhecida, a diferença de comportamento entre vacinados e não vacinados será, à partida, muito menor do que em sociedades ocidentais. É também plausível que, entre os não vacinados, coexistam grupos mais jovens e informados, eventualmente mais atentos aos riscos ou às limitações dos ensaios clínicos iniciais.

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    Por isso, mesmo com estas reservas, o estudo tem significativa relevância, sobretudo porque aponta para um dever de vigilância contínua que as instituições europeias parecem ter esquecido. A farmacovigilância, prevista nos regulamentos comunitários, exige o acompanhamento cronológico de cada caso reportado — algo que nunca foi feito em Portugal.

    Até agora, as bases de dados do Infarmed limitam-se a acumulações estatísticas destinadas um dia a serem apagadas, sem qualquer memória. Na verdade, hoje, em Portugal, não se sabe quantas pessoas tiveram reacções adversas graves, quanto tempo demoraram a recuperar ou quantas morreram posteriormente. Com as vacinas contra a covid-19 existe um omertà

  • Dirigentes da Administração Central do Sistema de Saúde andam a fugir ao carteiro como o diabo da cruz

    Dirigentes da Administração Central do Sistema de Saúde andam a fugir ao carteiro como o diabo da cruz


    É um retrato grave mas trágico-cómico da degradação burlesca da Justiça e do próprio Estado de Direito: quatro dirigentes da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) recusam-se a receber notificações judiciais, obrigando um tribunal a sucessivas tentativas falhadas. Primeiro, por erros burocráticos da secretaria do Tribunal Administrativo de Lisboa. Depois, já com a morada certa, porque os administradores públicos se esconderam do carteiro, devolvendo as cartas com a menção “objecto não reclamado”.

    Desde Janeiro deste ano, o juiz Miguel Crespo procura notificar os quatro membros do Conselho Directivo da ACSS — André Trindade, Carlos Galamba, Sandra Brás e Paula Oliveira, todos já nomeados no ano passado pela ministra Ana Paula Martins — para responderem a um incidente de incumprimento apresentado pelo PÁGINA UM.

    Ao centro, Ana Paula Martins, ministra da Saúde; na ponta direita, André Trindade, actual presidente da ACSS e que conseguiu já fugir por duas vezes ao carteiro; e na ponta direita, Victor Herdeiro, ex-presidente da ACSS que durante mais de dois anos lutou para esconder e manipular uma base de dados,. Foto: ACSS.

    Em causa está a eventual aplicação de sanções compulsórias diárias (multas pessoais) pela recusa em entregar a base de dados integral dos internamentos hospitalares, denominada Grupos de Diagnósticos Homogéneos (GDH), ordenada por sentença em Novembro de 2022 e confirmada pelo Tribunal Central Administrativo do Sul em Março de 2023 e pelo Supremo Tribunal Administrativo em Junho de 2023.

    A disputa remonta a Julho de 2022, quando o PÁGINA UM pediu acesso à Base de Dados Central dos Grupos de Diagnóstico Homogéneos e à reposição da base de Morbilidade e Mortalidade Hospitalar no Portal da Transparência do SNS, retirada meses antes por decisão de Victor Herdeiro, então presidente da ACSS e próximo da ministra Marta Temido. Apesar das decisões judiciais favoráveis ao jornal, a ACSS optou depois por tentar entregar apenas uma versão mutilada da base de dados, eliminando variáveis e desagregações que inviabilizam o escrutínio sobre a evolução das doenças e o desempenho dos hospitais.

    Depois de tentativas de diálogo, que incluiu duas reuniões presenciais na ACSS, e também uma tentativa desta entidade de reiniciar o julgamento indicando peritos que tinham ligações a hospitais públicos, o PÁGINA UM, avançou então em Janeiro deste com um denominado “incidente de incumprimento“, que significa que os dirigentes podem ser pessoalmente multadas por cada dia de atraso no cumprimento da sentença transitada em julgado.

    Sede da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), junto ao Hospital Júlio de Matos: CTT não conseguiram entregar nenhuma das quatro notificações aos dirigentes desta entidade em duas ocasiões diferentes.

    O juiz deste processo determinou então que os administradores da ACSS fossem pessoalmente citados. Mas tudo começou a complicar-se, com incompetência à mistura. A oficial de justiça encarregue da diligência, Maria Lurdes Lamarão, enviou as notificações dos dirigentes da ACSS em Fevereiro deste ano para… a antiga morada do PÁGINA UM. E alertado o tribunal, a mesma funcionária judicial repetiu a dose, enviando novamente as cartas da ACSS erradamente para o Bairro Alto, em vez de as endereçar para o edifício 16 do Parque de Saúde de Lisboa, mesmo ao lado do Hospital Júlio de Matos.

    Só à terceira tentativa, em Abril deste ano, foram as notificações finalmente remetidas para a sede correcta da ACSS.

    E aí começou o jogo do gato e do rato – ou dos diabos a fugirem da cruz. Com efeito, apesar de a ACSS possui um edifício com recepção e serviços administrativos e de expediente abertos no horário de expediente, o carteiro não conseguir entregar qualquer uma das quatro cartas aos dirigentes desta entidade tutelada pelo Ministério da Saúde. As notificações regressaram ao tribunal com a indicação “objecto não reclamado”, facto que só se explica por ordem expressa dos destinatários.

    Foto dos quatro actuais dirigentes do Conselho Directivo da ACSS tirada em data incerta, mas certamente num dia em que o carteiro não bateu à porta para lhes entregar as notificações do tribunal que, por duas vezes, ostensivamente recusaram este ano. Foto: ACSS.

    O juiz insistiu em nova tentativa, a quarta, em Maio, e desta vez com advertência formal: o prazo contaria a partir da data de recepção, mesmo sem assinatura do próprio notificado. Mas em Julho os envelopes voltaram a ser devolvidos da mesma forma. André Trindade, Carlos Galamba, Sandra Brás e Paula Oliveira conseguiram furtar-se segunda vez à notificação de um tribunal impedindo a concretização de decisão com três selos judiciais (Tribunal Administrativo de Lisboa, Tribunal Central Administrativo do Sul e Supremo Tribunal Administrativo).

    Perante este bloqueio, a lei permite agora que o tribunal recorra a meios mais drásticos, como a intervenção policial ou de solicitadores, para garantir que os dirigentes não possam continuar a fugir. Mas isto expõe sobretudo uma condição lamentável.

    Num verdadeiro e efectivo Estado de Direito, seria impensável que dirigentes públicos se escondessem deliberadamente para não receber notificações judiciais, sobretudo quando está em causa o cumprimento de decisões transitadas em julgado. Mas em Portugal, os mesmos que exigem aos cidadãos rigor fiscal e legalidade não hesitam em contornar a Justiça.

    Primeira página do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 1 de Junho de 2023. Mais de dois anos depois, os dirigentes da ACSS borrifam-se impune e descaradamente até para ordens dos tribunais superiores.

    Enquanto isto durar, o PÁGINA UM – que, com este processo, já dispendeu alguns milhares de euros e horas infindáveis – n permanece impedido de aceder a uma base de dados fundamental para avaliar a qualidade dos hospitais públicos e dar transparência ao sistema de saúde.

    Mais do que um processo administrativo, a situação torna-se um símbolo de degradação institucional: um país em que se foge do carteiro para evitar cumprir decisões judiciais é, afinal, um país da bandalheira. E esta palavra é escrita numa notícia, porque objectivamente essa é a palavra adequada.

    N.D. Este e outros processos de intimação são suportados pelos leitores através do FUNDO JURÍDICO, na plataforma MIGHTYCAUSE. Pode encontrar mais elementos deste processo aqui.

  • Obesidade já ultrapassou subnutrição entre crianças e adolescentes

    Obesidade já ultrapassou subnutrição entre crianças e adolescentes


    Pela primeira vez na História da Humanidade, a obesidade ultrapassou a subnutrição entre crianças e adolescentes em idade escolar, alertou ontem o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Ao invés de ser uma boa notícia, este é um preocupante alerta, porque é um sinal de má nutrição sobretudo por se dever a hábitos alimentares assentes em alimentos ultraprocessados.

    Num relatório intitulado Feeding Profit: How Food Environments are Failing Children, divulgado no final desta semana, a UNICEF traça um retrato inquietante: já uma em cada 10 crianças entre os 5 e os 19 anos — cerca de 188 milhões em todo o Mundo — vive já com obesidade, enfrentando riscos acrescidos de doenças potencialmente fatais, como diabetes tipo 2, hipertensão, problemas cardiovasculares e certos tipos de cancro. Para crianças, a obesidade é definida como ter um índice de massa corporal (IMC) igual ou superior ao percentil 95 para idade e sexo.

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    Os números mostram uma inversão completa da tendência dos últimos 25 anos. Se, no ano 2000, quase 13% das crianças em idade escolar estavam abaixo do peso e apenas 3% eram obesas, hoje a proporção de crianças subnutridas caiu para 9,2%, enquanto a obesidade disparou para 9,4% — ultrapassando pela primeira vez a prevalência do baixo peso em quase todas as regiões do Mundo. Ou seja, a prevalência da obesidade nestas faixas etárias triplicou em pouco mais de duas décadas.

    O relatório dedica particular atenção à África do Sul, onde a situação é descrita como “profundamente preocupante”: entre as crianças com menos de 5 anos, a taxa de excesso de peso e obesidade passou de 13% em 2016 para 23% em 2024. No grupo etário dos 5 aos 19 anos, os números também são alarmantes: de 9% em 2000, a prevalência de excesso de peso subiu para 21% em 2022, com a obesidade a mais que triplicar no mesmo período, de 2% para 7%.

    Segundo a UNICEF, este fenómeno está intimamente ligado à substituição crescente de frutas, legumes e proteínas por produtos ultraprocessados e refeições rápidas, cada vez mais presentes em escolas, supermercados e na dieta diária das famílias. “As crianças não escolhem este ambiente alimentar: ele é-lhes imposto”, denuncia o relatório, que responsabiliza a indústria alimentar pelo papel dominante na modelação das preferências infantis, recorrendo a estratégias de marketing agressivas, muitas vezes direccionadas para o público mais jovem.

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    Num inquérito global conduzido pela plataforma U-Report em 2024, três em cada quatro jovens entre os 13 e os 24 anos declararam ter visto publicidade de refrigerantes, snacks ou fast-food na semana anterior, e 60% reconheceram que estas campanhas aumentaram a sua vontade de consumir tais produtos.

    Nos Estados Unidos, segundo a autoridade de saúde (CDC), a prevalência de obesidade entre crianças e adolescentes aproxima-se dos 20%, significando que 14,7 milhões de jovens americanos com idades entre 2 e 19 anos têm excesso de pessoa.

    A prevalência deste problema atinge mais as populações pobres, mostrando que as famílias com menos recursos são forçadas a recorrer a mais alimentos utraprocessados. A questão da melhoria dos hábitos alimentares dos norte-americanos, incluindo a retirada de ingredientes e aditivos sem padrões de segurança, tem sido uma das batalhas de Robert Kennedy Jr, secretario de Estado da Saúde, mas que tem tido uma contestação da influente indústria alimentar que se aproveitou de brechas legais.

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    Se nada for feito para deter a nível mundial a ‘epidemia da obesidade’ assente na chamada ‘junk food’, a UNICEF prevê impacto futuro poderá ser devastador, tanto para os sistemas de saúde como para as economias nacionais. Estima-se que o custo global da obesidade e do excesso de peso poderá ultrapassar os 4 mil milhões de dólares anuais até 2035.

    Para inverter esta trajectória, a UNICEF propõe um pacote de medidas robustas: proibição de venda e marketing de ultraprocessados em ambiente escolar, implementação de políticas obrigatórias de rotulagem clara e restrição da publicidade alimentar dirigida a menores, além de programas de apoio social que assegurem o acesso das famílias mais vulneráveis a dietas nutritivas. O relatório insiste ainda na necessidade de blindar a formulação das políticas públicas contra a interferência das grandes indústrias alimentares, de forma a colocar o interesse das crianças acima dos lucros corporativos.

  • Os erros de Pedro Henriques: anatomia de uma negligência médica recorrente

    Os erros de Pedro Henriques: anatomia de uma negligência médica recorrente


    Os graves erros e más práticas de Pedro Cavaco Henriques, cirurgião do Hospital de Faro, alvo de uma proposta de suspensão de apenas 40 dias por parte da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS), são considerados inqualificáveis por médicos consultados pelo PÁGINA UM, ainda mais por terem sido cometidos em tão curto espaço de tempo (três meses) por um clínico com prática de mais de duas décadas em operações.

    O PÁGINA UM, que teve acesso, em exclusivo, ao relatório da IGAS — enviado para a Unidade Local de Saúde do Algarve, para a Polícia Judiciária e para o Ministério Público —, analisou em detalhe os quatro casos clínicos destacados no processo disciplinar, onde apenas estão referidos alguns dos episódios denunciados pela médica Diana Pereira, então a fazer internato no Hospital de Faro e que ficou chocada com o modus operandi de Pedro Henriques, o seu próprio orientador.

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    Apesar da gravidade dos quatro casos, estranhamente a IGAS não analisou o passado de intervenções deste médico, que ao longo dos anos mais recentes também colaborou com a ULS do Médio Tejo. Num relatório exaustivo e minucioso, destacam-se sobretudo execuções cirúrgicas tecnicamente incorrectas, imprudentes e contrárias às boas práticas, confirmando a violação das chamadas leges artis. E se, para o cidadão comum, a terminologia pode parecer distante, o que ali se lê é inequívoco: houve doentes que sofreram lesões, internamentos prolongados e riscos graves de vida que poderiam ter sido evitados.

    O primeiro caso analisado remonta a 5 de Janeiro de 2023 e envolveu uma cirurgia complexa a um doente do sexo masculino realizada em dois tempos. No denominado tempo abdominal, realizado por outra equipa, não se registaram complicações, mas no tempo perineal — o que envolve o recto e o canal anal — o cirurgião Pedro Cavaco Henriques foi acusado de utilizar um dispositivo eléctrico para dissecar tecidos de forma “brutal”.

    Não se tratou apenas de um testemunho isolado: os exames histológicos confirmaram lacerações e dissecções realizadas fora dos planos anatómicos adequados, e o relatório anatomo-patológico descreveu mesmo uma lesão iatrogénica, ou seja, causada pela própria cirurgia.

    Relatório do processo disciplinar contra Pedro Cavaco Henriques analisou apenas a prática cirúrgica em três meses de 2023.

    Já no segundo caso, envolvendo também um doente do sexo masculino, embora os autos não descrevam de forma detalhada o dia ou a sequência da intervenção, o processo foi sustentado quase exclusivamente em prova documental e pericial. Pareceres técnicos da Ordem dos Médicos e da IGAS convergiram no diagnóstico de que a cirurgia não respeitou as boas práticas e que as lesões sofridas pelo doente não foram complicações inevitáveis, mas sim consequência de execução técnica inadequada.

    A defesa tentou desvalorizar o caso alegando que se tratava de um risco cirúrgico inerente, mas não conseguiu rebater as conclusões periciais. Uma das testemunhas arroladas não chegou a ser ouvida e outra optou por não comentar quando confrontada com os pareceres. O instrutor concluiu que nada abalava a acusação e manteve a nota de culpa.

    O terceiro episódio disciplinar é particularmente sensível porque se tratou de uma emergência médica. A 31 de Março de 2023, Pedro Cavaco Henriques tentou colocar dois cateteres torácicos num doente com pneumotórax — situação em que o ar invade a cavidade torácica e provoca o colapso de um pulmão.

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    As duas tentativas falharam e o doente entrou em insuficiência respiratória, tendo de ser rapidamente transferido para o serviço de urgência, onde acabou estabilizado com drenagem torácica. A médica presente confirmou então a sequência de acontecimentos – e os erros de Pedro Cavaco Henriques – e a perícia médica apontou falha técnica do cirurgião, ainda que reconhecendo que o ambulatório tinha então falta de equipamentos, facto que terá dificultado o procedimento.

    A defesa de Pedro Henriques ainda sustentou que não houve violação das leges artis e que a decisão de não insistir após as tentativas falhadas foi prudente, mas o perito da IGAS sublinhou que deveria ter sido pedido um raio-X logo após a primeira tentativa para confirmar a evolução da situação — algo que não foi feito. Também aqui a nota de culpa foi considerada procedente, ainda que com atenuação, dado que a carência de meios foi considerada um factor contribuinte.

    O caso mais grave, porém, envolveu uma doente irlandesa, que deu entrada no Hospital de Faro no dia 2 de Abril de 2023 com apendicite aguda perfurada e peritonite. Pedro Cavaco Henriques decidiu fazer uma apendicectomia laparoscópica, isto é, a remoção do apêndice feita através de pequenas incisões no abdómen e com auxílio de uma câmara. Trata-se de um método menos invasivo e, em condições normais, mais rápido na recuperação.

    Trecho do processo disciplinar contra Pedro Cavaco Henriques.

    Porém, no caso desta doente, a situação era de elevada gravidade: o apêndice estava perfurado e havia peritonite, ou seja, infecção disseminada na cavidade abdominal, o que torna a cirurgia muito mais difícil e arriscada. Nestas circunstâncias, é prática recomendada — e ensinada nas escolas de cirurgia — que o cirurgião converta o procedimento para cirurgia aberta (laparotomia), abrindo o abdómen para ter melhor acesso e visão directa dos órgãos.

    Essa conversão não é sinal de erro técnico, mas sim de prudência clínica: permite reduzir o risco de lesões acidentais, limpar adequadamente a cavidade abdominal e tratar de forma mais segura o foco de infecção.

    Ora, Pedro Cavaco Henriques decidiu manter a cirurgia por via laparoscópica, mesmo perante a dificuldade de visualização e o risco acrescido de complicações. Essa decisão — de continuar “às cegas” com instrumentos laparoscópicos — foi justamente o ponto mais criticado no relatório da IGAS, que concluiu que a manutenção desta via contribuiu de forma decisiva para as lacerações do intestino delgado.

    Em fase de instrução do processo disciplinar, Pedro Henriques chegou a mostrar arrependimento, mas as consequências foram enormes: no dia seguinte, já com um quadro clínico preocupante, a doente teve de ser reoperada por outra equipa cirúrgica, que encontrou abundante pus na cavidade abdominal e múltiplas lacerações do intestino delgado. Foram necessárias suturas e a ressecção (remoção) de cerca de 20 centímetros de ansa intestinal (parte do intestino delgado) para reparar os danos. Estas lesões foram confirmadas como iatrogénicas, ou seja, causadas pela primeira cirurgia.

    Página das conclusões do processo disciplinar contra o médico Pedro Cavaco Henriques. O PÁGINA UM expurgou os nomes dos cinco doentes referenciados por razões de legítima privacidade e por não ter relevância pública.

    O perito de cirurgia geral foi taxativo ao referir que o protocolo operatório não mencionava manobras que poderiam ter prevenido as perfurações. A doente permaneceu internada cerca de um mês, recebendo alta apenas a 12 de Maio de 2023. Apesar de o arrependimento do cirurgião ter sido tido em conta como atenuante, o relatório final da IGAS concluiu pela violação grave das normas técnicas e reforçou que a decisão de manter a cirurgia por laparoscopia foi errada face ao elevado risco presente.

    Lidos em conjunto, os quatro casos compõem um retrato inquietante da prática clínica de Pedro Cavaco Henriques, com erros repetidos e lesões evitáveis em doentes, alguns em situações de risco de vida. A suspensão de apenas 40 dias, aplicada como sanção disciplinar, aparenta assim ser curta face à gravidade dos factos e à convergência das conclusões periciais. Mas mostra também uma intervenção burocrática da IGAS: perante um médico que em apenas três meses cometeu quatro infracções desta gravidade, como as descritas, não seria prudente analisar o seu histórico?

  • Nova política de saúde ‘expulsa’ dos hospitais 1700 doentes não urgentes por dia

    Nova política de saúde ‘expulsa’ dos hospitais 1700 doentes não urgentes por dia


    A estratégia do Ministério da Saúde, apresentada como forma de “racionalizar o recurso às urgências”, está a produzir efeitos visíveis — e polémicos. Entre 1 de Janeiro e 31 de Agosto de 2025, menos 351.246 pessoas recorreram às urgências hospitalares face à média do período homólogo do triénio 2022-2024, de acordo com uma análise detalhada realizada pelo PÁGINA UM aos registos hospitalares. São, em média, 1.445 pessoas por dia que deixaram de ser atendidas nos serviços de urgência dos hospitais públicos portugueses.

    O total de episódios caiu 8,3%, de uma média de 4.236.109 em 2022-2024 para 3.884.863 este ano. Comparando apenas com 2024, a diferença é ainda maior: menos 358.185 episódios. Contudo, os episódios que resultaram em internamento mantiveram-se praticamente estáveis, com uma redução residual de 0,6%, confirmando que a diminuição se concentrou sobretudo nos casos menos graves.

    A redução mais drástica verificou-se nos casos não urgentes — pulseiras verdes, azuis e brancas do protocolo de Manchester — que globalmente caíram 24,6%, passando de 1.679.160 para 1.266.189 episódios. Foram menos 412.971 utentes, o que significa menos 1.700 pessoas por dia nas urgências.

    Esta quebra massiva é explicada pela maior intervenção do SNS24, incluindo a introdução da triagem digital, mas também é consequência de fechos selectivos de urgências em vários hospitais e até do desvio de doentes para urgências privadas — como sucede no Hospital da Prelada, gerido pela Misericórdia do Porto, que passou a integrar o circuito de resposta a situações menos urgentes.

    Apesar desta redução, os indicadores de desempenho tiveram melhorias apenas subtis: o tempo médio entre admissão e triagem manteve-se em 14 minutos, o intervalo entre triagem e primeira observação caiu de 55 para 49 minutos e a permanência média nos serviços passou de 271 para 268 minutos. Os episódios com permanência superior a seis horas diminuíram ligeiramente, passando de 1,027 milhões para 970 mil, uma quebra de 5,6%.

    Indicadores de urgências hospitalares no período de Janeiro a Agosto nos anos de 2022 a 2025. Fonte: SNS. Análise: PÁGINA UM.

    No detalhe das triagens, os casos de maior gravidade até aumentaram um pouco, embora sejam factores não controláveis numa perspectiva de curto prazo: as pulseiras vermelhas (doentes emergentes que exigem intervenção imediata) subiram 1,9% e as amarelas (doentes urgentes) 3,4%, enquanto as laranjas (doentes muito urgentes) caíram 3,9%.

    Mas a maior quebra foi, efectivamente, nas verdes (doentes pouco urgentes, que podem esperar até 120 minutos pelo seu atendimento ou, eventualmente, serem encaminhados para outros serviços de saúde), que caíram de uma média de 1.515.692 para 1.115.889 casos, ou seja, 26,4%. As azuis (doentes não urgentes) caíram 16,2% e as brancas (doentes não urgentes associados a questões administrativas) 2,9%, em valores absolutos menos expressivos.

    A análise feita pelo PÁGINA UM às principais Unidades Locais de Saúde (ULS) – aquelas que registaram mais de 100 mil episódios nas urgências entre Janeiro e Agosto do ano passado – mostra que a queda este ano foi generalizada, embora com diferenças regionais: descidas de 18% no Oeste, 17% em Coimbra, 14% no Entre Douro e Vouga, 12% no São João, 11% em Viseu-Dão-Lafões e 10% na Lisboa Central (São José) e no Baixo Vouga, enquanto no Algarve, Gaia-Espinho e Médio Tejo as reduções foram pouco significativas (1% ou 2%).

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    Em termos absolutos, a ULS de Coimbra foi a que conseguiu uma maior redução, com menos 140 pessoas por dia a deslocarem-se às urgências. Seguem-se Oeste e Amadora-Sintra (menos 86/dia cada), Lisboa Central (menos 72), Entre Douro e Vouga (menos 76) e o São João (menos 61). Deste lote de 17 ULS, Gaia-Espinho só reduziu 11 atendimentos nas urgências por dia e o Médio Tejo somente quatro.

    Quando se consideram apenas os casos não urgentes, a queda diária é, porém, ainda mais expressiva: a ULS de Lisboa Central teve menos 144 pessoas por dia, Oeste menos 97, Amadora-Sintra menos 86, Entre Douro e Vouga menos 94, Alto Minho menos 73, Baixo Vouga menos 68, Coimbra menos 38 e São João menos 32.

    Outro aspecto que se destaca nesta análise do PÁGINA UM é o distinto peso da fatia dos não urgentes nas diferentes ULS. Se os episódios não urgentes (pulseiras verdes, azuis e brancas) ainda representaram este ano cerca de um terço (32,6%) do total das idas às urgências – quando no triénio de 2022-2024 se situava nos 39,6% –, ainda se detectam grandes ULS com um rácio acima de 40%: Amadora-Sintra (57,3%), Alto Minho (47,4%), Oeste (46,7%), Lisboa Norte (45,4%), Braga (43,8%) e Médio Tejo (42,1%).

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    Mesmo assim, houve ULS que, face ao ano passado, reduziram de forma muito significativa o peso dos episódios não urgentes, como foram os casos da ULS de São João (passou de 38,6% para 19,8%), Entre Douro e Vouga (32,3% vs. 17,8%), Oeste (46,7% vs. 32,6%) e Alto Minho (47,4% vs. 33,6%). Ao invés, a proporção praticamente não se alterou na ULS do Algarve (diferença inferior a 0,1 pontos percentuais), de Gaia-Espinho (menos 0,7 pontos percentuais), do Médio Tejo (menos 0,9 pontos percentuais) e de Coimbra (menos 1,5 pontos percentuais).

    Apesar de o Ministério da Saúde destacar que as medidas para uma melhor triagem visam libertar os hospitais para os casos mais graves, uma redução tão brusca do afluxo levanta questões sobre se se trata de uma racionalização ou de uma exclusão tácita de doentes, com risco de agravamento clínico para quem, por barreiras administrativas ou geográficas, não chega a ser atendido condignamente.

  • Estudo do maior epidemiologista mundial faz desaparecer 12 milhões de ‘vidas salvas’ pela vacina da covid-19

    Estudo do maior epidemiologista mundial faz desaparecer 12 milhões de ‘vidas salvas’ pela vacina da covid-19

    Em 2022, a Lancet Infectious Diseases publicava, com pompa e circunstância, um artigo científico assinado por um grupo internacional de modeladores liderados por Oliver Watson, que concluía — sem hesitar e com inequívoco encómio — que as vacinas contra a covid-19 tinham “salvado” pelo menos 14 milhões de pessoas no primeiro ano do programa de vacinação global.

    O trabalho, financiado por diversas entidades, entre as quais a Fundação Bill & Melinda Gates, alimentou a narrativa dominante: um triunfo inequívoco da ciência, traduzido numa cifra de vidas poupadas que era, ao mesmo tempo, argumento político e capital simbólico para justificar a vacinação massiva, transversal a todas as idades e contextos.

    John Ioannidis, professor e investigador da Universidade de Stanford.

    Mas estamos em 2025, e o véu dessa narrativa hegemónica começa a desfazer-se. E fá-lo com estrondo — e, mais importante, com consistência científica. Um artigo agora publicado na JAMA Health Forum, e ontem revelado por um centro de investigação da Universidade de Stanford, e tendo como autor principal John Ioannidis, considerado o epidemiologista mais reputado do mundo, vem colocar números muito mais modestos — e, sobretudo, muito mais granulares — sobre a mesa.

    A estimativa central de Ioannidis e três investigadores italianos é de que as vacinas terão evitado cerca de 2,5 milhões de mortes em todo o mundo, entre o final de 2020 e o ano de 2024, com uma margem de sensibilidade que varia entre 1,4 e4,0 milhões. A diferença é brutal: cerca de doze milhões de vidas “salvas” evaporaram-se, não por um capricho político, mas porque o novo trabalho aplica parâmetros de risco e eficácia mais realistas, separados por idade, período e contexto epidemiológico.

    O ponto mais demolidor da análise encontra-se no gradiente etário e extrapola-se daí ter sido um erro colossal, sem vantagens, a vacinação massiva e, pior ainda, as políticas coercivas, recorrendo a tácticas éticas deploráveis, incluindo discriminação para quem optava por não se vacinar, mesmo após uma infecção prévia.

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    Com efeito, ao contrário da narrativa que sugeria benefícios significativos em toda a população, os dados mostram que quase 90% das vidas salvas ocorreram em pessoas com 60 ou mais anos. As crianças e adolescentes (0–19 anos) contribuíram com meros 0,01% do total, e os jovens adultos (20–29 anos) com 0,07%. Esse reduzido contributo deveu-se às taxas de letalidade por infecção (IFR) antes da variante Ómicron serem já bastante baixos em jovens e adultos de meia idade.

    Nos menores de 20 anos, a letalidade da covid-19 sem vacina era afinal de 0,000003 — isto é, três óbitos por cada milhão de infecções —, o que contrasta com uma letalidade de 12% (120 mil mortes por milhão infecções) nos maiores de 70 anos que vivessem em lares. Aliás, o mesmo grupo etário em melhores condições de saúde (vivendo na comunidade) apresentou taxas de letalidade de apenas 1,8%, enquanto por exemplo no grupo etário dos 50 aos 59 anos era de 0,12%, o que confirma que esta foi uma doença particularmente grave apenas em lares.

    Note-se, contudo, que o estudo de Ioannidis assume ainda que não só a imunidade natural (por prévia infecção) era eficaz como destaca que, durante o período Ómicron, a letalidade caiu para cerca de um terço da registada com a variante Alfa. Ou seja, o ‘game changer’ da pandemia foi a mudança de prevalência da Omicron, mais transmissível mas muitíssimo menos letal por ‘atacar’ sobretudo as vias respiratórias superiores.

    Distribuição da população mundial por grupos etários, indicando para cada estrato a proporção vacinada antes da infecção no período pré-Ómicron (com intervalo de sensibilidade) e a taxa de letalidade por infecção (IFR) no mesmo período, também com intervalo de sensibilidade. Inclui ainda a separação dos indivíduos com ≥70 anos em residentes na comunidade e em lares, evidenciando as diferenças marcadas de risco. Fonte: Ioannidis et al. (2025).

    A eficácia vacinal para prevenir a morte foi também tratada com rigor neste novo estudo, e mostra que esteve muito longe das promessas iniciais de eficácia absoluta. Quando surgiram foram apontadas eficácia acima de 90% e ainda actualmente em sites da Comissão Europeia se aponta para valores acima de 80%. Porém, o estudo mostra que foram de 75% no período pré-Ómicron (com um intervalo de 40% a 85%) e de 50% no período Ómicron (30% a 70%).

    Estes valores, bastante inferiores aos sugeridos em discursos políticos e comunicações oficiais em 2021 e 2022, foram cruzados na análise de Ioannidis com a proporção de vacinados antes da infecção a nível mundial: apenas 10% no grupo dos 0–19 anos, 20% nos 20–29 anos e cerca de 46% nos adultos com mais de 30 anos.

    Em termos de retrato final, as conclusões só podem ter implicações práticas e políticas — e até mediáticas, pelo papel que a imprensa generalista teve para se impor uma narrativa. O chamado número necessário para tratar (NNT) — ou seja, o número de doses necessárias para evitar uma morte — foi, globalmente, de cerca de 5.400 doses. E para ‘conceder’ um ano de vida foram necessárias 900 doses.

    Estudo de John Ioannidis, Angelo Maria Pezzullo, Antonio Cristiano e Stefania Boccia é um importante marco para a escrita da verdade científica da pandemia.

    Estes valores são globais e ‘degradam-se’ substancialmente nos grupos de baixo risco: em jovens até 29 anos, um cenário ilustrativo mostra que terão sido precisas cerca de 100 mil doses para evitar uma única morte, tornando o benefício por dose administrada quase irrisório. E até do ponto de vista económico: se consideramos um preço de 15 euros por dose, para se salvar uma vida de um menor de 30 anos gastou-se 1,5 milhões de euros. Ora, com esse dinheiro consegue-se salvar mais do que isso para tratar ou prevenir a letalidade de outras doenças.

    E é também neste aspecto que o estudo de Ioannidis e dos investigadores italianos introduz uma questão sensível e raramente abordada na narrativa oficial: a possibilidade de que, em certos subgrupos jovens, o balanço entre benefícios e riscos possa ter sido negativo, ou seja, que a vacina tenha prejudicado mais do que trazido benefícios.

    No capítulo mais sensível, os autores admitem não terem separado as mortes evitadas pela eficácia vacinal das mortes provocadas por danos associados à vacinação. Sublinhando que “os eventos adversos das vacinas contra a COVID-19 continuam a ser um tema controverso”, Ioannidis e os seus colegas recordam que os dados provenientes de ensaios clínicos aleatorizados são muito limitados e que as estimativas de risco obtidas a partir de registos observacionais comportam elevada incerteza.

    Estimativa de vidas salvas pela vacinação contra a COVID-19, segmentada por grupo etário, período (antes de Ómicron e durante Ómicron) e estado de infecção prévia no momento da vacinação. Inclui o total de vidas salvas por estrato etário e a percentagem correspondente do total global de 2 532 869 vidas salvas. Os dados mostram que a grande maioria dos benefícios concentrou-se em pessoas com 60 ou mais anos, especialmente idosos residentes na comunidade. Fonte: Ioannidis et al. (2025).

    Apesar de concluírem que o número de óbitos atribuíveis a eventos adversos amplamente reconhecidos — como trombose, miocardite ou mortes em residentes de lares altamente debilitados — será provavelmente “cerca de duas ordens de grandeza inferior ao benefício global”, alertam que “estes danos são importantes para ponderar face aos benefícios em subpopulações específicas onde apresentam maior frequência [jovens] e onde o balanço risco-benefício possa alterar-se ou até inverter-se”.

    Este novo estudo está longe de ser uma contestação ao valor das vacinas enquanto ferramenta de saúde pública — Ioannidis tem vindo a reconhecer o seu papel relevante na redução da mortalidade em grupos de alto risco.

    Mas é sobretudo um apelo, sustentado por dados, a políticas mais racionais e dirigidas: priorizar a protecção dos mais vulneráveis, em vez de insistir em programas indiscriminados que pouco acrescentam nos mais jovens. E é, sobretudo, um lembrete de que as “verdades” proclamadas no calor de uma crise sanitária podem, e devem, ser revistas à luz de dados mais sólidos.

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    A diferença entre os 14 milhões “salvos” proclamados pela Lancet em 2022 e os 2,5 milhões agora estimados por Ioannidis não é apenas um ajuste estatístico: é um retrato do modo como a ciência, quando se liberta das pressões políticas e mediáticas, pode revelar um cenário mais complexo — e, inevitavelmente, mais incómodo — do que aquele que serviu para justificar medidas globais de saúde pública.

    Mas isso, infelizmente, é lição que dificilmente será aprendida, e apreendida, pelos políticos portugueses e, hélas, até pela Ordem dos Médicos, entidade da qual ainda se aguarda um pedido de desculpas para a forma como se comportou durante a pandemia, tendo até escondido um parecer do seu Colégio de Pediatria que não recomendava a vacinação a adolescentes saudáveis.