A Carris deixou caducar no passado domingo, 31 de Agosto, o contrato de manutenção de segurança dos quatro ascensores de Lisboa – Glória, Bica, Lavra e Elevador de Santa Justa – e encontrava-se, hoje, no momento do fatídico acidente no elevador da Glória – que terá causado já 15 mortes e 18 feridos –, sem acordo em vigor para assegurar a prevenção de falhas e a resposta a emergências.
O PÁGINA UM apurou que um novo concurso público lançado em Abril deste ano, com um preço base de cerca de 1,2 milhões de euros para três anos, foi cancelado pela Administração da Carris no passado dia 14 de Agosto por considerar que todas as propostas apresentadas superavam o valor-base.
O efeito da suspensão foi imediato, coincidindo com o termo do contrato anterior, o que significa que, desde anteontem, dia 1 de Setembro, a empresa pública não tinha cobertura contratual para a manutenção e segurança dos ascensores. O PÁGINA UM confirmou que não tinha sido ainda sequer assinado um ajuste directo urgente para garantir a continuidade dos serviços.
O contrato agora extinto tinha sido assinado a 31 de Agosto de 2022 com a MNTC – Serviços Técnicos de Engenharia, no valor global de 995.515,20 euros para 36 meses. Apesar de só ter sido publicado no Portal Base em 2024, o acordo previa a execução de manutenção preventiva e correctiva, bem como serviços de resposta rápida a emergências, para os quatro equipamentos icónicos da cidade. Havia também uma componente para reparação de actos de vandalismo.
O preço mensal pago pela Carris em cada um dos ascensores era de apenas 5.913,30 euros (acrescido de IVA), valor que aparenta ser muito económico face à complexidade técnica dos ascensores, que exigem supervisão constante para garantir a segurança dos passageiros e a fiabilidade das operações.
Anúncio do cancelamento do concurso público aberto em Abril passado e que produziu efeitos no dia 1 deste mês. O contrato anterior tinha expirado no dia 31 de Agosto, ou seja, no domingo passado.
No caso do Elevador da Glória, o caderno de encargos era particularmente exigente, prevendo um regime de manutenção diária, semanal, mensal e semestral. As tarefas incluíam, entre outras, a limpeza e lubrificação do pantógrafo, a verificação das baterias e do cabo de tracção, a inspecção do governador e do controller, a purga do compressor e a lubrificação geral das cancelas, bem como a inspecção periódica do motor de tracção e disjuntores. Estava ainda estipulado que o cabo de tracção fosse substituído após 1.500 dias de serviço ou sempre que houvesse uma reparação geral, de forma a reduzir o risco de avarias graves.
Para garantir um serviço fiável, o contrato fixava uma taxa mínima de disponibilidade de 98%, com um regime de penalizações pesadas em caso de falhas: mil euros por trimestre se a taxa caísse para 97%, dois mil euros para 96% e três mil euros se descesse para 95% ou menos, com agravamentos adicionais em caso de indisponibilidade prolongada. Este modelo permitia pressionar a empresa de manutenção a assegurar intervenções rápidas e eficazes, protegendo os milhares de utentes diários que utilizam os ascensores.
Certo é que, desde o início de Setembro, os ascensores de Lisboa funcionam sem a cobertura contratual que assegurava a sua manutenção e segurança, uma situação que pode ter implicações e responsabilidades no contexto do acidente de hoje.
O Elevador da Glória foi inaugurado em 24 de Outubro de 1885, foi o segundo ascensor a ser construído em Lisboa e continua a ser um dos símbolos da cidade. Originalmente movido a vapor e, mais tarde, a água, foi electrificado em 1915, ligando a Praça dos Restauradores ao Jardim de São Pedro de Alcântara, vencendo um desnível de 265 metros. Está classificado como Monumento Nacional desde 2002.
O império de media da família Balsemão, através da empresa Balseger, está em verdadeiro colapso financeiro. E a sua manutenção no controlo da Impresa – onde só detém 35,9%, uma vez que tem 71,41% dos direitos de votos via Impreger – está a transformar-se numa vitória de Pirro, porque se arrisca, em breve, a controlar um grupo de media sem um pataco que seja. Algo que será fatal para um negócio num sector que, ainda por cima, se tem mostrado deficitário nos últimos anos e com crónicos problemas de liquidez.
Com efeito, de acordo com uma análise do PÁGINA UM, a erosão financeira da Balseger – a holding criada em 2010 por Francisco Pinto Balsemão para concentrar os seus interesses na Impresa – é assustadora: em apenas década e meia, os capitais próprios caíram de cerca de 75 milhões de euros para apenas 9,4 milhões, uma perda de 87%, quase nove décimos do “património mediático” de Pinto Balsemão.
Francisco Pinto Balsemão em 2015. Foto: Imagem de entrevista à PSD-TV
Esta hemorragia patrimonial não é apenas um número contabilístico: traduz-se numa capacidade cada vez menor para responder a crises de liquidez, a renegociações com a banca e a investimentos estratégicos para manter a competitividade do grupo. E confirma uma evidência: o accionista de referência, a família Balsemão, apesar de controlar toda a administração – e pôr e dispor das estratégias de gestão – já não tem sequer dinheiro próprio, ou não quer disponibilizar, para suprir crises de tesouraria. Ainda recentemente foram relatados atrasos no pagamento dos subsídios de férias aos trabalhadores da SIC.
Apesar do cenário anterior já não ser muito favorável, o ano de 2024 agravou dramaticamente a situação. A Impresa registou prejuízos de 66,2 milhões de euros, esmagada por imparidades de 60,7 milhões que desvalorizaram contabilisticamente os activos da SIC e da InfoPortugal – e em cascata da Impreger e da Balseger. A holding familiar de Pinto Balsemão – com acções distribuídas pelos filhos, mas com o patriarca a deter 99,9% dos votos – teve de reconhecer imparidades (e prejuízos) de mais de 31,1 milhões de euros. Uma verdadeira hecatombe financeira e de imagem.
Ao mesmo tempo, a dívida líquida da Impresa subiu para 130,9 milhões de euros, mais 13% que no ano anterior, elevando a pressão financeira e tornando urgente a geração de liquidez. Para piorar o cenário, falhou em Julho uma operação crucial para reforçar a tesouraria do grupo de media: a venda do edifício de Laveiras, em Paço de Arcos, chegou a estar praticamente alinhavada com um fundo de investimento ligado ao BPI, mas o negócio caiu no último minuto, privando a Impresa de uma injecção de capital que seria vital para aliviar a pressão de curto prazo.
Segunda geração Balsemão não está a sobreviver ao império criado a partir da década de 70.
Embora ainda de forma discreta, os primeiros sinais do colapso surgiram ainda na primeira metade da segunda década deste século. Em 2014, os capitais próprios da Balseger tinham já descido para 52,5 milhões de euros, fruto de cerca de 23 milhões de prejuízos acumulados. Foi nesse contexto que, em 2016, se avançou para uma reestruturação do capital social: de 75 milhões de euros de capital social passou-se para apenas 4,6 milhões de euros, através da extinção de acções próprias e da redução do seu valor nominal, passando uma parte do valor anterior para reservas.
Esta operação meramente contabilística teve, porém, outra particularidade: cerca de 20 milhões de euros, anteriormente classificados como capital social, foram reclassificados como um “empréstimo” dos accionistas à própria empresa, sem juros e sem prazo de devolução. A Balseger passou a ser uma mera holding de estrutura flexível, mas deixando de ser um peso-pesado financeiro, e com uma dívida simbólica para com os accionistas.
Numa altura em que Pinto Balsemão jogava ainda a sua influência política e económica, esta estratégia poderia ter corrido bem, pois libertava tecnicamente o capital social, permitindo no futuro distribuir reservas ou reforçar capital sem novo processo formal de redução.
Extracto do capital próprio inscrito no balanço da Balseger em 2024.
Mas esta operação só faria sentido se fosse acompanhada de um segundo passo estratégico: comprar os 28,6% minoritários da Impreger, distribuídos por personalidades e famílias que co-fundaram o Expresso em 1973, sobretudo as famílias Ruella Ramos (dona do Diário de Lisboa), Boullosa e Botelho Moniz, sem poder de gestão. De entre os minoritários, com uma quota simbólica na Impreger, está ainda António Guterres, actual secretário-geral das Nações Unidas.
Mas os accionistas minoritários da Impreger nunca quiseram abrir mão das suas acções – com valor de mercado cada vez menor – e Pinto Balsemão nunca conseguiu reforçar o controlo indirecto sobre a Impresa que lhe permitisse abrir a porta a novos investidores, dispostos a injectar capital, sem pôr em causa o controlo da gestão.
O ano de 2024 foi, por isso, ainda mais devastador. Hoje, a Balseger está com capitais próprios esqueléticos e sem almofada para novos choques. Se a Impresa voltar a registar prejuízos relevantes ou novas imparidades, os capitais próprios da holding da família Balsemão podem cair para níveis residuais ou mesmo negativos, obrigando a uma recapitalização urgente. E aqui surge o dilema: ou a família injecta dinheiro novo para manter o controlo, ou aceita a entrada de investidores externos, correndo o risco de perder o controlo do grupo de media, onde pontifica a SIC a e Impresa Publishing (Expresso), em dificuldades maiores porque ainda tem de suportar os juros das dívidas do ‘pai’ Impresa.
Recusar capital externo significa assistir à asfixia do grupo, incapaz de investir em programação e de travar a perda de receitas. Aceitá-lo implica abrir mão do comando absoluto, algo que Pinto Balsemão, agora com 88 anos, nunca aceitou.
Com uma posição financeira tão frágil, a Impresa está assim vulnerável aos caprichos de uma família que criou uma estrutura societária blindada para evitar perder o poder, mas que hoje mais parece uma gaiola de ouro sem escapatória financeira.
A estratégia do Ministério da Saúde, apresentada como forma de “racionalizar o recurso às urgências”, está a produzir efeitos visíveis — e polémicos. Entre 1 de Janeiro e 31 de Agosto de 2025, menos 351.246 pessoas recorreram às urgências hospitalares face à média do período homólogo do triénio 2022-2024, de acordo com uma análise detalhada realizada pelo PÁGINA UM aos registos hospitalares. São, em média, 1.445 pessoas por dia que deixaram de ser atendidas nos serviços de urgência dos hospitais públicos portugueses.
O total de episódios caiu 8,3%, de uma média de 4.236.109 em 2022-2024 para 3.884.863 este ano. Comparando apenas com 2024, a diferença é ainda maior: menos 358.185 episódios. Contudo, os episódios que resultaram em internamento mantiveram-se praticamente estáveis, com uma redução residual de 0,6%, confirmando que a diminuição se concentrou sobretudo nos casos menos graves.
A redução mais drástica verificou-se nos casos não urgentes — pulseiras verdes, azuis e brancas do protocolo de Manchester — que globalmente caíram 24,6%, passando de 1.679.160 para 1.266.189 episódios. Foram menos 412.971 utentes, o que significa menos 1.700 pessoas por dia nas urgências.
Esta quebra massiva é explicada pela maior intervenção do SNS24, incluindo a introdução da triagem digital, mas também é consequência de fechos selectivos de urgências em vários hospitais e até do desvio de doentes para urgências privadas — como sucede no Hospital da Prelada, gerido pela Misericórdia do Porto, que passou a integrar o circuito de resposta a situações menos urgentes.
Apesar desta redução, os indicadores de desempenho tiveram melhorias apenas subtis: o tempo médio entre admissão e triagem manteve-se em 14 minutos, o intervalo entre triagem e primeira observação caiu de 55 para 49 minutos e a permanência média nos serviços passou de 271 para 268 minutos. Os episódios com permanência superior a seis horas diminuíram ligeiramente, passando de 1,027 milhões para 970 mil, uma quebra de 5,6%.
Indicadores de urgências hospitalares no período de Janeiro a Agosto nos anos de 2022 a 2025. Fonte: SNS. Análise: PÁGINA UM.
No detalhe das triagens, os casos de maior gravidade até aumentaram um pouco, embora sejam factores não controláveis numa perspectiva de curto prazo: as pulseiras vermelhas (doentes emergentes que exigem intervenção imediata) subiram 1,9% e as amarelas (doentes urgentes) 3,4%, enquanto as laranjas (doentes muito urgentes) caíram 3,9%.
Mas a maior quebra foi, efectivamente, nas verdes (doentes pouco urgentes, que podem esperar até 120 minutos pelo seu atendimento ou, eventualmente, serem encaminhados para outros serviços de saúde), que caíram de uma média de 1.515.692 para 1.115.889 casos, ou seja, 26,4%. As azuis (doentes não urgentes) caíram 16,2% e as brancas (doentes não urgentes associados a questões administrativas) 2,9%, em valores absolutos menos expressivos.
A análise feita pelo PÁGINA UM às principais Unidades Locais de Saúde (ULS) – aquelas que registaram mais de 100 mil episódios nas urgências entre Janeiro e Agosto do ano passado – mostra que a queda este ano foi generalizada, embora com diferenças regionais: descidas de 18% no Oeste, 17% em Coimbra, 14% no Entre Douro e Vouga, 12% no São João, 11% em Viseu-Dão-Lafões e 10% na Lisboa Central (São José) e no Baixo Vouga, enquanto no Algarve, Gaia-Espinho e Médio Tejo as reduções foram pouco significativas (1% ou 2%).
Em termos absolutos, a ULS de Coimbra foi a que conseguiu uma maior redução, com menos 140 pessoas por dia a deslocarem-se às urgências. Seguem-se Oeste e Amadora-Sintra (menos 86/dia cada), Lisboa Central (menos 72), Entre Douro e Vouga (menos 76) e o São João (menos 61). Deste lote de 17 ULS, Gaia-Espinho só reduziu 11 atendimentos nas urgências por dia e o Médio Tejo somente quatro.
Quando se consideram apenas os casos não urgentes, a queda diária é, porém, ainda mais expressiva: a ULS de Lisboa Central teve menos 144 pessoas por dia, Oeste menos 97, Amadora-Sintra menos 86, Entre Douro e Vouga menos 94, Alto Minho menos 73, Baixo Vouga menos 68, Coimbra menos 38 e São João menos 32.
Outro aspecto que se destaca nesta análise do PÁGINA UM é o distinto peso da fatia dos não urgentes nas diferentes ULS. Se os episódios não urgentes (pulseiras verdes, azuis e brancas) ainda representaram este ano cerca de um terço (32,6%) do total das idas às urgências – quando no triénio de 2022-2024 se situava nos 39,6% –, ainda se detectam grandes ULS com um rácio acima de 40%: Amadora-Sintra (57,3%), Alto Minho (47,4%), Oeste (46,7%), Lisboa Norte (45,4%), Braga (43,8%) e Médio Tejo (42,1%).
Mesmo assim, houve ULS que, face ao ano passado, reduziram de forma muito significativa o peso dos episódios não urgentes, como foram os casos da ULS de São João (passou de 38,6% para 19,8%), Entre Douro e Vouga (32,3% vs. 17,8%), Oeste (46,7% vs. 32,6%) e Alto Minho (47,4% vs. 33,6%). Ao invés, a proporção praticamente não se alterou na ULS do Algarve (diferença inferior a 0,1 pontos percentuais), de Gaia-Espinho (menos 0,7 pontos percentuais), do Médio Tejo (menos 0,9 pontos percentuais) e de Coimbra (menos 1,5 pontos percentuais).
Apesar de o Ministério da Saúde destacar que as medidas para uma melhor triagem visam libertar os hospitais para os casos mais graves, uma redução tão brusca do afluxo levanta questões sobre se se trata de uma racionalização ou de uma exclusão tácita de doentes, com risco de agravamento clínico para quem, por barreiras administrativas ou geográficas, não chega a ser atendido condignamente.
Em 2022, a Lancet Infectious Diseases publicava, com pompa e circunstância, um artigo científico assinado por um grupo internacional de modeladores liderados por Oliver Watson, que concluía — sem hesitar e com inequívoco encómio — que as vacinas contra a covid-19 tinham “salvado” pelo menos 14 milhões de pessoas no primeiro ano do programa de vacinação global.
O trabalho, financiado por diversas entidades, entre as quais a Fundação Bill & Melinda Gates, alimentou a narrativa dominante: um triunfo inequívoco da ciência, traduzido numa cifra de vidas poupadas que era, ao mesmo tempo, argumento político e capital simbólico para justificar a vacinação massiva, transversal a todas as idades e contextos.
John Ioannidis, professor e investigador da Universidade de Stanford.
A estimativa central de Ioannidis e três investigadores italianos é de que as vacinas terão evitado cerca de 2,5 milhões de mortes em todo o mundo, entre o final de 2020 e o ano de 2024, com uma margem de sensibilidade que varia entre 1,4 e4,0 milhões. A diferença é brutal: cerca de doze milhões de vidas “salvas” evaporaram-se, não por um capricho político, mas porque o novo trabalho aplica parâmetros de risco e eficácia mais realistas, separados por idade, período e contexto epidemiológico.
O ponto mais demolidor da análise encontra-se no gradiente etário e extrapola-se daí ter sido um erro colossal, sem vantagens, a vacinação massiva e, pior ainda, as políticas coercivas, recorrendo a tácticas éticas deploráveis, incluindo discriminação para quem optava por não se vacinar, mesmo após uma infecção prévia.
Com efeito, ao contrário da narrativa que sugeria benefícios significativos em toda a população, os dados mostram que quase 90% das vidas salvas ocorreram em pessoas com 60 ou mais anos. As crianças e adolescentes (0–19 anos) contribuíram com meros 0,01% do total, e os jovens adultos (20–29 anos) com 0,07%. Esse reduzido contributo deveu-se às taxas de letalidade por infecção (IFR) antes da variante Ómicron serem já bastante baixos em jovens e adultos de meia idade.
Nos menores de 20 anos, a letalidade da covid-19 sem vacina era afinal de 0,000003 — isto é, três óbitos por cada milhão de infecções —, o que contrasta com uma letalidade de 12% (120 mil mortes por milhão infecções) nos maiores de 70 anos que vivessem em lares. Aliás, o mesmo grupo etário em melhores condições de saúde (vivendo na comunidade) apresentou taxas de letalidade de apenas 1,8%, enquanto por exemplo no grupo etário dos 50 aos 59 anos era de 0,12%, o que confirma que esta foi uma doença particularmente grave apenas em lares.
Note-se, contudo, que o estudo de Ioannidis assume ainda que não só a imunidade natural (por prévia infecção) era eficaz como destaca que, durante o período Ómicron, a letalidade caiu para cerca de um terço da registada com a variante Alfa. Ou seja, o ‘game changer’ da pandemia foi a mudança de prevalência da Omicron, mais transmissível mas muitíssimo menos letal por ‘atacar’ sobretudo as vias respiratórias superiores.
Distribuição da população mundial por grupos etários, indicando para cada estrato a proporção vacinada antes da infecção no período pré-Ómicron (com intervalo de sensibilidade) e a taxa de letalidade por infecção (IFR) no mesmo período, também com intervalo de sensibilidade. Inclui ainda a separação dos indivíduos com ≥70 anos em residentes na comunidade e em lares, evidenciando as diferenças marcadas de risco. Fonte: Ioannidis et al. (2025).
A eficácia vacinal para prevenir a morte foi também tratada com rigor neste novo estudo, e mostra que esteve muito longe das promessas iniciais de eficácia absoluta. Quando surgiram foram apontadas eficácia acima de 90% e ainda actualmente em sites da Comissão Europeia se aponta para valores acima de 80%. Porém, o estudo mostra que foram de 75% no período pré-Ómicron (com um intervalo de 40% a 85%) e de 50% no período Ómicron (30% a 70%).
Estes valores, bastante inferiores aos sugeridos em discursos políticos e comunicações oficiais em 2021 e 2022, foram cruzados na análise de Ioannidis com a proporção de vacinados antes da infecção a nível mundial: apenas 10% no grupo dos 0–19 anos, 20% nos 20–29 anos e cerca de 46% nos adultos com mais de 30 anos.
Em termos de retrato final, as conclusões só podem ter implicações práticas e políticas — e até mediáticas, pelo papel que a imprensa generalista teve para se impor uma narrativa. O chamado número necessário para tratar (NNT) — ou seja, o número de doses necessárias para evitar uma morte — foi, globalmente, de cerca de 5.400 doses. E para ‘conceder’ um ano de vida foram necessárias 900 doses.
Estudo de John Ioannidis, Angelo Maria Pezzullo, Antonio Cristiano e Stefania Boccia é um importante marco para a escrita da verdade científica da pandemia.
Estes valores são globais e ‘degradam-se’ substancialmente nos grupos de baixo risco: em jovens até 29 anos, um cenário ilustrativo mostra que terão sido precisas cerca de 100 mil doses para evitar uma única morte, tornando o benefício por dose administrada quase irrisório. E até do ponto de vista económico: se consideramos um preço de 15 euros por dose, para se salvar uma vida de um menor de 30 anos gastou-se 1,5 milhões de euros. Ora, com esse dinheiro consegue-se salvar mais do que isso para tratar ou prevenir a letalidade de outras doenças.
E é também neste aspecto que o estudo de Ioannidis e dos investigadores italianos introduz uma questão sensível e raramente abordada na narrativa oficial: a possibilidade de que, em certos subgrupos jovens, o balanço entre benefícios e riscos possa ter sido negativo, ou seja, que a vacina tenha prejudicado mais do que trazido benefícios.
No capítulo mais sensível, os autores admitem não terem separado as mortes evitadas pela eficácia vacinal das mortes provocadas por danos associados à vacinação. Sublinhando que “os eventos adversos das vacinas contra a COVID-19 continuam a ser um tema controverso”, Ioannidis e os seus colegas recordam que os dados provenientes de ensaios clínicos aleatorizados são muito limitados e que as estimativas de risco obtidas a partir de registos observacionais comportam elevada incerteza.
Estimativa de vidas salvas pela vacinação contra a COVID-19, segmentada por grupo etário, período (antes de Ómicron e durante Ómicron) e estado de infecção prévia no momento da vacinação. Inclui o total de vidas salvas por estrato etário e a percentagem correspondente do total global de 2 532 869 vidas salvas. Os dados mostram que a grande maioria dos benefícios concentrou-se em pessoas com 60 ou mais anos, especialmente idosos residentes na comunidade. Fonte: Ioannidis et al. (2025).
Apesar de concluírem que o número de óbitos atribuíveis a eventos adversos amplamente reconhecidos — como trombose, miocardite ou mortes em residentes de lares altamente debilitados — será provavelmente “cerca de duas ordens de grandeza inferior ao benefício global”, alertam que “estes danos são importantes para ponderar face aos benefícios em subpopulações específicas onde apresentam maior frequência [jovens] e onde o balanço risco-benefício possa alterar-se ou até inverter-se”.
Este novo estudo está longe de ser uma contestação ao valor das vacinas enquanto ferramenta de saúde pública — Ioannidis tem vindo a reconhecer o seu papel relevante na redução da mortalidade em grupos de alto risco.
Mas é sobretudo um apelo, sustentado por dados, a políticas mais racionais e dirigidas: priorizar a protecção dos mais vulneráveis, em vez de insistir em programas indiscriminados que pouco acrescentam nos mais jovens. E é, sobretudo, um lembrete de que as “verdades” proclamadas no calor de uma crise sanitária podem, e devem, ser revistas à luz de dados mais sólidos.
A diferença entre os 14 milhões “salvos” proclamados pela Lancet em 2022 e os 2,5 milhões agora estimados por Ioannidis não é apenas um ajuste estatístico: é um retrato do modo como a ciência, quando se liberta das pressões políticas e mediáticas, pode revelar um cenário mais complexo — e, inevitavelmente, mais incómodo — do que aquele que serviu para justificar medidas globais de saúde pública.
O Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) voltou esta semana a dar um exemplo paradigmático de como não se deve comunicar Saúde Pública. No início desta semana, o organismo tutelado pelo Ministério da Saúde, mas integrado na Universidade Nova de Lisboa, decidiu accionar o seu modelo Índice ÍCARO — esse acrónimo sonante, mas que, na prática, fez descambar a credibilidade do seu presidente Fernando Almeida — para prever uma alegada “catástrofe” de mortalidade.
Para os dias 4 a 6 de Agosto, o INSA projectou mais do que uma duplicação do número normal de mortes, conforme noticiou o PÁGINA UM na segunda-feira, sugerindo um cenário quase apocalíptico com mais de 700 óbitos por dia. Em três dias, o excesso de mortalidade estaria acima dos 1.100 óbitos? E o que aconteceu? Simples: a mortalidade real ficou a rondar pouco mais de 300 óbitos por dia, valores que, embora ligeiramente elevados para esta altura do ano, estão longe das profecias descontroladas. E pior: pela calada, o INSA modificou os valores do índice ICARO para ‘consertar’ o desacerto. Mas mesmo com esses valores ‘corrigidos’ à socapa, o instituto público previu 1.824 óbitos em três dias, ou seja, um excesso de 900 óbitos.
Foto: D.R.
Mais uma vez, o problema nem foi apenas o erro (grosseiro, acrescido do silêncio), mas a histeria mediática que lhe seguiu.
Mas, no PÁGINA UM, preferimos fazer o que o jornalismo deve fazer: olhar para os dados, analisá-los e contextualizá-los.
É um facto que as temperaturas nas últimas duas semanas estiveram elevadas, com valores que, em alguns dias, se mantiveram persistentemente acima das médias climatológicas, sobretudo nas regiões do interior. Isso justifica uma análise estatística rigorosa para verificar se este calor se traduziu num excesso de mortalidade relevante. Fizemo-lo, concentrando-nos no período entre 25 de Julho e 7 de Agosto, através da informação do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), acrescentando duas componentes essenciais que o INSA e, muito provavelmente, o Governo e a Direcção-Geral da Saúde continuam a querer ignorar.
A primeira componente é óbvia para qualquer demógrafo: a mortalidade em termos absolutos tem aumentado nos últimos anos, não apenas devido a episódios excepcionais como a pandemia, mas por causa do envelhecimento acelerado da população portuguesa. Há mais pessoas em idades avançadas e, por consequência, mais mortes por causas naturais, mesmo sem qualquer evento extremo relevante. Comparar, por exemplo, a mortalidade diária de 2025 com a de 2015, ou usar uma simples comparação com a média dos últimos cinco ou 10 anos, sem qualquer ajuste à estrutura etária, é receita certa para inflacionar artificialmente qualquer “excesso”.
Previsões catastrofistas inicialmente apontadas para os dias 4 a 6 de Agosto…… foram alteradas poucas horas depois de uma notícia do PÁGINA UM que indicava que aparentavam seriam catastrofistas (e exageradas). Fonte: Portal da Transparência do SNS.
Importa, contudo, acrescentar uma ressalva: a leitura desta tendência nos próximos anos será mais difícil devido ao ruído introduzido pelos anos pandémicos de 2020 a 2022, em que a mortalidade esteve anormalmente elevada. Se esses anos não forem devidamente atenuados ou ajustados nos modelos, os valores de referência tenderão a ficar artificialmente altos, podendo mascarar excessos reais ou gerar falsos défices. Este será um desafio inevitável para qualquer análise séria da mortalidade nos próximos anos.
A segunda componente é mais subtil, mas igualmente importante: o chamado efeito harvesting, ou deslocamento de mortalidade. Este fenómeno traduz-se no seguinte: se num período anterior (como o Inverno) a mortalidade é mais baixa do que o esperado, isso significa que houve uma “poupança” de pessoas vulneráveis que, noutras condições, teriam morrido mais cedo.
Quando surge um episódio adverso — como uma vaga de calor, mesmo que não demasiado intensa — parte destas pessoas acaba por falecer num curto espaço de tempo, gerando um pico de mortalidade que não reflecte necessariamente um aumento anual líquido. É um efeito de compensação temporal. O inverso também se aplica: um Inverno com surtos gripais mortíferos desencadeará previsivelmente uma menor quantidade de óbitos no Verão, mesmo perante condições adversas.
Fernando Almeida, presidente do INSA: muda previsões catastrofistas e acha que não tem de dar satisfações quando se manipula os números originais. / Foto: D.R.
Em todo o caso, convém referir que mesmo em meses com ondas de calor, o Verão é, actualmente, a época do ano de menor letalidade, sendo que Setembro costuma ser invariavelmente o mês de menor mortalidade.
Assim, aplicando um modelo estatístico robusto, calibrado com dados diários de mortalidade entre 2014 e 2024 e ajustado a dois factores essenciais — sazonalidade e tendência demográfica de envelhecimento — o PÁGINA UM construiu um referencial fiável do que seria expectável para cada dia de 2025.
A sazonalidade foi modelada com harmónicos anuais que captam os padrões repetitivos ao longo do ano — como os picos habituais no inverno ou no verão. A tendência de longo prazo foi incorporada através de uma variável anual contínua, captando o aumento gradual da mortalidade absoluta resultante do envelhecimento populacional. O modelo foi estimado com regressão de Poisson, apropriada para contagens de eventos diários, garantindo que a variabilidade natural dos óbitos é tida em conta. Adicionalmente, o intervalo de confiança a 95% foi calculado para cada previsão, permitindo identificar dias com mortalidade significativamente acima ou abaixo do esperado.
Ana Paula Martins, ministra da Saúde: INSA falha previsões, corrige e volta a falhar. E cala-se. E siga-se para a próxima narrativa. Foto: D.R.
A partir deste referencial, compararam-se os óbitos observados entre 25 de Julho e 7 de Agosto de 2025 com os valores esperados para o mesmo período. A análise considerou ainda o possível efeito de harvesting — fenómeno em que um pico de mortalidade numa altura pode ser parcialmente “compensado” por défices de mortalidade noutras semanas, quando as vítimas prováveis já faleceram antes do previsto.
Este método permite, assim, distinguir se há um verdadeiro excesso de mortalidade ou se os números recentes apenas reflectem uma redistribuição temporal dos óbitos.
E, deste modo, entre 25 de Julho e 7 de Agosto de 2025, em 14 dias, registaram-se 4.601 mortes, contra um valor previsto de 4.373. Ou seja, houve um excesso de 228 óbitos, equivalente a +5,2%. Não é um valor irrelevante, mas está a anos-luz das duplicações anunciadas pelo Índice ÍCARO. E, convém sublinhar, 11 desses 14 dias ficaram acima do intervalo de confiança estatístico, o que indica um padrão consistente e não um mero acaso.
Evolução diária da mortalidade em Portugal em 2025 (linha preta), comparada com o valor esperado ajustado à sazonalidade e à tendência demográfica (linha azul tracejada) e respetivo intervalo de confiança a 95% (faixa azul). O período de 25 de Julho a 7 de Agosto, assinalado a vermelho, corresponde à janela analisada pelo PÁGINA UM para avaliar um eventual excesso de mortalidade. Análise: PÁGINA UM.
No entanto, este pico de mortalidade não ocorreu no vazio. Entre 1 de Janeiro e 24 de Julho deste ano, a mortalidade observada foi cerca de 3.698 óbitos inferior à esperada, porque os recentes surtos gripais foram anormalmente fracos. Com efeito, no inverno, a diferença foi ainda mais marcada: menos 1.401 mortes em Dezembro de 2024 e menos 2.979 entre Janeiro e Março de 2025.
No total, o ‘défice invernal’ foi de 4.380 óbitos. É precisamente este contexto que sugere a acção do efeito harvesting: o calor do final de Julho terá “adiantado” o desfecho para parte das pessoas poupadas ao inverno benigno, mas sem inverter a tendência anual.
Certo é que até 7 de Agosto, e mesmo contabilizando o excesso do período analisado, Portugal mantém um saldo anual negativo de 3.414 óbitos face ao esperado (ajustado ao envelhecimento). Ou seja, o ano de 2025, até agora, continua a ser menos letal do que a média ajustada dos últimos dez anos. É por isso enganador, e até intelectualmente desonesto, apresentar estes 14 dias como uma “catástrofe” sem explicar o pano de fundo.
Mortalidade observada (linha azul) e esperada ajustada à sazonalidade e ao envelhecimento populacional (linha laranja) em Portugal, entre 25 de Julho e 7 de Agosto de 2025. A faixa sombreada representa o intervalo de confiança de 95% da previsão. Apesar de se registar um pico pontual no início de Agosto, a mortalidade global do período mantém-se apenas ligeiramente acima do esperado. Análise: PAV.
A nossa análise confirma que o calor teve impacto real na mortalidade — e isso não deve ser minimizado. Mas também confirma que este impacto está inserido num padrão mais vasto, onde um défice prévio e prolongado de mortes condiciona a leitura do excesso pontual.
É aqui que a diferença entre o alarmismo do INSA – que, depois, de forma altiva e presunçosa, não se digna explicar-se – e a análise contextualizada do PÁGINA UM se torna evidente. Um organismo público, pago pelos contribuintes, tem a obrigação de explicar, com rigor e sobriedade, que um pico de mortalidade no Verão pode ser estatisticamente significativo e, ao mesmo tempo, compatível com um saldo anual em défice. E aquilo que não pode nem deve é continuar a alimentar, com petulância, narrativas de emergência através de modelos opacos e previsões erráticas. Já nos chegou a pandemia…
É um dos indicadores mais paradigmáticos do desequilíbrio – e mesmo da iniquidade – do desenvolvimento económico e social: a distribuição dos médicos residentes pelos diversos concelhos mostra um país profundamente desigual — e a agravar-se.
De acordo com os dados actualizados para 2024 e divulgados na sexta-feira passada pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), apenas 29 dos 308 concelhos portugueses têm um rácio de médicos superior à média nacional de 6,0 por mil habitantes. O concelho de Coimbra lidera com 34,7 médicos por mil habitantes – um valor quase 70 vezes superior ao dos concelhos de Pedrógão Grande, Pampilhosa da Serra e Góis, que apresentam um rácio de apenas 0,5. Estes dois últimos municípios pertencem ao distrito que tem a ‘cidade dos doutores’ como capital.
Este desequilíbrio agrava a clivagem entre litoral e interior, entre zonas urbanas e zonas rurais, revelando-se um dos indicadores mais nítidos da desarticulação territorial – e com tendência a piorar.
Em 2024, dos 15 concelhos com menos de um médico por mil habitantes – Armamar, Carrazeda de Ansiães, Ferreira do Zêzere, Viana do Alentejo, Calheta (Açores), Alcácer do Sal, Mourão, Castanheira de Pêra, Cadaval, Barrancos, Vila do Bispo, Lajes das Flores, Góis, Pampilhosa da Serra e Pedrógão Grande – somente Ferreira do Alentejo (de 0,6 para 0,9) registou melhorias. Carrazeda de Ansiães (que passou de 1,5 para 0,9) e Pedrógão Grande (de 0,9 para 0,5), se estavam mal em 2021, estão agora ainda piores.
O contraste entre os concelhos mais rurais — e mesmo citadinos fora dos centros hospitalares — com os grandes centros urbanos é esmagador. Coimbra está noutro patamar, mas mesmo as cidades do Porto (22,0) e Lisboa (17,7) encontram-se muito acima dos restantes.
Coimbra é mesmo a ‘cidade dos doutores’.
Aliás, para além destes concelhos, apenas Oeiras (11,1), Faro (10,8) e Matosinhos (10,4) superam a fasquia dos 10 médicos por mil habitantes. Apesar disso, algumas destas autarquias continuam a promover incentivos à fixação de médicos, como é o caso absurdo de Oeiras, numa lógica que parece mais política do que estrutural.
Acima da fasquia de oito médicos por mil habitantes estão apenas mais sete municípios, quase todos capitais de distrito: Évora (9,3), Funchal (9,2), Viseu (9,1), Braga (9,0), Vila Real (8,7), Cascais (8,4) e Guarda (8,1).
A análise da evolução entre 2021 e 2024 revela ainda mais desequilíbrios. Apesar de um aumento de 0,4 médicos por mil habitantes em todo o país durante esse período – que representou, em termos absolutos, mais cerca de 4.300 médicos –, também aqui a distribuição foi muito variável.
Lisboa tem menos médicos em 2024 do que em 2021, sendo io terceiro com maior rácio, atrás de Coimbra e Porto.
E houve até municípios de pequena dimensão que conseguiram contrariar a interioridade, como foram os casos de Mesão Frio e Castelo de Vide, que tiveram crescimentos de 1,5 e 1,3 médicos por mil habitantes em três anos, respectivamente.
O concelho transmontano tem agora um rácio de 4,6 e o município alentejano tem 4,7. Mais seis concelhos conseguiram juntar mais de um médico por mil habitantes ao ‘pecúlio’ que tinham em 2021: Bragança, Covilhã, Santo Tirso, São Roque do Pico, Arraiolos e Torre de Moncorvo.
Em todo o caso, houve 47 concelhos que em 2024 têm menos médicos por mil habitantes do que em 2021, estando neste lote também Lisboa, que passou de 18,0 para 17,7 – embora se deva, em princípio, aos preços da habitação na capital portuguesa.
Mesão Frio foi o concelho com maior crescimento de ‘novos’ médicos nos últimos três anos.
Os dados do INE mostram que a presença de médicos continua fortemente associada à existência de hospitais e centros universitários, mas existem evidências de que essa concentração está longe de garantir coesão territorial. A fixação de profissionais de saúde segue a lógica do mercado e da qualidade de vida urbana, descurando territórios envelhecidos e com menores recursos.
O rácio de médicos por habitante, mais do que um indicador de saúde, tornou-se um reflexo brutal do abandono progressivo de vastas regiões do país – mesmo quando subsídios municipais procuram mascarar o que é, afinal, um problema estrutural de atractividade e planeamento.
Entre hoje, 4 de Agosto, e a próxima quarta-feira, 6 de Agosto, Portugal estará, segundo os modelos oficiais do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA) e do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), sujeito a um cenário de catástrofe térmica — ou, em linguagem técnica, a um surto de mortalidade em escala alarmante. Os dados do chamado Índice ÍCARO, actualizados diariamente e utilizados como base para alertas de saúde pública e planos da protecção civil, projectam para este período níveis de risco sem paralelo desde 2012.
A previsão para quarta-feira aponta um valor de 1,57 no Índice ÍCARO — o mais elevado dos últimos treze anos —, o que representa, segundo a própria definição estatística do modelo, um aumento expectável de 157% na mortalidade diária face a condições sem calor excessivo. Traduzido em termos concretos: se a mortalidade média no Verão ronda os 280 óbitos por dia, um índice de 1,57 corresponderá a cerca de 720 mortes num só dia. Um valor que implicaria mais 440 óbitos do que o habitual — o equivalente, em termos proporcionais, a um acidente ferroviário catastrófico por dia durante três dias consecutivos.
Também os valores previstos para segunda-feira e terça-feira se apresentam extremamente elevados: 1,21 e 1,30, respectivamente. Estes índices implicam, segundo o modelo, 619 e 644 mortes diárias. Assim, e apenas com base no Índice ÍCARO, o total de mortes previstas para este trio de dias aproximar-se-ia das duas mil mortes, ou seja, mais 1100 óbitos acima da média esperada para o mesmo período — se o modelo estivesse calibrado com precisão.
Contudo, a realidade será eventualmente menos aterradora, embora possa atingir níveis de gravidade relevante. Desde o dia 25 de Julho, os valores do índice têm-se mantido positivos, mas ainda assim bastante abaixo do limiar de 1. A mortalidade registada tem oscilado dentro de valores ligeiramente superiores ao padrão sazonal, com uma média próxima dos 320 óbitos diários — o que representa um acréscimo de cerca de 15% face à mortalidade-base.
Evolução dos valores do Índicfe ICARO desde 23 de Julho. Fonte: INSA / Portal da Transparência do SNS.
Este pequeno aumento, aliás, pode estar também relacionado com um Inverno particularmente ameno, o que terá poupado parte da população mais vulnerável, agora exposta a condições extremas. Desde o início de Janeiro, os níveis de mortaldiade global têm estado alinhados com os do anos passado.
Mas o que mais fragiliza a confiança no modelo para valores mais elevados é o que se passou neste domingo. O valor do Índice ÍCARO — inicialmente estimado para 1,44, mas que foi entretanto corrigido para 0,87 —, significaria um acréscimo de 87% na mortalidade, ou seja, cerca de 524 mortes. No entanto, os dados provisórios do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) apontam para apenas 290 óbitos, um número perfeitamente dentro do padrão estival. Aqui poderá estar, paradoxalmente, uma boa notícia: o Índice ÍCARO exagera os cenários quando os valores se tornam mais elevados — em suma, é estruturalmente catastrofista.
Criado em 1999 pelo Observatório Nacional de Saúde do INSA em colaboração com o IPMA, o modelo do Índice ÍCARO assenta numa equação estatística simples: estima-se a diferença entre o número de óbitos esperados com o efeito do calor e o número médio de óbitos em condições meteorológicas normais, com base em séries temporais da temperatura máxima observada e prevista. A variável central do modelo é a chamada “sobrecarga térmica acumulada”, definida como o número de dias em que a temperatura máxima ultrapassa os 32ºC, ponderado pelo excesso registado acima desse limiar.
O modelo tem mérito técnico, e foi pioneiro nos sistemas de vigilância meteorológica com implicações em saúde pública. Contudo, como já reconheciam os próprios autores no artigo fundador publicado em 1999 na Revista Portuguesa de Saúde Pública, o sistema foi deliberadamente concebido com uma orientação catastrofista: privilegia a sensibilidade (detectar todos os sinais de risco possíveis) à custa da especificidade (evitar alarmes falsos).
Como se lê nesse artigo: “Em termos de especificidade, isto é, na sua capacidade para evitar falsos alarmes, [o modelo] está longe de ser perfeito. Mas, claramente, num sistema de alerta não pode sacrificar-se a sensibilidade à especificidade. A ocorrência de falsos alarmes num sistema de alerta não é um problema grave desde que o sistema denote uma muito boa sensibilidade”. E acrescentam que o índice ÍCARO “parece mostrar uma boa capacidade de detectar todas as ondas de calor de que temos conhecimento e avaliar a severidade do seu impacto na mortalidade”.
Na prática, isto significa que o modelo está concebido para soar o alarme perante qualquer sequência de dias muito quentes, mesmo que não exista uma correspondência real em termos de aumento da mortalidade. Acresce que os valores mais recentes do índice se baseiam exclusivamente em previsões meteorológicas a três dias, sem cruzamento com dados demográficos, clínicos, alimentares ou epidemiológicos. Como se tem constatado, nem sequer ajusta as suas previsões em função da evolução real da mortalidade recente.
Em todo o caso, o resultado é um índice com uma tendência demasiado alarmista do ponto de vista estrutural, que esta semana atinge o paroxismo ao prever valores superiores ao dobro da mortalidade de base, durante três dias consecutivos. O PÁGINA UM contactou esta tarde o presidente do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, Fernando de Almeida, colocando questões sobre a validação empírica do modelo, possíveis actualizações ou recalibrações feitas nos últimos anos, os limiares que justificam a emissão de alertas, e as medidas concretas que estão a ser tomadas com base nestas previsões. Até ao fecho desta edição, não foi recebida qualquer resposta.
Apesar disso, o Índice ÍCARO continua a ser utilizado como fundamento para activar planos de contingência da Protecção Civil, emitir orientações clínicas e influenciar decisões políticas e mediáticas. Ainda no final desta tarde, a Direcção-Geral da Saúde emitiu um comunicado sobre medidas preventivas.
A comunicação de valores como 1,57 — que, num quadro meramente estatístico, implica quase 750 mortes num só dia — não pode ser feita de forma acrítica nem sem escrutínio técnico. Quando o modelo falha sistematicamente e de forma ampla, e ainda assim continua a ser divulgado sem qualquer contextualização crítica, o risco deixa de estar no calor extremo: passa a residir no próprio sistema de alerta.
Contactado pelo PÁGINA UM, Francisco Ferreira, professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e presidente da associação ZERO, sublinha que, embora não conheça em detalhe o funcionamento do Índice ÍCARO, “este tipo de modelos serve sobretudo como alerta prévio para se introduzirem medidas preventivas que evitem a mortalidade em excesso prevista”. Tal como sucede com os modelos de previsão da qualidade do ar, temática da qual é especialista, Francisco ferreira acrescenta que se “tratam de indicações de risco potencial que devem ser mitigadas ou atenuadas”.
O problema, como mostram os números das previsões, é quando o risco previsto não existe, a sociedade é condicionada por alarmes sem substância. E quando existe mas se mostra demasiado alarmista, os políticos depois vêm cobrar um sucesso que nunca existiu.
Nos Estados Unidos, um escândalo começou a abalar esta semana o sistema nacional de transplantes de órgãos: vários relatórios e testemunhos de profissionais e famílias denunciam que a recuperação de órgãos para transplante terá ocorrido — ou tentado ocorrer — em pacientes ainda vivos, contrariando os mais elementares princípios éticos da medicina.
Um dos casos mais perturbadores, escrutinado esta terça-feira num painel na Câmara dos Representantes durante a inquirição de uma entidade que supervisionava transplantes, ocorreu em 2021 no Estado do Kentucky com um homem que estava a ser preparado para a retirada de órgãos, mesmo balançando a cabeça em “não” e levando os joelhos ao peito.
Foto: D.R.
O volume e gravidade dos casos levou Robert F. Kennedy Jr., Secretário da Saúde e Serviços Humanos (HHS) do Governo norte-americano, a anunciar uma profunda reforma do sistema de obtenção e transplante de órgãos. A gravidade das revelações está a provocar reacções em todo o país, com implicações legais, médicas e morais de largo alcance.
A polémica estalou após uma investigação conduzida pela Administração de Recursos e Serviços de Saúde (HRSA) ter revelado que, em apenas um dos estados analisados — o Kentucky — mais de 70 procedimentos de doação de órgãos foram interrompidos porque os pacientes começaram a mostrar sinais de recuperação.
No total, a HRSA analisou 351 casos de tentativas não concluídas de colheita de órgãos e concluiu que 103 apresentavam “características preocupantes”, entre as quais 28 em que os pacientes possivelmente ainda estariam vivos no momento da tentativa de extracção.
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Em termos clínicos, a morte cerebral — considerada equivalente à morte legal na maioria dos países ocidentais, incluindo os Estados Unidos — é o estado em que todas as funções do encéfalo, incluindo do tronco cerebral, cessaram de forma irreversível. Quando esse diagnóstico é validado por critérios rigorosos e testes confirmatórios, o paciente é declarado legalmente morto, mesmo que o coração ainda possa bater com auxílio de suporte artificial.
A legislação norte-americana, como a Uniform Determination of Death Act (UDDA), reconhece a morte cerebral como critério suficiente e definitivo para declarar a morte de um indivíduo. No entanto, um diagnóstico inadequado ou apressado desse estado — ou a sua substituição por critérios circulatórios menos rigorosos — levanta sérias dúvidas jurídicas e bioéticas, que agora estão a ser colocadas em evidência neste escândalo.
“A investigação revelou que o processo de obtenção de órgãos foi iniciado quando os pacientes ainda apresentavam sinais de vida”, afirmou anteontem Robert F. Kennedy Jr., que classificou o sistema como “horrível” e exigiu reformas estruturais. “Cada potencial dador deve ser tratado com a santidade que merece”, declarou, prometendo responsabilizar as organizações envolvidas.
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O relatório, que serviu de base à denúncia pública do HHS, sublinha que a procura crescente por órgãos está a gerar situações de “tomada de decisão precipitada” e a inverter prioridades éticas fundamentais: em vez de garantir primeiro a protecção do dador, o sistema estaria a favorecer a obtenção célere de órgãos.
Esta tendência está sobretudo associada a um método crescente nos EUA — a doação após morte circulatória — que permite a colheita de órgãos em pacientes que não tenham sido declarados em morte cerebral, mas que se encontrem em estado terminal ou em suporte vital com decisão clínica de suspensão.
E é precisamente neste tipo de casos que surgem os episódios mais chocantes. Segundo uma investigação publicada esta semana pelo New York Times, 55 profissionais de saúde de 19 estados reportaram pelo menos um caso perturbador de tentativa de colheita de órgãos em dadores ainda com actividade neurológica. Alguns denunciaram, inclusive, que medicamentos teriam sido administrados para “acelerar a morte” do potencial dador.
Robert F. Kennedy Jr., secretário de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos. / Foto: D.R.
Actualmente, mais de 103 mil pessoas aguardam um órgão nos EUA. Diariamente, morrem 13 doentes por falta de um dador compatível. Esta tensão constante entre necessidade e disponibilidade alimenta uma corrida desenfreada por órgãos, gerando um terreno fértil para abusos e negligência, sobretudo quando se aplica o critério circulatório.
Ao contrário da doação tradicional — feita após diagnóstico de morte cerebral irreversível —, a “doação após morte circulatória” (DCD, na sigla em inglês) ocorre em pacientes que não estão em morte cerebral, mas cujo prognóstico clínico é terminal. Após decisão médica (e consentimento familiar ou directiva antecipada) de suspender o suporte vital, aguarda-se a paragem cardíaca e, passados dois a cinco minutos, inicia-se a colheita de órgãos.
Este tipo de doação é controverso porque o intervalo entre a cessação dos sinais vitais e o início da extracção é curto, deixando margem para erros de avaliação. O risco é agravado quando há pressa ou pressão institucional, como documentado em vários casos. Na ausência de critérios neurológicos estritos, a fronteira entre vida e morte torna-se mais ambígua — e é aqui que se têm concentrado os abusos agora denunciados.
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Além disso, têm surgido críticas sobre práticas de sedação agressiva ou administração de fármacos com o intuito de facilitar a extracção, sem clara indicação clínica para benefício do paciente, o que levanta sérias questões éticas e legais.
Agora, nos Estados Unidos, a HRSA impôs medidas correctivas às organizações de captação de órgãos, obrigando à revisão de protocolos clínicos, reforço do consentimento informado e melhoria das avaliações neurológicas. O HHS comprometeu-se também a transferir parte da supervisão para um sistema mais centralizado, reduzindo o actual mosaico institucional que inclui também os Centros de Serviços Medicare e Medicaid e ainda dezenas de organizações locais com autonomia operacional.
Em Portugal, o regime da doação de órgãos é regulado sobretudo por legislação dos anos 90, com alterações posteriores. Basicamente, adoptou-se o modelo de consentimento presumido, o que significa, à partida, que todos os cidadãos são potenciais dadores, salvo declaração em contrário registada no RENDA – Registo Nacional de Não Dadores.
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A colheita de órgãos só pode ocorrer após a verificação de morte cerebral, definida segundo critérios clínicos rigorosos e padronizados. O diagnóstico de morte encefálica é feito com base em três exames neurológicos, realizados por dois médicos independentes da equipa de transplantação, com intervalo mínimo entre observações, conforme normas da Direcção-Geral da Saúde.
A doação após paragem cardíaca — do tipo DCD — não é prática corrente em Portugal. Embora legalmente possível em certos contextos, a sua implementação carece de regulamentação própria e protocolos clínicos específicos, além de aceitação ética consolidada. Assim, na prática portuguesa, os transplantes baseiam-se exclusivamente em doação pós-morte cerebral, ou, em alternativa, na doação em vida (casos de rins ou segmentos hepáticos entre familiares).
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Adicionalmente, todo o processo é centralizado pelo Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST), que coordena a alocação dos órgãos, valida os critérios clínicos e assegura que os princípios da equidade, transparência e segurança do dador e do receptor são respeitados.
Embora Portugal se destaque no panorama europeu pela elevada taxa de doações per capita, não existem quaisquer sinais de situação anómala do ponto de vista legal e mesmo ético.
O PÁGINA UM interpôs esta terça-feira, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, uma acção destinada a que seja aplicada uma sanção pecuniária compulsória ao presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo, em virtude do incumprimento reiterado e injustificado de um acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul (TCAS), proferido a 11 de Julho de 2024.
No processo está em causa a recusa do Infarmed – que Rui Santos Ivo lidera desde 2019 e que acumula com a presidência da Agência Europeia do Medicamento – em cumprir na íntegra uma decisão judicial que o condenou a facultar ao PÁGINA UM o acesso às bases de dados contendo informação integral sobre as reacções adversas ao antiviral Remdesivir e, sobretudo, às vacinas contra a covid-19.
Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed.
A acção agora intentada visa compelir a entidade a cumprir de forma integral e rigorosa a decisão judicial, sem novas tergiversações técnicas nem omissões deliberadas, e requer ao tribunal que fixe uma sanção diária não inferior a 200 euros, a incidir pessoalmente sobre Rui Santos Ivo, caso o incumprimento persista.
A iniciativa surge após três anos de resistência institucional do Infarmed, que se escudou durante todo o processo judicial em argumentos tecnocráticos e escassamente fundamentados, tentando impedir o escrutínio cívico e jornalístico sobre os efeitos adversos das vacinas administradas em Portugal. O Infarmed respondeu ao acórdão com um gesto de aparente cumprimento: em Agosto de 2024 remeteu uma ligação com acesso condicionado a uma base de dados.
Porém, como o PÁGINA UM denunciou de imediato, o ficheiro disponibilizado estava manifestamente truncado e manipulado, suprimindo variáveis essenciais como o grau de causalidade (improvável, possível, provável ou definitiva), o número da dose administrada, a identificação do lote, a idade exacta da vítima, o concelho e a qualificação profissional do notificador – todos dados públicos até então disponíveis no Portal RAM e que, além de não constituírem dados pessoais identificáveis, são indispensáveis para qualquer avaliação epidemiológica séria.
A mutilação deliberada da base de dados, contrariando de forma flagrante a letra e o espírito do acórdão judicial, levou o PÁGINA UM a interpelar o Infarmed por carta registada em Outubro de 2024, sem que tenha obtido qualquer resposta ou sinal de correção. Mais grave ainda, o ficheiro entregue continha apenas os dados relativos ao primeiro ano da campanha de vacinação – entre Dezembro de 2020 e Dezembro de 2021 – ocultando os anos seguintes, precisamente quando se iniciou a vacinação em massa de adolescentes e crianças.
Com efeito, mesmo os dados manipulados revelam já um cenário inquietante: durante o primeiro ano, foram registadas 27.220 reacções adversas, das quais 7.110 classificadas como graves. Dessas, pelo menos 104 culminaram na morte do notificado, embora em cerca de quatro dezenas de casos o ficheiro omitisse por completo o intervalo entre a administração da vacina e o desfecho fatal – sinal inequívoco da negligência do Infarmed na recolha e no acompanhamento dos dados clínicos.
Entre os casos mais chocantes identificados pelo PÁGINA UM estão reacções fulminantes que ocorreram minutos após a vacinação. Uma mulher com mais de 80 anos morreu dois minutos depois de receber a vacina da Pfizer; um homem da mesma idade faleceu quinze minutos após a toma, vítima de tromboembolismo pulmonar; uma mulher entre os 65 e os 79 anos morreu em trinta minutos após inoculação com a vacina da AstraZeneca; e outro homem, sem identificação da marca da vacina, morreu de forma súbita uma hora depois de vacinado.
também se registam diversos casos de reacções graves registadas entre jovens adultos e mesmo adolescentes, incluindo episódios de miocardites, tromboses, síndromes inflamatórias pediátricas e paralisias faciais, cujo desfecho clínico o Infarmed indicou como “desconhecido”, revelando uma inacreditável ausência de monitorização – precisamente a função basilar da farmacovigilância.
Entre as 27.220 reacções adversas reportadas no primeiro ano da vacinação, o PÁGINA UM identificou 513 casos classificados como graves ocorridos em pessoas com menos de 25 anos, dos quais 225 permanecem sem qualquer registo de evolução clínica. Nove mortes ocorreram em pessoas com idades entre os 25 e os 49 anos, grupo etário para o qual a mortalidade associada à covid-19 era, mesmo antes da vacinação, residual.
Há ainda casos de recém-nascidos, não vacinados, que sofreram reacções adversas através do leite materno após a vacinação das mães, e situações de embolias pulmonares, acidentes vasculares cerebrais, tromboses venosas cerebrais e perturbações raras do sistema nervoso, todas registadas como graves – mas também, na maioria, sem que o Infarmed tenha feito qualquer seguimento. No caso das alterações menstruais, fenómeno amplamente reportado em todo o mundo, o Portal RAM já contabilizava duas centenas de notificações apenas até Dezembro de 2021, mas nenhuma foi objecto de análise pública ou contextualização por parte do regulador.
O incumprimento por parte do Infarmed da ordem judicial proferida pelo TCAS configura, segundo a acção agora apresentada pelo PÁGINA UM, uma violação do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que determina a aplicação de sanções pecuniárias compulsórias sempre que uma decisão de intimação para prestação de informações não seja cumprida sem justificação aceitável.
Ao pretender compelir Rui Santos Ivo a suportar pessoalmente as consequências do incumprimento do acórdão, o PÁGINA UM coloca a nu uma realidade incómoda: em Portugal, mesmo em face de sentenças judiciais inequívocas, as entidades reguladoras continuam a agir com arrogância institucional, confiando na passividade dos poderes públicos e no silêncio da restante comunicação social. E isso demonstra não apenas uma cultura de opacidade administrativa, como uma deliberada resistência ao princípio da administração aberta.
Recorde-se, aliás, que, apesar de sentenças e acórdãos favoráveis nos tribunais administrativos, começa a ser sistemática a disponibilização dos dados de forma truncada ou insuficiente, o que tem obrigado o PÁGINA UM a interpor novas acções com vista à aplicação de multas diárias aos responsáveis dessas entidades.
Essa situação verificou-se este ano quando o próprio presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que acumula com a presidência do Conselho Superior da Magistratura, Henrique Araújo, teve de acatar um acórdão para ceder sem restrições o inquérito sobre a distribuição da Operação Marquês, sob pena de pagar do seu próprio bolso uma multa de 50 euros por cada dia de atraso.
Também ainda se aguarda uma decisão similar relativamente a uma base de dados dos internamentos hospitalares na posse da Administração Central do Sistema de Saúde, cuja entidade se recusa há dois anos a acatar um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo.
Caiu em desgraça no início de 2021, quando liderava a task force do programa de vacinação contra a covid-19 — sendo então secundado por Gouveia e Melo, que lhe tomou o lugar —, mas Francisco Ventura Ramos nunca foi abandonado à sua sorte. Aos 69 anos, garantiu este mês a renovação por mais dois anos de uma choruda avença com o Serviço de Utilização Comum dos Hospitais (SUCH), uma entidade pública que tutelou directamente como governante
Secretário de Estado na área da Saúde por cinco vezes, sendo que a última vez fora entre 2018 e 2019, como adjunto de Marta Temido, Francisco Ramos foi a escolha inicial do Governo em Novembro de 2020 para coordenador o processo de vacinação no auge da pandemia. No mês seguinte, acumulou com a presidência da comissão executiva do Hospital da Cruz Vermelha. E foi por causa de irregularidades na selecção de pessoal a ser vacinado nesse hospital, associado à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que Francisco Ramos foi afastado da task force, dando lugar a Gouveia e Melo.
Francisco Ventura Ramos foi o primeiro coordenador da ‘task force’ criada em Novembro de 2020 para elaborar e gerir o plano de vacinação contra a covid-19. No início de Fevereiro de 2021, demitiu-se do cargo devido a irregularidades detectadas na administração de vacinas no Hospital da Cruz Vermelha, ao qual então presidia. Foi substituído na coordenação da ‘task force’ por Gouveia e Melo. /Foto: D.R.
Mas os seus rendimentos, e a sua ligação à Administração Pública, não se reduziram por muito tempo, porque menos de um ano depois foi-lhe oferecida de ‘mão-beijadas’ uma avença mensal de 5.535 euros com a Serviço de Utilização Comum dos Hospitais (SUCH), uma entidade que tutelou directamente enquanto governante.
Celebrado no dia 2 de Maio de 2023, o contrato entre o SUCH e Francisco Ramos engloba um valor de 132.840 euros, com IVA. Sem qualquer caderno de encargos publicado no Portal Base, o contrato de dois anos estabelece apenas que serão prestados serviços de “consultadoria de desenvolvimento de projectos”. Contactado o SUCH, não foram dados quaisquer esclarecimento sobre as funções e tarefas efectivamente concretizados por Francisco Ramos nos últimos dois anos.
(Da esquerda para a direita) Joel Azevedo, administrador da SUCH, Paulo Sousa, presidente da SUCH, Marta temido, ex-ministra da Saúde, e Ana Maria Nunes, administradora da SUCH. A equipa executiva da SUCH foi reconduzida num despacho de Abril de 2022 pela então ministra da Saúde, Marta Temido (na foto, a segunda a contar da direita), e o ministro das Finanças, Fernando Medina. / Foto: D.R.
E também não se sabe o que fará nos próximos dois anos, para além de receber mensalmente os 4.500 euros acrescidos de IVA. Nesta avença, integrada num contrato assinado na semana passada, está estabelecido que Francisco Ramos, que já deve ter desenvolvido todos os projectos do anterior contrato, mostrará a sua polivalência, passando agora a fazer “consultadoria no âmbito da comunicação institucional na área da saúde”.
No global, nos dois ajustes directos, e durante quatro anos e sem funções específicas (e sem cumprimento de horário), o antigo governante encaixará 265.680 euros, com IVA incluído, a prestar serviços de consultadoria na entidade que agrega múltiplos serviços dos hospitais, desde a gestão dos resíduos até à manutenção. Aliás, foi no pólo logístico da SUCH que ficou sediada a recepção, armazenamento e distribuição das vacinas contra a covid-19.
Recorde-se que enquanto secretário de Estado de Marta Temido, e mesmo antes, Francisco Ramos teve sob sua tutela directa diversos organismos públicos, incluindo o SUCH. Licenciado em Economia e diplomado em Administração Hospitalar, foi secretário de Estado em quatro anteriores governos, mesmo sem estar filiado no Partido Socialista. A partir de 2014, foi presidente do conselho diretivo do Grupo Hospitalar dos IPO. Voltou a integrar um governo quando, em 17 de Outubro de 2018, assumiu a secretaria de Estado da Saúde, cargo em que ficou até 26 de Outubro de 2019.
Gouveia e Melo, actual candidato às presidenciais, e Paulo Sousa, presidente da SUCH, numa visita às instalações da SUCH em Setembro de 2021. Gouveia e Melo sucedeu a Francisco Ventura Ramos como coordenador da ‘task force’ da campanha de vacinação. Sob a liderança de Gouveia e Melo, foram administradas vacinas a médicos não prioritários do Hospital Militar e até a um político, numa operação envolvendo a Ordem dos Médicos e então bastonário Miguel Guimarães, actual deputado do PSD. / Foto: D.R.
A sua queda em desgraça no processo de vacinação no Hospital da Cruz Vermelho, do qual viria a ser ‘ilibado’ ao fim de oito meses, marcou a ascensão do então discreto vice-almirante Gouveia e Melo que nunca teve problemas em cometer ‘pecadilhos’, como sucedeu na vacinação de cerca de quatro mil médicos não prioritários (e até a um político) à margem das normas então em vigor da Direcção-Geral da Saúde. Esta operação de desvio de vacinas, numa altura ainda em escassez, foi protagonizada por um acordo ‘ad hoc’ com o então bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, actual deputado do PSD.
A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) abriria formalmente um “processo de esclarecimento”sobre o caso, que envolveu indirectamentea gestão de um fundo solidário do qual esteve também envolvida a então bastonária da Ordem dos Farmacêuticos, Ana Paula Martins, actual Ministra da Saúde. Mas a IGAS acabou por deixar ‘morrer’ a investigação, recorrendo a uma mentira sobre a data crucial de uma norma da DGS e recusando pedir testemunhos e analisar a lista dos supostos médicos vacinados.