Categoria: Opinião

  • A dia em que Fernando Santos não jogou para o empate

    A dia em que Fernando Santos não jogou para o empate

    Ao décimo quinto dia do Mundial, finalmente, uma extraordinária exibição da selecção portuguesa. Fernando Santos mexeu na equipa, mostrou coragem e ganhou em toda a linha.

    O talento dos jogadores portugueses soltou-se e jogaram como se estivessem na rua, sem constrangimentos tácticos e calculismos desnecessários quando se tem um grupo com tanta qualidade.

    A Suíça ainda ameaçou nos primeiros 15 minutos, mas a partir daí só deu Portugal, como sói dizer-se. As trocas rápidas e o futebol envolvente amassaram a equipa helvética.

    Gonçalo Ramos, Félix, Otávio e William foram sublimes. Pepe esteve imperial. Dalot não tremeu e Guerreiro apareceu nos espaços abertos por Félix, de cada vez que este baixava para receber a bola.

    Félix jogou e fez jogar. Esteve solto, sem medo de ter a bola e sem obrigação de a passar sempre para o mesmo sítio. Simeone, o seu treinador no Atlético de Madrid, deve ter aprendido algo esta noite.

    Numa noite absolutamente perfeita, Rafael Leão saiu do banco aos 85 minutos ainda a tempo de marcar o melhor golo da partida. Que alegria, que irreverência, que futebol de sem regras que Portugal jogou esta noite. E que qualidade tem uma equipa para se dar ao luxo de ir ao banco, a poucos minutos do fim, buscar o melhor jogador do campeonato italiano.

    No dia em que, por fim, Portugal disse aos adversários que também está no Qatar, a Espanha foi para casa, depois de falhar três penalties frente a uma aguerrida selecção de Marrocos. Para quem viu esse jogo, ficou a sensação que com um ponta de lança de primeira água (que Cheddira obviamente não é), nem aos penalties a Espanha teria chegado, tal foi a quantidade de oportunidades desperdiçadas.

    Depois de um playoff para aqui chegar e uma fase de grupos sem exibições de encher o olho, Portugal está a um jogo com Marrocos da meia-final do Mundial.

    E, desta vez, também por “culpa” de Fernando Santos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • De 6 de Dezembro de 2021 até 6 de Dezembro de 2022: um ano de luta do PÁGINA UM para saber a verdade por detrás das vacinas contra a covid-19

    De 6 de Dezembro de 2021 até 6 de Dezembro de 2022: um ano de luta do PÁGINA UM para saber a verdade por detrás das vacinas contra a covid-19


    Hoje é dia 6 Dezembro de 2022. Há exactamente um ano, no dia 6 de Dezembro de 2021, o PAGINA UM apresentava dois requerimentos ao presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo, para acesso a base de dados (Portal RAM) sobre as reacções adversas às vacinas contra a covid-19 e ao anti-viral remdesivir, comercializado pela farmacêutica Gilead.

    O pedido teve logo a recusa liminar do Infarmed – um organismo que tem mostrado estar mais ao serviço das farmacêuticas do que da saúde pública, dirigido por um “homem de mão” daquele sector. Rui Santos Ivo foi director executivo da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica entre 2008 e 2011, e está na “máquina” (pouco) reguladora do medicamento desde 1994, com alguns intervalos em cargos burocráticos europeus e nacionais da saúde, mais conhecido por esconder do que revelar informação sensível.

    O PÁGINA UM recorreu à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), que em 16 de Março deste ano considerou que deveria ser facultado o acesso ao Portal RAM, expurgando dados nominativos – o que é aceitável e até recomendável –, até porque, referia-se no parecer, “o interesse público no conhecimento de elementos que possam informar quanto à segurança da vacina é, por conseguinte, manifesto”.

    Mas o interesse público é uma batata para o grande defensor do secretismo da indústria farmacêutica de seu nome Rui Santos Ivo e mais a sua equipa. E assim, o Infarmed mandou o parecer da CADA às malvas e insistiu na recusa. No dia 1 de Abril deste ano, o regulador defendeu que só deve ser do conhecimento do público “os dados constantes da base de dados EudraVigilance”, mas, como se sabe, estes são apenas apresentados em formato agregado, sem qualquer detalhe informativo.

    Perante esta situação, o PÁGINA UM decidiu apresentar uma petição junto do Tribunal Administrativo de Lisboa. É um processo considerado urgente que corre termos mesmo em tempo de férias judiciais. Foi o primeiro processo dos 14 já apresentados que teve o apoio imprescindível dos leitores, através do FUNDO JURÍDICO. Foi no dia 20 de Abril deste ano. Passaram já sete meses e meio. Ou, mais precisamente, 230 dias.

    Nestes 230 dias, o Infarmed mais não fez do que manobras para ludibriar os já três juízes que pegaram no processo, tentando demonstrar, através da sociedade de advogados BAS – que tem coleccionado contratos por ajuste directo com mais de uma dezena de entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde – que os dados do Portal RAM se encontram na Eudravigilance e que é impossível anonimizá-los. Em suma, dizem que querem proteger a identidade das pessoas que lá constam, quando, na verdade, mantendo na obscuridade os efeitos adversos – porque os relatórios que disponibilizam trimestralmente são apenas números manipuláveis – estão a contribuir para desproteger a saúde das pessoas.

    Atente-se: é ridículo alegar a impossibilidade de anonimização de uma base de dados, porque qualquer uma permite seleccionar campos e variáveis, retirando assim o nome das pessoas. Anonimizar dados informáticos relativos à saúde é a tarefa mais banal e fácil do mundo, mas tem sido o argumento mais usado pela Administração Pública para recusar o acesso.

    O processo no Tribunal Administrativo de Lisboa sobre o acesso ao Portal RAM, convém dizer, não tem estado parado, tendo em conta as suas particularidades. E, neste caso, até tem tido uma evolução pouco normal – em comparação com outros processos similares intentados pelo PÁGINA UM.

    Conversa amena entre o presidente do Infarmed e o ex-jornalista André Macedo em serviço para a Afifarma.

    No último despacho, desta vez da juíza Sara Ferreira Pinto, ficou finalmente definido, após alegações e contra-alegações de ambas as partes, o “objecto de litígio”:

    1) Saber se o designado “Portal RAM” é a base de dados da qual conste informação sobre as reações adversas ao antiviral Remdesivir, sob as formas usadas comercialmente pela Gilead Sciences, desde Março de 2020 até à data e que serviu para a elaboração do Relatório de Farmacovigilância // Monitorização da segurança das vacinas contra a COVID-19 em Portugal;

    2) Saber se além da base de dados referida em 1) a requerida possui documentos relacionados com as reações adversas a medicamentos, nomeadamente, ao antiviral Remdesivir, sob as formas usadas comercialmente pela Gilead Sciences, desde Março de 2020 até à data, e/ ou documentos que serviram para a elaboração do Relatório de Farmacovigilância // Monitorização da segurança das vacinas contra a COVID-19 em Portugal;

    3) Saber se os dados contidos na base de dados referida em 1) e/ ou nos documentos referidos em 2) permitem a identificação da pessoa a que respeitam, de forma direta ou indireta, especificamente saber se os dados relativos à saúde permitem a identificação da pessoa a que respeitam, de forma direta ou indireta.

    Rui Santos Ivo; presidente do Infarmed: há um ano a esconder dados do Portal RAM.

    4) Em caso de resposta afirmativa ao TP 3), saber se é possível consultar a base de dados referida em 1) sem que seja possível a quem efetua a consulta identificar a pessoa a que os dados, designadamente os dados de saúde, respeitam.

    5) Em caso de resposta afirmativa ao TP 3), saber se é possível expurgar dos documentos referidos em 2) os dados que permitem, de forma direta ou indireta, a identificação da pessoa a que respeitam.

    6) Saber se a base de dados EudraVigilance não contém a informação discriminada e detalhada sobre Portugal que existe no Portal RAM.

    Para “auxiliar” o Tribunal, a juíza aceitou que o Infarmed indicasse uma testemunha, que deveria exercer o seu depoimento, e ser questionada pelos advogados das partes. O Infarmed indicou uma técnica: Márcia Silva, directora de Gestão do Risco de Medicamentos.

    Fez bem.

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    Quanto ao PÁGINA UM apresentou um requerimento para que, além desta senhora, seja também exigido o testemunho presencial de Rui Santos Ivo , presidente do Infarmed… Precisamos de saber, pela sua boca, as explicações técnicas, comerciais ou políticas para tanta luta para manter secreta uma base de dados de tão grande relevância para a saúde pública.

    Na verdade, um ano depois, mais se deve perguntar: o que esconde o Portal RAM para não ser mostrado? Quem é o amo do Infarmed: os cidadãos ou os políticos e a indústria farmacêutica?

    É isto que, na verdade, estará em causa no processo do Tribunal Administrativo de Lisboa.


    Este e outros processos de intimação são suportados pelos leitores através do FUNDO JURÍDICO, na plataforma MIGHTYCAUSE. Caso prefira apoiar por outro método, consulte AQUI.

  • Heróis assim à força?

    Heróis assim à força?


    Duas verdades inquestionáveis: a História é escrita pelos vencedores, e os políticos, todos, sem excepção, aproveitam-se dessa vantagem.

    Lembro-me, amiúde, disso quando falo da Guerra Colonial.

    Salazar e Marcelo Caetano obrigaram todos os jovens portugueses, que não fossem seus familiares, ou descendentes das famílias donas do país, ao serviço militar e à guerra nas colónias.

    Para eles, províncias ultramarinas.

    Os que se recusavam tinham de emigrar e passavam a ser considerados desertores e impossibilitados de regressar à Pátria, sob pena de prisão imediata, por terem optado pela deserção em vez de “lutarem pela manutenção da integridade nacional”.

    Com o 25 de Abril, e derrota daquele regime, os tais “criminosos desertores” não só regressaram ao seu país como foram recebidos como heróis, “por se terem recusado a participar numa guerra injusta, que pretendia manter, na sua posse, algumas colónias usurpadas aos seus legítimos proprietários”. 

    Passando a carga negativa para os antigos combatentes, muitos dos quais escondem, hoje, as medalhas que lhes tinham sido atribuídas, em pomposas cerimónias oficiais, e que antes ostentavam com orgulho.

    O grande problema das guerras foi brilhantemente sintetizado por Erich Hartmann – considerado o melhor piloto alemão que, durante a Segunda Guerra Mundial, voou em 1.404 missões e participou em 825 combates aéreos – numa única frase: “A guerra é um lugar onde jovens, que não se conhecem e não se odeiam, se matam, por decisões de velhos que se conhecem e se odeiam, mas não se matam.”

    Salazar e Marcelo Caetano eram dois desses velhos e que recolhiam ensinamentos de outros velhos, seus antepassados, que admiravam.

    Um afilhado do velho Marcelo Caetano, o actual Presidente da República Portuguesa, lembrou, no dia da Restauração, um outro episódio reescrito pelos historiadores e que teve como principal figura o velho D. João IV.

    O Rei português, sabendo que os ciganos portugueses, já em 1640, tinham grandes ligações, incluindo familiares, à comunidade cigana espanhola, não quis correr o risco de não só deixar de poder contar com o seu apoio na luta que teria de travar como, bem pelo contrário, os ver tomar partido pelo inimigo.

    E obrigou-os a alistarem-se no exército nacional.

    As opções eram simples: os que recusassem a incorporação seriam presos, os que a “aceitassem” passavam a ter – e os seus – a possibilidade de poderem viver livremente, depois, em todo o território nacional.

    Colocados entre a espada e a parede, os ciganos acederam.

    Muitos deles, como se sabe, acabaram por ser mortos nas batalhas que se seguiram.

    Os 250 ciganos, agora elogiados por Marcelo Rebelo de Sousa, não pelos seus actos de heroísmo – e alguns deles até podem ter sido heróis, que isto de ver a morte de frente tanto pode dar uma grande velocidade na fuga como uma força enorme para combater quem se lhe oponha –, mas por serem verdadeiros patriotas, o que, repete-se, não eram de todo, deviam ter uma convicção tão forte na necessidade do seu empenho em prol da Pátria como os combatentes de Viseu, Pinhel, Beja e Chaves na Guiné, Angola ou Moçambique.

    Saberiam tanto da casa dos Habsburgo e dos problemas causados pela morte de D. Sebastião, último herdeiro da Dinastia de Avis, como os soldados portugueses das décadas de 60 e 70 do século passado sabiam das lutas de libertação dos povos das colónias.

    Não faziam, quer uns quer outros, a mais pequena ideia do que os levara à guerra e só sonhavam em regressar, com vida, às suas casas. 

    No fim, os que sobreviveram, tiveram agradecimentos idênticos da Monarquia e da República.

    D. João IV, por alvará de 1649, determinou que “as ordens de prisão e degredo aplicáveis em geral aos portugueses ciganos não deveriam ser aplicadas aos mais de 250 ciganos alistados que estavam servindo nas fronteiras, procedendo na forma de traje e lugar dos naturais e, por isso, receberam licença dos governadores das armas para morar em lugares e vilas do Reino naturalizados com cartas de vizinhança”.

    Puderam, portanto, a partir daí, passar a ser “quase” iguais aos restantes portugueses.

    Incluindo um que se destacou pelo seu heroísmo, Jerónimo da Costa, de quem Tomé Pinheiro da Veiga, político, escritor e procurador da Coroa, durante o reinado de D. João IV, que o tratava por “aquelle pobre cigano”, dizia que serviu a sua pátria “três anos contínuos com suas armas e cavallo à sua custa, sem soldo”.

    Os militares da Guerra Colonial, mesmo os condecorados pelo Poder, não tiveram melhor reconhecimento.

    Falta de apoio psiquiátrico, pensões de miséria, total desdém de quem manda.  

    Comparar, por exemplo, o tratamento dado aos ex-militares norte-americanos – e nem falo de recompensas mas, tão só, de respeito – com o que se passa no nosso país, provoca depressão a qualquer um.

    Não sei se o discurso do velho Marcelo Rebelo de Sousa teve como intenção elogiar aqueles 250 portugueses.

    O que fica é, uma vez mais, percebermos que os separou dos restantes milhares de homens que, como eles, lutaram pela Restauração.

    Alguns destes a merecer elogios políticos, porque o fizeram convictamente.

    Os 250 que citou, e muitos outros não-ciganos, mereciam somente um pedido de desculpas por terem sido forçados a uma guerra que não queriam.

    Não creio que haja motivo para orgulho em ser “herói à força”.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A caminho, mais um tiro no pé

    A caminho, mais um tiro no pé


    Aqui há uns meses, um amigo vindo do Leste Africano, que chegou à Suécia num avião militar a fugir de uma guerra nos anos 90, analisava o conflito na Ucrânia. Para ele, os dramas europeus são terças-feiras em África, já que não conheceu uma década de vida sem os horrores das armas.

    Perguntava-me, com alguma incredulidade: “mas antes da Europa começar a dizer que não comprava gás e petróleo ao Putin, arranjaram uma alternativa? É que se não o fizeram, o bluff vai rebentar-vos na cara!”

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    De facto, é um pouco como anunciar a independência em casa dos pais, sair com uma mochila às costas e ligar no dia seguinte a pedir a mesada.

    De uma forma simples, sem paixões e moralidades de pacotilha, a coisa resume-se a isto. Se queremos meter um país de joelhos pela via económica, o mínimo que se espera de quem decide é que perceba se o tiro não volta para trás, com o dobro da intensidade. 

    Depois de vários pacotes de sanções que serviram, até ver, apenas para empobrecer os europeus e deixar alguns milionários russos em dificuldades, Ursula von der Leyen anunciou a imposição de um tecto para o preço do petróleo russo. A União Europeia decidiu que não pagaria mais de 60 dólares por barril, Zelensky pediu 30. Se me tivessem também perguntado, eu teria dito para obrigarem o Putin a enviar o crude de borla. Se é para pedir, assim ao calhas, acho que devemos meter a carne toda no assador…

    O regime russo, como seria de esperar, já avisou que não venderá a quem quiser controlar o preço. Se bem que a ideia tem potencial, imaginem um Mundo onde o cliente decide o preço que quer pagar. Seria o primeiro passo para o fim das trocas monetárias e, de certa forma, a sentença de morte para o capitalismo. Ainda vou descobrir que a Ursula é camarada.

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    [N.D. Bom, na verdade, o PÁGINA UM funciona assim; os leitores decidem o que “pagar” pelo jornalismo independente; mas não é exemplo para o mundo real, admita-se].

    A teoria da Ursula ter-me-ia dado jeito esta semana, quando saí da oficina e por lá deixei dois salários mínimos a troco de uma simples revisão feita a um carro com alguns anos de estrada. Perante a minha estupefação com o aumento exponencial de preços, o gerente da oficina dizia-me: “sabe, isto da Ucrânia subiu os preços para toda a gente”. Bendita Ucrânia, que tens as costas tão largas para a ganância. A factura aumenta 20% para o cliente final, mas o trabalhador recebe aumentos de 2%. 

    Mas a parte de mais esta sanção que realmente me interessa é a análise dos sempre badalados mercados. A Rússia é o terceiro produtor mundial de crude, atrás dos Estados Unidos e da “democracia” amiga saudita. No caso do gás natural, a Rússia é o segundo produtor, apenas atrás também dos Estados Unidos, e o terceiro está a grande distância destes dois. Excluindo a Rússia, a Noruega é o segundo país europeu com maior produção, mas apenas com 25% daquilo que sai dos territórios de Putin. A Alemanha retira do seu subsolo o equivalente a 1,5% do gás sacado pela Rússia.

    Não sei se entretanto os cabecilhas da União Europeia descobriram lençóis de gás e de petróleo nos Campos Elísios, no Coliseu de Roma ou até no nosso Beato, mas, admitindo que não, a Europa ainda está dependente, e muito, para o funcionamento das suas economias, do fornecimento de energia vinda de fora dos seus territórios. 

    Se Putin diz que não vende, nesse caso a União Europeia terá de recorrer a outros produtores. O mercado ficará reduzido a menos fornecedores e a probabilidade de concertação de preços, entre os restantes players, aumenta. Não vejo bem de que forma é que isto não resultará num aumento de preço no barril do petróleo e também do gás. Pior, não vejo como é que isto não resultará em mais empobrecimento para nós, europeus, que somos arrastados para o pagamento de uma guerra que não escolhemos.

    Pelo andar da carruagem, as populações dos países da União Europeia ficarão dependentes da ajuda dos respectivos Estados para conseguirem fazer face aos custos mensais. Das prestações bancárias às energias, passando pelos bens essenciais, caminhamos a um passo assustadoramente rápido para vivermos de pacotes de apoio de emergência.

    Em Portugal, já temos cerca de 50% da população (antes das prestações sociais) em risco de pobreza; portanto, como é que se aguenta esta inflação? Como é que se aceita, alegre e sem luta, um empobrecimento em nome da disputa do Donbass? Lembro as declarações de um ministro indiano que, de forma prática e sem moralismos hipócritas, disse que o seu país não se queria meter no conflito, mas que, com uma população tão pobre, não recusaria petróleo russo mais barato. É tão simples quanto isto.

    Os Governos dos países da União Europeia foram eleitos para defenderem os direitos e as condições de vida dos seus cidadãos. Ninguém votou no Costa para ele desviar dinheiro do SNS e enviá-lo para Kiev, enquanto os portugueses vão ficando sem comida para meter na mesa. Esta hipocrisia começa a tornar-se insuportável.

    people sitting in front of table talking and eating

    Há relatos das populações envolvidas, russos e ucranianos, a pedirem aos seus Governos que iniciem as conversações de paz. E no lado europeu, segue a teoria do “as long as it takes“. 

    Vamos ver quando tempo demorará até que mais uma sanção se vire (ainda mais) contra nós. Se a guerra continuar por muito mais tempo, e admitindo que a União Europeia continua a desviar fundos para lá, espero que o que sobrar do Orçamento de Estado, depois da Ucrânia, dos salários da Função Pública e do gamanço para as clientelas, comece a ser distribuído pela população em forma de aumentos salariais, reduções de impostos ou simples subsídios. 

    Com a calma de quem não passa frio, não vê cortes salariais ou morre na frente da batalha, já ouço discussões, em horário nobre, sobre o abrandamento da guerra no Inverno e uma retomada, mais bárbara, lá para a Primavera. Estão loucos. Estão todos loucos. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A boca, os penalties e o atropelamento

    A boca, os penalties e o atropelamento

    O Japão, depois de vencer as fortíssimas selecções da Alemanha e de Espanha, voltou a surpreender, desta vez frente aos croatas. Grande atitude e garra dos samurais que mostraram uma vontade incrível e um verdadeiro espírito de equipa. A Croácia, sempre lenta de processos neste Mundial, fez-me acreditar numa surpresa nos quartos-de-final. Mas valeu a experiência croata e, devagarinho, não só empataram como controlaram o jogo até obrigarem à realização do primeiro prolongamento da competição.

    O ritmo nesta parte foi tão lento que imaginei que todos se sentissem confortáveis com penaltis, a decisão mais angustiante na minha opinião. Os croatas são especialistas na matéria já que este seria a sua quarta vez a decidir num Mundial depois dos 90 minutos sem nunca terem perdido. Os japoneses, bom, tendo em conta a péssima forma com que bateram as grandes penalidades, talvez devessem ter apostado algo mais enquanto a bola correu.

    Ainda assim uma boa prestação dos nipónicos e a dúvida de, nas pernas de um Modric, com 37 anos, saber até onde poderá chegar esta Croácia?

    Já no jogo que opunha o Brasil aos comandados de Paulo Bento a história foi a de um crime. Atropelamento e fuga, com o 3-0 a chegar antes dos 30 minutos. Joga muito este Brasil, e Tite, ao fim de alguns anos, consegue meter a equipa a fazer aquilo para que nasceu: atacar.

    Perdi a conta ao número de vezes que os brasileiros chegavam à área coreana, com quatro ou cinco jogadores, num carrossel imparável de futebol a um ou dois toques. Paulo Bento ainda tentou recuar as linhas e defender com mais gente, mas a fragilidade desta Coreia, a equipa mais fraca do grupo de Portugal, ficou exposta a cada cavalgada de Neymar, Vinicius, Raphinha e Richarlison.

    Joga mesmo muito este Brasil. Com França e Inglaterra, o Brasil é uma selecção que apresenta qualidade e regularidade, desde o início da competição. Se tivesse que colocar dinheiro numa aposta para a final, diria que França e Brasil são os claros favoritos. Até os caminhos ajudam.

    No reino de Marcelo, as novidades não são estridentes, e não chegam bem a ser novidades. Afinal, Fernando lá viu as imagens e percebeu que as bocas eram mesmo para ele. Ficou chateado e, ainda por cima, ninguém na FPF lhe passou o guião oficial antes da conferência de imprensa. Já o Mundo inteiro sabe que a marrada era para o nosso engenheiro e o escriba de Fernando Gomes, nos escritórios da FPF, ainda está a escrever a versão 1.0 da desculpa oficial. Caros, já não estamos em Saltillo. Somos profissionais disto. Há que aprimorar essa coordenação no departamento das tangas.

    Santos disse que não sabe se Ronaldo será titular amanhã, ou por outras palavras, quando um f***-se tem mais poder do que 10 golos falhados. Pragmatismo luso é todo um novelo. As capas dos jornais para esta quarta-feira já estão preparadas e a minha aposta vai para “relógio suíço sem corda”. Agora, lembrai-vos, nem um passe para trás! A não ser que venha do William. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Lembram-se do comunicado de imprensa da ERC de 9 de Agosto sobre um “cidadão”? Muita água passou…

    Lembram-se do comunicado de imprensa da ERC de 9 de Agosto sobre um “cidadão”? Muita água passou…


    Hoje, dia 9 de agosto de 2022, um cidadão de nome Pedro de Almeida Vieira dirigiu-se à ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social sobre pretexto de consultar processos em que o seu nome está envolvido.

    Não é a primeira vez que o faz, não aceitando as regras estabelecidas para o funcionamento da ERC e, insatisfeito, com deliberações em que a ERC não lhe dá razão, tem vindo a insultar os membros do Conselho Regulador e a exercer coação sobre os funcionários que o atendem, insistindo, inclusive, em gravar uma audiência de conciliação apesar de advertido de que não o poderia fazer, e fotografar peças processuais.

    Este foi, na íntegra, o inusitado comunicado de imprensa da ERC, presidida por um juiz conselheiro (Sebastião Póvoas), que tecia sobre mim considerações, no mínimo, pouco abonatórias.

    Aliás, dois dias depois, no dia 11 de Agosto, repetiu a dose com novo comunicado: “A Comissão de Trabalhadores da ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social (CT-ERC) reuniu, esta quinta-feira, com o Senhor Presidente do Conselho Regulador, discutindo-se a perturbação que vem sendo sentida na ERC que coloca em causa o regular funcionamento da instituição e o seu bom nome, bem como a tranquilidade dos seus trabalhadores.

    Certa imprensa e certos jornalistas rejubilaram. Alguns, como a Lusa e o Observador, até fizeram notícias sem, inicialmente, me ouvirem. Até o Sindicato dos Jornalistas, embora criticando generalizações, fez um comunicado moderado, informando que “não faz comentários sobre conflitos entre a ERC e o referido jornalista”. A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, essa, muda e queda.

    Quase três meses depois, hoje mesmo – na verdade, este Editorial foi mesmo colocado online no interior da sede da ERC –, estive a consultar novamente “peças processuais”. E até as fotografá-las. E sem necessidade de chamar a PSP para identificar pessoas que a mando do Conselho Regulador me pudessem impedir, como em Agosto, que fotografasse peças processuais.

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    E porquê? Porque o presidente da ERC informou-me previamente (e até já isso fizera outra vez depois de Agosto) ser “possível a utilização de meio próprio de reprodução (telemóvel), ao abrigo do artigo 13º da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (Lei nº 26/2016, de 22 de agosto de 2016, na sua versão atual)”. E já autorizara até noutra minha visita anterior.

    Já agora também informo que consultei novamente processos que já antes vira, e sobre os quais me insurgira – digamos assim – por estarem incompletos. Continuavam incompletos, porque a ERC nem respeito institucional tem para com a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), ignorando três pareceres distintos relativos a seis queixas que apresentei, nos últimos meses, por vários obstáculos ao acesso à informação por parte do Conselho Regulador.

    Sim, três pareceres da CADA, que podem ser lidos AQUI um, AQUI outro e AQUI mais outro – todos desfavoráveis à conduta da ERC, que tinha “regras estabelecidas” que eu, enfim, teimava em não aceitar. Vale a pena ler, sobretudo a parte em que a ERC considerava que os pareceres jurídicos e de índole técnica deveriam desaparecer de circulação. Mas também recomendo por causa dos custos exageradíssimos das fotocópias (seis vezes acima do preço de mercado, pelo menos) ou da emissão de cópias certificadas de actas com expurgos ilícitos.

    Primeiras páginas das deliberações da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos analisando as participações do PÁGINA UM contra a Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

    Geralmente, aceito as regras estabelecidas, mesmo sabendo que as posso sempre questionar e denunciar no caso de as considerar inapropriadas e inaceitáveis. Este deve ser o espírito de uma democracia. Mas nem era o caso do “diferendo” com a ERC em Agosto passado. Na verdade, eu não podia, como jornalista, aceitar regras arbitrárias e mesmo ilegais, ainda mais de um regulador criado pela Constituição para defender a liberdade de imprensa.

    Fiz, por isso, somente aquilo que devia: pedir às autoridades policiais que identificassem as pessoas que me obstaculizavam o livre acesso a um direito; depois, apresentei participações à CADA, que me veio dar razão.

    A ERC, lamentavelmente, não ficou satisfeita em obstaculizar o acesso de um jornalista a peças processuais; tomou ainda a decisão de fazer-me ataques de carácter, tentando um “linchamento público”, e com isto encetar manobras de diversão para “apagar” erros processuais e colocar o papel de odioso a um jornalista incómodo. O tempo veio dar-me razão.

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    Bem sei que sim, que há jornalistas incómodos. Mesmo chatos, que causam chatices. Tantas que, por exemplo, ainda na semana passada, os advogados contratados pela ERC tiveram de gastar bastantes horas a escrever 44 páginas de um recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul, por causa da sua derrota na primeira instância contra o PÁGINA UM, porque desejo mais do que a transparência dos dignos membros do Conselho Regulador deseja. Está a ERC no seu direito de usar os recursos dos contribuintes para negar a transparência. E eu tenho o direito de discordar e usar armas legais.

    Mas, hélas, nunca direi que o “cidadão” Sebastião Póvoas me anda a insultar e a exercer coacção só porque ele não me faz as vontades… Nem vou a correr enviar um comunicado de imprensa à Lusa para que esta, diligentemente, “viralize” uma “encomenda”, sem sequer ouvir o contraditório, para tratar da folha de um “opositor”.

    Entretanto, quanto aos processos que continuam incompletos, pois bem: nova intimação no Tribunal Administrativo. Água mole em cabeça dura…

  • A China e os “vira-casacas”

    A China e os “vira-casacas”


    Tem sido pungente assistir às notícias sobre a “luta pela democracia” na China. Vários líderes políticos e comentadores da nossa praça, que antes apelavam à implementação de medidas draconianas a respeito da pandemia, vieram nos últimos dias dar-nos a sua opinião sobre a política de “Covid Zero” aplicada pela China.

    Se não fosse dramático o que se passa na China, onde a população vive numa sociedade distópica – onde um sistema de créditos sociais já se encontra implementado – e ditatorial, podíamo-nos rir a bandeiras despregadas com a hipocrisia e o despudor desta gente. Mas não o faremos; o assunto é demasiado sério.

    Ponto prévio: é paradigmático que a imprensa mainstream nunca defina correctamente o regime chinês por aquilo que é: uma ditadura comunista totalitária.

    Comecemos pela imprensa internacional. No último dia 28 de Novembro, o The New York Times noticiava os protestos na China desta forma:

    No fim de semana, protestos contra as rígidas restrições da Covid na China ricochetearam em todo o país, num raro caso de agitação civil em todo o país.”

    Alguns manifestantes neste fim-de-semana chegaram a pedir a renúncia do Partido Comunista e do seu líder, Xi Jinping. Muitos estavam fartos de Xi, que em Outubro garantiu um terceiro mandato que desafia os precedentes do partido, e da sua política de Covid Zero, que continua a perturbar a vida quotidiana, a prejudicar os meios de subsistência e a isolar o país;”

    A abordagem da China ganhou elogios durante o início da pandemia e, sem dúvida, salvou vidas. Mas agora essa abordagem parece cada vez mais desactualizada. Quase três anos após o surgimento do Coronavírus, o contraste entre a China e o resto do Mundo não poderia ser maior.”

    group of people inside room

    Passámos de restrições que salvam vidas para rígidas restrições; de indispensáveis e necessárias para medidas que perturbam a vida quotidiana e prejudicam a obtenção de meios de subsistência!

    Mesmo assim, note-se, salvaram vidas; isto depois da Suécia, que não as implementou, apresentar uma das taxas de mortalidade mais baixas dos últimos três anos – incluindo, nesta comparação, os países nórdicos.

    A nível nacional, tivemos o jornal do “consenso social em favor da vacinação”, leia-se Público, que apresentou o mesmo registo, as medidas são agora rígidas em lugar de salvíficas e necessárias:

    As manifestações contra a política rígida de combate à covid-19 na China, conhecida como “covid zero”, chegaram a Xangai, Pequim e outras cidades, e adoptaram um tom antigovernamental, algo raríssimo num regime em que as exibições públicas de oposição política são altamente censuradas.”

    Para o Público, os manifestantes passaram de negacionistas e chalupas a lutadores pela liberdade! Quase parece magia.

    person in white jacket wearing blue goggles

    No meio deste turbilhão de eventos, também apareceu o inefável líder do Canadá, esse paladino “dos direitos humanos” a comentar os eventos na China. Recordemo-nos que Justin Trudeau, há meses, esmagava uma manifestação pacífica de camionistas, que estavam contra as suas políticas da covid-19, em particular a obrigatoriedade de inoculação com uma substância experimental.

    Este “democrata” utilizou todas as opções ao seu dispor: estado de emergência, polícia de choque, cães, polícia a cavalo, bastonadas, gás lacrimogénio, tanques de água, congelamento de contas bancárias e, pasme-se, até o despedimento da função pública. Estes tiranos recorrem a todos os meios possíveis, não lhes escapa nada.

    Mas então o que nos disse sobre as revoltas na China?

    Que todos na China deveriam ter permissão para protestar e se expressar, e que os canadianos estavam a observar de perto os protestos contra a política de COVID-zero do país.

    Palavras para quê?! Todos têm direito ao protesto, excepto os camionistas canadianos e todos aqueles que não estão de acordo com ele.

    E por cá? Como se portaram os tiranetes da nossa praça?

    shallow focus photography of man in white shirt

    Uma das “conhecidas comentadoras” da CNN Portugal, de seu nome Helena Ferro Gouveia, há uns meses contava-nos assim a respeito de mais um confinamento na Alemanha, desta vez apenas para os não-vacinados:

    “…o que se decidiu aqui foi penalizar as pessoas que escolheram, que optaram por não se vacinar, não penalizando aquelas que cumpriram o dever cívico e se vacinaram…”;

    “…um lockdown total ia penalizar aqueles que se vacinaram e que cumpriram aquilo que lhes foi pedido”.

    Para além de um discurso de ódio aos não vacinados, apelava ao “amocha e está calado”, a senhora nem tão pouco respeitava os mais elementares direitos humanos: a autonomia do corpo e o direito de locomoção.

    Mas, infelizmente, este foi o discurso na maior parte da imprensa mainstream ao longo de mais de dois anos, mas que parece ter-se alterado com os acontecimentos na China.

    Sobre isto, o discurso desta, hélas, administradora da agência Lusa, aquela em que a sua jornalista viu um relatório que afinal era apenas um “esboço embrionário que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”, escrevia assim na sua página do Facebook:

    group of people waving their hands

    Olho para os protestos na China com um misto de admiração pela coragem dos milhares que se manifestam em múltiplas regiões do país, que faz destes protestos algo histórico, só comparável aos protestos esmagados por tanques na Praça da Paz Celestial, e por outro com temor pelo destino destas pessoas num regime que reprime violentamente a menor expressão de desagrado”;

    “Não sendo sinóloga, mas acompanhando com interesse tudo o que são regimes autocráticos, antecipo que irão ser dissipados pela força, não deixam, todavia, de ser muito relevantes.

    É comovente, não é? Passámos de pessoas que não “cumpriam o seu dever cívico”, isto é, aceitar uma inoculação experimental no seu corpo, a lutadores incessantes pela liberdade. Aparentemente, um país ocidental que atropela os mais básicos direitos dos seus cidadãos é “bonzinho”; a China não; aqui já se trata de país autocrático.

    Para além deste olhar atento aos “protestos esmagados por tanques”, tivemos outra interessante observação: as “nossas vacinas são melhores que as tuas”; tudo muito “científico” e dito por um dos jornalistas de “maior craveira” da nossa imprensa mainstream:

    “Os chineses ficaram totalmente dependentes da sua vacinação nacional…a Sinovac, uma vacina clássica, não é uma vacina mRNA…”;

    herd of brown sheep

    “Esta vacina (a Sinovac) deu piores provas nos testes…mas, sobretudo, é um tipo de vacina que pela forma como é desenvolvida é mais difícil de adaptar às novas variantes”;

    Mesmo assim, os chineses insistem em não importar vacinas estrangeiras”.

    Vamos lá ver se compreendemos. Nós, aqui no Ocidente, com uma imprensa que deu cobertura a todas as tropelias, fomos “bonzinhos” graças às nossas vacinas: só vos prendemos durante pouco tempo, porque temos umas vacinas miraculosas; enquanto vocês, os maus, os sanguinários, insistis em subjugar o povo chinês sem qualquer necessidade: basta importar as nossas vacinas! É quase o Mike da TV Shop: compra, Mike, estas mRNA e já não necessitas de tratar mal a populaça.

    Tudo isto é dito com um tom professoral, de quem é incapaz de mencionar um estudo sério onde se prove o que está a dizer. Não será melhor atribuir o prémio Nobel, da Ciência e da Paz, a esta gente?

    Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • O pauzinho, Mbappé e a mota que ninguém tem

    O pauzinho, Mbappé e a mota que ninguém tem

    Na minha infância, passada nos Açores, ouvi muitas vezes a expressão “tirada com um pauzinho do cu” para descrever ideias de merda.

    [N.D. O autor decidiu ser mais papista do que o papa, censurando um idiotismo com asteriscos em duas palavras, que o editor “descensurou”; cu e merda são palavras que constam do léxico português, e aqui fazem todo o sentido serem expostas, mesmo se remetendo para aspectos da escatologia]

    A FIFA que, imagino, deve ver os jogos do Mundial, chatíssimos, com blocos ultra-defensivos e ataque nos últimos minutos, está a estudar atribuir 2 pontos aos empates e decidir a coisa por penalties, ao fim dos 90 minutos. Também vão alargar o Mundial e trazer as ilhas Fiji, o Toga, os Barbados, o Laos, a Namíbia e mais uma série de potência, para que a competição se arraste quase dois meses com a emoção de um Moreirense vs. Penafiel numa noite chuvosa em terreno empapado. É aqui que entra o pauzinho.

    A Polónia entrou no jogo com a França a mostrar-nos que sabia mais do que aquilo que tinha jogado na fase de grupos. Quiçá se tivessem mostrado esta coragem, fosse hoje a Argentina a estar eliminada. A Polónia atacou, por momentos encostou a França, e falhou as oportunidades. Uma, duas, três vezes. Giroud teve uma oportunidade e não falhou. Eficácia e cinismo francês e a prova da máquina em que se tornaram. Mbappé esteve intratável e nem de mota, como Milik tinha sugerido, a Polónia o conseguiu parar. Pergunto-me quem o conseguirá parar? A ele e a esta França.

    Há festa em Paris com uma qualificação perfeitamente merecida e natural dos super-favoritos franceses. Marine Le Pen está a pensar como é que vai fazer um tweet a falar bem de tantos emigrantes africanos.

    No segundo jogo do dia, a história repetiu-se. Os menos cotados, neste caso o Senegal, atacaram e estiveram por cima do jogo, desperdiçando algumas oportunidades. A Inglaterra aproveitou os espaços e, contra a corrente do jogo, marcou num rápido contra-ataque, repetindo a dose pouco antes do intervalo. O segundo golo inglês é um compêndio na arte de contra-atacar.

    Compêndio: bolas, já estou armado em Luís Freitas Lobo…

    As nossas esperanças residem agora na armada do Rei Carlos. Ou param eles os franceses ou não há santa que nos valha.

    Puxem todos da santinha e façam a vossa parte.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A morte de Sá Carneiro em Camarate no nevoeiro da memória

    A morte de Sá Carneiro em Camarate no nevoeiro da memória

    Dia 4 de Dezembro. Mais um ano de Camarate. Já lá vão 42.

    E as memórias começam a ficar mais turvas, como a neblina desta manhã. As notícias são escritas por jornalistas sem memória, com pouca capacidade para descobrir a mentira nos detalhes.

    Carrego comigo uma herança: desde que há três anos faleceu Augusto Cid, devo ser o jornalista que mais sabe sobre Camarate – pelo menos aquele que ainda fala disso em público e escreve sobre o assunto. Por isso, tenho esta estúpida e inglória obrigação de estar constantemente a chamar a atenção dos outros jornalistas para os factos errados.

    Francisco Sá Carneiro (1934-1980)

    Friso que não são factos que possam ser discutidos de forma subjectiva, com testemunhos contraditórios ou conclusões científicas de leituras dúbias. Não. São os factos reais e históricos que nunca poderão ser alterados. Não podem? É pena verificar que podem. Pequenos detalhes que alteram toda a história, como este que vi ao ler uma notícia nesta manhã. Está no Diário de Notícias, e intitula-se “PSD e CDS lembram Sá Carneiro e Amaro da Costa“.

    Acredito que quem a escreveu não o fez por mal, mas está a mudar a história e a esconder as verdadeiras circunstâncias da morte de Sá Carneiro e demais ocupantes do avião. Diz o texto jornalístico, não assinado: 

    Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa dirigiam-se à cidade do Porto para apoiar o general António Soares Carneiro, candidato da Aliança Democrática (AD) às eleições presidenciais, no que seria o comício de encerramento da campanha“.

    Imagens de arquivo da RTP dos destroços do Cessna em Camarate num directo da noite de 4 de Dezembro de 1980.

    Não. Não era “o comício de encerramento da campanha”.

    Dirão alguns que é um detalhe sem importância e que não muda em nada a opinião que têm sobre o que aconteceu. Mas muda. E muda muito.

    Muda porque, tal como num livro policial, este é o detalhe que revela o assassino. Está ali, na verdade que o DN revela neste engano – porque não acredito na inteligência de uma cobertura propositada, mas sim no equívoco de memória de quem elabora o texto sem saber a gravidade do que informa – que se encontra a chave para entender o atentado: como se organizou a morte de Sá Carneiro.

    Vamos então aos tais factos históricos que ninguém pode negar, nem o DN.

    Augusto Cid (à direita) na Assembleia da República em 1991, com José Luís Ramos (à esquerda), deputado e relator de uma comissão de inquérito sobre Camarate, que concluiu ter a queda do Cessna sido um atentado.

    Os factos dizem que, no dia 3 de Dezembro, uma quarta-feira, houve um comício no Porto com a presença do candidato Soares Carneiro. E com a presença de Adelino Amaro da Costa. Regressaram todos no Cessna fatídico, após esse comício. E, no dia em questão, dia 4, estava marcado um comício EXTRA na cidade do Porto. A cidade natal do então primeiro-ministro Sá Carneiro.

    Só que o comício com Soares Carneiro, há muito marcado para esse mesmo dia na cidade de Setúbal, também previa a presença de Sá Carneiro. Faça-se notar ainda que o primeiro-ministro decidira que não iria a comícios fora da área de Lisboa em dias da semana, pois isso seria descurar a sua responsabilidade principal como governante a favor de um papel de líder político numa campanha presidencial. Assim, só iria ao Porto e outros locais fora de Lisboa aos fins-de-semana ou dias feriados.

    Notícias sobre a morte de Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa.

    Por isso, esteve ele em Évora no feriado do 1 de Dezembro. Por isso, nunca ele deveria ir ao Porto na quarta-feira dia 3. Mas foi no dia 4. A um comício EXTRA e especialmente preparado para ele. Onde era inevitável ter de ir de avião. Naquele avião.

    E é aqui que o plano se torna mais detalhado e onde, ainda hoje, é perigoso fazer estas perguntas. E entendo que ninguém as queira fazer. Por isso é que eu não me importo de ser o único a ter de as fazer: está na minha natureza de homem liberto.

    O avião que deveria levar Sá Carneiro ao comício EXTRA, combinado especialmente para ele, era o único aparelho disponível no normal mercado de aluguer dos aviões-táxi. E porquê? Porque os outros aparelhos tinham sido apreendidos uma semana antes no aeródromo de Tires pela Guarda Fiscal a pretexto de irregularidades burocráticas com licenças de utilização.

    Capa do relatório integral da Comissão Multidisciplinar de Peritos da VIII Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar à Tragédia de Camarate. Houve 10 comissões.

    Quem mandou a Guarda Fiscal (ou a autorizou) a levar a cabo aquela operação num momento em que o país estava a ter uma campanha eleitoral e correndo o risco de ser acusada de instrumentalização política? Essa questão nunca se colocou na altura, apesar do candidato mais prejudicado ser aquele apoiado pelo Governo.

    O único avião que não foi apreendido era o que estava em piores condições. E foi aquele que estava ao serviço do rival, Ramalho Eanes. Seria esse que viria, precisamente, a cair em Camarate quando seguia para o comício EXTRA no Porto. Esse avião fora sub-alugado pelos donos dos aviões apreendidos em Tires e que precisavam de cumprir o contrato de aluguer com a campanha de Soares Carneiro.

    Todos estes factos demonstram como Sá Carneiro foi conduzido para aquele avião em específico, com o pretexto de ir a um comício EXTRA no Porto. Um comício que não era de “encerramento de campanha”, mas sim especialmente preparado para a sua presença, aproveitando-se o facto de ser natural do Porto, pelo que ele dificilmente poderia dizer não à sua presença. Sobretudo havendo um avião para o levar ao fim do dia de trabalho de Lisboa ao Porto e trazê-lo de volta, logo após o comício, de modo a estar de manhã a trabalhar em Lisboa. E tudo isto foi organizado dentro do círculo interior da campanha eleitoral.

    Os nomes, do director de campanha que marcou o comício EXTRA e do ministro das Finanças que tinha a tutela da Guarda Fiscal que mandou apreender os aviões em Tires são públicos. O nome da pessoa que, no dia 3, esteve no Porto e pediu ao empresário João Macedo e Silva, dono da RAR, que emprestasse um outro avião Cessna – idêntico ao de Camarate, mas mais seguro, para transportar Sá Carneiro de Lisboa ao Porto e, após o comício, de volta para Lisboa, mas que nunca chegou a ser usado – também há muito que é conhecido.

    Sabe-se tudo sobre Camarate. Não há hoje qualquer segredo. Mas os jornalistas insistem no nevoeiro da falta de memória e, com isso, sem o saberem, estão a condenar toda uma sociedade às trevas, à exploração, à mentira, miséria, fome, subjugação e tragédia.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Frederico Duarte Carvalho participou, na qualidade de autor do livro Camarate: Sá Carneiro e as armas para o Irão, na X Comissão Parlamentar de Inquérito à Tragédia de Camarate em 2013. O seu depoimento está AQUI na íntegra. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • Desejamos mesmo a liberdade?

    Desejamos mesmo a liberdade?


    Este é o debate que opõem as sociedades. Há questões como os vírus, o 5G, a cozedura das lagostas e dos caracóis, e outros problemas muito fracturantes, que servem de mote sempre ao mesmo problema: o da convicção de um se sobrepor aos demais, e o do limite do discurso do outro como fronteira de decência minha.

    A observação limitativa dos argumentos adversos usa tudo, desde a dieta, o animalismo, a obsessão por certificações contra a experiência, a rotina contra a imaginação, a opção pelos monopólios contra o pequenino – tudo o que for possível para aplainar os discursos e uniformizar as certezas. Agora os cubos só têm as faces que se podem ver. 

    silhouette of person on rock

    Esta é uma das batalhas do século XXI em relação à filosofia política, pois nela se substantiva os contínuos desejos de limitar o que se diz e o que se escreve nas redes sociais. A liberdade total seria impossível para a vida em comum. As regras até ao absurdo converter-nos-iam numa manada que se precipita num destino sem discussão, ou num formigueiro sem imaginação e sem criatividade.

    Um exemplo no limite, que não é absurdo. Um cirurgião que faz cirurgia robotizada pode ser substituído por um miúdo que joga computadores, pois o gesto técnico do miúdo é substancialmente mais fino em duas dimensões, e o jogo de ressecar a próstata, por entre veias artérias e nervos, empurrando a bexiga, fugindo do intestino, é-lhe fácil. Joga, e ganha ou perde. Se perder, precisa de um tipo que conhece as complicações, conhece as soluções que não estão no jogo; mas na inteligência artificial os erros aprendem-se e, portanto, o miúdo volta a afastar o cirurgião.

    As regras definidas do por que se joga, quando se joga, dependem de valores laboratoriais e de mecanismos de imagem, convertendo-se em critérios que podem mais uma vez excluir os humanos. O problema está nas subtilezas que fogem das regras, na soma de factores que obrigam ao pensamento elaborado. Claro que isto também pode diminuir a intervenção humana.

    timelapse photo of people passing the street

    A liberdade total é a condução sem “código de estrada”, é uma rotunda em Bombaim, uma experiência de condução em Nápoles, ou a entrar no Benim vindo da Arábia Saudita; mas, mesmo assim, no caos quase total, as pessoas vão na mesma direcção. As regras levadas ao extremo são os códigos cumpridos sob vigilância de câmaras, drones e portais.

    Vamos sempre cumprindo o código, sem infracções, mesmo quando a solidão é total e a segurança está garantida. É o enfado, é a condução robotizada e sem condutor que se preconiza no futuro, evitando acidentes e impedindo conflitos. Para que servirá ter carros diferentes então? Para que servirá variar as potências nessa altura?

    A uniformização da importância de cada um também serve para compactar salários cada vez mais esmagados. Se fazemos todos o mesmo e da mesma maneira, valemos pouco, recebemos pouco.

    Os discursos uniformizados são um dos sonhos do regime chinês, que tentou acabar com as religiões, que induziu um discurso único nas escolas, uma total homogeneização do silêncio crítico. A liberdade irrompe sempre na oposição, exerce-se na argumentação. Se nem percebemos outras realidades, como vamos argumentar outra solução?

    people with hands gathered in the middle

    Imaginemos um menino pobre que só viveu na favela e nunca saiu dali. Imaginemos um médico que se formou e exerceu sempre na mesma instituição. As realidades de ambos estão coarctadas pela falta de exposição. Não podem criticar porque não sabem que há outras realidades, outros modos de trabalhar. 

    Não sei qual é a solução para reduzir o ruído, o lixo linguístico, tal como é difícil reduzir o tom de voz na emoção, o embargo das palavras na dor, mas sei que temos de aumentar a eficácia do conhecimento, objectivar a diversidade como caminho e optar pela liberdade e a criatividade mesmo que elas pareçam loucura. Estou de novo com Agamben no seu último livro sobre a propalada loucura de Hölderlin.

    Agamben quer mostrar agora, como antes, que o isolamento do discurso crítico pode ser o começo de duas realidades: a alienação do eu, remetido à loucura imposta pelos outros; ou o fim da democracia, isolando e ostracizando o outro, o que pensa diferente de nós.

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.