Categoria: Imprensa

  • Contrato de publicidade exige que jornal faça fretes a autarquia socialista

    Contrato de publicidade exige que jornal faça fretes a autarquia socialista

    Nem sequer foi um simbólico “puxão de orelhas”. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) decidiu deixar passar completamente incólume um caso gravíssimo de promiscuidade entre um órgão de comunicação social do Algarve e uma autarquia daquela região – Lagoa – que envolvia um contrato de publicidade com contrapartida de cobertura mediática das actividades da vereação. Para agravar, o gerente e sócio único da empresa de media – a Pressroma – é um jornalista, Rui Pires Santos, que acumula a direcçºao editorial de três publicações (Lagoa Informa, Algarve Vivo e Portimão Jornal), mas que tem assinado contratos comerciais, em violação do Estatuto do Jornalista. O contrato analisado pela ERC, no valor de quase 112 mil euros (com IVA), vigorou durante 2023 e 2024.

    Apesar de a Lei da Imprensa impedir a ingerência de entidades externas na linha editorial de órgãos de comunicação social, o regulador dos media, em deliberaçºao publicada este mês mas aprovada no passado dia 24 de Março, apenas recomendou (usando o verbo instar) que a Pressroma observasse “a necessidade de garantir a independência editorial das publicações de que é detentora, bem como a identificabilidade dos conteúdos de natureza comercial e a respectiva separação face aos conteúdos editoriais.” A recomendação caiu em saco roto: apenas 10 dias depois, Rui Pires Santos (com a sua Pressroma) marimbou-se para a ERC e assinou um novo contrato, após concurso público, que ainda agrava a promiscuidade. Neste caso, também se candidatou para fazer ‘fretes’ à autarquia algarvia uma outra empresa de media, a Minius Publicações, proprietárida do semanário AltoMinho.

    Luís Encarnação celebrou dois contratos de mais de 200 mil euros em quatro anos com o jornal Lagoa Informa, que não pára de lhe conceder destaque.

    Com efeito, tal como já sucedia com o contrato de 2023 alvo da análise da ERC – que demorou quase dois anos a tomar uma deliberação após uma queixa de pessoa não identificada –, a Câmara de Lagoa exige agora, na adjudicação celebrada no dia 4 do presente mês, no valor de 121 mil euros, que a Pressroma, através do Lagoa Informa, se comprometesse a uma tiragem mínima de 3.000 exemplares de distribuição gratuita, devendo “garantir que pelo menos 70% dos conteúdos” sejam dedicados à actualidade e às figuras do concelho de Lagoa, com um mínimo de 16 páginas por edição.

    Mas o pior surge nas cláusulas seguintes.. Segundo o contrato, por imposição da autarquia de Lagoa, o jornal da Pressroma está ainda obrigado a prestar informação de proximidade, que inclui acompanhar a actividade da autarquia com “presença no terreno”, através de “reportagens, entrevistas e cobertura de eventos, não só os de maior dimensão, como os de menor visibilidade, mas com importância informativa para a população e comunidade local, com qualidade e profissionalismo”. E para isso tem de dispor de pelo menos “dois jornalistas com carteira profissional”. Para aumentar o controlo, a Pressroma deve apresentar relatórios quinzenais de distribuição e reunir quinzenalmente com responsáveis da Câmara Municipal..

    Embora as ilegalidades serem mais do que evidentes – por ser proibida a ingerência de entidades externas, como autarquias, na direcção editorial de um órgão de comunicação social, e de estar vedado aos jornalistas exercerem funções de promoção –, a ERC não viu ou não quis ver qualquer ilegalidade neste contrato de 2023.

    Aliás, o regulador dos media foi bastante ‘benevolente’ na análise a esse contrato de 2023, agora repetido, até aceitando as desculpas da Pressroma, que quis fazer crer que a autarquia utilizara por lapso um modelo contratual usualmente empregue nas suas publicações internas. Ora, a ERC nem sequer reparou – ou quis reparar – que a Pressroma assinara um contrato após um concurso público, em que, para o vencer, teve de assumir que cumpriria as exigências detalhadas do caderno de encargos.

    Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social deixou impune um caso evidente de promiscuidade entre uma autarquia socialista e um jornal através de contratos de publicidade com contrapartidas de cobertura mediática.

    Na prática, a Lagoa Informa, através da Pressroma, aceitou ser um boletim municipal da autarquia de Lagoa travestido de jornal de informação registado na ERC e com jornalistas com título profissional. E a ERC acreditou na versão da empresa de media de que os únicos conteúdos pagos eram os espaços publicitários e editais municipais devidamente assinalados com a sigla “PUB”, e que os conteúdos informativos não eram encomendados.

    Certo é que, numa análise ao conteúdo do Lagoa Informa, com periodicidade quinzenal, o presidente socialista sai quase sempre na primeira página com direito a fotografia,. Nas quatro últimas edições aparece na primeira página em três, e é notícia em todas. A edição da primeira quinzena de Março integra, aliás, um autêntico encómio sobre o seu percurso de vida.

    Numa longa peça assinado por José Garrancho (com cartão de colaborador da CCPJ), Luís Encarnação é apresentado como “um trabalhador dedicado e eficiente, educado, de bom trato e muito preocupado com as necessidades da sua terra natal, o Parchal, local onde nasceu em 1968”. E faz um percurso sempre elogioso, desde o trabalho na hotelaria até à sua dedicação ao estudo e ascensão política. E coloca-o como um homem culto, desprendido do poder e com paixão pela leitura, “devorador de livros”, embora ‘traído’ pelo discurso directo. “Quando deixar de ser presidente de Câmara, vou abraçar a minha grande paixão, que é ler e não quero cargos nenhuns. Quando tinha nove ou dez anos já lia livros da maior complexidade. Toda a vida fui um devorador de livros. A 1 de novembro de 2013, quando iniciei funções como vereador, estava a ler um livro que ainda hoje está a meio. A primeira coisa que vou fazer é acabar de o ler e começar de novo, pois já perdi o fio à meada, ao fim de todos estes anos”, diz o autarca socialista ao jornal que ‘patrocina’.

    Prwesidente socialista é preseça constante no jornal Lagoa Informa.

    Mas estas ‘ligações intimas’, ou promíscuas, entre o edil e o jornal nem sequer mereceram uma linha de análise por parte da ERCl. No decurso da instrução, que demporou quase dois anos, a ERC apenas detectou incumprimentos da Lei da Transparência por parte da Pressroma, nomeadamente na omissão de informação sobre clientes relevantes e dados financeiros de vários anos, mas nada mais fez do que insistir para que fossem preenchidas, ficando-se a saber que, em alguns anos, mais de 40% dos rendimentos provêm do Município de Lagoa – que, aliás, nem se dignou responder aos pedidos de esclarecimento da ERC sobre o conteúdo do contrato nem forneceu os relatórios de acompanhamento solicitados. A ERC, na verdade, nem sequer se consegue impor para fazer uma regulação decente.

    Assim, mesmo com a Lei da Imprensa, o Estatuto do Jornalista, a Lei da Transparência e os Estatutos da ERC, o regulador mais não fez do que constatar o óbvio: a Pressroma aceitou cláusulas que põem em causa a autonomia editorial do Lagoa Informa; não salvaguardou devidamente a separação entre conteúdos editoriais e comerciais e colocou em risco a liberdade de imprensa.

    Consequência disto? Nenhuma. Nem um processo de contra-ordenação – que deveria abranger também a autarquia –, nem uma ameaça de suspensão do título, nem uma comunicação à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) por uso de “jornalismo comercial”.

    Quer dizer, há uma consequência que se extrapola. Com esta deliberação sobre a impunidade da promiscuidade – em que se mercantiliza o jornalismo num contrato de inserção publicitária – a ERC indica expressamente que qualquer órgão de comunicação social, desde os de maior dimensão até aos regionais, pode livremente celebrar contratos publicitários onde possam expressamente surgir como contrapartidas a elaboração de entrevistas e artigos promocionais feitos por jornalistas – e, quiçá, mesmo a garantia de que não serão publicadas notícias “desagradáveis”.

    Trecho do contrato de Abril deste ano, onde a autarquia exige à Pressroma que faça “cobertura “acompanhamento da actividade da autarquia com presença no terreno, com reportagens, entrevistas e cobertura de eventos”, independentemente da sua dimensão.

    Confrontada a ERC sobre este novo contrato, dias depois de uma deliberação ‘fofinha’, o regulador afirma que, perante este novo contrato, foi decidido “abrir um procedimento de averiguações para aferir da existência de eventuais irregularidades” já identificadas na deliberação de Março, mas que deram em nada.

    O PÁGINA UM também contactou a CCPJ, que adiou uma posição para a próxima semana. Também foram colocadas questões ao gerente da Pressroma e também director do Lagoa Informa, Rui Pires Santos, mas não houve qualquer resposta. De acordo com o Portal Base, desde 2019 sucedem-se os contratos envolvendo publicidade, e não só, entre a Pressroma e três municípios algarvios, onde Lagoa surge em destaque com 490.518 euros. Os montantes dos contratos com Albufeira e Portimão são mais ‘modestos’: 52.716 e 20.018 euros, respectivamente.

  • Tribunal Administrativo obriga Comissão da Carteira Profissional de Jornalista a mostrar ‘actas secretas’

    Tribunal Administrativo obriga Comissão da Carteira Profissional de Jornalista a mostrar ‘actas secretas’

    O Tribunal Administrativo de Lisboa deu provimento a uma intimação interposta pelo PÁGINA UM, condenando a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) a facultar as actas de reuniões do Plenário e do Secretariado, bem como elementos relativos a quinze processos disciplinares extintos por força da aplicação da Lei da Amnistia de 2023. A sentença, proferida na passada semana pelo juiz Ricardo Vilas Boas, salienta que os fundamentos invocados pela CCPJ para recusar o acesso careciam de qualquer base legal, considerando que o direito à informação administrativa por parte de um jornalista deveria prevalecer.

    Esta decisão põe por terra a postura obscurantista da CCPJ, que há anos mantém secretos os seus procedimentos, recusando mesmo o acesso às suas deliberações. Licínia Girão, a presidente cessante, defendeu uma visão restritiva e enviesada do acesso à informação, ao salientar que não se aplicava a norma legal específica que concede direitos especiais aos jornalistas no acesso a dados abrangidos pelo Regulamento Geral de Protecção de Dados.

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    Por outro lado, com esta obrigação determinada pelo Tribunal Administrativo, ficará por esclarecer se o Secretariado da CCPJ tem funcionado de forma ilegal ao longo dos últimos anos. Isto porque Licínia Girão afirmou que o Secretariado da CCPJ – o órgão colegial e permanente deste órgão regulador e disciplinador dos jornalistas – “não elabora[va], obviamente, actas relativas às reuniões que realiza”. Ora, sendo um órgão colegial e tendo estatuto público, são obrigatórias actas de todas as reuniões do Secretariado da CCPJ, pelo que, caso se confirme mesmo a sua inexistência, todas as decisões tomadas pelos seus membros – Licínia Girão, Jacinto Godinho e Paulo Ribeiro – serão consideradas nulas.

    Por outro lado, a inexistência de actas em reuniões de um órgão colegial da Administração Pública pode implicar consequências disciplinares, civis e até penais para os agentes envolvidos, sobretudo quando resulte em violação de deveres funcionais ou em prejuízo para terceiros ou para o interesse público. Assim, os antigos membros do Secretariado da CCPJ, caso não existam mesmo actas, podem ser responsabilizados disciplinarmente por incumprimento dos deveres de documentar e fundamentar as deliberações, previstos no Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores em Funções Públicas.

    Em certos casos, a omissão deliberada de actas pode configurar infracções mais graves, como falsificação por omissão ou abuso de poder, nos termos do Código Penal, bem como responsabilidade civil pelos danos causados, especialmente se se comprovar que a ausência de actas teve impacto directo em decisões administrativas ilegítimas ou prejudiciais.

    Jacinto Godinho (jornalista da RTP) e Licínia Girão foram dois destacados membros do Secretariado da CCPJ que ‘barraram’ o acesso à informação de colegas jornalistas e, aparentemente, despacharam centenas de actos administrativos sem actas.

    No caso do acesso aos processos disciplinares de jornalistas que foram amnistiados aquando da visita papal – e que a CCPJ queria manter secretos –, o juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa sublinhou ser “dever do requerente [director do PÁGINA UM] – ónus probatório – demonstrar fundamentadamente ser titular de um interesse directo, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante que justifique o acesso à informação pretendida”, para em seguida reconhecer ser legítimo “sindicar, averiguar, investigar a verificação das condições legais que impunham a aplicação da amnistia”. O juiz salienta que o interesse da actividade jornalística é, neste caso, “constitucionalmente protegido, suficientemente relevante” e que o pedido foi formulado no respeito pelo princípio da proporcionalidade, não se tratando de um acesso indiscriminado ou abusivo, como defendia a CCPJ.

    Quanto à alegação da CCPJ de que o acesso pretendido violaria o RGPD, o juiz rejeitou essa interpretação, referindo que “não se está em presença de matéria confidencial ou que se possa configurar como relativa a dados pessoais de natureza íntima”, tais como saúde, orientação sexual, filiação religiosa ou convicções políticas. Pelo contrário, destacou que se trata de informações relacionadas com o exercício de funções públicas reguladas por lei, razão pela qual se impõe o dever de publicidade e de transparência administrativa.

    O juiz recorda que, mesmo nos casos em que os documentos contêm dados pessoais, a regra é o acesso e que a confidencialidade constitui excepção. Citou, a este respeito, doutrina jurídica que considera ser suficiente, em tais casos, “ponderar, no caso do requerimento de acesso a documentos nominativos com dados pessoais não sensíveis, o direito de acesso a documentos administrativos e o direito à privacidade”, sendo possível facultar o acesso com expurgo dos dados identificativos sempre que necessário.

    Paulo Ribeiro, ao centro, foi o terceiro membro do Secretariado da CCPJ, como representante dos órgãos de comunicação social, que se opôs aos pedidos do PÁGINA UM.

    Assim, e tendo em conta que os documentos solicitados não versam sobre dados sensíveis nem revelam elementos da vida íntima dos visados, o tribunal entendeu que “não se mostra admissível a recusa na prestação de informações”, acrescentando que o exercício do poder disciplinar está sujeito aos princípios da publicidade e da transparência. E realçou ainda que a própria Lei da Amnistia não impede a sindicância da legalidade da sua aplicação, sendo certo que “a determinação da sua aplicação tem natureza pública, podendo ser sindicada, inclusive judicialmente”.

    Por outro lado, contrariando a interpretação obscurantista da CCPJ, o juiz diz que, mesmo sabendo-se que a amnistia determina a extinção dos processos disciplinares, incluindo a sua publicitação, não é, em todo o caso, admissível invocar o esquecimento para furtar os actos administrativos ao escrutínio público. Até porque, deste modo, ficar-se-ia sem saber se a CCPJ teve processos disciplinares em ‘banho-maria’ ou aplicou a Lei da Amnistia em casos indevidos.

    A sentença ordenou assim à CCPJ a entrega, no prazo de dez dias úteis, dos elementos requeridos, com eventual expurgo de dados nominativos dos jornalistas ou entidades empregadoras, desde que não prejudiquem a compreensão das decisões. A sentença refere ainda expressamente que a recusa em cumprir no prazo fixado poderá implicar a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória, embora a CCPJ possa ainda recorrer, se quiser manter a sua postura obscurantista.

    Sentença é mais um momento histórico contra o obscurantismo de entidades que deveriam defender a transparência.

    Além dos processos disciplinares e das actas do Secretariado, o tribunal obrigou igualmente a CCPJ a facultar “a consulta dos originais e cópia das actas de todas as reuniões do Plenário […] relativas aos anos de 2023 e 2024”. Sendo o Plenário um órgão colegial, obrigado a lavrar actas nos termos do Código do Procedimento Administrativo, o juiz salienta que não contêm “dados nominativos”, embora conceda que possam ser expurgados, nas reuniões em que tal ocorreu, os nomes dos jornalistas arguidos que beneficiaram da Lei da Amnistia.

    No entanto, os outros assuntos tratados terão de ser integralmente disponibilizados, entre os quais estarão as discussões em torno dos gastos de Licínia Girão è frente da CCPJ, incluindo o pagamento de serviços juríicos no valor de 6.000 euros para a antiga presidente desta entidade apresentar uma queixa judicial, entretanto abandonado, contra o director do PÁGINA UM.


    Este texto teve um direito de resposta de Licínia Girão que pode ser lido AQUI.


    N. D. O FUNDO JURÍDICO tem sido, através de donativos específicos dos leitores, a única forma que o PÁGINA UM tem de suportar os encargos com honorários e taxas de justiça, que, por regra, numa primeira fase, atingem sempre valores acima de 500 euros, acrescidos de mais gastos se houver recursos. Aliás, convém recordar que o PÁGINA UM intentou já 25 intimações, além de estar envolvidos em outros processos judiciais, entre os quais quatro processos-crime contra o seu director. .

  • Gaza transformou-se num ‘cemitério de jornalistas’

    Gaza transformou-se num ‘cemitério de jornalistas’

    São números avassaladores. Desde Outubro de 2023, a retaliação de Israel na Faixa de Gaza tornou-se o conflito mais letal para os profissionais da imprensa, registando um recorde impressionante de 232 mortes, das quais 37 num único mês. Estes números ultrapassam largamente os valores registados em grandes conflitos do século XX e transformam a Faixa de Gaza num verdadeiro “cemitério de jornalistas”.

    O relatório Costs of War: The Reporting Graveyard, assinado pelo jornalista e investigador Nick Turse, ontem revelado com a chancela do Watson Institute da Universidade de Brown, apresenta uma investigação aprofundada sobre a violência contra os trabalhadores dos media em zonas de guerra – e o sanguinário conflito de Gaza –, mesmo numa região com cerca de metade da superfície da ilha da Madeira, embora com mais de dois milhões de habitantes.

    Além das mortes, o relatório apresenta as crescentes pressões e formas de limitar a cobertura de conflitos por meio de uma variedade de mecanismos, desde políticas repressivas até ataques armados, fomentando uma cultura de impunidade e transformando zonas de guerra como a Síria e Gaza em “cemitérios de notícias”. De acordo com Nick Turse, a guerra em Gaza matou, desde 7 de Outubro de 2023, mais jornalistas do que a Guerra Civil dos Estados Unidos, as I e II Guerras Mundiais, a Guerra da Coreia, a Guerra do Vietname (incluindo os conflitos no Camboja e Laos), as guerras na Jugoslávia nas décadas de 1990 e 2000, e a guerra no Afeganistão pós-11 de Setembro. Mas não de forma isolada. Todas juntas. Segundo Turse, “é pura e simplesmente o pior conflito de sempre para jornalistas”.

    Com efeito, na Ucrânia estão, por agora, contabilizados 29 jornalistas mortos, incluindo o período da guerra no Dombass iniciada em 2014. As duas décadas de guerra no Afeganistão, entre 2001 e 2021, causaram cerca de sete dezenas de mortes, embora os números reais sejam incertos. As guerras resultantes do desmembramento da Jugoslávia também causaram largas dezenas de vítimas entre a imprensa, mas também muito aquém dos valores atrozes de Gaza. E mesmo conflitos de dimensão territorial vasta tiveram menos vítimas. Por exemplo, a II Guerra Mundial causou a morte a 67 jornalistas, enquanto as guerras do Vietname, Cambia e Laos provocaram a morte de 71 jornalistas estrangeiros e locais.

    O número decrescente de correspondentes experientes em zonas de conflito prejudica, destaca o relatório, o conhecimento crítico e facilita a elevada mortalidade dos profissionais da informação, quase todos da imprensa palestiniana. E sucede um efeito de bola de neve: quanto mais mortes, menos ‘apetecível’ se mostra enviar jornalistas da imprensa mainstream para esses locais. Em Gaza, por exemplo, a proibição israelita de entrada de jornalistas estrangeiros, aliada ao assassinato indiscriminado de repórteres palestinianos, significa que há muito menos jornalistas capazes de traduzir e relatar o que se passa naquela região ao público ocidental, especialmente ao norte-americano. Isto mostra-se particularmente problemático, considerando-se, como salienta o relatório e Nick Turse, que os Estados Unidos aprovaram cerca de 18 mil milhões de dólares em assistência militar a Israel no ano que se seguiu a Outubro de 2023.

    No que diz respeito a Gaza, o relatório evidencia que a política de restrição de acesso a correspondentes estrangeiros, imposta pelo governo israelita, tem agravado sobremaneira a situação dos jornalistas locais. Com os repórteres internacionais impedidos de aceder à região, o fardo da cobertura recai sobre profissionais locais – frequentemente desprovidos dos recursos e apoios necessários para enfrentar condições extremas. Esta “externalização do risco” implica não só a perda irreparável de vidas, mas também o enfraquecimento da qualidade e da imparcialidade da informação disponível ao público.

    Contudo, Turse amplia a análise para outros conflitos que também assinalam elevados níveis de violência contra a imprensa. O estudo aborda, por exemplo, as zonas de guerra no Iraque e na Síria, onde a prática de privar os jornalistas do apoio institucional e de garantir o acesso a áreas de conflito contribuiu para um elevado número de vítimas ao longo das últimas décadas. No Afeganistão, as condições extremas e a instabilidade política têm permitido que o trabalho de correspondentes seja marcado por um risco constante, onde cada reportagem pode significar a diferença entre a vida e a morte. Outras regiões, como a República Democrática do Congo e o Sahel, em África, também figuram na análise de Turse, que evidencia como a violência – muitas vezes perpetrada por milícias ou forças armadas sem escrúpulos – se torna um factor determinante na qualidade e na continuidade da cobertura jornalística.

    Além dos números devastadores, o relatório sublinha o impacto humanitário e psicológico dessa violência extrema. Histórias trágicas, como a do repórter Samer Abudaqa – gravemente ferido num ataque sem receber socorro atempado, vindo a sucumbir aos ferimentos – ilustram de forma pungente o custo humano de uma guerra que silencia vozes críticas. Cada vida perdida não é apenas uma estatística chocante; é o encerramento de uma narrativa que contribuía para a memória colectiva e para a promoção de um debate público fundamentado.

    Mortes de profissionais de imprensa nos principais conflitos bélicos. Fonte: Nick Turse.

    Outro aspecto crucial é a destruição de infraestruturas associadas à comunicação social. Em Gaza, cerca de 90 centros de imprensa foram eliminados pelas forças militares de Israel, prejudicando gravemente a capacidade de documentar e transmitir informações fiáveis e verificadas. Esta realidade alimenta a propagação de narrativas distorcidas e perpetua um ciclo de impunidade, uma vez que os responsáveis pelos ataques raramente são punidos, o que fragiliza a confiança do público na capacidade do jornalismo de servir de vigilante democrático.

    Adicionalmente, a investigação de Nick Turse denuncia uma crise estrutural que afecta a indústria jornalística global. A retirada progressiva dos correspondentes estrangeiros, aliada ao encerramento de redacções e à redução de postos de trabalho – fenómeno que tem originado verdadeiros “desertos de notícias” em territórios como os Estados Unidos – está a comprometer a existência de uma cobertura abrangente e imparcial dos acontecimentos.

    E, como se salienta no relatório, sendo por de mais evidente, esta crise não só empobrece o debate público como mina a função do jornalismo enquanto “quarto poder”, essencial para a fiscalização dos governos e para a salvaguarda dos direitos democráticos.

    Os números apontados pelo relatório de Nick Turse chegam a ser mais elevados do que aqueles apresentados hoje pelo Comité para a Protecção dos Jornalistas (CPJ) que indica pelo menos 173  jornalistas e profissionais da media estarão entre as mais de  dezenas de milhares de pessoas mortas em Gaza, Cisjordânia, Israel e Líbano desde o início da guerra. Destes, 165 eram palestinianos, dois israelitas e seis libaneses. O CPJ identificou ainda 13 jornalistas e dois trabalhadores da media como alvos directos de ataques israelitas que classifica como assassinatos, estando em investigação outros 20 casos com fortes indícios de segmentação deliberada.

    Na semana do aniversário da guerra, em Outubro de 2024, dois jornalistas foram mortos e três feridos, o que levou o CPJ a renovar o seu apelo pelo fim da impunidade. A organização documenta ainda 59 jornalistas feridos, dois desaparecidos, 75 detidos e regista uma multiplicidade de agressões, ameaças, ataques cibernéticos, censura e até assassinatos de familiares.

  • Comissão da Carteira de Jornalista perdeu 45% do seu património em dois anos

    Comissão da Carteira de Jornalista perdeu 45% do seu património em dois anos

    Financeiramente desastroso: o mandato de três anos de Licínia Girão deixou um rasto desolador nas contas da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), o órgão de acreditação e de disciplina da classe. À frente da entidade desde Maio de 2022, Licínia Girão – uma jornalista que trabalhou sobretudo em jornais regionais – imprimiu, ao longo do seu mandato, uma postura despesista que, agora, está reflectida nas contas: nos anos de 2023 e 2024, o prejuízo acumulado foi de quase 154 mil euros, ou seja, os fundos patrimoniais da CCPJ regrediram 45%, passando de 347.264 euros para apenas 192.511. Significa isto que mais três anos de gestão com o nível de desempenho de Licínia Girão ditariam a falência deste órgão.

    Esta erosão patrimonial, inédita na história da CCPJ, até coincide com um aumento das receitas, que são quase em exclusivo provenientes dos emolumentos pagos pelos jornalistas para exercerem a sua actividade, uma vez que, apesar de ser uma entidade pública, o Estado apenas lhe concede um apoio de 50 mil euros. Com efeito, o ano passado até bateram um recorde, cifrando-se em mais de 262 mil euros, o que contrasta, por exemplo, com os cerca de 196 mil euros em 2020.

    Licínia Girão desempenhou funções de presidente da CCPJ desde Maio de 2022, ainda não tendo sido encontrado substituto.

    O grande ‘problema’ da CCPJ acabou por ser um aumento absurdo nos gastos gerais e, sobretudo, dos honorários por prestações de serviços e das remunerações aos órgãos sociais, isto é, aos membros do Plenário e, em especial, do Secretariado, onde Licínia Girão esteve em permanência, coadjuvada pelo seu ‘braço direito’, Jacinto Godinho, jornalista da RTP.

    De facto, a rubrica de fornecimentos e serviços externos – que em 2020 e 2021 foi, respectivamente, de 83 mil e 58 mil euros – saltou, no mandato de Licínia Girão, sempre para cima dos 100 mil euros: 107.426 euros em 2022, 124.064 euros em 2023 e 147.568 euros no ano passado. Uma parte desta despesa foi para honorários diversos, não revelados nas contas, que chegaram a atingir os 67 mil euros, quando, por exemplo, em 2021 tinham sido de apenas 417 euros.

    Uma parte substancial deste agravamento de custos esteve associada à própria presidente da CCPJ que, apesar de viver em Coimbra e sem actividade jornalística conhecida nos últimos anos, aparentou dedicar-se profissionalmente à liderança desta entidade. Assim, além das despesas de transporte e estadias, houve uma outra rubrica que disparou: as remunerações aos órgãos sociais.

    CCPJ teve receitas recorde em 2024, mas apresentou prejuízos pelo terceiro ano consecutivo.

    Apesar de ser uma entidade pública, a CCPJ sempre se recusou a divulgar os valores das senhas de presença e outras remunerações usufruídas pelos seus membros, sendo certo que formalmente não têm salários – ou seja, os membros do Secretariado (três jornalistas), que tratam do expediente, e os do Plenário (que incluem os restantes seis), recebem apenas pelas suas presenças. A revelação dos valores é uma das causas para uma intimação do PÁGINA UM contra a CCPJ que ainda corre nos tribunais administrativos.

    Independentemente disso, as contas da CCPJ revelam agora que as despesas com os órgãos sociais – que o PÁGINA UM sabe estarem associadas sobretudo a pagamentos a Licínia Girão – dispararam sobretudo em 2023 e 2024. Na análise às contas do último quinquénio, verifica-se que, nos dois anos civis em que a CCPJ foi liderada por Leonete Botelho, jornalista do Público, as remunerações de todos os elementos dos órgãos sociais atingiram os 18.124 e os 22.295 euros, respectivamente em 2020 e 2021. No ano de 2022, que incluiu o início do mandato de Licínia Girão (que entrou em funções em Maio), essa rubrica subiu para 26.311 euros, ou seja, ainda de forma moderada.

    Porém, e atendendo a que não se está perante órgãos com salário, o acréscimo de remunerações dos órgãos sociais foi bastante relevante: quase 41 mil euros em 2023 e aproximadamente 50 mil euros no ano passado. Tudo isto com senhas de presença. A forma de gestão de Licínia Girão da CCPJ levou mesmo à demissão de três membros da CCPJ – Anabela Natário, Isabel Magalhães e Miguel Alexandre Ganhão –, que bateram com a porta, com estrondo, em Outubro do ano passado.

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    No rol de acusações conhecidas aquando das cartas de renúncia, constam as excessivas despesas, sobretudo pelo uso indiscriminado de senhas de presença, de Licínia Girão – que reside em Coimbra, não tendo actividade jornalística conhecida nos últimos anos –, bem como as suas tentativas de ‘reorientar’ as funções da CCPJ de acreditação e acção disciplinar para passar a exercer também como ‘centro de formação’, e ainda o facto de ter metido despesas de honorários de advogados para tratar de questões pessoais.

    O PÁGINA UM pediu comentários e esclarecimentos à CCPJ sobre a sua situação financeira, que remeteu uma resposta para depois da escolha da nova presidência, a eleger por cooptação pelos quatro membros eleitos pelos jornalistas e pelos quatro membros indicados pelos órgãos de comunicação social.

  • Impresa à beira do precipício e a arrastar a SIC

    Impresa à beira do precipício e a arrastar a SIC

    Foi a galinha de ovos de ouro, depois passou a ser a vaca que dava leite; agora  mostra mais ser uma cabra vampirizada até à última gota de sangue – este pode bem um possível retrato alegórico da SIC, a empresa televisiva da Impresa, e a história de uma ‘mãe’ que está a matar a ‘filha’.

    Na semana passada, na divulgação  dos resultados da Impresa, a holding controlada pela família Balsemão – embora com uma parte distribuída em bolsa – revelou que “face à evolução de determinadas actividades nos segmentos de Televisão e da Infoportugal” tinham revisto os valores dos activos, na componente do ‘goodwill’, implicando uma imparidade da ordem dos 60,7 milhões de euros. O impacte contabilístico foi brutal, adicionado a provisões de 5,3 milhões de euros: um prejuízo anual de 66,2 milhões de euros. De um ano para o outro, os capitais próprios da Impresa terão caído de valor cerca de 40%.

    Porém, mais grave do que isso, para além dos sinais para o mercado de uma holding endividada, são os reflexos desta desvalorização. Em abono da verdade, a redução do goodwill da Impresa é uma diminuição de um valor que efectivamente nunca existiu; era artificial. Isto porque o goodwill da holding Impresa – que antes desta revisão estava definido como valendo 251 milhões de euros – tinha sido ‘fabricado’.

    De facto, a origem deste goodwill registado no balanço consolidado da Impresa não resultou de aquisições externas, nem de operações de expansão que tivessem trazido valor acrescentado ao grupo. Aquilo que a holding fez, ao longo dos anos, foi reavaliar internamente as suas próprias subsidiárias, em particular a SIC, atribuindo-lhes um valor superior ao seu valor contabilístico líquido e registando essa diferença como goodwill.

    Para financiar estas operações internas de reestruturação e ‘compra’ das participadas, a Impresa recorreu a dívida bancária. Ou seja, criou-se um activo intangível assente em expectativas futuras, enquanto se aumentava o passivo financeiro com empréstimos que suportaram esta operação meramente contabilística. Agora, a imparidade de 60 milhões de euros reconhecida sobre esse goodwill revela aquilo que o mercado já pressentia: o grupo vale menos do que anunciava, e a principal fonte de valor, a SIC, está fragilizada, sem margem para sustentar por muito mais tempo uma holding que vive da sua exploração.

     Durante anos, este goodwill’ da Impresa – completamente separado do valor dos activos intangíveis da SIC, que são de apenas cerca de 17 milhões – justificava-se pela capacidade dos canais televisivos fazerem dinheiro. E fizeram muito. Considerando os resultados da empresa SIC em 2024, os seus lucros acumulados desde 2019 são bastante expressivos: cerca de 69 milhões de euros. Porém, toda esta verba tem integralmente canalizada, como dividendos para a ‘casa-mãe’ Impresa, limitando a capacidade de novos investimentos ou mesmo a redução da própria dívida da SIC. Pior: apesar deste fluxo lucrativo, em forte queda nos últimos anos (em 2024, os lucros foram apenas de cerca de 25% dos de 2021), tem-se assistido ao aumento do passivo da SIC em mais de 50 milhões de euros, porque a ‘filha’ também empresta dinheiro ‘mãe’ e até lhe serve de ‘fiadora’.

    O paradoxo é evidente. A SIC lucra, mas não capitaliza. Os lucros são integralmente drenados pela Impresa e, não restando liquidez na operadora de televisão, recorre-se à dívida bancária para manter a actividade corrente e financiar investimentos e sustentar a holding Impresa. A SIC faz dívida para pagar dividendos e ainda faz dívida para emprestar à sua própria accionista. O que deveria ser um ciclo virtuoso de criação e retenção de valor, transformou-se num círculo vicioso de endividamento crescente e dependência financeira, resultando na fragilização estrutural da SIC.

    Esta é a realidade que os números expõem de forma clara e inequívoca. Ao longo dos últimos anos, a SIC foi sucessivamente espoliada dos seus resultados operacionais positivos para garantir a sobrevivência financeira da Impresa. A holding, esvaziada de actividade produtiva própria, não tem tido qualquer capacidade de gerar fluxos de caixa que não resultem da exploração directa da sua subsidiária.

    Francisco Pinto Balsemão: a queda de um império de media está iminente.

    A SIC é o pulmão e o coração financeiro da Impresa. Sem ela, a holding não viveria, até porque as portas dos bancos se fecharam desde 2017 – a partir desse ano praticamente não se registam fluxos de caixa provenientes de empréstimos bancários directos à Impresa. E assim, como qualquer organismo parasitário, a Impresa tem vindo a alimentar-se dos recursos da SIC sem nada devolver que reforce a vitalidade da sua operadora.

    Excluindo ainda os lucros de 2024, note-se que os dividendos entregues à Impresa pela SIC – controlada pela família Balsemão – totalizam, entre 2019 e 2023, um total de 64,9 milhões de euros, uma soma considerável num sector pressionado pela quebra da publicidade televisiva tradicional e pela concorrência das plataformas de streaming. Ou seja, em vez de servir para reforçar o capital próprio da SIC, ou para amortizar a dívida bancária que, em Junho de 2024, atingiu 94,5 milhões de euros, esse valor foi integralmente entregue à ‘casa-mãe’, também controlada pela família Balsemão.

    Como se não bastasse, uma vez que a própria SIC foi ainda forçada a conceder sucessivos empréstimos à Impresa (85 milhões de euros), com maturidade de dez anos e com reembolso apenas em 2029, isto significa que, no curto e médio prazo, tem imobilizados recursos significativos em favor de uma holding cuja única estratégia parece ser sugar o que resta do activo que detém. Além disso, não existem garantias de que o empréstimo de 85 milhões de euros seja devolvido à SIC.

    Lucros da SIC (em milhões de euros), que acabaram por ser canalizados como dividendos para a Impresa, No caso dos lucros de 2024 ainda não houve decisão em Assembleia Geral. Fonte: Relatórios e contas da SIC.

    Observando as demonstrações dos fluxos de caixa dos últimos anos, observa-se que a SIC tem sido o ‘banco’ da Impresa, à medida que os verdadeiros bancos fecham a porta pelo risco de incumprimento. Em 2017, a SIC emprestou à ‘mãe’ quase 10,3 mihõoes de euros em dinheiro vivo; em 2018 foram mais 48,8 milhões; em 2019 mais 45,8 milhões; em 2021 mais 1,1 milhões; e em 2023 quase três milhões. Só uma parte foi devolvida.

    Este ciclo de extracção financeira gerou um paradoxo que salta à vista de qualquer análise, mas que parece escapar à gestão da Impresa: uma empresa que lucra, a SIC, não é já uma cadeia de televisões; serve para fazer fluir dinheiro para a holding, custe o que custar, mesmo que se endivide cada vez mais – até porque já ninguém empresta um tostão directamente à Impresa. Na verdade, observando as contas da empresa SIC, constata-se de imediato uma dependência crescente dos financiamentos externos, enquanto sustenta uma holding que nada parece fazer para aliviar a sua carga de dívidas e de custos.

    O resultado é uma fragilização estrutural da SIC, que arrisca acabar com a existência tanto da principal subsidiária da família Balsemão como da holding, já condenada. O passivo total da SIC subiu de 123,4 milhões de euros em 2018 para 170,6 milhões de euros em Junho de 2024 – a Impresa não revela ainda o balanço do final do ano da sua subsidiária. Um agravamento de mais de 47,2 milhões de euros, não obstante a geração de lucros anuais e o reconhecimento contabilístico de uma operação que, em si mesma, continua a ser rentável. Esta dicotomia revela aquilo que é hoje a essência da relação entre a Impresa e a SIC: a primeira já não é uma holding no sentido clássico, mas sim um organismo dependente que parasita o seu activo produtivo até à exaustão.

    Evolução do passivo e da dívida financeira (em milhões de euros) SIC. Valores de 2024 referentes ao primeiro semestre. Fonte: Relatórios e contas da SIC.

    Mas mesmo com a drenagem constante de recursos da SIC, nem a Impresa conseguiu travar o esvaziamento do seu património. O sinal mais visível do esgotamento do modelo parasitário reside na queda abrupta do capital próprio consolidado do grupo. De uma ‘folga patrimonial’ de 156 milhões de euros – se bem que algo ‘maquilhada’ –, a Impresa terá passado agora, com o reconhecimento da imparidade e consequentes prejuízos de 66,2 milhões de euros – para cerca de 96 milhões.

    Além da queda abrupta do valor – com sinais fortes de que o sector televisivo estará em crise –, a Impresa agravou fortemente os seus principais rácios. Embora não tenha ainda sido divulgado o passivo de 2023, a solvabilidade da Impresa anda pelas ruas da amargura. Além disso, como a maioria dos activos da Impresa são ‘artificiais’ – ou seja, são o tal ‘goodwill’ (que representava 71% do total em 2023) –, a confiança do mercado começa a aproximar-se do zero.

    Aguardando-se ainda o relatório e contas final para o ano de 2024, a autonomia financeira da Impresa deverá agora rondar os 30%, algo que, em muitos sectores, mostra sinais de exposição excessiva à dívida. No caso da Impresa, trata-se de um indicador ainda mais preocupante, porque a holding não possui activos patrimoniais robustos, não gera cash flow operacional próprio e depende quase exclusivamente da SIC para sustentar as suas contas. A composição dos activos – dominada por intangíveis como o goodwill, agora desvalorizado – agrava o risco.

    Francisco Pedro Balsemão.

    Em 2023, se se excluísse o goodwill, os activos da Impresa situavam-se em apenas em 110 milhões de euros, dos quais 22 milhões do edifício que recompraram em 2022 e que será vendido para dar liquidez. A parte restante distribui-se sobretudo por direitos de transmissão de programas 42,7 milhões de euros), créditos sobre clientes (21,8 milhões de euros) e dinheiros em caixa (13,2 milhões). Esta última parcela pode parecer imensa, mas não é: os custos operacionais em 2023 foram, em média, de quase 14,3 milhões de euros por mês, a que acresceu quase um milhão de euros de pagamentos de juros e outros custos financeiros.

    Na verdade, se observamos as contas individuais da Impresa, antes da consolidação das contas das suas subsidiárias, a holding controlada pela família Balsemão é hoje financeiramente estéril, dependendo integralmente da liquidez gerada pela SIC para pagar os seus compromissos correntes, incluindo o serviço da sua própria dívida. A Impresa vive do que a SIC lhe transfere, não gera valor, nem contribui para a resiliência do grupo. Ou seja, reiterando o que se expôs, estamos perante um modelo de exploração financeira em que a Impresa actua como um parasita, retirando tudo o que pode da SIC sem garantir o seu futuro. E o futuro está a acabar.

  • Edifício-sede da Impresa vai servir pela terceira vez como ‘activo especulativo’

    Edifício-sede da Impresa vai servir pela terceira vez como ‘activo especulativo’

    Lá diz o ditado que não há duas sem três. Em 2018, em ano de aperto, a Impresa vendeu a sua sede, em Paço de Arcos, e ficou como inquilino. Em 2022, recomprou ao banco a quem vendeu. E depois destes dois negócios o grupo de media anunciou hoje que admite vender de novo as suas instalações, naquela que será a terceira operação envolvendo o mesmo imóvel.

    Esta possibilidade surge em dia de ‘más notícias’: a Impresa, que detém a SIC e o Expresso, revelou prejuízos recorde no ano passado de 66,2 milhões, quando em 2023 tinham sido de 2,0 milhões. Com as receitas praticamente estagnadas, o grupo de media atribuiu a descida nos resultados líquidos sobretudo a uma revisão em baixa do valor do segmento televisivo (SIC), que gerou uma imparidade de 60 milhões de euros. Ou seja, o seu activo encolheu. Com a dívida líquida a aumentar de 115 milhões de euros para 131 milhões de euros, o grupo anunciou que admite “a possibilidade de realizar uma operação de venda e subsequente arrendamento das suas instalações em Paço de Arcos”.

    Interior do edifício-sede da Impresa em Paço de Arcos. / Foto: D.R.

    Este anúncio mostra que o edifício-sede do grupo de media fundado por Pinto Balsemão tem servido, nos últimos anos, como um ‘activo especulativo’, cuja posse ou venda serve para buscar dinheiro fácil. A primeira vez que a Impresa vendeu o edifício foi em Junho de 2018, depois de o ano anterior ter sido catastrófico em termos de resultados económicos. Com essa operação encaixou uma receita de 24,2 milhões de euros, em ‘dinheiro vivo’, através de uma operação de  ‘sale e leaseback’, ficando como arrendatário do edifício. Este negócio foi comunicado aos investidores, com a publicação de uma informação no site da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) e foi amplamente divulgada nos media.

    A solução de venda do edifício em 2018 foi também a escapatória depois de a Impresa ter falhado, no ano anterior, uma emissão de obrigações. Com BPI, o banco com ligação histórica ao grupo de Balsemão, a preferir não embarcar em novos financiamentos, e com a Caixa Geral de Depósitos a receber ajudas estatais, o grupo de Balsemão encontrou então no Novo Banco um novo amigo, apesar de a instituição bancária que sucedeu ao BES estar a receber injecções de capital dos contribuintes.

    Este negócio foi feito no mesmo ano em que a Impresa fez outra operação para tentar ‘salvar-se’ numa altura de crise, vendendo os seus ‘activos tóxicos’ da imprensa escrita – nomeadamente as revistas Visão e Exame – à empresa unipessoal de Luís Delgado, a Trust in News, que entretanto declarou insolvência e está em vias de implementar um plano de recuperação. Recorde-se que a compra das revistas à Impresa também foi financiada pelo Novo Banco, que arrisca ‘ficar a ver navios’ em relação aos 3,5 milhões de euros que emprestou a Delgado.

    Francisco Pedro Balsemão, presidente-executivo da Impresa / Foto: D.R.

    Contudo, como o PÁGINA UM noticiou, a Imprensa recompraria o edifício ao Novo Banco em 2022, através de um negócio secreto. Apesar de ser uma empresa cotada em Bolsa, a Impresa também não informou os investidores, através de um comunicado formal, sobre a alteração da propriedade do seu edifício-sede, nem sobre o novo empréstimo de longo prazo contratado com o Novo Banco. O negócio também foi estranho.

    Como a Impresa não dispunha de recursos financeiros próprios, comprou o edifício com recurso a um empréstimo do Novo Banco. Ou seja, a instituição bancária emprestou o dinheiro para lhe ser comprado um activo, assumindo, ainda por cima, menos-valias pela transacção do imóvel. O Novo Banco nunca explicou as vantagens deste negócio.

    Segundo a Certidão Permanente da matriz do edifício-sede da Impresa, a venda do imóvel pelo Novo Banco à Impresa Office & Service Share – Gestão de Imóveis e Serviços foi efectuada em 23 de Dezembro de 2022. Simultaneamente, foi registada uma hipoteca sobre o edifício em nome do Novo Banco.

    Registo predial do edifício da Impresa. Em quatro ano, a Impresa recuperou a sua sede com um empréstimo do vendedor, que ainda fez um ‘desconto’ (ou uma assumida menos-valia) de 4,6 milhões de euros.

    Os detalhes do negócio não foram divulgados publicamente, mas o valor da hipoteca foi de 19.607.540,03 euros de capital – ou seja, bem abaixo dos 24,2 milhões de euros da transacção de 2018. No registo surge ainda que o Novo Banco garantiu um financiamento máximo de até 27.450.556,04 euros, o que pode indiciar que houve outros compromissos assumidos entre as duas partes. Mas, apesar de ter ‘recuperado’ a posse efectiva da sede, a Impresa submeteu-se à taxa de juro anual aplicada ao empréstimo de 9%, a que acresce 3% de juros de mora em caso de atraso no pagamento de mensalidades.

    Mas houve outro episódio em torno das instalações da Impresa em Paço de Arcos. Em Setembro de 2020, a Impresa tentou persuadir a Câmara Municipal de Oeiras a vender-lhe um terreno adjacente às suas instalações, em Paço de Arcos. Mas a autarquia indicou que preferia vender o terreno em causa ao efectivo dono da sede da Impresa, que era o Novo Banco.

    Assim, Francisco Pedro Balsemão, presidente-executivo da Impresa, tentou negociar a compra do imóvel em nome do banco, para posterior transferência de propriedade para o grupo de media. Na proposta da Impresa, o Novo Banco compraria o terreno, com uma área de aproximadamente 2.000 metros quadrados e potencial construtivo de 800 metros quadrados, ficando garantido que a Impresa iria acabar por ficar dona do imóvel posteriormente. Segundo a Câmara de Oeiras, “o terreno em questão não foi alienado ao Novo Banco nem à Impresa”, tendo sido integrado numa venda em hasta pública.

    Em 2018, a Imprensa emitiu uma informação ao mercado, informando os investidores da venda do seu edifício-sede. Mas, em 2022, nenhum comunicado foi feito ao mercado. Para a CMVM, o mercado não precisava saber deste negócio e do novo empréstimo da Impresa através de um comunicado. A Impresa remeteu informações para os seus Relatórios e Contas, mas não se encontra nenhuma referência ou nota a explicar a operação de compra do seu edifício ao Novo Banco.

    Agora, com a Impresa a anunciar um prejuízo recorde e já sem activos tóxicos para despachar para uma nova empresa unipessoal como a que foi criada por Luís Delgado, o grupo põe na mesa fazer numa jogada de ‘engenharia financeira’, vendendo o edifício, possivelmente a um comprador que garantirá entrada de dinheiro ‘fresco’ nos cofres da empresa.

    Mas será mais um ‘remendo’ num grupo que opera num sector em crise sem fim à vista e com cada vez maiores fragilidades, como a submissão às exigências de contratos de parcerias comerciais que ‘ferem de morte’ a credibilidade jornalística e a confiança do público.

  • Documentário sobre comércio de sexo em tarde de domingo vale processo contra SIC Radical

    Documentário sobre comércio de sexo em tarde de domingo vale processo contra SIC Radical

    Não foi pelo buraco da fechadura, mas sim através de um inocente zapping de uma criança de 9 anos, que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) ficou a saber que a SIC Radical transmitiu num domingo à tarde de Novembro um curioso documentário sobre pornografia com linguagem explícita. Resultado: um processo de contra-ordenação para a Impresa por não acompanhar para adultos antes das 22 horas e sem sinal de aviso (‘bolinha vermelho’), arriscando uma coima de até 150 mil euros.

    Em causa esteve a transmissão do programa ‘Podre de Rica’ (Getting Filthy Rich, no original) pelas 18:00 do dia 17 de Novembro do ano passado, um documentário de 46 minutos conduzido pela apresentadora e modelo britânica Olivia Attwood, que explora o universo do chamado “entretenimento para adultos”. O programa acompanhou o dia-a-dia de produtores e actores , revelando o impacto da nova economia digital na monetização da pornografia. Ao longo da emissão, são apresentados testemunhos sobre a vida e os rendimentos de profissionais do sector, bem como imagens e diálogos de índole sexualmente explícita, embora sem exibição directa de genitália.

    A primeira temporada desta série de documentários teve, para além daquele então transmitido pela SIC Radical, programas dedicados aos lucros associados ao OnlyFans, às Camgirls e às Sugar Babies.
    A participação na ERC foi apresentada por um espectador que denunciou o conteúdo como “desadequado ao horário de exibição”, argumentando que qualquer criança poderia ser exposta “a algo que não entende ainda”. O participante referiu expressamente o caso da filha, de 9 anos, que ao fazer zapping terá encontrado o programa sem qualquer sinalização de aviso – “a bolinha vermelha no canto” –, tornando difícil, segundo o queixoso, proteger a menor de conteúdos que considerou sensíveis.

    A defesa apresentada pela SIC Radical centrou-se na classificação etária atribuída à emissão – 12AP –, que permite a exibição de temas como a sexualidade desde que acompanhados de aconselhamento parental para menores de 12 anos. Embora admitindo que a temática do documentário era “um pouco arrojada”, o canal televisivo do universo da SIC alegou que visava mostrar se a ‘venda’ de sexo online, era “uma atividade tão fácil e lucrativa como parece.” A SIC Radical diz que o documentário baseia-se cenas de nudez que “são muito rápidas, não explícitas, pouco frequentes e contextualizadas.”

    Apesar destes argumentos, a ERC considerou que a natureza e o teor da emissão exigiriam outro tipo de enquadramento. No seu relatório, o regulador aponta que o programa abordava de forma detalhada a produção de pornografia, com descrições e imagens que, embora sem pornografia explícita, continham elementos susceptíveis de influir negativamente na formação de crianças e adolescentes.
    E escalpeliza todas as expressões usadas, traduzidas, de “linguagem forte, expondo-as na sua deliberação.

    woman wearing white crew-neck t-shirt on bed holding silver MacBook

    A linguagem, ao longo de todo o programa, é de natureza sexualmente explícita, a título de exemplos; “consegues esguichar de propósito?”; “fazemos muito sexo mas sei que é um tarado. Adora sexo”; “ainda estás duro?”; “vocês os dois vão fazer sexo oral lá atrás”; “vais comê-la por trás”; “podes vir para aqui para eu ver a penetração”; “sentem uma grande pressão porque têm de manter a ereção e depois ter um orgasmo, durante horas”; “a primeira cena anal”; “só tive de masturbá-lo”; “vou deixar os meus mamilos bem duros como uma boa galdéria”; “consegues esguichar se não estiveres excitada?”; “faço muitos trios homem-mulher-mulher”; “foi um pouco estranho estar perto de alguém com as mamas de fora”.

    Por outro lado, o documentário é também ‘didáctico’ no sentido de haver entrevistados que explicam os mecanismos de monetização da pornografia digital, com destaque para um actor que “já foi nomeado para vários prémios do mundo de entretenimento para adultos, incluindo o de melhor pénis”, e que assinou contratos para a venda de réplicas do seu órgão genital.

    Visualmente, o documentário inclui imagens de mulheres a lamber objectos fálicos, cenas de masturbação, simulações de actos sexuais entre dois homens com as nádegas expostas, e representações explícitas de nudez. As genitálias são ocultadas por distorção de imagem, mas, segundo a ERC, “as posições dos corpos, interacções sexuais, gemidos, expressões faciais, permitem depreender que se trata de sexo, mais particularmente da venda de pornografia”.

    ERC

    Face a estes elementos, o regulador entendeu que a SIC Radical violou da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido, ao não garantir a difusão permanente de um identificativo visual apropriado e ao emitir o programa fora do período legalmente permitido para este tipo de conteúdos, ou seja, entre as 22h30 e as 6h00.

    A deliberação, embora reconheça a ausência de pornografia explícita nos termos legais, sustenta que o teor do programa justificava uma classificação mais restritiva e cuidados adicionais na exibição.

  • Universidade Lusíada vai investigar directo na CNN Portugal durante uma aula

    Universidade Lusíada vai investigar directo na CNN Portugal durante uma aula

    A Reitoria da Universidade Lusíada vai investigar a adequação do uso do tempo de uma aula por um professor para entrar ontem à tarde em directo na emissão da CNN Portugal. O caso inédito foi revelado num curto trecho gravado por um aluno do pólo do Porto daquela universidade privada, onde se vê, durante 20 segundos, Tiago André Lopes em simultâneo na emissão do canal televisivo da Media Capital e a falar ao monitor de um computador na sua mesa.

    A gravação mostra diversos alunos sentados e, numa parede da sala, um aviso: Silêncio. ESTAMOS EM DIRETO. O pequeno vídeo, com a legenda “Pov [point of view]: Estás em aula e o professor está em direto na CNN”, contava já com mais de 237 mil visualizações pelas 15h00 desta sexta-feira.

    De facto, Tiago André Lopes, um habitual comentador de política internacional na CNN Portugal, esteve ontem à tarde a comentar o Conselho Europeu Extraordinário numa emissão com alguns percalços devido a dificuldades de comunicação, que se iniciou às 14h23. O comentário em concreto, cujo trecho foi gravado por um aluno, decorreu entre as 14h25 e as 14h33, ou seja, durante nove minutos.

    Tiago André Lopes, licenciado em Comunicação Social com um doutoramento em Ciências Sociais, confirmou ao PÁGINA UM que fez ontem o comentário na CNN numa sala da Universidade Lusíada com alunos a assistir, mas que era “uma aula suplementar para realizar uma dinâmica pedagógica […] da unidade curricular de Organizações Políticas Internacionais”, acrescentando que o seu comentário “sobre uma reunião em curso no Conselho Europeu, que é um órgão político de uma Organização Internacional”, acabava por ser “matéria de aula”.

    O comentador da CNN Portugal diz também que não costuma “comentar durante as aulas”, por ser esse o acordo com o canal televisivo, defendendo que a sua entrada em directo ocorreu “antes do começo da aula”, propriamente dita, e teve “o consentimento de todos os alunos presentes”. E acrescenta que “se algum aluno tivesse objectado, o comentário não teria tido lugar”.

    Tiago André Lopes apareceu ontem por três vezes nas emissões da CNN Portugal, mas o canal televisivo ‘esqueceu-se’ de divulgar o comentário a partir de uma sala de aulas da Universidade Lusíada.

    O professor da Universidade Lusíada diz perceber que “a legenda que o aluno colocou, aluno esse que já pediu desculpas pela publicação do vídeo, dá a entender que a aula estaria em curso”, mas que “isso é apenas imputável a quem legendou mal aquele momento”, garantindo que “a aula começou mal terminou o directo” na CNN Portugal, ou seja, às 14h33.

    Esta aula de ontem da unidade curricular de Organizações Políticas Internacionais, leccionada por Tiago André Lopes, aparenta ter sido mesmo suplementar, uma vez que no horário semanal decorre às terças-feiras entre as 14h00 e as 16h00.

    Ainda em sua defesa, Tiago André Lopes diz que nem sequer costuma “levar portátil para as aulas” e que é “dos professores que gostam de livros em papel, pelo que fazer directos nas aulas não seria de todo possível”, sendo que o caso de ontem foi “excepcional”.

    Certo é que esta inaudita incursão de um comentador televisivo em plena sala de aula surpreendeu o próprio reitor da Universidade Lusíada, Afonso d’Oliveira Martins. Em declarações ao PÁGINA UM, diz que não houve “conhecimento prévio por parte dos órgãos competentes da Universidade” do uso do tempo de aula e de uma sala para a participação do docente num comentário televisivo em directo.

    Afonso d’Oliveira Martins diz ainda que, “em termos gerais, situações que se considerem extraordinárias devem ser sujeitas a autorização para que se possa averiguar a sua adequação”. E acrescenta que “a propósito do caso concreto, foi entretanto iniciado um procedimento de indagação, aguardando os respectivos resultados”.

  • Regulador dos media não pode esconder dados financeiros da IURD, diz parecer da CADA

    Regulador dos media não pode esconder dados financeiros da IURD, diz parecer da CADA

    Helena Sousa, ex-jornalista e presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), e os seus colegas do Conselho Regulador, não podem continuar a proteger a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), permitindo a ocultação dos dados financeiros daquela associação religiosa. Quem o diz é a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), em parecer aprovado após queixa do PÁGINA UM.

    Em causa está o impedimento da ERC em permitir o acesso aos documentos financeiros que a IURD – tal como todos as entidades e empresas detentoras de órgãos de comunicação social – está obrigada pela Lei da Transparência dos Media a enviar anualmente ao regulador. Sem qualquer sustentação legal, e contrariando as directizes do anterior Conselho Regulador, a equipa de Helena Sousa permitiu que a IURD, que tem sido representada pela poderosa sociedade Abreu Advogados, deixasse de divulgar os seus dados financeiros globais, passando a reportar apenas informações não validadas e relativas à sua actividade mediática.

    A mudança ocorreu sob a presidência de Helena de Sousa, sem qualquer deliberação formal, permitindo à IURD ocultar as movimentações financeiras das suas actividades globais, que, entre 2017 e 2022, envolveram 209 milhões de euros. A ERC justificou a decisão alegando que a actividade de comunicação da IURD seria “secundária”. Um argumento que não tem uma base factual: a igreja evangélica de origem brasileira detém, directa e indirectamemnte, 12 rádios, dois jornais e um canal televisivo (UniFé TV), incluindo os meios de comunicação da sua ‘holding’ Global Difusion, que acumulava dívidas de 58 milhões de euros e estava em falência técnica em 2022.

    Face à habitual recusa da ERC em permitir acesso a documentos administrativos, com atitudes de reiterada prepotência, o parecer da CADA acaba por revelar mais uma vez a postura obscurantista do regulador dos media – algo que se tornou recorrente e de uma impunidade desarmante. Com efeito, de acordo com o parecer da CADA, embora a ERC possa determinar aquilo que pode ser revelado publicamente, esse acto não impede o acesso a outra informação em sua posse, que venha a ser solicitada, por exemplo, por um jornalista.

    “Uma coisa é o cumprimento de deveres de divulgação activa de informação no âmbito das competências da ERC, enquanto reguladora das entidades que prosseguem atividades de comunicação social; outra coisa é o direito de acesso aos registos e arquivos da administração pública”, salienta o parecer da CADA, agora presidida pela juíza conselheira Maria do Céu Neves.

    Helena Sousa, presidente do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

    Na argumentação, a CADA salienta que “o exercício do direito de acesso aos arquivos e registos administrativos não se confunde, não exclui ou colide com os deveres de divulgação activa que impendem sobre a ERC – nem vice-versa”. Ou seja, o regulador dos media até tem liberdade de divulgar o que lhe apetece, mesmo sem uma base legal, mas não pode depois impedir que alguém queira aceder aos documentos originais, incluindo troca de correspondência entre as partes. A CADA destaca, de forma clara, que mesmo se os elementos financeiros globais da IURD não sejam divulgados pela ERC, “não deixa de ser acessível por qualquer interessado no quadro da LADA [Lei do Acesso aos Documentos Administrativos”.

    Este é mais um episódio de um absurdo caso envolvendo as dificuldades de acesso a documentos detidos pela ERC, uma entidade ironicamente criada pela Constituição para defesa da liberdade de imprensa e acesso à informação. O PÁGINA UM já se viu mesmo obrigado a recorrer ao Tribunal Administrativo para que o regulador disponibilizasse documentos, mesmo de forma contrariada. Extrajudicialmente, a CADA já se pronunciou por seis vezes sobre as atitudes de bloqueio por parte da ERC, sempre de forma desfavorável a esta entidade, conforme se pode ver aqui (1), aqui (2), aqui (3), aqui (4), aqui (5) e aqui (6).

    Após este parecer, a ERC pode decidir acatar ou não o parecer da CADA, porque não é vinculativo. Em todo o caso, sobre este caso da IURD, e no decurso de uma notícia do PÁGINA UM em 30 de Outubro do ano passado, a ERC está ainda a analisar uma queixa apresentada pela Abreu Advogados como representante da igreja evangélica. O mais curioso dessa queixa, por alegada falta de rigor, é que a notícia visada envolve a actuação à margem da lei da própria ERC, que assim poderá vir a decidir em causa própria.

    Foto: PÁGINA UM

    Saliente-se que a ERC tem poderes, que usa de forma arbitrária, para apreciar queixas sobre a alegada falta de rigor dos órgãos de comunicação social, cuja análise é conduzida de uma forma muito sui generis. O director do órgão de comunicação social é ‘convidado’ a pronunciar-se sem saber qual a acusação em concreto, e depois é elaborada uma deliberação crítica sobre a qual o Conselho Regulador aceita ou não uma reclamação posterior.

    Como estas deliberações da ERC não implicam uma penalidade, não são consideradas actos administrativos – são assim meros bitates (embora possam ser usados para descredibilizar jornais e jornalistas incómodos) –, nem sequer são passíveis de impugnação judicial.


    N.D. O PÁGINA UM usou uma fotografia de Helena Sousa na “Galeria de Imagens” da ERC, onde surge uma referência a ser obrigatória uma autorização por escrito para o seu uso. Mais uma vez a ERC exorbita as suas competências e poderes. A ERC é um organismo público e, como tal, está vinculada ao princípio da transparência da Administração Pública e ao direito constitucional de acesso à informação. Nos termos da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (Lei n.º 26/2016), os documentos detidos por entidades públicas – incluindo fotografias institucionais que documentam a sua actividade – são de acesso livre e podem ser utilizados sem necessidade de qualquer autorização prévia, salvo se estiverem protegidos por excepções legais devidamente fundamentadas, como questões de segurança, privacidade ou sigilo legal.

    Além disso, nos termos do artigo 8º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, os textos e documentos oficiais produzidos pela Administração Pública não são protegidos por direitos de autor. Fotografias institucionais que servem para ilustrar a actividade da ERC, ou os seus membros, não podem, portanto, ser restringidas com base numa alegada necessidade de autorização, tanto mais se forem expostas no seu site.

    A imposição de uma autorização prévia para a utilização destas imagens constitui uma tentativa ilegítima de controlo sobre a circulação de informação pública e não tem qualquer fundamento legal. O PÁGINA UM não reconhece qualquer legitimidade a esta exigência e não aceita estar condicionado ao uso de imagens institucionais públicas.

  • Jornal do Chega com ‘tratamento de favor’ do regulador dos media

    Jornal do Chega com ‘tratamento de favor’ do regulador dos media

    O Chega usufruiu de um ‘regime especial’ concedido pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social: apesar de não ter sequer jornalistas na sua Folha Nacional – o órgão de comunicação social em versão digital e impressa semanalmente –, o regulador permite ilegitimamente que ostente, na sua ficha técnica, um director (Nuno Valente), um director-adjunto (Patrícia Carvalho) e um subdirector (Ricardo Dias Pinto), além de um editor (Bernardo Pessanha). Ou seja, só ‘generais’ sem qualquer ‘soldado’. Assim, não surpreende que, apesar de actualizado diariamente, 97 das últimas 100 notícias, publicadas desde o dia 8 de Fevereiro, sejam ‘takes’ da Agência Lusa e apenas três são de ‘produção própria’, embora sem assinatura.

    A Lei da Imprensa, um diploma de 1999 com a sua mais recente alteração de 2015, estabelece explicitamente, na secção da “organização das empresas jornalísticas”, que “nas publicações com mais de cinco jornalistas o director [que tem sempre de existir] pode ser coadjuvado por um ou mais directores-adjuntos ou subdirectores, que o substituem nas suas ausências ou impedimentos”. Ora, a Folha Nacional nem um, quanto mais seis jornalistas para possuir essa estrutura.

    André Ventura, líder do Chega.

    Aliás, nem o seu director, Nuno Valente – um assessor videógrafo do Grupo Parlamentar do Chega –, não tem carteira profissional ou de equiparado, algo que não é obrigatório no seu caso, uma vez que a Folha Nacional é classificada, no âmbito da Lei da Impresa, um periódico doutrinário, como são os casos do Povo Livre (PSD), Ação Socialista (PS), Esquerda.net (Bloco de Esquerda) e Avante (PCP).

    Porém, ao contrário da Folha Nacional, nenhum dos outros órgãos de comunicação social considerados doutrinários por razões ideológicas – que se distinguem dos periódicos informativos por poderem ter um cunho ideológico assumido – têm mais do que o director no topo da sua estrutura, mesmo quando contam com jornalistas acreditados.

    Por exemplo, o Avante – o quase centenário jornal do PCP – tem apenas um director, Manuel Rodrigues, que tem o chamado cartão equiparado a jornalista (TE310), – não tem director-adjunto, mesmo se conta, na sua redacção, com quatro jornalistas acreditados: Gustavo Carneiro (apresentado como chefe de redacção), João Chaqueira (apresentado como “chefe adjunto”) e dois redactores, Domingos Mealha e Hugo Janeiro.

    Jornal ostenta um director, um director-adjunto e um subdirector, mas não tem jornalistas. Lei da Imprensa não permite, mas ERC fecha os olhos.

    Já a Esquerda.net – a publicação online do Bloco de Esquerda – menciona apenas na sua ficha técnica o nome do director, Luís Branco, também jornalista acreditado. Apesar da generalidade das notícias não estarem assinadas, com excepção daquelas da autoria do próprio director, tudo está dentro da legalidade: com menos de seis jornalistas, não há mais nenhum cargo de direcção.

    No caso da Ação Socialista, nada também a apontar. Há apenas um director – Porfírio Silva, ex-deputado socialista, sem título passado pela CCPJ, que no seu caso não é necessário – e mais duas pessoas na redacção: André Salgado e Mary Rodrigues, esta última jornalista acreditada.

    Quanto ao Povo Livre, semanário do PSD, não surge uma ficha técnica específica no site, mas a edição imprensa ostenta apenas o nome da sua directora, a ex-deputada Emília Santos. Ou seja, sem mais qualquer cargo de direcção.

    Contactada para esclarecer a legalidade da situação da Folha Nacional, a ERC – que costuma até fiscalizar a desconformidade dos logotipos, ameaçando com multas –, alega que  “nas publicação periódicas de natureza não jornalística não são exigíveis para os cargos de directores-adjuntos e subdirectores o cumprimento dos requisitos”, ou seja, a existência de uma redacção com mais de cinco jornalistas.

    Patrícia Carvalho é deputada do Chega e assume-se como directora-adjunta da Folha Nacional. A Lei da Imprensa não petmite.

    Contudo, na verdade – e apesar do regulador dos media, liderado agora por Helena Sousa, ser useiro e vezeiro em interpretações jurídicas rocambolescas –, a Lei da Imprensa é muito clara, ao explicitar que “nas publicações [independentemente de serem informativas ou doutrinárias] com mais de cinco jornalistas o director pode ser coadjuvado por um ou mais directores-adjuntos ou subdirectores, que o substituem nas suas ausências ou impedimentos”. E apenas remete para uma outra norma (artigo 19º) para dispensar a audição do conselho de redacção se os dirigentes de um periódico doutrinário mudarem ou indicarem o director e eventuais adjuntos. Convém dizer que a Folha Nacional não tem conselho de redacção, exactamente porque é uma publicação periódica com menos de seis jornalistas.

    Além disso, uma empresa ou entidade com uma publicação doutrinária é sempre jornalística se for periódica, como estipula claramente a Lei da Imprensa. Só não será jornalística se se tratar de uma publicação não periódica, classificando-se, nesse caso, a empresa como editorial. A única coisa que distingue as publicações doutrinárias (como a Folha Nacional e as dos outros partidos) das publicações informativas é o conteúdo e abordagem. No grupo das publicações doutrinárias, o objectivo predominante passa pela divulgação de uma ideologia ou credo religioso. Ou seja, podem fazer artigos jornalísticos – como fazem, claramente, o Avante e o Esquerda.net – ou divulgar as notícias da Lusa, como insistentemente faz a Folha Nacional.

    O PÁGINA UM consultou dois advogados que destacaram ser “absurda” a interpretação da ERC, que “baralha conceitos” da própria Lei da Imprensa. Isto porque “embora doutrinária a Folha Nacional é uma publicação periódica, logo jornalística, e assim, não tendo mais de cinco jornalistas, não pode ter directores adjuntos”, salienta um dos causídicos. “A classificação das empresas enquanto jornalísticas ou não é conferida pela periodicidade, e não por ‘achismos’”, acrescenta.

    Regulador dos media ‘baralha’ conceitos da Lei da Imprensa para ‘legalizar’ Folha Nacional.

    Outro dos juristas contactados pelo PÁGINA UM também salienta que, embora publicações doutrinárias possam funcionar sem jornalistas, isso “automaticamente impede-as de ter directores-adjuntos”, uma vez que nunca conseguirão cumprir o requisito do número mínimo de jornalistas para haver ‘ajudantes’ do director”.

    O PÁGINA UM insistiu junto da ERC para que fosse indicada em concreto a norma jurídica que permitia a Folha Nacional cumular cargos de direcção editorial, em violação da Lei da Imprensa, mas o regulador não respondeu ainda. O PÁGINA UM também decidiu, ao abrigo do seu direito editorial de obter comentários, colocar questões ao director da Folha Nacional, mas não obteve resposta.

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