Hoje, o Correio da Manhã, com difusão posterior pela CMTV, dirigido pelo jornalista Carlos Rodrigues, decidiu noticiar que a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista passou “cartão a ex-PJ cadastrado”, fazendo referência ao facto de essa pessoa se tratar de João Pedro de Sousa, que efectivamente obteve o título de Colaborador – título distinto do de Jornalista – a pedido do PÁGINA UM, e particularmente de mim.
O passado de João de Sousa não é segredo nem ele o esconde – e disso mesmo temos falado no podcast ‘A Corja Maldita‘, em que, com a minha moderação, ele participa com o advogado Miguel Santos Pereira. A sua experiência, como consultor forense, será de enorme utilidade para o PÁGINA UM, sobretudo em temas de Justiça, e particularmente no acompanhamento de julgamentos relevantes, como o dos Anjos vs. Joana Marques (a sua crónica inaugural teve mais de 140 mil leituras) ou o de José Sócrates. Nesta fase, João de Sousa recolherá informação e escreverá crónicas ou artigos de opinião.
Carlos Rodrigues, director editorial do Correio da Manhã e da CMTV, durante uma conferência em que a Medialivre prestou serviços à autarquia de Lisboa, usando jornalistas, a troco de quase 150 mi euros.
Tenho perfeita noção dos bastidores da imprensa (e dos incómodos causados pelas nossas notícias nos grupos de media) e da Justiça, e por isso das intenções deste tipo de notícias. Mas não deixa de me suscitar cinco perplexidades ter a notícia sido publicada no Correio da Manhã (CM), e difundida na CMTV, órgãos de comunicação social aos quais hoje se remeteu um pedido de direito de resposta, ao abrigo da Lei da Imprensa.
Primeira perplexidade: o CM foi o primeiro órgão de comunicação social a contar com João de Sousa como colaborador – justamente bem pago – ainda enquanto cumpria pena em 2015. Presumo que lhe reconhecia valor.
Segunda perplexidade: o título e texto assinado por Miguel Azevedo (que saberá, presume-se, a diferença entre “jornalista” e “colaborador”) denotam um tom claramente depreciativo, sugerindo indisfarçada oposição à reabilitação e reinserção social. Ao invés, até prova em contrário, não discrimino profissionalmente quem procura recomeçar com dignidade. João de Sousa foi libertado em 2018 e não teve qualquer condenação a partir dessa data, sendo reconhecido como consultor forense.
Terceira perplexidade: numa breve pesquisa encontra-se, entre os quadros da Medialivre, jornalistas com cadastro: Tânia Laranjo, Sónia Trigueirão, Ana Isabel Fonseca, Eduardo Dâmaso. A primeira destas jornalistas até já foi condenada ao pagamento de uma coima pela Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) por práticas discriminatórias. A nenhum destes jornalistas foi retirada a legitimidade de deter o título de jornalista — mesmo se o crime foi cometido como jornalista.
Quarta perplexidade: fui eu, enquanto director do PÁGINA UM, quem decidiu solicitar à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista a acreditação de João de Sousa como colaborador – e não como jornalista –, precisamente por uma questão de transparência, responsabilidade e acesso legítimo a fontes de informação. Ao contrário de outros, não temos ‘toupeiras’ nem ‘telhados de vidro’. A CCPJ limitou-se a aplicar a lei: negar-lhe a acreditação seria incorrer numa injustificada discriminação que seria legalmente inadmissível.
Quinta perplexidade: o CM, que recorre com frequência aos seus jornalistas para executar contratos de prestação de serviços, pagos por entidades externas — situação manifestamente incompatível com o Estatuto do Jornalista —, não parece indignar-se com esse seu modus operandi. Mais surpreende, pois, que seja precisamente este jornal a criticar a emissão pela CCPJ de um simples cartão de colaborador do PÁGINA UM, usando uma página inteira.
Há reguladores que regulam mal. Outros que não regulam. E depois há a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) — que se especializou numa nova modalidade institucional: regular às escondidas, pela calada, escamoteando deliberações, omitindo documentos, arquivando processos que nunca chegam a sê-lo formalmente.
A recente revelação — forçada pelas perguntas do PÁGINA UM — de que o processo de contra-ordenação ao jornal Público, por alegada violação da Lei do Tabaco, foi discretamente arquivado em Agosto passado sem qualquer deliberação pública, ilustra à saciedade o que se tornou prática no actual mandato de Helena Sousa: uma cultura de opacidade e conivência institucional com os grandes grupos de comunicação social.
Importa recordar que este processo nascera de uma deliberação formal da própria ERC, em Novembro de 2022, que considerava inequívoca a infracção cometida pelo Público, classificando-a como “muito grave”. O conteúdo em causa era um artigo promocional pago pela Tabaqueira, coincidente com o lançamento do produto de tabaco aquecido IQOS Iluma, e acompanhado de imagens típicas de publicidade camuflada, com a presença destacada do director-geral da empresa. Em termos legais, não havia dúvida para o anterior Conselho Regulador: tratava-se de publicidade ilícita, vedada expressamente pela Lei do Tabaco.
No entanto, com a mudança de presidência — e a ascensão de Helena Sousa, académica sem experiência jurídica ou percurso em órgãos de regulação —, o que era certo passou a nebuloso. Um processo formal, com deliberação prévia unânime e indícios de contra-ordenação foi eliminado por uma suposta “análise preliminar” da sua Unidade de Contra-Ordenação. E pior: sem qualquer explicação voluntária por parte da entidade que, por dever constitucional, deve garantir a liberdade de imprensa e o acesso dos jornalistas à informação.
Não é caso único. O PÁGINA UM tem sido forçado a recorrer à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) e aos tribunais para obter documentos que a ERC insiste em esconder. Mesmo após pareceres desfavoráveis, o regulador interpõe recursos, como se fosse parte interessada em proteger segredos que deveriam estar ao serviço da cidadania e da fiscalização democrática. Veja-se um caso recente em que, entre outros assuntos, o Tribunal Administrativo de Lisboa intimou a ERC a entregar ao PÁGINA UM todos os documentos associados com a negócio a venda do JN e TSF (entre outras publicações), cuja deliberação teve 78 rasuras inexplicáveis, apagando como confidencial questões relevantes.
Exemplo flagrante da falta de transparência da ERC: na autorização do estranho negócio da transmissão / venda de títulos da Global Media à Notícias Ilimitadas aspectos essenciais são escondidos com a palavra CONFIDENCIAL. O Tribunal Administrativo de Lisboa determinou que todos esses elementos deveriam ser acedidos pelo PÁGINA UM, mas a ERC recorreu para a instância superior, mostrando ser adepta do obscurantismo em negócios de media pouco claros.
Tenho já alguns anos disto para entender que se está perante uma estratégia deliberada da ERC de bloqueio informativo, dirigida especialmente contra jornalistas incómodos e meios não alinhados com os grandes grupos económicos que controlam a imprensa dita de referência.
A atitude da ERC no processo do Público mostra que a indústria do tabaco, cada vez mais refinada nas suas estratégias de marketing, usa agora os jornais como veículos de promoção “sustentável”, investindo em conteúdos patrocinados, participando em podcasts, colando-se à imagem de inovação tecnológica e responsabilidade social. Com a bênção da ERC, que em vez de sancionar práticas ilegais, arquiva processos às escondidas, transforma “contra-ordenações muito graves” em nada, e cala-se perante perguntas legítimas de jornalistas que fazem o seu trabalho.
A decisão de não penalizar práticas de publicidade sub-reptícia proibidas por lei junta-se à forma como a ERC tem vindo a aceitar, com passividade cúmplice, contratos de parcerias promíscuas entre grupos de media, empresas privadas e até entidades públicas. As coimas, quando existem, são simbólicas — um teatro jurídico que apenas confirma que, em Portugal, o crime compensa. E é por isso que temos grupos de comunicação social em crise financeira crónica, como a Trust in News, a Global Media ou mesmo a Imprensa, que sobrevivem à custa de publicidade institucional, parcerias obscuras e compadrios com o poder político e económico.
Se a credibilidade da imprensa anda pelas ruas da amargura, a culpa primordial está precisamente na ERC e no seu Conselho Regulador. Um regulador que se mostra constituído por gente sem qualidade, sem coragem e sem noção da sua função constitucional.
Helena Sousa, presidente da ERC está ao serviço da liberdade da imprensa ou de interesses pouco claros?
Ontem, a demissão da presidente Helena Sousa e dos seus comparsas talvez fosse suficiente. Hoje, perante o que se sabe — arquivamentos secretos de processos de contra-ordenação e recusa deliberada de prestar contas —, já nem a demissão basta. Impõe-se, no mínimo, uma auditoria externa e independente ao funcionamento da ERC. E, quiçá, uma responsabilização jurídica dos seus membros, caso se confirme que violaram normas legais e administrativas essenciais.
A ERC é hoje um caso paradigmático de decadência institucional. Quando o regulador adopta os tiques de prepotência, quando abdica do seu dever de fiscalização, quando protege os fortes e tenta até silenciar os que investigam, vemos que está em curso não uma regulação, mas uma rendição. E é a democracia que fica mais pobre. Porque uma imprensa livre só existe quando há reguladores livres — e não cúmplices — dos poderes que deveriam escrutinar.
No Dia de Portugal, a 10 de Junho, a escritora Lídia Jorge proferiu em Lagos um discurso em que evocou, além da multiculturalidade e da miscigenação do povo português ao longo da História, o papel decisivo de Camões na fixação de uma “língua nova à altura de um pensamento novo”. Mais do que tudo o resto, subscrevo a ideia de que aquilo que verdadeiramente marca Portugal é ser uma Nação — algo que se distingue de um simples país por deter um património que transcende as fronteiras da biografia ou do território.
Mas mais do que o conceito de Nação, atrai-me o conceito de portugalidade, porque esse é o traço mais subtil e profundo que molda o nosso modo de ser e de resistir — um sentimento que não cabe em estatutos nem se impõe por decreto. E que começa na língua, mas se reflecte, ou deveria reflectir-se, sobretudo no nosso olhar irónico perante o poder, na resistência ao absurdo, na memória entranhada das partidas e regressos, no génio de reinventar-se com poucos meios e no talento invulgar de desconfiar de tudo, inclusive de nós próprios. E isso tem-se perdido.
Tem-se perdido porque se esvaziou o orgulho em promover Portugal como berço de uma língua com História. Mas o que mais dói é que esta erosão não resulta de ataques externos ou de falantes estrangeiros que tropeçam nos seus sons e ritmos — mas sim de gestores públicos, decisores políticos e instituições nacionais que tratam a língua como um adereço cerimonial ou, pior, como um entrave à modernidade cosmopolita.
Veja-se, por exemplo, o que fez recentemente a AICEP, ao conceber o pavilhão de Portugal para a Expo 2025 em Osaka, omitindo ostensivamente o uso do português em quase toda a exposição — como se a identidade nacional se limitasse a branding, fado, cortiça e arquitectura de interiores.
Mas o caso mais gritante — e de consequências directas — passa-se com a RTP, televisão pública que todos os portugueses são forçados a financiar. Por via da factura da electricidade, os contribuintes canalizaram, nos últimos cinco anos, quase mil milhões de euros para uma empresa que tem, entre as suas obrigações legais, uma missão clara: promover e difundir a língua portuguesa, independentemente de audiências, quotas de mercado ou modas.
Se a RTP é culta e adulta, como se proclama, menos desculpável é o incumprimento na promoção da Língua Portuguesa e da produção audiovisual nacional.
Ora, aquilo que se exige à RTP não é um capricho cultural nem uma imposição ideológica. É uma norma legal expressa, consagrada no artigo 44.º da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido, que estabelece que os canais com cobertura nacional, como a RTP2, devem emitir, anualmente, pelo menos 50% da sua programação em língua portuguesa, excluindo publicidade, televenda, autopromoções e serviços de teletexto. E, dentro dessa quota, pelo menos 20% deve corresponder a obras criativas produzidas originariamente em português, contando-se até às cinco primeiras exibições de cada obra.
Não são meras orientações: são obrigações legais que visam preservar o espaço público audiovisual como território da nossa Cultura. Deveriam ser consideradas sacrossantas.
Porém, pelo menos desde 2017, a RTP2 tem incumprido sistematicamente ambas as exigências. Durante cinco anos consecutivos, pelo menos, por agora, até 2021, falhou o mínimo de 50% de programação em português e nunca atingiu os 20% de obras criativas originais. Tudo documentado em relatórios públicos da ERC. E, ainda assim, nenhuma consequência prática.
Num país decente, uma infracção sistemática como esta teria consequências óbvias: demissão da administração, apuramento de responsabilidades políticas e aplicação de sanções efectivas. Mas em Portugal, as obrigações legais são tratadas como metáforas regulamentares — enunciados solenes sem qualquer valor operativo. As normas existem, sim, mas para parecerem existir. E a ERC, em vez de agir com firmeza, entretém-se há anos a “instar”, numa coreografia burocrática onde a indignação nunca chega e a penalização nunca dói.
Por cada infracção anual por incumprimento dos limites mínimos de emissão de programas em língua portuguesa e de produção nacional, a RTP poderia ser punida com uma coima de até 200 mil euros. Considerando que se verificaram dois incumprimentos por ano, o valor acumulado poderia, em teoria, ascender a 400 mil euros. Mas a ERC, magnânima e indulgente, decidiu sancionar de forma simbólica: em 2023, aplicou uma multa de 15 mil euros, e mandou o INBAN para a RTP pagar. E no mês passado, numa deliberação tornada pública esta semana, subiu generosamente a fasquia para… 16 mil euros.
Isto não chega para pagar dois episódios de uma série de segunda linha, e nem atinge o bolso e o cargo dos administradores e directores de programa da RTP. E é uma quantia que nem sequer incomoda uma estrutura mastodôntica com orçamento anual a rondar os 200 milhões. É, na prática, uma palmadinha indulgente, um convite à reincidência, uma forma discreta de arquivar o incómodo. Como se dissesse: “Sim, falharam, mas enfim… todos falham. Continuem.”
Helena Sousa, presidente da ERC: ainda se concede um desconto na multa pelo incumprimento recorrente dos níveis de promoção da Língua Portuguesa por parte de uma empresa pública que recebe quase 200 milhões de euros dos consumidores de electricidade.
Portugalidade? Isso parece uma maçada para a RTP — mas também uma irrelevância para a ERC, que aplica multas como quem distribui advertências escolares a alunos preguiçosos. E, para os portugueses — esses que financiam tudo isto através da factura da luz —, uma palavra vazia, que serve para discursos floridos no 10 de Junho, mas que, no dia seguinte, já ninguém quer levar a sério. Muito menos quem devia levá-la à letra.
E, com igual certeza, haverá mais um discurso, em português irrepreensível, a entoar loas cerimoniosas à Portugalidade — enquanto, nos bastidores, se continua a tratá-la como um empecilho dispensável.
Vem nos manuais, como ensinamento quase sagrado: a agenda setting — esse processo pelo qual determinados temas ganham centralidade no debate público — não é neutra. Depende, antes de mais, de quem fala, de como fala, e sobretudo de quem tem acesso privilegiado aos meios de comunicação.
Num cenário ideal, a imprensa funciona como guardiã da relevância: um watchdog vigilante que impede que o ruído da propaganda se sobreponha às necessidades reais dos cidadãos. A imprensa, nesse modelo, não apenas filtra os temas da agenda política, mas molda-os segundo critérios de interesse público — e não segundo interesses comerciais ou corporativos.
Hoje o ‘cão de guarda’ dorme ao colo de quem deveria vigiar, ronrona quando lhe estendem uma ração publicitária e ladra apenas quando a farmacêutica estala os dedos. E sobretudo no sector da Saúde, onde as emoções são tão inflamáveis quanto os milhões em jogo. Nos últimos anos — e muito em especial durante a pandemia da covid-19 — assistimos a uma inversão perversa do papel da comunicação social. Longe de agir como mediadora independente, a imprensa tornou-se co-agente de um conluio entre interesses privados (sobretudo da indústria farmacêutica), entidades reguladoras capturadas e ministérios complacentes. Ao invés de fiscalizar, participou. Ao invés de questionar, amplificou. Ao invés de desconfiar, vendeu.
Os media têm vindo a abdicar, cada vez mais, do seu papel fiscalizador para assumirem o de arautos e correias de transmissão de campanhas comerciais. Durante a pandemia, esse fenómeno atingiu o paroxismo: testes vendidos como salvação, vacinas endeusadas como tótem da civilização, fármacos experimentais glorificados antes mesmo de qualquer avaliação crítica.
O Ministério da Saúde, os reguladores e uma parte significativa da comunidade médica — transformada em figurino de publicidade institucional — pactuaram, em aliança obscena, com este novo regime sanitário-mediático. Aquilo que se seguiu foi previsível: venderam-se vacinas e testes como quem vende electrodomésticos num canal de telecompra, com médicos mercenários a apresentarem o produto e jornalistas a assegurarem que não haveria espaço para dúvidas nem para alternativas.
Alternativas essas que, ironicamente, foram diabolizadas não por falta de provas científicas, mas por excesso de interesses. Veja-se a ivermectina, cujo debate foi abafado com histeria moralista, enquanto se publicavam estudos que, mesmo sem conclusões definitivas, mereciam consideração científica, como se pode observar nesta meta-análise publicada já este ano no Annals of Medicine and Surgery.
Em 2020, a jornalista Filipa Traqueia, actualmente no jornal Expresso, achou por bem dissertar no Polígrafo sobre a (in)utilidade da vitamina D, usando como fonte de informação o pneumologista Filipe Froes, um dos médicos com maiores ligações mercantilistas à indústria farmacêutica, conselheiro da DGS e da Ordem dos Médicos e ‘guru’ para a comunicação social durante a pandemia.
E sobretudo veja-se o caso da vitamina D, com provas acumuladas sobre o seu papel imunológico, transformada em suplemento menor por não trazer dividendos a multinacionais. Afinal, há mais lucro em administrar fármacos novos a milhões do que em distribuir sol e bom senso. Logo no início da pandemia, esse arauto do Jornalismo e da Ciência — estou a ironizar — chamado Polígrafo (e seguido por outros) tratou logo de menorizar a utilidade da vitamina D na prevenção e tratamento da covid-19. Isto, claro, com a imprescindível ajuda de um dos maiores mercenários da indústria farmacêutica, Filipe Froes.
Hoje, sobre a covid-19, sabe-se que “níveis baixos de vitamina D aumentaram o risco de infecção entre 1,26 e 2,18 vezes, o risco de doença grave entre 1,50 e 5,57 vezes, o risco de admissão em unidades de cuidados intensivos (UCI) em mais do dobro, e o risco de morte entre 1,22 e 4,15 vezes”, citando ipsis verbis as conclusões de uma meta-análise publicada este ano na Nutrition Reviews, da prestigiada Oxford Academic.
Mas se a pandemia foi um campo fértil para este jornalismo de parceria — entre aspas e sem ironia possível —, os anos que se seguiram não mostraram arrependimento. Pelo contrário, refinaram-se os métodos, disfarçaram-se melhor os conluios, construíram-se narrativas com roupagens de ciência e compaixão.
A nova fronteira de conquista são as doenças raras, sobretudo em idade pediátrica: um terreno fértil para comover corações, amolecer decisões orçamentais e justificar tratamentos a preços pornográficos. O objectivo é simples: quanto mais rara for a doença e mais jovem o doente, mais fácil será colocar o fármaco na agenda pública. Basta um caso mediático, uma associação de pais com boas relações, uma imprensa dócil e, claro, um ex-director de farmacêutica agora estrategicamente colocado numa comissão do Infarmed ou em cargo político com acesso ao Orçamento.
O caso ontem revelado pelo PÁGINA UM, sobre a entrada na Secretaria de Estado da Gestão da Saúde de um quadro da farmacêutica Sanofi, que negociou a compra de anticorpos monoclonais contra o Vírus Sincicial Respiratório (VSR), é paradigmático. A doença, cuja mortalidade é inexistente em Portugal, foi promovida à categoria de emergência sanitária. Resultado? Vinte milhões de euros em compras públicas para imunizar todos os recém-nascidos, incluindo os que nunca estariam em risco. O produto é caro, a doença tornou-se mediaticamente “fofa” — por força das conferências e notícias sobre o tema, mercadejadas pela imprensa — e o argumento parece inatacável: salvar alguns bebés do sofrimento e trauma de um eventual internamento. O agenda setting resulta nisto.
Quem ousará pôr travão, redefinindo prioridades? A imprensa — cúmplice, dependente e indiferente — não. As sociedades médicas, muitas delas sustentadas por apoios da indústria, também não. E os decisores políticos, alimentados pelo vaivém das portas giratórias entre Estado e farmacêuticas, muito menos.
Francisco Gonçalves, ex-Sanofi, e Ana Paula Martins, ex-Gilead: as ‘portas giratórias’ entre as farmacêuticas e o Ministério da Saúde.
Enquanto isso, o que sobra da saúde pública degrada-se em silêncio. Urgências encerradas. Hospitais saturados e mal equipados. Jovens médicos desmotivados e explorados, ao passo que as elites clínicas fazem fortuna acumulando salários públicos e avenças privadas. Listas de espera que se arrastam até ao absurdo. E, cereja pútrida no cimo do bolo, até mesmo doenças associadas à água potável e ao saneamento — ou à falta deles — a matarem 525 pessoas no ano de 2023 em Portugal.
Este número degradante foi publicado ontem discretamente pelo INE, sob a forma de “taxa de mortalidade devida a fontes de água insalubre ou a condições de saneamento e higiene deficientes ou inexistentes por 100.000 habitantes” (vd.aqui). Destas 525 mortes em 2023, três terão sido crianças com menos de 5 anos — portanto, mais do que mata o VSR. Em 2010, estes problemas sanitários tinham sido a causa de 116 óbitos, nenhum dos quais de crianças. Ninguém, na imprensa mainstream, que tem dezenas e dezenas de jornalistas, pegou no assunto. Tal como ninguém fez eco da notícia do PÁGINA UM em Setembro do ano passado onde já se revelava essa vergonhosa tendência de crescimento.
Sobre isto não há reportagens de abertura de telejornal? Onde está a indignação? Onde estão os editoriais de fundo?
Evolução da mortalidade por grupos etários entre 2010 e 2023 para doenças associadas a fontes de água insalubre ou a condições de saneamento e higiene deficientes ou inexistentes. Fonte: INE. Cálculos: PÁGINA UM com base na taxa de mortalidade e estimativas anuais da população por grupos etários.
Não estão. Porque essas mortes, por insalubridade e desleixo, não geram publicidade, nem contratos de venda de fármacos, nem parcerias. São mortes pobres de interesse, sujas de realidade. E dessas, a Senhora Ministra da Saúde, ex-Gilead, e o Senhor Secretário de Estado da Gestão da Saúde, ex-Sanofi, não estão para aí virados, porque a imprensa também não os faz virar para aí. Aquilo que interessa mesmo é vender fármacos, porque basta um contrato, enviar um camião com os medicamentos salvíficos (ou não tanto) e fazer a transferência bancária com o dinheiro dos contribuintes para os cofres dos accionistas das farmacêuticas.
Sem os chatos dos jornalistas watchdogs, agora amestrados em petdogs, o mundo tornou-se distópico: sobrevivemos sem noção de que a Saúde Pública serve quase só para, com contínuos negócios, alimentar uma contínua dependência dos fármacos do sector farmacêutico, que nos salvarão sempre, excepto prova em contrário, que nunca se procurará.
Vivemos em tempos perigosos para o pensamento. Tempos de lápis azul digital, de fogueiras morais disfarçadas de virtude cívica, de censores de toga que não se chamam Torquemada mas se julgam apóstolos da redenção social. Tempos em que, dos jornais aos tribunais, passando por grupos de puritanos ideologicamente diversificados — com o zelo puritano dos convertidos —, se decide quem pode ou não fazer humor, quem pode ou não rir e, sobretudo, de quem se pode ou não fazer troça.
A condenação do humorista brasileiro Léo Lins a mais de oito anos de prisão, por fazer piadas, marca um momento histórico sinistro — não apenas no Brasil, mas no mundo civilizado que supostamente defende a liberdade. Léo Lins foi acusado de “racismo recreativo”, um neologismo ideológico que traduz uma ideia perigosa: a de que o riso é admissível apenas quando sancionado pelos dogmas do politicamente correcto. Um riso domesticado, asséptico, higienizado — como se a função do humor fosse reforçar consensos em vez de os questionar.
Léo Lins
O caso de Léo Lins não deve ser olhado de forma isolada. Representa o sintoma máximo de uma metástase que alastra: a ideia de que as palavras ferem como punhais, que piadas são crimes, que perpetuam preconceitos e estereótipos, que a ironia é perigosa se não vier acompanhada de uma cartilha de inclusão. O humor sempre foi uma forma de transgressão simbólica. A sua função, desde Aristófanes aos Monty Python, passando até pelo nosso Gil Vicente, não é confortar nem elogiar, mas desestabilizar. Rir do poder, das convenções, dos dogmas — e também das fragilidades humanas. O humor é o último reduto da liberdade de pensamento porque recusa ser domesticado. A democracia não pode querer domesticar o humor, qualquer que ele seja, mesmo que se trate de uma má piada.
Mas essa liberdade está agora em risco porque se está a impor uma nova moral que recusa a transgressão. Cada grupo social, cada identidade, cada tribo autoproclamada ofendida exige imunidade à crítica e santidade de tratamento. E quando todos exigem ser tratados como santos, o mundo torna-se um imenso altar de porcelana — onde ninguém ousa mexer sob pena de blasfémia. A consequência é terrível: o humor deixa de ser arte e torna-se liturgia. Não se pode rir de um judeu, de um indígena, de um obeso, de um deficiente, de uma mulher, de um transexual — e não tarda, não se poderá rir sequer de um banqueiro, de um político, de um padre ou de um juiz. Porque todo o riso, mesmo o mais leve, será interpretado como violência simbólica.
Este moralismo não nasce da bondade — nasce de um desejo de controlo. Da vontade de impor o silêncio àquilo que perturba, àquilo que ironiza ou rasga o véu da perfeição socialmente encenada. E o problema não é a necessidade de defesa das minorias. O problema é a sua canonização — e a transformação da crítica, do sarcasmo e da caricatura num acto sacrílego.
Pergunto-me: que escreveria hoje Gil Vicente? Ou melhor: que fariam hoje a Gil Vicente, se escrevesse agora aquilo que escreveu no século XVI?
O dramaturgo português, pai do teatro em língua portuguesa, escreveu há mais de 500 anos peças onde ridicularizava padres libidinosos, almocreves aldrabões, prostitutas sem escrúpulos, velhas devassas, judeus gananciosos, frades desonestos, corregedores corruptos, sapateiros trapaceiros e, sobretudo, a falsa santidade dos que se julgavam virtuosos. A sua obra-prima — Auto da Barca do Inferno — é um desfile de estereótipos: o frade leva consigo a amante Florença; o judeu tenta comprar indulgência; o sapateiro gaba-se da sua religiosidade enquanto vende calçado falsificado; o cavaleiro quer entrar no Céu porque morreu em combate, esquecendo-se dos seus pecados de soberba e opressão. É o julgamento universal, sim, mas feito com escárnio e maldizer.
Praticamente todas as personagens vicentinas seriam hoje canceladas à primeira leitura. Representar o Frade seria tido como ofensa à fé católica. A Florença, exemplo flagrante de objectificação misógina. O Judeu, manifesto de antissemitismo. O Almocreve, caricatura abjecta de classe. A Velha do Auto da Cananéia, puro idadismo intolerável. A moça de A Sibila Cassandra, mais um caso de misoginia estrutural. Os pastores e vaqueiros, alvo de acusação por ridicularização grotesca das populações rurais. E, inevitavelmente, algum zelador académico denunciaria Gil Vicente por exercer “violência simbólica interseccional”.
Aquilo que hoje passa por sensibilidade é, na verdade, censura travestida de virtude. A arte, incluindo a ficção, está a perder o direito de ofender. E até o humor está a perder o direito de errar. Porque todo o erro é lido como malícia, toda a sátira como agressão, toda a caricatura como opressão.
É certo que há limites — sempre houve. Mas esses limites eram antes atribuídos pelo bom senso, pelo gosto, pela reacção do público — pela sociedade no seu todo, não por um tribunal inquisitorial. Quando um juiz define o que é aceitável no humor, o riso morre. E quando o riso morre, nasce o medo. O medo de escrever, o medo de representar, o medo de rir.
Chegamos à conclusão de que Gil Vicente viveu, afinal, com mais liberdade do que os artistas de hoje. Escreveu as suas peças na transição entre a Idade Média e o Renascimento, quando Portugal ainda não conhecia a Inquisição formal — e mesmo depois desta surgir, o seu génio sobreviveu porque o ridículo era aceite como forma de crítica social. Hoje, porém, não vivemos um Renascimento, mas aparentemente uma nova Idade das Trevas, onde os censores não queimam livros — cancelam ou prendem pessoas.
Eis a hipocrisia do nosso tempo: grita-se liberdade enquanto se ergue um muro de vigilância moral à volta de cada palavra. Dissimula-se a censura com o pretexto da inclusão. E, enquanto isso, o humor, que é um acto de coragem, torna-se um acto de risco judicial.
Os novos inquisidores têm medo do riso porque sabem que ele desmonta as verdades absolutas. Rir de alguém não é odiá-lo — é reconhecê-lo como humano. A sátira aproxima mais do que afasta. Vivemos um tempo de pseudohipocriasia: essa mistura tóxica de hipocrisia e exigência histérica de perfeição, que quer proteger os indivíduos do mundo em vez de os preparar para ele.
Se Léo Lins fosse condenado por incitar à violência, à perseguição, ao ódio concreto, não haveria polémica. Mas foi condenado por palavras ditas num espectáculo de comédia — por piadas. E isso deve aterrorizar-nos, porque o que hoje se aplica ao humorista, amanhã aplicar-se-á ao cronista, ao romancista, ao jornalista, ao historiador.
O problema do nosso tempo não é a ofensa — é a intolerância a qualquer dissonância. Não é a violência das palavras — é a fragilidade de quem se recusa a ouvi-las. E, quando a fragilidade se transforma em arma de poder — então sim, já não rimos. Trememos.
Numa postura de transparência que sempre me impus no início do projecto do Página Um, em finais de 2021, apresentamos e divulgamos os resultados financeiros de 2024da microempresa que gere este jornal. Quando os vejo, e tendo presente tanto os contratos despesistas do Estado como os balanços catastróficos das grandes empresas de media em Portugal, não posso deixar de sorrir — mas é um sorriso com amargura.
O PÁGINA UM conseguiu, em 2024, mais um milagre. Sem publicidade. Sem parcerias comerciais. Com acesso livre a todos. Recebemos mais de 61 mil euros em donativos de leitores generosos e conscientes. Parece muito dinheiro — e é, tendo em conta o panorama actual da imprensa —, mas não é suficiente. O nosso orçamento mensal ronda os 5.000 euros, valor que cobre os custos operacionais do site, comunicações, despesas logísticas, renda da redacção, e o pagamento — em montantes que envergonhariam qualquer tabela sindical — de dois jornalistas fixos. Não há desperdício. Não há luxos. Não há salários dourados.
Todos os dias, ao consultar o extracto bancário do PÁGINA UM, agradeço em silêncio cada apoio que surge. Só a falta crónica de tempo — esse tempo que se gasta a investigar, confirmar, redigir, editar — impede que cada contributo tenha o agradecimento personalizado que merece. Mas todos os nossos apoiantes sabem que este jornal não seria possível sem eles. E sabem também que nunca fizemos dívidas, nunca apresentámos prejuízo.
Com um capital social de apenas 10 mil euros, a empresa que detém o PÁGINA UM cumpre religiosamente todas as obrigações fiscais e sociais. O único valor registado no passivo de 2024 referia-se ao IRC — que, aliás, já está pago. Temos orgulho nesse rigor. Somos pequenos, sim, mas somos íntegros.
Esse rigor é também o que nos permite apontar o dedo à promiscuidade e à irresponsabilidade reinantes noutros lados da imprensa. Veja-se o caso paradigmático da Trust in News. Com o mesmo capital social de 10 mil euros, conseguiu, não se sabe bem como, manter uma operação com mais de duas centenas de empregados — mas acumulou também um passivo superior a 30 milhões de euros, dos quais metade são dívidas ao Fisco e à Segurança Social. E o seu dono, Luís Delgado, continua serenamente a acumular dívida, enquanto atira a credibilidade do jornalismo português para a sarjeta.
No PÁGINA UM, recusamos esse caminho. Preferimos não crescer a qualquer preço. E essa decisão tem custos. Apesar de tudo aquilo que conseguimos construir nos últimos três anos — credibilidade, impacto, notoriedade — há uma frustração que persiste nos números. Temos hoje cerca de meio milhar de apoiantes regulares, que nos financiam com o que consideram justo e possível. É, na prática, a aplicação espontânea e honesta do conceito económico de willingness to pay — a disposição individual a pagar por um bem imaterial que se reconhece como valioso.
Esse princípio, aliás, é uma viagem à raiz do mais puro e nobre jornalismo: um contrato de confiança entre quem informa e quem quer ser informado com rigor, isenção e coragem. Não temos paywalls. Não exigimos quotas obrigatórias. Confiamos no julgamento dos leitores. E por isso cada euro doado vale mais do que mil de publicidade: é uma demonstração de respeito mútuo.
Mas os desafios são reais. O crescimento das visitas — temos tido sistematicamente mais de 300 mil acessos mensais, chegando nalguns meses a ultrapassar os 400 mil — traz consigo uma exigência acrescida. Chegam-nos denúncias sérias, sugestões fundamentadas, propostas de investigação com potencial noticioso. E nós, por falta de meios humanos, por absoluta escassez de tempo, não conseguimos sempre responder. Sabemos o quanto isso é frustrante para os leitores. É também frustrante para nós.
Estamos, pois, num dilema. Não queremos desarmar. Mas temos consciência de que será cada vez mais difícil sustentar um projecto que se recusa a vender a alma, mas que está a exigir-me os limites. Precisamos de encontrar formas complementares de financiamento, para conseguir aumentar uma redacção que tem limites físicos, sem ceder um milímetro nos princípios que nos trouxeram até aqui. E a todos os que nos leem, vos deixo uma garantia: no dia em que sentir que a independência jornalística do PÁGINA UM está em risco de ser trocada por sobrevivência, será também o dia em que encerrarei este projecto.
Mas esse dia não chegou. e nem quero que chegue — se continuarmos a merecer a confiança dos nossos leitores. Por isso, este é também um apelo: continuem connosco. Ajudem-nos a resistir. Acreditem que vale a pena fazer jornalismo livre, mesmo num país pequeno e com tantos interesses instalados. E saibam que, enquanto tivermos forças, estaremos aqui. Porque há coisas que ainda precisam de ser ditas. E, mais importante ainda, há verdades que ainda precisam de ser contadas.
Portugal vive hoje sob um regime político que se apresenta como democrático, mas que já não o é. Persistem as eleições, os parlamentos, os jornais, os partidos, os discursos inflamados na Avenida da Liberdade para comemorar o 25 de Abril. Não há perseguições nem presos políticos. Mas falta-lhes todo o resto. Falta já a substância.
A democracia portuguesa – e, por extensão, a de toda a União Europeia – tornou-se um teatro de sombras, onde os actores se movimentam obedientes a um guião traçado por interesses supranacionais, alheios à vontade popular. A liberdade política esvai-se sem tiros nem quarteladas, numa erosão subtil, mas implacável, em que o cidadão comum é reduzido a figurante.
Gouveia e Melo com Isaltino Morais.
Tal como em Matrix, os portugueses continuam a acreditar que vivem numa democracia porque ainda votam, ainda discutem política, ainda protestam de vez em quando. Mas já não mandam. Já não decidem. Já não influenciam. O poder efectivo – aquele que determina o rumo da Economia, os modelos de governação, os critérios de financiamento, as regras sociais, os limites da acção individual e colectiva – reside noutras mãos. Mãos frias, cinzentas, instaladas em Bruxelas, Estrasburgo e Frankfurt. Mãos de burocratas não eleitos, ou eleitos por cliques governamentais sem qualquer representação directa de vontades nacionais. A Comissão Europeia, hoje desprovida de qualquer sentido de solidariedade ou humanismo, tornou-se uma instância autocrática que olha para os cidadãos como carne para canhão, peças sacrificáveis num tabuleiro de xadrez onde só importa proteger o rei e os bispos.
Onde antes se vislumbrava um projecto de desenvolvimento económico e social, temos agora um modelo de gestão tecnocrática e autoritária, que invoca a “governança” para justificar a opressão fiscal, a vigilância digital, a neutralização da dissidência e o esvaziamento do Estado-Nação. Em nome da estabilidade, da transição ecológica, da saúde pública ou da “resiliência”, tudo é permitido – menos resistir.
A comunicação social mainstream, falida e dependente cada vez mais do ‘oxigénio’ das corporações e do Estado – porque os seus clientes tradicionais, os leitores, já não lhe concedem a credibilidade e o valor económico de outrora –, traiu os seus princípios. Neste novo cenário, deixou de ser watchdog para ser o petdog, abanando a cauda a cada migalha do poder.
Portugal, outrora nação soberana, é hoje um protectorado sem identidade política – mais submisso aos ditames dos comissários europeus do que o foi à Coroa espanhola entre 1580 e 1640. A diferença é que, ao menos, o domínio filipino não disfarçava a sua natureza. Hoje, os nossos dirigentes sorriem, assinam, bajulam e até agradecem por sermos tutelados. E não são apenas os burocratas estrangeiros os culpados: são, sobretudo, os nossos próprios políticos, que cedo perceberam que em Bruxelas há mais poder, mais visibilidade e melhores poisos do que em São Bento. De Durão Barroso a António Costa, temos assistido a uma sucessão de ambiciosos que trocaram a lealdade à pátria pela ascensão nas hierarquias internacionais. Portugal serve já apenas como trampolim.
E, no entanto, os tempos difíceis não surgem apenas do exterior. A deriva antidemocrática alastra também no plano interno, disfarçada sob novas roupagens. Se muitos se escandalizam com o Chega – e bem, diga-se, pois a retórica populista não oferece soluções, apenas ressentimentos –, poucos se apercebem de que o verdadeiro risco está na emergência de uma nova direita pretensamente respeitável, que nasce das borralhas de um antigo PSD e CDS e que se tenta reabilitar à boleia de uma figura tão popular quanto perigosa: o Almirante Gouveia e Melo.
Há quem trema com os apoiantes do Chega. Eu tremo tanto ou mais com os que se juntam, discretamente, em redor de Gouveia e Melo. Começa-se pelo novo BFF (best friend forever) do Almirante: Isaltino Morais, o velho cacique que gere Oeiras como um paxá num feudo medieval. Junte-se-lhe Rui Rio, o ex-presidente do PSD, agora mandatário da candidatura a Belém, com contas a ajustar com os seus ‘fantasmas’ que o impediram de ser primeiro-ministro. Adicione-se ‘senadores’ reformados do PSD ou derrotados do CDS, bem da vida por terem aproveitado da rede de contactos políticos uma existência inteira, mas saudosistas das luzes da ribalta, como Ângelo Correia, António Martins da Cruz e Francisco Rodrigues dos Santos. Esta frente discreta, mas não menos inquietante, de figuras em busca de redenção ou vingança compõe um coro de sombras que encontra em Gouveia e Melo uma âncora, um novo D. Sebastião vestido de almirante. É isso que tentam vender.
Gouveia e Melo com Rui Rio.
Aliás, de entre os sete fundadores e membros da direcção de apoio ao Almirante – Honrar Portugal, que curiosamente repete uma denominação com laivos de Estado Novo de um grupo de pensamento do Chega no Facebook –, não é de admirar que haja quatro especialistas em marketing, porque Gouveia e Melo é um produto apenas com embalagem: Carlos Sá, Catarina Santos Cunha, Manuel Vaz e Tiago Mogadouro. De facto, bem precisam de vender um senhor que de carisma tem zero, sem um pensamento teórico, político ou social minimamente estruturado sobre assunto algum, que lê o teleponto como um boneco de cera – talvez seguindo as recomendações de Tiago Mogadouro, que é director-geral do Museu Madame Tussaud, em Nova Iorque.
Mas mais preocupante ainda é ver neste grupo avançado de lugares-tenentes de Gouveia e Melo – que se tornou conhecido por ter sido o director logístico de um produto (vacinas contra a covid-19) durante três trimestres – uma constitucionalista, Teresa Violante, que já defendeu, sem pudor, que houve, sim, atropelos constitucionais durante a pandemia, mas que tal problema se resolve facilmente: basta mudar a Constituição. Talvez também queira mudar a Constituição para que os atropelos cometidos por Gouveia e Melo, na sua sanha justiceira a bordo do NRP Mondego, se tornem legais.
É este o perigo de se embarcar em populistas – que é exactamente aquilo que Gouveia e Melo é. Se a lei incomoda, muda-se a lei. Se os direitos atrapalham, cortam-se os direitos. Tudo pela eficácia – e ele já defendeu ser contra a burocracia, porque, hélas, promove a corrupção. A democracia, com os seus equilíbrios, os seus freios e contrapesos, os seus incómodos, é hoje vista como um obstáculo.
O problema da crise dos partidos tradicionais, que fizeram crescer os populismos e os extremismos, faz também ‘nascer’ este tipo de figuras que, tal como André Ventura, querem mudança – mas essa mudança vem acompanhada de veneno. Em vez de vir revestida de ideias, vem mascarada com palavras como “modernização”, “responsabilidade” ou “realismo”. Traz, na verdade, um conteúdo bem mais sinistro: menos democracia, mais controlo.
Gouveia e Melo é o rosto ideal para esta operação – e será talvez o mais desejado aliado, mesmo que involuntário, de André Ventura. Se Gouveia e Melo for eleito para Belém, aí teremos um populista sem ideias – ou com ideias feitas por outros –, mas com farda e voz grave. Um produto de marketing, com teleponto e conselheiros. Um símbolo de autoridade artificial, que seduz quem anseia por ordem, mas não percebe que está a abrir caminho ao autoritarismo. A ascensão de Gouveia e Melo não representa apenas um risco político: representa um sinal de desespero democrático. Quando o povo deposita as esperanças num almirante vazio de pensamento, é porque já perdeu a confiança nos partidos, nas instituições, na democracia em si mesma.
Portugal vive, pois, um tempo de simulacro: simulacro de soberania, simulacro de debate, simulacro de escolha. E como em todos os simulacros, o espectáculo continua – com Gouveia e Melo em Belém seguirá, pois, em agonia, já sem alma, sem sentido e sem verdade.
Na Exposição Universal de Osaka, em pleno 2025, sobre a qual hoje escrevi para falar dos gastos, fiquei estupefacto com uma constatação: o pavilhão de Portugal optou por apresentar-se ao mundo sem uma única mensagem em português. Nas projecções que “recebem” os visitantes, apenas se lêem mensagens em japonês e em inglês. Presumo que a palavra Portugal apareça como Portugal porque assim se escreve em inglês.
Esta aberração num projecto de quase 26 milhões de euros — que é o que custará aos cofres públicos a presença portuguesa em Osaka — não se trata de um lapso trivial. Trata-se de uma vergonha. Uma vergonha diplomática. Uma vergonha cultural. E, sobretudo, um acto de ignorância desmedida da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) sobre a própria História de Portugal — precisamente no Japão, um país onde o português foi, durante décadas, a língua da diplomacia, da fé, do comércio e da ciência.
Ricardo Arroja e as “alminhas” da AICEP podem não saber da riqueza histórica entre Japão e Portugal, nem sempre pacífica quando mundos se contactam pela primeira vez. Mas, se tiveram mais de 13 milhões de euros para montar um edifício com 10 mil cordas, talvez por meia dúzia de patacas (não as de Macau, que isso é China) pudessem contratar um historiador.
Se tiveram 200 mil euros para contratar a Ernst & Young para lhes fazer a contabilidade, poderiam ter contratado a decência para lhes explicar que, quando se promove Portugal, só se promove com a língua portuguesa, porque, como escreveu bem Fernando Pessoa (ou Bernardo Soares), “minha pátria é a língua portuguesa”.
Num país que se envergonha pelo que faz no presente, parece agora querer vilipendiar o passado. Quer apagar da História Universal que o primeiro grande contacto da Europa com o Japão moderno foi feito por intermédio dos portugueses. Em 1543, três navegadores — António da Mota, António Peixoto e Francisco Zeimoto — ancoraram nas ilhas nipónicas, dando início a uma relação de trocas e fascínio mútuo que marcaria profundamente ambos os povos.
Fernão Mendes Pinto, na sua Peregrinação, misto de verdade e ficção, reclama para si um lugar nesse feito inaugural, descrevendo com minúcia a sua chegada ao Japão, o assombro dos locais perante as armas de fogo portuguesas e o espanto recíproco perante os costumes e a cultura. É dele um dos primeiros retratos europeus do Japão — colorido, cheio de admiração e revelador de um encontro entre civilizações.
Na sua narrativa, refere a entrega de espingardas a um senhor feudal japonês e o impacto profundo que esse gesto teve, ao ponto de modificar para sempre o modo como os japoneses concebiam a guerra. Mais do que uma crónica de aventuras, a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto é um testemunho vivo da presença portuguesa no Japão do século XVI. E é, também, um monumento literário que dá voz à nossa língua nas lonjuras do Oriente.
Recorde-se ainda que Francisco Xavier, missionário jesuíta português, foi um dos primeiros evangelizadores do arquipélago. A cidade de Nagasáqui foi doada aos jesuítas portugueses. A primeira gramática da língua japonesa foi redigida por um português. A imprensa de tipos móveis foi introduzida por missionários portugueses. A língua portuguesa foi, até ao século XVII, o veículo oficial da comunicação dos japoneses com o mundo. Que país mais poderá reivindicar tal feito no Japão?
E como poderemos honrar, com esta postura, esse insigne vulto que foi Wenceslau de Moraes, que nos deixou um legado sobre o Japão em tantos escritos? Logo ele que, por lamentável ironia, até foi cônsul em Osaka…
E, no entanto, o Portugal de 2025 apresenta-se no Japão ignorando a sua própria língua — como se o português fosse um fardo do passado, um acessório irrelevante, uma relíquia a esconder. Como se a língua de Camões e de António Vieira, de Eça e de Pessoa, não merecesse aparecer agora num dos países que primeiro a escutaram no Extremo Oriente. Este apagamento não é casual. É sintoma de um Estado que já não se entende como Nação, que prefere o inglês da conveniência ao português da identidade.
Numa era em que o multiculturalismo é brandido como bandeira, Portugal é dos poucos países que insiste em esconder a sua Cultura para parecer moderno. Mas não há modernidade possível sem memória. E não há presença internacional digna quando se abdica da própria língua — sobretudo quando essa língua é um dos maiores legados da presença portuguesa no Japão.
O pavilhão português em Osaka já não é apenas um edifício; é uma metáfora da forma como o Estado português se vê a si mesmo: envergonhado da História, ignorante do seu papel no Mundo, submisso aos ditames de uma comunicação global onde tudo se quer nivelado, uniformizado, sem raízes.
Não sou dado a sentimentalismos patrioteiros nem a arroubos diplomáticos, e muito menos me comovem cortejos de bandeiras ou salamaleques culturais. A minha pátria — como bem disse Pessoa — continuará a ser a língua portuguesa. Não me indigno demasiado com quem tropeça no português por ignorância — isso tem cura. Mas o que já me enoja é a opção consciente de apagamento da língua que nos define, como se se varresse Camões para debaixo de um tapete institucional ou se riscasse Pessoa das vitrinas da História.
Com a indiferença burocrática dos que não percebem que se pode vender um país em silêncio, bastando para isso omitir-lhe a fala, a AICEP não cometeu apenas um deslize administrativo — trata-se de um acto simbólico de rendição cultural. E a rendição, quando feita sem disparar um só alfabeto, é ainda mais vergonhosa — porque já nem é traição: é desistência.
Mais do que a confirmação de não ser necessária a ética para se ser primeiro-ministro em Portugal – com a vitória em minoria (39% do Parlamento) de Luís Montenegro –, as eleições legislativas de ontem deixaram claro que o país político que habita a cidade de Lisboa está cada vez mais desligado do restante território nacional. A velha máxima “Portugal é Lisboa, e o resto é paisagem” já não tem graça — tornou-se um diagnóstico clínico da arrogância das elites urbanas, políticas e mediáticas, sobretudo à esquerda do Partido Socialista, que vivem encerradas nas suas redomas ideológicas, incapazes de compreender os sinais de desconforto e insatisfação que se acumulam há anos fora da capital política e mediática.
A evolução entre os resultados eleitorais de 2024 e 2025 no concelho de Lisboa e no país – e mesmo na Área Metropolitana de Lisboa – é reveladora dessa dissonância. E não tanto pelo chamado Bloco Central, que governa alternadamente desde 1975, e que pragmaticamente não são assim tão diferentes na praxis política. Na capital, é certo que estas forças partidárias desceram, no seu conjunto, de 58,52% no ano passado para 54,95%, mas não fogem muito do desempenho nacional: no ano passado, o Bloco Central registou 56,84%, enquanto este ano ficou, por agora, nos 56,10%.
Mariana Mortágua, ontem a votar: um hara-kiri político quando se olham para os problemas do país com ideologite. Foto: BE
No caso do Chega, a sua votação no concelho de Lisboa é francamente pior do que no global do país. No ano passado, o partido de André Ventura teve apenas 11,73% na capital, quando teve 18,07% no país (diferença de 6,34 pontos percentuais); ontem, contabilizou 14,53% em Lisboa e 22,56% no país (8,03 pontos percentuais).
A grande diferença está no facto de, em Lisboa, existir uma forte presença dos partidos da ‘esquerda alternativa’ – a denominação que prefiro; ou ‘radical’, como muitos lhes chamam –, ou seja, no Livre, Bloco de Esquerda e PCP. Estes partidos, e o seu eleitorado urbano, conseguiram suster o crescimento da simplificadamente chamada ‘extrema-direita’ sem se aperceberem das mudanças sociais, dos desafios, das necessidades do país, porque já não saem sequer das suas freguesias e da sua bolha. Atacam com eficácia o ‘papão da extrema-direita’ que gravita nos media, mas não criaram condições para atacar os problemas sociais e económicos que alimentam o dito ‘papão’.
Senão vejamos: no concelho de Lisboa, o Chega continua com ‘dificuldades’ de penetração, porque a ‘esquerda alternativa’ mantém os seus bastiões. Nas eleições de ontem, no seu conjunto, Livre, Bloco de Esquerda e PCP conseguiram 15,76%, superando os 14,53% do partido de André Ventura. Repetiram 2024: Livre, Bloco de Esquerda e PCP tiveram na capital 16,25% dos votos; o Chega ficou então pelos 11,73%.
Luís Montenegro, vitória com 39% dos deputados no Parlamento, confirma que a ética se afastou definitivamente da política. Foto: PSD.
No entanto, Lisboa é um excelente exemplo do falhanço da ‘esquerda alternativa’ – porque do Bloco Central não se pode esperar muito perante o esgotamento de 50 anos de ‘serviços’ prestados à Nação. Achar que as questões de segurança e de imigração – os bastiões do Chega – são falácias e meras percepções, ou que são discursos xenófobos ou racistas, encerrando-se o tema colocando-o como tabu, foi um dos erros crassos da esquerda.
E basta olhar para algumas freguesias, colocando uma singela pergunta: qual a razão para que, mesmo em Lisboa, na elitista freguesia de Belém, o Bloco Central tenha contabilizado 59,78% e o Chega apenas 9,95% (ficou em quarto, atrás da Iniciativa Liberal), mas em Marvila o partido de André Ventura tenha vencido com 31,09%, tendo o Bloco Central registado apenas 47,08%? Ou então, como é possível a ‘esquerda alternativa’, tradicionalmente mais preocupada com os injustiçados, conseguir menos eleitores na ‘marginalizada’ Marvila (10,96%) do que nas abastadas freguesias de Belém (12,91%), Campo de Ourique (15,71%) e Avenidas Novas (14,21%)?
O fenómeno de perda de noção do país por parte de uma certa clique política, social e da comunicação social lisboeta adensou-se com a crescente endogamia profissional, cultural e ideológica. Os jornalistas e opinion makers vivem e trabalham nos mesmos bairros, frequentam os mesmos círculos sociais e partilham códigos morais e linguísticos que os afastam da maioria da população. Esta homogeneidade de visões faz com que, mesmo sem má-fé, olhem para o país a partir de uma lente distorcida. Incapazes de escutar o que se diz nas ruas de Marvila, nos subúrbios de Sintra ou nas praças de Beja, produzem análises e manchetes que apenas confirmam o que já pensavam antes de sair da redacção — se é que saem.
Rui Tavares: Livre reforçou a sua presença no Parlamento num contexto de perda de influência da ‘esquerda alternativa’, e ganhando votos sobretudo nas zonas mais elitistas. Foto: Livre.
Os resultados estão agora à vista. Basta atravessar o Tejo ou afastar-se alguns quilómetros do Marquês de Pombal para ver como o país já está divorciado de Lisboa. No próprio distrito da capital, o Chega foi o partido mais votado em cinco concelhos: Alenquer, Azambuja, Sintra, Sobral de Monte Agraço e Vila Franca de Xira — este último com mais de 26% dos votos. Ou seja, a escassos 30 minutos da capital, o Chega ultrapassa largamente os 14,5% obtidos no concelho lisboeta, chegando em alguns casos a mais do dobro da sua expressão na cidade.
No distrito de Setúbal, o cenário é ainda mais paradigmático: o Chega venceu o distrito e foi o partido mais votado na Moita, Montijo, Palmela, Seixal, Setúbal, Sesimbra e Sines. São territórios urbanos e suburbanos densamente povoados, com historial de voto tradicionalmente à esquerda, agora convertidos em bastiões de um partido que tem como bandeiras a segurança, a imigração e o combate à corrupção. O Chega venceu também em Faro – como já ocorrera no ano passado, o que mostra que não foi um acaso –, em Portalegre e até em Beja. Não é o “Portugal profundo” que está a mudar — é o país metropolitano não lisboeta que se revolta contra uma elite urbana que o ignora sistematicamente.
É aqui que reside o problema. A comunicação social, enraizada quase exclusivamente em Lisboa, e que tem como estratégia brandir o ‘bicho-papão’ da ‘extrema-direita’, continua a olhar para o país com lentes deformadas. Ignora ou menospreza os temas que verdadeiramente mobilizam milhões de eleitores, sobretudo fora dos grandes centros urbanos mais ricos. Pior: quando esses temas emergem com força eleitoral — como a imigração e a segurança — são imediatamente classificados como “discursos de ódio”, “populismo” ou “alarmismo”. Esta resposta reflexa, moralista e simplificadora não só revela uma profunda incompreensão da realidade, como também contribui para o crescimento do fenómeno que se pretende combater.
Apenas três anos depois da mairia absoluta de António Costa, em Janeiro de 2022, o Partido Socialista tem o pior resultado das últimas quatro décadas e arrisca nem sequer liderar a Oposição. Foto: PS.
É um erro crasso da esquerda política e comunicacional pensar que pode derrotar o Chega silenciando as suas bandeiras. A segurança e a imigração não são fantasmas inventados por agitadores — são preocupações reais, mesmo que nem sempre sustentadas por estatísticas. E, em política, como se sabe, as percepções são quase tão relevantes como os factos. Quando uma família em Loures sente medo de sair à noite, ou quando um trabalhador rural no Alentejo vê os salários a baixar devido à exploração de mão-de-obra estrangeira em condições precárias, não adianta dizer-lhe que tudo está dentro dos parâmetros europeus. A sensação de insegurança e injustiça instala-se. E quem a vocaliza com clareza ganha terreno.
A esquerda urbana, em vez de enfrentar estas questões, refugia-se numa superioridade moral que aliena os eleitores. Fala de inclusão, diversidade e cosmopolitismo com o fervor de quem nunca precisou de partilhar um hospital público superlotado ou de viver em zonas onde o Estado já mal chega. Esta esquerda prefere desconstruir conceitos a resolver problemas, prefere aulas sobre “privilégios inconscientes” a propostas sobre habitação acessível promovida pelo Estado (e não tectos mno arredamento) ou policiamento de proximidade.
Se quer recuperar influência junto do eleitorado popular, a ‘esquerda alternativa’ precisa de abandonar a sua torre de marfim e olhar o país nos olhos. Isso significa tratar a segurança como uma prioridade legítima — mesmo que, em muitos casos, o problema seja mais de percepção do que de realidade. Significa também promover um debate sério sobre imigração, livre de dogmas e preconceitos, que reconheça as necessidades económicas do país, mas também a pressão social que uma imigração mal gerida pode causar. E mais: sobre as condições desumanas em que vivem muitos destes imigrantes. É preciso encontrar um equilíbrio entre integração e exigência, entre acolhimento e responsabilidade, entre as condições de vida dos imigrantes e os direitos das populações locais.
André Ventura: líder da extrema-direita, populista ou aproveitador da insatisfação? Quaisquer que sejam as causas do crescimento do Chega, o país está a divorciar-se das elites. Foto: Chega.
Ignorar estes temas só serviu e servirá para os entregar de bandeja a quem os instrumentaliza com discursos fáceis. E não basta agora correr atrás do prejuízo com campanhas de fact-checking ou projectos de literacia mediática. O eleitorado não é estúpido nem manipulável ao sabor dos moralismos do momento. É informado, é atento, sente na pele o que vive, e sabe distinguir quem lhe fala com frontalidade de quem o trata como incapaz de compreender o que se passa à sua volta.
O resultado das legislativas de ontem prova ainda o esgotamento do bipartidarismo tradicional, e isto também não são boas notícias para os partidos da ‘esquerda alternativa’, sobretudo se ficarem abaixo dos 10% ou, pior ainda, dos 5%, porque o método de Hondt os aniquila. Com a ascensão do Chega, o Bloco Central resiste, mas enfraquece: PSD e PS, juntos, valem hoje pouco mais de metade dos votos. O crescimento do Chega, a par da agonia do PCP, da irrelevância do BE e da (ainda) fragilidade do Livre e da Iniciativa Liberal, demonstra que os eleitores estão à procura de alternativas. Não se trata apenas de uma mudança de nomes — é uma exigência de respostas concretas. O eleitorado quer menos retórica e mais soluções, menos censura moral e mais escuta activa.
É sintomático que os círculos de opinião mais activos nos media continuem a defender que o país sofre de um “problema de populismo”. Aquilo de que o país sofre, na verdade, é de um problema de elitismo urbano. Um elitismo que acha que votar Chega é uma aberração moral, mas que aceita como natural viver num país onde o acompanhamento médico se degrada, onde a escola pública está em colapso, onde os salários não chegam para pagar rendas nem alimentação, onde não há vigilância policial e o pequeno crime (que nem chega às estatísticas) prolifera até ameaçar ser grande, e onde os gastos públicos absurdos e sem transparência são um convite para a corrupção. A indignação selectiva é um luxo de quem pode escolher os seus problemas. O povo não pode.
Partido Comunista Português: eleição após eleição, apenas fica satisfeito por sobreviver. Ver o Chega vencer em Beja e Setúbal é sobretudo um sinal da sua perda de capacidade de responder a uma população diviorciada das elites políticas. Foto: PCP.
O Parlamento que agora se forma é mais plural, mais fragmentado e, paradoxalmente, mais representativo. Resta saber se os partidos que perderam influência saberão fazer a sua própria reflexão. A ‘esquerda alternativa’, em particular, que perdeu uma oportunidade de crescer em 2024 – mas não quis criticar o PS para então não fazer crescer o peso relativo do Chega –, tem de decidir se quer continuar a falar para si própria — ou se quer voltar a ser relevante para o país. A comunicação social, por sua vez, precisa de reencontrar a sua função: não é catequizar o eleitorado, mas informá-lo com rigor, escutá-lo com respeito e servi-lo com humildade.
Se Lisboa continuar a querer falar sozinha, continuará a não ser ouvida. E Portugal seguirá o seu caminho — com ou sem ela. Nisto, há uma enorme virtude na democracia: Lisboa, e as suas elites, já não valem nada, embora tenham muito tempo de antena no media. Ou melhor, proporcionalmente, valem somente o seu peso demográfico. Nada mais.
Durante a pandemia, uma parte significativa do jornalismo português ajoelhou-se perante os altares da Comissão Europeia e dos Governos nacionais. A crítica, o contraditório e a investigação foram substituídas por uma militância sanitária que assumiu como missão promover vacinas, esconder contratos, silenciar dúvidas e rotular como perigosos ou irresponsáveis os que ousassem fazer perguntas.
Por exemplo, logo após o nascimento do PÁGINA UM em Dezembro de 2021, a direcção editorial da CNN Portugal (com o apoio da Ordem dos Médicos) encomendou ao então estagiário Henrique Magalhães Claudino uma notícia para me associar aos ditos movimentos negacionistas da covid-19. Tive de lutar meses junto da ERC pela justeza da minha notícia rigorosa para, pelo menos, conseguir publicar direitos de resposta em alguns dos jornais que propalaram esta patifaria da CNN.
Ursula von de Leyer com o CEO da Pfizer, Albert Bourla.
Ou seja, durante a pandemia, a imprensa mainstream e muitos jornalistas não hesitaram em atribuir-me epítetos por não seguir linhas editoriais de propaganda vacinal e de gestão da pandemia, funcionando mais como departamentos de comunicação da DGS do que como órgãos de comunicação social que se exigem livres e plurais.
Nesse contexto, não surpreende que a imprensa portuguesa — com raríssimas excepções — nunca tenha demonstrado qualquer interesse em saber o que realmente se passou nos bastidores das negociações das vacinas, tanto a nível europeu como nacional. Quando, em 2022, o The New York Times avançou com um processo contra a Comissão Europeia para obter as célebres mensagens trocadas entre Ursula von der Leyen e o CEO da Pfizer, Albert Bourla, a imprensa nacional mal lhe dedicou uma nota de rodapé. Uma ou duas linhas tímidas, e logo voltou ao conforto das pachorrentas conferências de imprensa, onde as perguntas difíceis eram proscritas.
O Público agora rejubila com a vitória da liberdade de imprensa e da transparência…
A hipocrisia na sua plenitude: quem ontem negou o jornalismo, hoje celebra o jornalismo dos outros — desde que venha com o selo do New York Times e sem incomodar os interesses nacionais.
Mas mais grave do que esta hipocrisia mediática é o facto de, em Portugal, também haver um “caso Pfizergate” — ou melhor, um “caso DGSgate”, igualmente associado à compra de vacinas da covid-19, mas este, intentado pelo PÁGINA UM, arrasta-se há mais de dois anos, sem que o Tribunal Administrativo tenha decidido o que há muito já deveria estar resolvido. Ou melhor dizendo, porque os tribunais (e as suas decisões) são feitos por pessoas, pela juíza do processo, Telma Nogueira.
Com efeito, em 22 de Novembro de 2022, requeri à DGS, ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos, um pedido claro, inequívoco e fundamentado de acesso integral aos contratos celebrados com as farmacêuticas fornecedoras de vacinas contra a covid-19, incluindo todos os anexos, cadernos de encargos, guias de transporte e trocas de correspondência administrativa.
A juíza associada à intimação do PÁGINA UM tem permitido ao Ministério da Saúde e à DGS um exercício prolongado de opacidade com verniz burocrático: quando está em causa decidir se existe legitimidade para o acesso, é permitido que se negue o inegável, que se traduzam documentos (sem se ver os originais), e expurguem partes, retirando qualquer valor informativo real. E, na verdade, ‘apenas’ se quer consultar os originais. E anda-se há 28 meses — a intimação foi apresentada no último dia de 2022 — numa encenação de transparência, onde se finge cooperação para, na prática, se negar o acesso à informação pública.
E a juíza permanece, despacho após despacho, sem proferir sentença ao fim de 28 meses, num processo classificado de urgente. Ainda que fosse desfavorável, seria preferível uma sentença, porque, ao menos, seria possível recorrer ao tribunal superior.
Ainda este mês, sabendo bem que aquilo que a DGS tem carreado para o processo em nada corresponde ao que foi solicitado em 2022, a juíza Telma Nogueira deu um despacho para que nos pronunciemos se estamos satisfeito com aquilo que temos. Anda-se neste ‘enrola-enrola’ há dois anos. Se o formalismo jurídico permitisse seguiria uma única palavra e em maiúsculas: NÃO. E a seguir, um rogo: “decida, se faz favor”.
Talvez não seja de bom tom, com um caso em curso, estar a debruçar-me e a criticar a condução deste caso. Mas ao jornalismo cabe a obrigação da denúncia, mesmo se em casos que digam respeito ao próprio jornalista, porque, neste caso, existe interesse público. E a questão jurídica do Tribunal Administrativo nestes casos é simples: não lhe cabe ser árbitro entre o que o requerente pediu e aquilo que o requerido quer dar. Cabe-lhe dizer, com clareza e firmeza, se há ou não legitimidade no pedido, se a DGS tem ou não obrigação de entregar os documentos originais sem rasuras, se o cidadão e, em particular, o jornalista têm ou não o direito de escrutinar os contratos que foram pagos com dinheiro público em nome de uma emergência sanitária. E decidir com a celeridade que a lei determina para as intimações. E 28 meses são 28 meses — não há conceito lato de urgência que encaixe todo este tempo.
Ao contrário do que muitos insinuaram durante a pandemia, não há qualquer pulsão negacionista em se querer saber como foram negociadas e contratadas as vacinas ou se geriu a pandemia. Aquilo que há é jornalismo — esse mesmo que agora tantos fingem celebrar quando a vitória é de um jornal estrangeiro.
O ‘caso DGSgate’ – e um outro relacionado com uma base de dados dos internamentos, que se eterniza apesar de um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 2023 – é, por isso, um teste à democracia. Se a Justiça portuguesa confirmar que a recusa da DGS foi ilegal, estará a dar uma resposta clara em favor da liberdade de informação e contra a opacidade institucional. Mas se continuar em silêncio, estará a dizer-nos que, em Portugal, certos contratos públicos estão acima da lei — e que, ao contrário do que se exige aos cidadãos, o Estado pode desobedecer impunemente àquilo que ele próprio legisla.
Assim, se Von der Leyen foi condenada por esconder mensagens de WhatsApp, o que se deve dizer de uma DGS que esconde contratos inteiros, facturas, guias de remessa e cartas em papel timbrado? E o que dizer de uma Justiça que, passados mais de dois anos, ainda não respondeu?
Enfim, não basta aplaudir o New York Times e dizer que a liberdade de imprensa venceu em Bruxelas. É tempo de exigir que a liberdade de imprensa também vença em Lisboa. E que se denuncie, em simultâneo, os hipócritas — sobretudo os escribas de certa imprensa, que tão maltrataram os princípios do jornalismo durante os anos da pandemia.