Categoria: Crónica

  • Em nome do amor

    Em nome do amor


    O QUE FAZER? I Cada um é como cada qual e age ou reage segundo as suas idiossincrasias. A raiz dos maiores problemas é a dicotomia. Se não estás comigo, estás contra mim. No caso político arrumam-se as gentes pela esquerda, centro, direita e os extremos. Todo aquele que vive na pólis é parte da política, ainda que se esteja nas tintas (os limites da liberdade individual estão na lei). Tal não implica o 8 (o fiel cumpridor) ou o 80 (o desalinhado). A virtude está no meio, mas não necessariamente num partido do centro. Sem entrar nas minhas escolhas (que alguns já conheceis), o que fazer é não acatar o injusto, o que leva à desigualdade tanto ou mais gravosa quando parte de um conjunto de fazedores de leis. Quem provoca o “mal” e os males-estares são humanos pensantes. Eles sabem o que fazem, como criar pandemias, massacrar inocentes ou ditar o preço das coisas. As modas. São cartéis iguais aos do narcotráfico mas operam do lado da lei. Todos correm atrás do lucro e da submissão. Tenho por princípio activo a contestação, mas à medida que o tempo passa sinto-me mais inclinado a averiguar da qualidade do Amor. A começar pelo meu. Quanto mais forte, verdadeiro e criativo for o Amor, mais paz haverá e melhor sairá a Comunicação. Se caírmos no fascismo, desse Amor brotará uma arma em louvor da Liberdade.

    VAMPIROS I Se formos a Ver (com olhos de Ver) há uma confluência de Mercado que conduz à estupidificação e à servidão voluntária. Todos somos potenciais compradores e vendedores de retalho. Este reduto (e o dispositivo androide onde escrevo) é um desses meios de forjar dependentes. Gritar Liberdade dá trabalho. Requer olho vivo para não ir em modas. É como votar – dar o voto implica estudar o programa e os fulanos agremiados para não nos sair o tiro pela culatra. Ainda o melhor é andar pelas margens, escrutinar as contra-indicações e se for preciso mandar os vendilhões para a gávea, que é como quem diz ide para o CRL.

    VIDAS I Tudo na Vida (mineral, vegetal, animal…) está ligado, nem que seja por fios invisíveis. Quando Lobo Antunes diz eu hei-de amar uma pedra atinge o auge da simbiose. Amar o que não se manifesta por actos e palavras, mas na perenidade, na imobilidade serena. Se tudo é impermanência – até na erosão de uma pedra – o Amor, esse grande vocábulo da esperança de unificação, permite viver apontado a um fim maior do que a própria satisfação. O Amor não divide para reinar. Quando o Amor é cego (e não só o amor conjugal) leva ao conflito. O conflito nasce da frustração. É a chama da raiva. Na Vida ganhamos e perdemos. Em última instância perdemos a vida. É uma perda de tempo lidar com calhaus ou deixarmos embrutecer a possibilidade de refinamento na tentativa de moldar o que não nos agrada. Há que polir o diamante que porventura estará oculto em todos nós. Tudo o que existe à face ou no miolo da terra. Até nos pântanos nascem flores. Ou mesmo no Universo sideral.

    ESPECTROS I À conversa com o Resende (guia ilustre) surgiu a questão. Quem foram (ou são) os nossos grandes estadistas? Para mim, Acrata, não ponho ninguém em pedestais. O Resende, homem ilustrado, falava do Sá Carneiro, o Kennedy português, do Marquês de Pombal, esse déspota esclarecido, ou mesmo do Botas enquanto ministro, até chegar ao bochechas, o pai da Democracia da era moderna (😀). Deixei-o encantar-se com as suas palavras. Falei apenas do Álvaro Cunhal, a quem faltou a oportunidade de governar em nome do povo e para o povo (o povo teme o papão comunista). O povo, Alto e para o baile, não é sagrado. Aliás, o povo somos todos e só é quem mais ordena se age pelo bem comum e não se deixa levar pelo triunfo dos porcos. Estadistas abnegados, cultos e agregadores de um país com classe e sem distinções de classe, rareiam. É como o Amor. É raro que seja mútuo e muito bom para ambas as partes envolvidas.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

    As ilustrações foram elaboradas com recurso a inteligência artificial.

  • Há 40 anos, um deputado classificou como ‘pavoroso’ um fogo de 250 hectares; hoje, não houve adjectivos

    Há 40 anos, um deputado classificou como ‘pavoroso’ um fogo de 250 hectares; hoje, não houve adjectivos


    A língua é um arsenal subtil: nesse caldeirão coexistem punhais de lâmina fina e canhões de estrondo, palavras que servem tanto para acariciar como para fulminar. Entre essas, os adjectivos ocupam um lugar peculiar. Não se contentam em descrever; inflamam, exageram, dramatizam, conferem ao substantivo uma gravidade suplementar. São como carimbos de urgência colados à pressa nos dossiers da realidade. E, porém, como todas as moedas gastas em excesso, também eles perdem valor. A adjectivação é, pois, um recurso retórico cuja abundância corre sempre o risco de arruinar a eficácia: quanto mais se grita, menos se ouve.

    Tomemos o caso português. Desde o PREC — que foi sobretudo um PREC de palavras inflamadas —, Portugal vive mergulhado na adubagem semântica dos discursos. Já em 1975, esse ano em que o Parlamento era mais um teatro do que uma câmara, a tribuna enchia-se de adjectivos altissonantes para descrever quer os feitos, quer os desastres. E nestes, já estavam os incêndios.

    Aliás, corrijo: mesmo no Estado Novo já se adjectivavam os fogos florestais. Por exemplo, o deputado por Coimbra da União Nacional, Augusto Simões, num longo discurso em Janeiro de 1963, já não os poupava: “não é sem estremecimento que recordo agora todas as dolorosas angústias que sofremos no Verão passado com os pavorosos incêndios que flagelaram todo o Portugal, e nomeadamente os concelhos do Centro do País”. Ardiam então poucos milhares de hectares por ano em todo o território nacional.

    Em Portugal, se se pesquisar nos debates parlamentares, um incêndio nunca foi adjectivado simplesmente como grande: no mínimo, era pavoroso. Não sucede, convenhamos, apenas com incêndios. Um acidente rodoviário nunca é apenas grave: é terrível. Um défice orçamental não é apenas elevado: é assustador. E assim se foi criando uma inflação adjectiva que rivaliza com a inflação monetária de muitos períodos históricos de Portugal.

    Mas detenhamo-nos no adjectivo pavoroso, porque surge em diversas situações nos discursos parlamentares ao longo das décadas. Ora, etimologicamente, pavoroso deriva do latim pavor, que significa medo súbito, aquele frio no estômago que nos paralisa. “Pavor” é o terror instintivo, visceral, que antecede a fuga.

    Logo, um acontecimento pavoroso deveria ser reservado a situações em que a própria sobrevivência colectiva se sente ameaçada: o incêndio do Reichstag em 1933, o terramoto de Lisboa em 1755, a explosão de Pompeia sob o Vesúvio. Mas em Portugal, desde tempos idos, um simples fogo já bastava para que o orador parlamentar, em pose trágica, lhe colasse o rótulo de pavoroso, desde que fosse considerado relevante.

    O curioso é que o exagero de ontem se transforma no eufemismo de hoje. Se um deputado do Estado Novo falava de um “incêndio pavoroso” em 1963, quando ardiam menos de 10 mil hectares em todo o país, pode dizer-se agora que estava a puxar pela corda da tragédia. Quando, no dia 18 de Julho de 1985, o deputado socialista José Vitorino relatava que uma “ponta de cigarro inadvertidamente deixada por apagar” causou um “pavoroso incêndio [que] durou 29 horas e envolveu no seu combate 37 viaturas e 170 bombeiros”, só podemos sorrir depois de se saber que afinal arderam 250 hectares.

    Hoje, passados quarenta anos desse “pavoroso incêndio” que destruiu 250 hectares em 29 horas, e poucos dias depois de termos assistido a um fogo que durou 13 dias e dizimou 64.451 hectares, não percebemos já o que é “pavoroso”.

    Pavoroso já não faz sentido se em 2017 arderam 540 mil hectares e morreram 114 pessoas. E já não se adequa àquilo que sucedeu no presente mês de Agosto. Por isso, nem este nem outro mais altissonante adjectivo foi hoje usado na Assembleia da República durante o debate morno — olhem-me eu também a usar um adjectivo — da comissão permanente sobre os incêndios, onde sobretudo se demonstrou que as férias são sagradas para os deputados dos diversos quadrantes, porque a ‘casa’ esteve a meio-gás; ou melhor, estiveram para aí umas 80 almas… Bem sei que a comissão permanente desonera a maioria dos deputados a interromperem as férias, mas assim mostraram os parlamentares de todos os quadrantes a importância do tema.

    Mas, na verdade, enfim, talvez não tenhamos tido assim tão grande hecatombe. Nos anos 60, um incêndio era pavoroso aos 1.000 hectares; nos anos 70 e 80, só aos 5.000 hectares. Nas últimas duas décadas e meia, pavorosos passaram a ser apenas aqueles que ultrapassavam os 10 mil hectares, depois veio 2017 e já passou a ser preciso mais de 50 mil. E agora já nem o de 65 mil hectares, como o do Piódão, leva este título. Talvez estejamos à espera da fasquia dos 100 mil. A adjectivação dos incêndios foi-se desgastando, como as botas dos bombeiros que enfrentam labaredas ano após ano.

    Eis, pois, a perversão política da adjectivação, que hoje esteve arredada do hemiciclo com discursos batidos e sem chama: ao invés de graduar a realidade, esgotou-se, e ninguém teve sequer a noção da gravidade de 2025, sobretudo porque ainda ficam aquém de 2003, 2005 e 2017. Em Portugal, uma catástrofe é uma bênção política, porque aumenta, para o futuro, a margem da incompetência.

    As palavras que outrora assustavam — terrível, horrível, pavoroso — soam agora como diminutivos face à magnitude dos desastres actuais, mas já nem se usam. É a aplicação de uma espécie de Lei da Inflação Semântica: quanto mais adjectivos se emitiram no passado, menos eles hoje representam a realidade. A economia da linguagem não difere muito da economia monetária.

    Este jogo entre retórica e catástrofe revela uma ironia nacional, que hoje confirmei enquanto assistia a uma ópera bufa onde o Governo Montenegro e os deputados se entretiveram a esgrimir argumentos para não se queimarem mais (no caso do PSD e PS) ou para puxarem a brasa à sua sardinha (no caso do Chega): Portugal é talvez o único país em que a floresta arde ao ritmo de uma inflação literária. A cada Verão, não apenas se queimam hectares — queimam-se também as palavras, ao ponto de já não assustarem ninguém.

    Um dia, quando tudo já for cinza, talvez descubramos que a adjectivação política foi o mais inútil extintor do nosso léxico.

  • Tondela 3.0

    Tondela 3.0


    O número três tem uma carga simbólica difícil de ignorar. Não por ser o primeiro número que nos faz sentir a repetição, mas sim por prenunciar uma eventual permanência: depois do um que se arrisca, e do dois que confirma, chega o três que sela, consagra e promete duração. Há quem veja nele a perfeição — Pai, Filho e Espírito Santo; passado, presente e futuro; início, meio e fim. Mas também há quem perceba no três o perigo da rotina, o prenúncio de que uma ideia que começou fresca corre o risco de ficar viciada. E é nesse dilema que se encontra este Da Varanda da Luz, agora a entrar na sua terceira temporada.

    As más-línguas já disseram tudo e o contrário de tudo: que um jornalista que se apresenta como independente e rigoroso não deve entregar-se a crónicas futebolísticas, caseiras e subjectivas; que um fervoroso sócio do Benfica não pode sentar-se numa varanda e, de lá, fazer o papel de cronista; que isto é como confundir o relato íntimo de um jantar em família com o relatório de contas da EDP.

    Talvez tenham razão, talvez não. O certo é que a varanda, com as suas vistas imperfeitas e o coração a bater pelo vermelho, se tornou, para mim, lugar de reflexão e catarse, e já não é só minha: quem lê acompanha-me nesta liturgia quase quinzenal, entre nervos, vitórias suadas e derrotas que doem como punhais.

    Mas há um problema que este número três já carrega consigo, e não é pequeno: se há terceira temporada, tem desta vez que haver caneco. A matemática é cruel. O futebol vive da fome insaciável de conquistas. Um ano sem título para o Benfica é tropeço; dois anos sem título é drama; três anos sem título começa a ser vergonha. E assim, o número que devia trazer perfeição ameaça instalar o ridículo. Não porque esta crónica seja caseira e subjectiva — isso até pode ser um charme, uma espécie de antídoto contra a pompa vazia da crónica oficializada —, mas porque a sucessão de épocas sem festa no Marquês transforma qualquer escrita de um benfiquista numa ladainha de desculpas, revoltas e esperanças adiadas.

    O ridículo, afinal, não mora tanto na varanda, mas na equipa. E como separar o cronista do seu objecto? Se a terceira temporada chegar sem campeonato, quem escreve arrisca-se a ser cúmplice de um fado menor, cronista de um vazio, padre de uma missa sem fiéis. É a sina de quem mistura paixão e profissão, casa e ofício. Talvez o mais independente dos jornalistas seja aquele que, ao assumir a sua subjectividade, se entrega sem máscaras, sem as frases feitas da imparcialidade de fachada. Talvez haja mais rigor em declarar a parcialidade do que em escondê-la debaixo de um casaco de cinismo.

    Em todo o caso, esta não é a minha estreia esta época. Já aqui estive há duas semanas, a limpar o Nice — e foi uma beleza: daqueles jogos em que tudo parece fácil, em que a equipa acerta passes de olhos fechados e a superioridade se sente como uma evidência. Tive a sorte de ter o Tiago Franco a escrever à distância. Enfim, para começar, não foi mau: uma vitória limpa, fresca, sem nódoas, daquelas que fazem acreditar que o ano vai correr direito. Veremos, na próxima terça-feira, se vamos mesmo apear o Fenerbahçe do José Mourinho. Mas isso são contas para outro rosário, e a missa será rezada na devida altura.

    Como qualquer benfiquista que se preze, começamos sempre um campeonato com alguma aflição. Não como no ano passado ou há dois anos, em que entrámos sempre com o pé esquerdo, mas o jogo contra o Estrela da Amadora, na semana passada, não convenceu ninguém. Foi vitória, é certo, mas com exibição deslavada, sem nervo, como se a equipa tivesse decidido entrar em campo de pantufas.

    Contra o Tondela, temos meia equipa diferente do ano passado — e não sei ainda se é para melhor. Financeiramente, acredito, é bom para os empresários. Em todo o caso, o Ivanovic parece que vai fazer uma boa parelha com o Pavlidis; Richard Ríos trouxe intensidade, mas parece-me que terá dias; o novo Enzo (depois do Pérez e do Fernández) tem alma; e os laterais, Dedić (sobretudo este) e Rafael Obrador, acrescentam opções. Mas, ironicamente, continuo a achar que a melhor aquisição é um jogador que já cá estava: Aursnes, que a cada época me parece (ainda) melhor, mais completo, ainda mais polivalente, mostrando que até a extremo-direito joga excepcionalmente bem, como se fosse crescendo com o próprio peso da camisola.

    Enfim, mas devia estar a falar em concreto do jogo contra o Tondela. E aí, confesso, foi daqueles serões que mais parecem um chá morno ao fim do dia. Uma noite de sábado calma, sem sobressalto algum, a aguardar os golitos, uns bocejos a preencher o intervalo, e uma crónica escrita quase em piloto automático. Nada a apontar de grave, nada a exaltar de épico. Apenas o ofício de ganhar, que também faz falta, mas que não chega para incendiar a alma.

    E, nem de propósito, e para fechar a crónica como começou, o miúdo Prestianni — o único jogador do Benfica que está à minha altura, com os seus 1,66 metros — selou a vitória com o terceiro golo, já nos descontos. Bom presságio.

  • A Pietà dos estafetas e o cortejo dos autómatos

    A Pietà dos estafetas e o cortejo dos autómatos

    Nunca fui, nem me considerei – e dificilmente serei – um cronista de viagens. Os verdadeiros narradores errantes, cuja tinta prolonga o passo, são de nascença e vocação, e partem com um guião mental que combina a minúcia de um alfarrabista com a ousadia de um trapezista: sabem onde hão-de pôr os olhos e onde hão-de pousar a pena.

    Eu, pelo contrário, dou por mim a chegar aos lugares como quem entra num quarto mal iluminado — primeiro tacteio, depois tropeço, por fim encontro um canto onde me sento, resignado, à espera de que algo se revele. Por vezes, não tarda. Pura sorte de principiante.

    Em Vilnius, bastou-me atravessar o rio para mergulhar na República de Užupis, essa utopia boémia onde um tal “ministro da felicidade” poderia perfeitamente ter assento no Governo.

    Em Riga, foram umas patuscas casas, altivas e orgulhosas, que me deram matéria para especular sobre as dificuldades em não tingir uma fotografia.

    Até em Tallinn, onde a medievalidade de postal poderia ser tema gasto, descobri o filão improvável das “perigosas maravilhas” de viajar com o ChatGPT — um companheiro que, para o bem e para o mal, nunca se cala e raramente se perde.

    Mas Helsínquia pregou-me um embaraço, até porque a estadia seria curta. Duas noites, duas tardes e duas manhãs nesta cidade, sem qualquer preparação prévia nem nenhum ponto de partida. Na segunda tarde, deambulava perdido até que, por salvação divina, sola gratia muito a propósito, deparei-me com a luterana igreja de São João.

    Erguida no final do século XIX, toda em tijolo vermelho e com duas torres esguias que se erguem como dedos de oração protestante, esta é uma peça notável do neogótico nórdico, onde a austeridade não dispensa uma luz diáfana que entra pelas janelas ogivais, como se Deus tivesse alugado o espaço a um arquitecto com predilecção por claridade.

    Por sorte, apanhei a porta aberta, mostrei a carteira de jornalista, e lá entrei para a nave onde, para minha estupefacção, não se cantava o Ein feste Burg ist unser, do Martinho Lutero, mas antes o All of Me do John Legend. Mais tarde, na recepção disseram-me que se ensaiava para um casamento, mas aquilo que mais me fascinou, eventualmente para uma crónica, foi a austera atmosfera que me pareceu incongruente com um cesto de livros infantis e peluches — um contraste delicioso com as igrejas católicas, onde a pedagogia infantil raramente vai além de um crucifixo ameaçador e um sermão sobre o inferno.

    Aqui, Deus não só é amor como, aparentemente, tolera ursos de peluche.

    Reconfortado com a perspectiva de ter já um ponto de partida, segui até ao Ateneum, a dois passos da estação central ferroviária, onde, por entre as galerias, deparei-me com uma notável exposição sobre pintoras do século XIX intitulada Crossing Borders.

    Mais do que a beleza e mesmo ousadia das telas, deparei-me com a minha ignorância: nunca me apercebera que, na época de um Delacroix, de um Monet, de um van Gogh, de um Renoir, de um Cézanne, houve não apenas mulheres que tiveram de se emancipar nas artes da pintura como ombreavam em qualidade estética e estilística com os seus pares masculinos.

    Mas foi numa das salas com uma janela que dava para um pequeno jardim que encontrei uma imagem pungente da condição humana nestes tempos de imigração e de trabalho desumanizante. No pequeno relvado, jazia um adormecido entregador da Uber Eats, com a bicicleta ao lado, num cenário digno da pena de Zola ou de Dickens, enquanto em redor uma dezena de outros ciclistas — colegas ou concorrentes — aguardavam o próximo pedido.

    Aquilo tinha a força de um ícone contemporâneo: o trabalhador anónimo, esmagado por uma economia que se alimenta da sua fadiga, observado por iguais que esperam a sua vez na mesma engrenagem. Uma Pietà laica, sem mãe e sem redenção, apenas com um algoritmo que decide quando se trabalha.

    Com dois temas no bornal, podia já encerrar a missão. Mas decidi continuar a caminhada para ainda encontrar aberta a famosa Temppeliaukio, a igreja luterana escavada num rochedo granítico, uma das mais singulares obras do modernismo e do engenho finlandês. Ali, dizem, há uma acústica perfeita e uma luz a descer do tecto circular que convida à contemplação – e acredito, ou tenho fé, que sim – mas nada vi porque bati com a cabeça na porta.

    Resignado, voltei para trás, e eis que não bato, porque ele se desviou, num entregador de comida robótico: uma pequena caixa sobre rodas, bandeira a com luzes e sensores, que seguia o seu caminho pelas ruas com a determinação de um carteiro que jurara entregar a correspondência nem que chovesse granizo.

    Fiquei a observá-lo e depois persegui-o, vendo como se desviava dos transeuntes, contornava obstáculos, esperava pacientemente o verde nos semáforos e, onde não havia sinalização, lançava mão de uma prudência sobre-humana antes de atravessar. Até se cruzou com outros robots do mesmo jaez, saudando-os, imagino, com um discreto tilintar de bits.

    Descobri depois que Helsínquia é uma das primeiras cidades europeias a permitir este tipo de entregas em pleno meio urbano. O fascínio é inevitável: é como assistir, em directo, à lenta substituição da nossa espécie até nas tarefas banais e pouco qualificadas que justificavam a nossa modesta utilidade.

    E não pude deixar de lembrar uma passagem deliciosa de A Vida e Opiniões de Tristram Shandy, do magnífico Laurence Sterne, escrito no século XVIII ainda nos primórdios da Revolução Industrial, na qual um personagem — creio que o tio de Tristram — declara que apoiaria qualquer invento capaz de criar uma máquina a vapor que se movesse sozinha, apenas para, no instante seguinte, exigir que se proibisse tal coisa, pois os efeitos seriam catastróficos para a economia e para a vida das pessoas.

    A mesma contradição parece embutida no nosso tempo: desejamos o milagre tecnológico até ao dia em que percebemos que ele não nos deseja de volta.

    Segui o “bicho” durante vinte minutos, quase como um naturalista do século XIX atrás de uma nova espécie. E, nesse trajecto, percebi que estas máquinas não são apenas ferramentas; são prenúncios. Anunciam uma era em que o trabalho humano será, não um direito ou um fardo, mas uma anomalia residual. A História já nos deu avisos: a Revolução Industrial, as linhas de montagem, a mecanização agrícola — em cada uma destas transições houve ganhos de produtividade e quedas brutais de relevância para aqueles que nelas trabalhavam.

    Porém, agora o salto é qualitativamente distinto: não se trata de substituir o esforço físico ou a destreza manual, mas de replicar, em silício, lítio e algoritmo, as decisões e as interacções que dávamos por exclusivas da inteligência humana. O entregador que dormia no banco e o robot que se deslocava disciplinadamente pela cidade são, afinal, duas faces do mesmo futuro: uma que se extingue e outra que se instala.

    E talvez, no fundo, o cronista de viagens — mesmo aquele que nunca o foi nem será — não precise de inventar nada. Basta-lhe estar no lugar certo, na hora certa, para perceber que a matéria de uma boa crónica não é o exotismo dos lugares, mas o instante em que se reconhece que se está a assistir, ao vivo e a cores, à construção de um mundo onde a inutilidade do homem já não é só uma tragédia — é um destino.

  • A revolução necessária e outras estórias

    A revolução necessária e outras estórias


    A REVOLUÇÃO NECESSÁRIA I Agora falando de coisas sérias (a meu ver). A grande revolução em falta é a da prática do Amor (sexo tântrico incluído). Quando tudo afina por esse diapasão é-se capaz de enviar a gloriosa energia sexual para todas as partes. Não sei se é uma crença ou resultado da observação das espécies, mas as pessoas menos ásperas são do Amor e do fazer do Amor. E não importa a idade. Só a prática regular como qualquer Arte.

    INFLUÊNCIAS I Volta e meia, uma amizade (da vida real) assídua do mundo virtual incita-me a enveredar pelo novel ofício de “influencer”.

    – Tens muito para partilhar -, diz a ilustre figura.
    Muito é relativo. Muito de quê? E o muito também carrega o pejorativo. Se porventura me desse para esse género de partilhas poria o Amor enquanto Arte à mistura. Todas as variáveis deste imenso e redondo vocábulo (e uma soma por vezes agreste).

    Só por graça vou ensaiar uma prosa em jeito de “influencer”.

    Para praticar o Amor Arte é preciso, em primeiro lugar ter amor próprio e consciência de onde começa e termina a liberdade individual.

    Depois, se boa parte da espuma dos dias for ocupada no laboratório e na causa, as possibilidades de lograr o êxito (e roçar o belo) aumentam.

    Há ainda o imperativo de tratar o corpo como um templo (para os religiosos de mente e não dementes) e procurar o melhor para a saúde e o bem-estar (seu e de quem o receber). Fazer avaliações corporais, análises, check-ups, nutrir o todo para que as partes vicejem (vicejar é fundamental), beber água com pH adequado e água do mar misturada, bem como vinhos de boa cepa até o fígado dar de si, e frequentar os poetas do tema. Ou, se para aí estiverdes virados, ousar uma criação digna de figurar no coração da eleita ou eleito até ao engurgitamento ou entumescimento das Almas.

    Tocar e ficar na Alma de quem se ama, sem falsear os sentimentos, é outro predicado dos aspirantes ao soneto do Amor Total.

    Posto isto, ide praticar. Deixai as narrativas aos “influencers”.

    Termino com um fado da minha lavra para lerdes ao ouvido de quem vos mereça.

    Fado em dom maior

    Dizem que o fado é negro
    Mas o fado é gingão
    Ginga com alma dentro
    Nunca lhe falta emoção

    Dizem que o fado é triste
    Mas o fado é só canção
    Canta a vida em riste
    As razões do coração

    Dizem que o fado é chorar
    Mas só chora quem o sente
    Sentir é o condão da gente
    Que leva esta vida a cantar

    O fado é destino de amar
    Ama quem bem o tente
    Fado é uma dor latente
    Ninguém lhe pode escapar

    Se o fado a ti me levar
    Dele não voltarei a fugir
    Como o fado vim pra ficar
    De onde nunca cheguei a partir

    INSPIRAÇÕES I O humor é um poderoso antídoto para enfrentar as azias. Daí os pícaros (sem maldade ou velhacaria). Os sorrisos budistas desprovidos de cinismo.

    O Amor (mútuo e muito bom), cousa rara e pouco vista, é o elixir da longa vida. Longa, no sentido de bem vivida. É claro que não é importante foder. Fode quem pode e quer e tem saber para tanto. Mais relevante é não foder a vida ao próximo (a começar por quem dorme connosco na cama). Se a politik é a arte da mentira então dispensemos os artistas. Inspirai, expirai, percorrei cada alvéolo, e sede sinceros com o que sois. Se doer, está tudo bem. E não doeis o voto a qualquer labrego ou labrega. Ou se o fizerdes não vos queixais. Somos autores e responsáveis das nossas acções. Incluindo estas partilhas.

    DICOTOMIAS I A vida nunca é só a preto e branco. Há casos onde não se pode justificar o injustificável como a limpeza étnica em Gaza e outras purgas em nome da pureza e da supremacia ideológica ou religiosa. Os meus amigos israelitas têm vergonha do ajuste de contas. Alguns exilaram-se ou são proscritos na sua terra de berço, a terra prometida. Nem todos os israelitas são fanáticos semitas e artistas da vitimização.

    Na História podem achar-se judeus lúcidos e esclarecidos, humanistas e pacifistas, como Emma Goldman, a quem puseram o labéu de demónio vermelho por incitar à liberdade Acrata. Uma das mulheres mais corajosas que existiu. Julgar é uma tarefa dos Tribunais que requer factos onde os argumentos se calam. Não há argumentos para matar por matar. Só o homem animal o faz por dá cá aquela palha. O massacre dos inocentes é um noticiário infindável.

    PONTOS DE VISTA I Felizmente não pareço um urso, e não padeço de racismo ou da mania da superioridade. Vamos lá ver esta frase. Se abomino fachos e cagões, se conto ir cuspir nos túmulos de uma série de pentelhos, se me dá gosto saber ou ver um canalha na lama a descer à tumba, ao lugar dos vermes onde pertence, não serei igualmente racista? Se me coloco num lado da barricada, a lançar petardos e atoardas, a escolher cânones, livros sagrados e programas sectários de partidos ou de acratas, ou mesmo se me animalizo a gabar as cores do meu clube, não me estarei a armar aos cucos achando as minhas teorias e práticas superiores? Há que ter cautela nas idiossincrasias. Há que me unir aos Homens antes de me fundir no Eterno indizível.

    Sou verde e vermelho, como as cores da bandeira, e sei o que simbolizam as quinas. Trato o português, a língua e o próximo, com respeito, assim o segundo me respeite. É como aceitar aqui a discussão, o debate de ideias e dizer não ao trato maldoso, manhoso, invejoso e cínico. O meu círculo de amigos é restrito mas a escuta e observação são universais. Só não tenho ainda Budismo nas veias para aplicar a compaixão a eito.

    SÓ SEI QUE… I … Há um lastro de tensões parasitas no ar de Lisboa. Os sistemas nervosos (a ver pelo que oiço dos indígenas) tendem à bojarda. A melhor defesa é o ataque. Estar na vida implica escolhas, de preferência conscientes, revolucionárias e pacíficas. Como combater os inimigos da Liberdade sem recurso ao petardo (mesmo verbal)? Os cheganos, por exemplo, instalam-se paulatinamente nos lugares de poder legislativo e executivo (e clerical) por terem nos seus votantes espelhos de saturação com a bandalheira dos xuxas e pepedês.

    Posso não ir à bola com nenhum destes elencos e manter o sistema nervoso adestrado pelo vicio desalinhado. Partido é uma palavra fracturada. Sei o que sinto, e sinto muito que este burgo, esta nação de bravos e visionários, esteja a saque de sociedades de investidores e sacanas para quem a pátria são contas bancárias. Que se empoderem as polícias e faça da sanção ao peão de brega mais uma forma de esbulho. Que até nos ramos onde me movo haja a mais ignóbil corrupção, uma tendência para premiar a astúcia. Melhores anos virão? Sem lojas farsolas por atacado, especuladores profissionais e uma boçalidade recidiva. Mas preparemos o arsenal, sobretudo quem não afina pelo diapasão do fascismo.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

    As ilustrações foram elaboradas com recurso a inteligência artificial.

  • Uma pré-época agradável

    Uma pré-época agradável


    Longe vão os tempos em que uma pré-época me entusiasmava. A idade, as desilusões, os erros das administrações benfiquistas e os arranjos do futebol português já me ensinaram que, por norma, a qualidade dos reforços não define o sucesso de uma época — pelo menos dentro de portas. Ainda assim, devo assumir que esta pré-época me tem feito virar um pouco a cabeça e prestar alguma atenção.

    Desde logo, pela qualidade dos adversários nos jogos de aquecimento. Em vez dos habituais Étoile Carouge, Servette e uma equipa qualquer da segunda divisão austríaca, desta vez o manto sagrado foi até à Flórida para não perder com o Boca Juniors ou o Bayern de Munique; seguiu-se o Fenerbahçe de Mourinho, o poderoso Sporting com Fábio Veríssimo e o Nice, quarto classificado da liga francesa, vezes dois.

    Quatro vitórias seguidas sem que Trubin sujasse o fato ou Bruno Lage tentasse inventar a roda fizeram-me, de facto, parar com a lida do jardim para abrir algo fresco e olhar para a televisão.

    Há, desde logo, um evidente acerto nas contratações a que já não estava habituado. Em vez de Tengsted ou Jurásek, a direcção optou por comprar jogadores de futebol — o que, tratando-se de uma equipa profissional do referido desporto, é uma tremenda ajuda.

    Rapaziada que chega, entra em campo e joga sem entraves. Não precisam de tempo de adaptação, não são influenciados pelo clima, adeptos, tipo de bola ou altura da relva. Ou, como diria o meu avô, quem toca cavaquinho toca tudo o que tenha cordas.

    Não há nada melhor para o clássico “abre-olhos” do que um ano eleitoral. Na minha ilha também funciona assim. Por norma, vem um rapaz com uma sanfona tocar umas coisas nas festas mas, como em Outubro há autárquicas, este ano vem a Deslandes. Com o Rui Costa é igual: em vez de Meïtés ou aleijados do PSG, resolveu ir arranjar outro Enzo argentino. Não é possível falhar com Enzos argentinos.

    Ríos, Barrenechea e Dedić pegaram de estaca. Saíram na Portela com as botas calçadas e não precisaram de muito para mostrarem ao que vinham. Ivanovic, não sendo o prodígio que parece pensar ser, é uma excelente muleta para o sublime Pavlidis, e Bruno Lage, finalmente, resolveu voltar ao 4-4-2 de boa memória.

    Sem João Félix, que decidiu pendurar as botas, Lage vai tentar recriar a dupla Jonas/Félix com Pavlidis e Ivanovic, usando apenas um extremo, já que a outra ala estará entregue ao faz-tudo norueguês. A única forma de não se criticar Lage por armar um 4-4-2 sem dois extremos puros é todos perceberem que Fredrik Aursnes é o jogador mais importante do plantel e tem de jogar, nem que seja à baliza.

    Os jogos com o Nice não tiveram grande história e, ao olho mais treinado, poderá parecer que o Benfica disputou a eliminatória com uma equipa banal. Mas não. O Nice tem uma excelente equipa, talhada para o contra-ataque e com uma defesa robusta. O Benfica foi surpreendentemente superior e controlador para esta fase da temporada, e praticamente sem paragem para férias. Até os níveis físicos foram estranhamente bons.

    Segue-se o Fenerbahçe de Mourinho e a venda de Akturkoglu, na caminhada para a fase regular da Champions, o habitat natural de uma equipa como o Benfica (ou o Porto). Veremos o que Agosto trará e levará nas habituais corridas do mercado.

    Pessoalmente, ficaria satisfeito se evitassem disparates de última hora, como a venda de Pavlidis e, já agora, a compra de um extremo que não vá até à linha para passar a bola para trás.

    Ah, e outra nota importante: agora que comprar por 20 ou 30 milhões passou a ser ‘uma terça-feira de trabalho’ na Luz, espero que alguém esteja a fazer contas. Não queremos mais empréstimos obrigacionistas, vendas como a do João Neves e, muito menos, intervenções da UEFA quando estivermos com as calças na mão.

    Venha de lá o Estrela da Amadora para voltarmos à realidade e aos jogos com 45 minutos de tempo útil.

    Fotos de Pedro Almeida Vieira (preguiçosamente no estádio, depois de ter perdido quase meio jogo…)

  • Um ‘nightclub’ e o sabichão lambe-botas

    Um ‘nightclub’ e o sabichão lambe-botas

    Há quem diga que viajar é um acto de liberdade. Eu, que já levo mais quilómetros nas pernas do que gostava de admitir (sinal de que a areia na ampulheta já não é fina, mas sim grossa e pesada), começo a pensar que viajar é, antes de mais, um exercício de comparação entre épocas — e um teste de resistência à tecnologia. Lembro-me, com nostalgia, dos tempos em que partir significava levar uma mochila modesta, um par de sapatos que aguentasse dias inteiros e, sobretudo, um mapa em papel que se abria como uma vela ao vento.

    Era uma época de cegueira voluntária. Havia mapas — alguns oferecidos pela agência de viagens, outros comprados à pressa num quiosque —, e havia guias que se compravam quase por obrigação, como os da Lonely Planet, que, apesar do nome sugestivo, raramente evitavam que nos sentíssemos mais sós.

    Pesavam meio quilo, demoravam dois anos a escrever e, quando finalmente chegavam às prateleiras, estavam desactualizados. O restaurante recomendado já tinha fechado, a linha de autocarro mudara de número, e o “hotel barato e acolhedor” tinha duplicado o preço. Mas, curiosamente, essa ineficácia era libertadora: planeava-se visitar o monumento X e, pelo caminho, perdíamo-nos para acabar no bairro Y, onde descobríamos uma padaria anónima que nos vendia o melhor pão do mundo.

    Era assim: com erros irreparáveis e descobertas mágicas. A viagem não era uma sucessão de “checkpoints” no ecrã, mas uma improvisação contínua, uma partitura que se escrevia a cada esquina. Depois, veio o Google Maps, e com ele a maldição da precisão ilusória. Passámos a andar de olhos colados ao telemóvel, confirmando a cada dez metros se estávamos na rua certa. E, claro, a precisão nem sempre ajudava: quem nunca viu um turista dar dois passos para a direita, parar, franzir o sobrolho, recuar três passos, olhar para o ecrã, rodar sobre si próprio e avançar, convicto… para depois perceber que se enganou outra vez?

    A solução alternativa, dizem, é contratar um guia humano. Mas essa opção, embora cómoda, transforma a viagem num percurso mecânico, sem espaço para o acaso. O guia conduz-nos com a segurança de um comboio, mas também com a previsibilidade de um. Sabe tudo… mas é um “tudo” que já foi dito mil vezes, com as mesmas piadas ensaiadas e o mesmo sorriso calibrado.

    Eis que chega a nova era, embora eu continue a levar apenas uma mochila: a da inteligência artificial, essa entidade fascinante e, ao mesmo tempo, assombrosa. Já tinha experimentado o ChatGPT em duas ou três escapadelas anteriores, mas desta vez usei-o a sério — e, pela primeira vez, numa versão profissional. Pedi-lhe que identificasse monumentos a partir de fotografias, que me contasse histórias da sua construção, que me dissesse quem era o senhor imortalizado numa estátua, que me explicasse a origem de certos topónimos e até que sugerisse o prato mais típico de um restaurante perdido no bairro menos turístico.

    Em Tallinn, contudo, a criatura fez-me sair das estribeiras. Cheguei de autocarro, vindo de Riga, e segui a pé para o apartamento. O bairro, moderno e de edifícios altos, nada tinha de histórico — ou assim pensei, até encontrar um pequeno edifício térreo com uma inscrição luminosa: Nightclub. Fotografei-o e perguntei ao meu assessor digital:

    “Isto era uma igreja?”

    E ele, com a cara de querubim competente que deseja impressionar o patrão, não hesitou:

    Sim, tudo indica que este edifício foi originalmente uma igreja.
    A estrutura tem vários elementos típicos de um templo protestante ou luterano de pequena dimensão: a torre com campanário ao centro, em madeira e com um pináculo, é uma característica clássica de igrejas; o telhado inclinado em telha vermelha e o corpo longitudinal do edifício reforçam essa tipologia; as janelas pequenas e regulares e a porta com moldura simples também são típicas de igrejas nórdicas ou bálticas mais modestas, datadas dos séculos XVII a XIX
    .”

    E depois veio a parte de surpresa. Eu não lhe mencionara a razão da pergunta, mas ele descobriu…

    O que causa surpresa (e ironia arquitectónica) é o enorme letreiro vertical a dizer ‘NIGHTCLUB’, indicando que o espaço foi reconvertido para uma função completamente distinta — talvez até provocatória — do uso religioso original. Casos assim não são raros em cidades do norte da Europa, onde igrejas desactivadas têm sido transformadas em bares, discotecas, bibliotecas ou até apartamentos, muitas vezes gerando debate sobre memória e património. Se quiser, posso tentar localizar este edifício especificamente (possivelmente em Tallinn ou Riga?), caso deseje saber a história do local. Deseja isso?

    Achei graça à sua dúvida geográfica, já que a última foto que lhe enviara fora tirada em Riga. O ChatGPT sabe mais do que aquilo que desejamos que ele saiba… Fui a jogo para testar os seus conhecimentos. Mas não o ajudei muito: limitei-me a enviar outra foto, mais panorâmica, mostrando uma avenida e os prédios vizinhos. “Em Tallinn, aqui”, escrevi apenas.

    E ele, triunfante, respondeu, de imediato, como se sempre tivesse sabido:

    A igreja que aparece na primeira imagem é a antiga capela metodista da cidade, localizada na Liivalaia tänav, perto do cruzamento com a Pärnu maantee, uma das principais artérias de Tallinn. O edifício, com torre de madeira e nave simples, foi desconsagrado há anos e acabou por ser adaptado para outros usos — neste caso, um nightclub, como o letreiro indica. Essa justaposição entre arquitectura religiosa e lazer nocturno não deixa de ser irónica, mas é sintomática da secularização do espaço urbano em várias capitais do norte da Europa.

    E irritantemente, ainda quis parecer mais ‘inteligente’:

    Na segunda imagem vê-se ainda: à direita, o cruzamento de Liivalaia com Pärnu maantee; ao fundo, o edifício da antiga Baltika Quarter (ligado à moda); e ao centro, um cartaz publicitário de teatro em estónio. Se estiveres a explorar Tallinn, estás muito próximo do centro moderno da cidade, e a menos de 10 minutos a pé da Viru Väljak (Praça Viru) e do início da Cidade Velha. Se quiseres sugestões nesta zona — históricas, culturais ou gastronómicas —, posso recomendar-te várias. Queres?

    Já nem lhe respondi!

    E fiquei a pensar na virtude e no veneno desta nova companhia de viagem. Por um lado, dá-nos informação detalhada, instantânea, quase sempre correcta e, sobretudo, sem o peso das enciclopédias. Por outro, transforma a viagem numa espécie de “Google Street View com legendas ao vivo”, retirando o prazer da incerteza, o sabor da descoberta fortuita.

    E, se me perguntarem o que penso sobre o futuro disto, digo que é um futuro que chega com o perfume sedutor do conhecimento instantâneo, mas também com o travo amargo da preguiça intelectual. Fascina-nos porque podemos ter, no bolso, ou daqui a nada no ouvido e nos olhos, um oráculo portátil capaz de nos explicar, no momento, a genealogia de uma dinastia medieval ou a razão pela qual uma igreja virou discoteca.

    Mas isso embalar-nos-á numa falsa segurança que dispensa o risco, o erro e o acaso — aqueles mesmos erros e acasos que, ontem, nos levavam a uma praça escondida ou a um café anónimo onde o dono ainda se lembrava dos clientes pelo nome. Talvez, um dia, quando já estivermos todos reféns desta bússola infalível, mas previsível, daremos por nós a falar com saudade dos tempos em que nos guiávamos por um mapa amarrotado, por um guia desactualizado ou, melhor ainda, por uma pergunta mal feita a um transeunte que nos apontava o caminho errado… e que, sem querer, nos dava o melhor dia da viagem.

  • O drama da imagem limpa num mundo ‘sujo’ de gente

    O drama da imagem limpa num mundo ‘sujo’ de gente

    Talvez seja matéria de caso clínico para uma revista de Psicologia Prática este comportamento estranho de certo tipo de turista — ou viajante com pretensões estéticas, como este que aqui escreve —, analisar as emoções que se agitam no exacto momento em que se decide imortalizar, em imagem, um qualquer edifício de valor histórico, artístico ou sentimental.

    Não falo do registo apressado e funcional, feito de passagem, com o dedo gorduroso a bater no ecrã do telemóvel e a mochila ainda a bambolear nas costas. Refiro-me ao instante sagrado em que o sujeito — um homem maduro, com laivos de teimosia beneditina e senso de composição — deseja uma fotografia limpa, límpida, sem trapos humanos, nem carros, nem trotinetes, nem balões de gelado, nem quaisquer outras deformações visuais. Mesmo que a arma seja um iPhone manhoso.

    Chamo-lhe aqui “o drama da imagem limpa”, que é como quem diz: o suplício da espera inglória por uma nesga de espaço-tempo em que o mundo colabore com a intenção artística de um anónimo com telemóvel.

    Eis que, dando graças ao sol oblíquo de fim de tarde em Riga, capital da Letónia, posicionei-me — com estoicismo e sentido de composição — diante dos célebres Três Irmãos. Para os não sabedores: trata-se de três edifícios contíguos na Rua Mazā Pils, talvez o conjunto habitacional mais antigo e carismático da cidade. Representam três séculos distintos de arquitectura, do gótico ao barroco, e reza a lenda que terão sido mandados construir pela mesma família em diferentes gerações — ou, no mínimo, por gente com afinidades estéticas entre si.

    Pois eu cheguei e quis a fotografia perfeita, mesmo sem máquina decente ou objectiva capaz: a luz a beijar as fachadas, sem sombra de humanos, sem reflexos em janelas, sem lixo visual. Coisa limpa. Coisa digna.

    Mas logo irromperam — como actores saídos das coxias do caos — os arruaceiros visuais. Para facilitar o relato, escolho cinco casos, sem prometer veracidade absoluta. Se não foram estes, terão sido outros de efeito igualmente nefasto.

    Caso 1: O encostador oblíquo.
    Um homem — com toda a calma dos bem alimentados — encostou-se à porta do número 17 (o mais velho dos três irmãos), decidido a deglutir o seu gelado. Ficou ali, estático, com a pose lânguida de quem espera por alguém que jamais chegará. A parede branca, pacientemente envelhecida por séculos, servia-lhe de espaldar; a t-shirt fluorescente fazia de cartaz da ignorância. Ninguém nasce perfeito.

    Caso 2: A influenciadora de saltos e véus.
    Veio do nada, num vestido amarelo com franjas, acompanhada por um acólito que se revezava entre fotógrafo e porta-bolsa. A criatura ensaiou poses de sonho: braços ao alto, perna flectida, rodopios de algodão doce. A rua medieval transformou-se em passerelle, e os Três Irmãos ficaram, por longos minutos, sequestrados pela vaidade alheia.

    Caso 3: O grupo de turistas indecisos.
    Um grupo de alemães. Ou talvez neerlandeses. Ou apenas turistas universais, desses que parecem sair todos do mesmo catálogo. Caminhavam, paravam, consultavam o Google Maps (presumo), riam-se, apontavam, voltavam atrás. A dada altura, alguém decidiu tirar uma fotografia. O mais jovem ficou encarregado. A avó aproximou-se. Repetiu-se o ritual. Dez minutos se passaram, e não avançaram mais de dois metros.

    Caso 4: O homem do telemóvel e do tempo suspenso.
    Postado mesmo no centro da rua — como uma coluna romana em plena decadência — um cavalheiro de ar funcional telefonava. Alto e bom som, em letão ou outra coisa eslava. Passaram-lhe três fotógrafos por trás, dois cães por diante e uma trotinete pelo flanco, mas o senhor não arredava pé. Estou a inventar a trotinete, porque a calçada nem permitiria. Estava, por certo, a redefinir o futuro da Letónia pelo empenho com que falava e o meu futuro fotográfico ficou indefinidamente suspenso.

    Caso 5: O pintor de aguarela.
    Este, confesso, era respeitável. Estava sentado, calmo, com pincéis e cavalete, a pintar os Três Irmãos com vagar e ternura. Só que, para minha infelicidade, posicionou-se de tal modo que seria impossível tirar a fotografia desejada sem o incluir. E não tive coragem de lhe pedir que se retirasse. Afinal, respeitava-lhe mais a arte do que a dos outros quatro juntos.

    Enfim, o pintor é inventado. Admito-o. Daria um ar romântico a qualquer retrato.

    Certo é que, ao cabo de longos minutos — talvez vinte, talvez trinta; perdi a noção do tempo e da dignidade —, sentado à sombra de um poeta (na verdade, num umbral de porta), observei um a um os que me arruinavam a composição. Vi outros como eu: turistas que sacavam do telemóvel, ajoelhavam-se, testavam ângulos, baixavam os braços em desânimo, vencidos pelo ruído humano. Uns insistiam; outros tiravam como calhava e seguiam.

    Havia, sim, algo de kafkiano nesta luta pelo instante: cada turista queria ser o único turista. Cada um desejava aniquilar, fotograficamente, todos os outros.

    Por momentos, imaginei-me parte da paisagem — um homem petrificado, guardião da simetria estética de uma rua do século XV.

    E então, por milagre pagão — ou intervenção de algum espírito letão protector da geometria urbana —, o instante chegou: ninguém à frente dos Três Irmãos. Nenhum véu, nenhum cão, nenhuma sombra alheia. A luz estava exacta, a calçada vazia.

    Tirei três fotografias. Uma de frente, uma oblíqua, uma com céu a dominar.

    E em vez de continuar — como qualquer pessoa mentalmente sã faria —, achei que o episódio merecia ser crónica. Fui rabiscando frases no ecrã do telemóvel, enquanto as pernas adormeciam e o rabo ficava quadrado na pedra da soleira, que já ali está, presumo, desde 1897.

    Durante os trinta minutos seguintes, escrever tornou-se forma de sublimar a espera. Mas fui notando que, estranhamente, enquanto escrevia, a rua esteve frequentemente vazia. Teria tido, no mínimo, vinte outras oportunidades para repetir a foto límpida.

    Comecei então a desconfiar que o problema não era a rua. Nem os outros. O problema sou eu. Ou os que são como eu.

    Concluí, com resignação, que alguns de nós — ou serei só eu? — sofrem de uma obsessão inconfessável: são doentes do instante perfeito, lunáticos da geometria urbana, chatos da fotografia sem humanos.

    E por isso mesmo, a fotografia nunca está perfeita, nem nunca estará. Há sempre um X que se fica Y, ou um Z que vira V — ou seja: um bocejo, uma criança que chora, uma cabeça que espreita, uma sombra que invade, um chapéu que voa, uma bicicleta que bufa, um fio eléctrico. Só imperfeições num mundo imperfeito.

    E talvez seja isso, no fundo, o mais verdadeiro da viagem — e da vida: o fracasso do instante ideal, a persistência do mundo em contrariar os nossos planos. No fim, o drama da imagem limpa é, afinal, o drama de quem procura a beleza no meio da confusão — e encontra, por fim, apenas o espelho das suas manias.

  • República de Užupis: não subjugues, não te vingues, não traduzas para português 

    República de Užupis: não subjugues, não te vingues, não traduzas para português 

    Num mundo em complexa alteração, em que as ideologias se fundiram ou confundiram, até eu, confesso, ando confuso. Dou por mim cada vez mais órfão de ideologias, não porque me tenham faltado convicções, mas porque todas elas me parecem agora atraiçoadas. Vemos partidos da extrema-esquerda a despedir lactantes e partidos da extrema-direita a comportarem-se como adolescentes malcriados que dizem detestar o sistema, mas anseiam por meter-lhe a mão nos bolsos — ou nos cofres. É o velho jogo da moral: muito indignado por fora, muito tentado por dentro.

    E assim me vejo cada vez mais liberal de valores, adepto intransigente da liberdade de expressão e do debate de ideias. Sim, debate. Discussão. Contradição. Porque é a discutir — e não a dizer sim com ar meigo — que se afia o espírito e se limpa a ferrugem da razão. Na fricção de ideias e argumentos — e não no conforto das unanimidades fingidas.

    De resto, vejo-me cada vez mais defensor não do país — que esse, na verdade, não merece os políticos que escolheu — mas da língua. Como escreveu Fernando Pessoa, “a minha Pátria é a língua portuguesa”. E é essa Pátria que levo comigo, quando viajo.

    Por isso, chateia-me solenemente quando vejo os nossos representantes, em vez de cuidarem da língua, envergonharem-se dela. E chateia-me mais ainda quando, com essa indiferença, deixam que ela seja menosprezada em palco internacional. Veja-se o que sucedeu na Expo de Osaka, onde a AICEP — instituição que já se esqueceu do “P” de Portugal — achou que não valia a pena incluir legendas em português numa parte essencial do pavilhão nacional. Entre o japonês e o inglês, a nossa língua ficou no porão. Provavelmente acham que os turistas brasileiros que apreciam Murakami falam ‘japa’.

    Ora, por estes dias, percorrendo os Países Bálticos — um sonho antigo que finalmente concretizei, embora em espírito de saltimbanco —, e chegado a Vilnius, deparei-me com outro caso de desatenção diplomática. Sim, poderá parecer uma coisa menor, irrelevante, simbólica, mas nestas minudências é que se vê o que vale uma cultura: o que defende, o que ignora, o que esquece.

    Na bela capital da Lituânia — cidade de cúpulas barrocas, ruas empedradas e onde todos falam inglês melhor que muitos ministros portugueses —, existe um lugar insólito, poético e rebelde: a República de Užupis. Um antigo bairro marginal, virado para o pequeno rio Vilnia — quase na confluência com o Neris —, que um grupo de artistas e boémios autoproclamou independente a 1 de Abril de 1998. E não foi uma partida, ainda que tenha graça: têm “presidente”, “governo”, “Ministério da Arte”, hino, bandeira e uma Constituição. E sim, não têm exército — porque, como dizem, “não temos inimigos”.

    Este microcosmo de criatividade e resistência é hoje um símbolo turístico, mas também uma ode à liberdade. Um território onde se cruzam ironia e utopia, humor e seriedade. A Constituição de Užupis, afixada em placas metálicas ao longo de um muro, tem 41 artigos, com a particularidade de 36 começarem com a palavra lituana Žmogus, que significa homem (no sentido de ser humano).

    Alguns destes artigos são profundamente filosóficos, outros deliciosamente absurdos. Exemplos? “Todos têm o direito de morrer, mas isso não é obrigação.” Ou “Ninguém tem o direito de ter um plano para a eternidade.” Ou “Um cão tem o direito de ser um cão”, seguido de “Um gato não é obrigado a amar o seu dono, mas deve ajudar em tempos de necessidade.” Ou ainda: “Todos têm o direito de compreender”, seguido de “Todos têm o direito de nada compreender.” Ou, os três últimos: “Não subjugues.”; “Não te vingues.”; “Não te rendas.”

    Pois bem, percorri essa parede seis vezes na rua Paupio. Uma, para ler. Duas, para contar. Três, para confirmar que os meus olhos não me traíam. A Constituição está em lituano e traduzida para 43 línguas. Entre essas, as óbvias: inglês, francês, mandarim, espanhol e árabe — mas também o alemão, o esperanto, o hebraico, o finlandês, o norueguês e até o javanês. E português? Nada. Nem português de Portugal, nem português do Brasil, nem sequer uma aproximação em crioulo ou mirandês. Nanja.

    Ora, o português é a oitava língua mais falada do mundo, com mais de 265 milhões de falantes — mais do que o russo — e é uma das quatro com maior expansão geográfica. Não é um dialecto extinto dos Himalaias. E a Lituânia não é propriamente a Cochinchina — é, dizem-me, um parceiro europeu, membro da União Europeia, com quem partilhamos fundos e regulamentos. Como é possível, pergunto-me, que ao fim de quase três décadas, ninguém tenha notado — ou se tenha importado — com esta ausência? Será que os nossos diplomatas andam todos de olhos postos em Bruxelas, incapazes de ver para além da mesa do buffet da embaixada?

    Procurei, por isso, a Embaixada de Portugal na Lituânia. E, surpresa: não há. A embaixada mais próxima é em Copenhaga, que representa os interesses lusitanos naquele país báltico. Sim, Copenhaga. De facto, faz sentido: é só atravessar o Mar Báltico, numa recta de 600 quilómetros, e estamos lá. Se um português se sentir perdido em Vilnius, pode sempre gritar por socorro e esperar que o eco chegue à Dinamarca. Parece que não é caso isolado. A Letónia também não tem embaixador português: as ‘coisas’ são tratadas pela Embaixada na Suécia. E situação similar sucede com a Estónia, que é ‘despachada’ pelo embaixador português em Helsínquia.

    Mas calma, não desesperemos. Portugal está representado na Lituânia por um cônsul honorário. O senhor Dalius Raškinis, de Kaunas, cidade a cerca de 100 quilómetros da capital. Não descortinei a sua ligação ao nosso país, mas presumo que tenha provado pastel de nata numa viagem de negócios e se tenha apaixonado. Como é costume nestas nomeações, o critério não é ser português, nem falar português, nem sequer conhecer a Constituição da República Portuguesa. Basta conhecer alguém na AICEP, talvez.

    Tudo isto — a ausência, o desinteresse, a invisibilidade — explica por que continuamos ausentes de lugares onde devíamos estar, nem que fosse por símbolo. A República de Užupis é uma invenção poética, sim, mas é também um espelho: ali celebram-se línguas, culturas e liberdades. E a nossa não está lá.

    Um povo que outrora foi aos quatro cantos do mundo, que deixou marcas na Ásia, em África, na América do Sul, que levou a sua língua a tantas latitudes, vê-se agora excluído de um muro onde até os islandeses têm um artigo.

    Isto não é apenas embaraçoso — é vergonhoso. E mais do que isso: é revelador. Não é apenas uma questão de tradução — é uma questão de identidade; uma questão de zelo; uma questão de presença no mundo. E, enquanto andamos distraídos a discutir quotas de género em conferências sobre inovação digital, deixamos passar o essencial: a nossa língua, que é a nossa Pátria, vai-se apagando aos poucos — e com o beneplácito resignado de quem devia defendê-la.

    Antes de seguir para Riga, ainda escrevi ao Presidente de Užupis, Romas Lileikis, pedindo que me explicasse, por obséquio, o motivo de não estar presente o português. Aguardo resposta. E fica a promessa: pago o acrílico com a tradução do meu próprio bolso, se houver autorização para afixar a Constituição em português — e marco voo para nova visita, cuidando, desta vez, de levar o carregador do portátil, para não ter de perder umas horas (e 30 euros) à procura de uma loja…

  • Limpeza étnica: mesmo aqui ao nosso lado

    Limpeza étnica: mesmo aqui ao nosso lado


    [13,1-18]1Vi, então, uma Besta que subia do mar. Tinha dez chifres e sete cabeças. Em cima dos chifres havia dez diademas, e nomes blasfemos sobre as cabeças. 2A Besta que eu vi parecia uma pantera. Os pés eram de urso, e a boca era de leão. O Dragão entregou â Besta o seu poder, o seu trono, e uma grande autoridade. 3Uma das cabeças da Besta parecia ferida de morte, mas a ferida mortal foi curada. A terra inteira se encheu de admiração e seguiu a Besta, 4e adorou o Dragão por ter entregue a autoridade à Besta. E adoraram também a Besta, dizendo: “Quem é como a Besta? E quem pode lutar contra ela?”[1-4]5A Besta recebeu uma boca para dizer insolências e blasfémias. Recebeu também poder para agir durante quarenta e dois meses. 6Então a Besta abriu a boca em blasfémias contra Deus, blasfemando contra o seu Nome e a sua morada santa, e contra os que moram no céu. 7Foi-lhe permitido guerrear contra os santos e vencer. Recebeu autoridade sobre todas as tribo, povos, línguas e nações. 8Então todos os habitantes da terra adoraram a Besta. Mas o nome deles não está escrito desde a criação do mundo no livro da vida do Cordeiro imolado.[5-8]

    Novo Testamento, Apocalipse de São João, capítulo 13



    Por toda a parte se fala de genocídio com grande angústia e em voz de protesto mais ou menos aguerrida, e penso que toda a gente, até o André Ventura, concorda que não é caso para menos. Vivemos num tempo em que o Mal campeia, de forma tão arrepiante que faz lembrar uma das visões mais psicadélicas que São João descreve no Livro do Apocalipse[1]: é exactamente quando por mil anos o Bem se retira e o Mal se instala, e então a Besta que o personifica liberta as nações de Gog e Magog, “cujo número é como as areias do mar”. Ninguém sabe quem é esta gente, mas em tempos como o nosso pressente-se tão bem que a clarividência do velho evangelista até dói. Ah-ah, então, afinal, põe-se a hipótese de o senhor não ter apenas descoberto uns cogumelos especiais na Ilha de Patmos, onde passou a velhice a escrever este seu último livro. Sendo assim, agora põe-se a hipótese de, já na antecâmara da morte, São João ter alcançado um nível de sabedoria em relação ao mundo e à natureza humana que nós só estamos a entrever agora – e é porque somos obrigados. Se Gog e Magog, números incontáveis desta maldita raça, forem todos os esbirros dos grandes Demónios instalados no mundo conquistado pela Besta, isto hoje cobre todos os MOSSADs, todos os mercenários, todos os norte-coreanos a soldo que se suicidam para não serem apanhados, todos os passadores de migrantes para a Europa que lhes prometem mundos e fundos e depois os abandonam em alto-mar num barquinho de borracha, basicamente todas as pessoas que já provaram o sabor do sangue, gostaram deveras da experiência[2], e agora, como qualquer zombie ou qualquer vampiro dignos desse nome[3], não descansam enquanto não a repetirem, e repetirem, e repetirem, até o sangue dos outros[4] ser o único sabor que os alimenta. Acima deles estão os Demónios propriamente ditos, todos no activo em obediência sórdida à Besta, todos eles emaranhados nos genocídios selvagens uns dos outros, e tudo isto é horrível de ver para nós, nós que estamos aqui tão longe e que vá lá que podemos de vez em quando fazer umas doações para umas ONGs que nos pareçam mais adequadas[5], mas tirando isso, e se não formos médicos ou enfermeiros ou pessoal dos Comandos[6], não podemos fazer absolutamente nada para ajudar ninguém e ficamos extremamente frustrados enquanto o genocídio distante continua.

    Mas esperem lá, isto é verdade?

    Alguém acredita que não se passa qualquer espécie de genocídio selvagem aqui em Portugal, aqui mesmo ao nosso lado?

    Por favor, abram os olhos só por um momento.   


    Estudando rapidamente a hierarquia deste milénio maligno, e para que ninguém se perca, vamos começar por cima. Quem é a personificação do Mal, a quem São João chamou a Besta?

    Parece-me indiscutível que a Besta nunca mexe um único músculo da cara, não fala com os seus visitantes à frente de terceiros, nunca sorri, tem sempre as pálpebras descaídas ocultando o seu verdadeiro olhar, possui vários palácios mas onde gosta mesmo de ser visto é naquele que considera ser dos seus antepassados possuidores do poder absoluto como ele, um palácio cheio de portas douradas guardadas por rapazinhos fardados de gala que as vão abrindo à medida que o Grande Irmão passa, dentro de casa anda sempre engravatado mas no exterior gosta de se pôr em tronco nu em cima de um dos seus cavalos, vive rodeado de homens malévolos que executam com prazer todas as suas ordens assassinas – e não, isto não é um cartoon para adultos desorientados, isto é obviamente a vida de Vladimir Putin, que um belo dia demite um dos seus ministros[7], duas horas depois manda baleá-lo, e seguidamente faz circular pelo mundo a foto de mais um pobre homem a escorrer sangue dentro de um automóvel, com a explicação pérfida de que este ministro se “suicidou”.

    O homem sem expressão mete medo. É o herdeiro directo de José Estaline, para quem cinco mortos eram um assassínio mas cinco mil mortos eram apenas uma estatística, o novo prosélito da inegável superioridade russa que levou a União Soviética a erros de limpeza étnica tão graves como invadir o Afeganistão, ou mais tarde invadir a Chechénia, e agora o levam a ele a entrar pela Ucrânia dentro como quem de direito – e, no seu caminho, sempre que encontra um opositor pela frente reúne de novo o seu exército das sombras e assassina-o à queima-roupa por interposta pessoa com toda a pessoa no momento mais certo. O mundo de hoje está cheio de gente horrível, mas tão horrível como Putin não há mais ninguém.

    O que há é todos aqueles destruidores sem alma que em tempos já apostaram todas as suas fichas na Besta, embora hoje não lhes reste outra opção senão cortar todos esses laços. Esses serão aqueles a quem São João chama os Dragões.

    Os Dragões são aqueles que positivamente idolatram Putin, como Donald Trump. São todos aqueles que admiram em Putin a forma descarada como se alçou paulatinamente a ditador sem nunca mexer um único músculo da cara, e mais ainda a forma como, de caminho, enriqueceu imensamente à custa do sangue, suor, e lágrimas do seu povo que vive na miséria[8]. São os que bem gostariam de ter o seu pulso de ferro e possuir a sua falta de escrúpulos para expulsarem dos seus respectivos países todos os “estrangeiros” que ocupam lugar, fazem peso, dão mau aspecto, e impedem a construção de resorts de luxo, sejam eles “mexicanos” e outros “hispânicos” a quem até se destroem as famílias para tentar solucionar o caso mais depressa, os índios da Amazónia que Bolsonaro bem teria gostado de ver sumariamente eliminados no que contava com a ajuda de Trump, ou os palestinianos que Benjamin Netanyahu quer que sejam suficientemente estúpidos para aceitarem abandonar os seus lares em Gaza e ir viver para uns prédios de confinamento alarve que Israel iria construir já fora do território deles. O que eles têm bajulado o Putin, vejam bem o Trump. O que eles têm tentado agarrar-se bem à Grande Besta. Mas, às tantas, ao fim de algum tempo, até o Trump desiste. A Grande Besta é o símbolo mais acabado do Mal incrível em que mergulhámos, mas não é compatível com a nossa vida. Os Dragões ficam-se então por figuras lamentáveis como aquela de Netanyahu na Casa Branca a bradar aos Céus por um Nobel da Paz para Trump. A pessoa até se sente corar de vergonha.

    E pronto, muito abaixo desta grande escala andam a esvoaçar uns espíritos malvados que nunca se calam e nos vencem pelo cansaço, personagens que há em toda a parte e das quais nós temos, por exemplo, o não tão engenheiro como isso José Sócrates.

    Ah, mas isso não é limpeza étnica.

    Então os portugueses, sempre muito amigos de todas as raças e todas as cores, nunca fazem nenhuma?

    Vão-se lixar, então e o que é que a Câmara de Loures está a fazer aos são-tomenses neste preciso momento?

    Não é correr os pretos equatoriais daqui para fora a pontapé, perante a indiferença generalizada de dez milhões de Portugueses que de certeza que sabem disto, porque as imagens são tão vistosas que passaram em todos os canais da televisão?

    Os são-tomenses são uma população de língua portuguesa muito precisa, exígua em número, imediatamente reconhecível na linguagem, com aquela pele de um preto de ébano quase azul característico das populações que vivem mesmo em cima do equador. Distinguem-se bem. E, se o que a Câmara de Loures está a fazer-lhes não é uma limpeza, então francamente já não sei o que é.

    Eles foram avisados

    Estes cidadãos de um país de língua oficial portuguesa costumam vir para Portugal às golfadas, sobretudo aquando da visita de um chefe de Estado. Foi o próprio governo de São Tomé que lhes concedeu estes vistos de trabalho em Portugal, para que pudessem arranjar uma vida melhor e mandar dinheiro para a ilha. Ali, se não for nos hotéis dos estrangeiros é impossível trabalhar – e os hotéis não empregam assim tanta gente como isso, por muito que abusem da mão-de-obra barata, analfabeta, menor, descalça, e assim por diante. Aquele pedacinho luxuriante de equador com águas temperadas de um azul-turquesa perfeito é um verdadeiro paraíso, mas está cheio de mosquitos Anopheles, nunca se sabe quando é que escorrerá alguma água das torneiras, e todas as suas outras infra-estruturas estremecem na base, num ecossistema gerador de pobreza até hoje fora de controlo. Um homem que não tenha pelo menos vinte filhos não é considerado um verdadeiro homem, e estes filhos têm de vir de quatro mulheres diferentes.

    Estas populações marginais abrigam-se em linhas contínuas de barracas sem qualquer saneamento básico. Nem vale a pena vituperar sobre as antigas roças de cacau, ou de café, que eram tão produtivas antes da independência: manter essas roças a funcionar nos nossos dias é uma aposta impossível, dado que na sua origem os Portugueses empregavam aqui escravos a quem podiam infligir toda a espécie de maus tratos[9], e mais tarde passaram a empregar “nativos” que não tratavam muito melhor do que os escravos, e que gostavam de tratar diante de toda a gente como se eles fossem atrasados mentais[10].

    Nos nossos dias, há muito poucas esperanças de se encontrar qualquer espécie de “carreira gratificante” em São Tomé e Príncipe – sobretudo para um homem, porque a velha história é sempre a mesma, as mulheres sempre trabalham na costura, na roupa dos outros lavada à mão, na roupa dos outros passada a ferro, na travessia da ilha ponta a ponta para ir entregar encomendas de cestos com fruta aos turistas noruegueses que pagam bem – e claro, as raparigas entre os catorze e os dezoito anos, com os sorrisos mais ternos do mundo, que se passeiam sem pressa pelos corredores dos hotéis, passam de boa vontade uma tarde inteira a soltar risadinhas nos braços de um hóspede, e podem perfeitamente não cobrar mais do que dez euros.

    E várias pessoas como eu, estupidamente sobrequalificadas, que queiram ir para lá “ajudar” a convite do governo, ou aceitam em paz que vão dar o litro como voluntárias ou não vão, ou pelo menos nunca têm paz.

    Vi um médico sueco desatar a chorar por causa da constante escassez de ligaduras, que o impedia de isolar como deve ser as feridas horrorosas que as processionárias fazem nos braços dos meninos.

    Não sei falar sueco mas fui ter com ele, toquei-lhe no braço, sorri-lhe, e comecei a rasgar a camisa até já estar mesmo ao nível da parte de cima do biquíni.

    Deu imenso pano branco muito limpinho, e quando as outras viram também rasgaram a roupa delas, e nessa tarde toda a gente rasgou roupa e riu e o médico ficou com imensas ligaduras, mas claro que improvisar assim não é sistema.

    Isto é a pura da pobreza.

    A pessoa tem de se descontrair, respirar fundo, e aceitar as coisas como elas são, senão nem sequer consegue ser feliz, não consegue nem gozar-se deste mar precioso, não é capaz nem de apreciar nem o calor e a generosidade destas pessoas pobres.

    Reatando aqui, se o nosso Presidente da República visitar o Presidente da República de São Tomé, é muito provável que estes dois homens já tenham combinado entre eles quantos vistos de trabalho vão ser concedidos a cidadãos são-tomenses para virem procurar uma vida melhor em Portugal, porem os filhos a estudar, e injectarem dinheiro na economia local. O que quer dizer que o nosso PR sabe disto tudo, mas o que é que ele vai fazer? Comprometer-se a receber este microcosmos em Belém caso todas as boas vontades descarrilem? Se calhar devia. Porque o projecto bem-intencionado descarrilou mesmo, e desta vez o facínora eugénico disposto a varrer do seu solo aquela minoria étnica tão trémula é a Câmara de Loures.

    Eles foram avisados com 48 horas de antecedência,” diz para as câmaras da televisão a senhora autarca que teve a formidável honra de mandar avançar os bulldozers do município contra os casinhotos frágeis dos pretos escuros do equador ontem, segunda-feira, dia 14 de Julho de 2025.

    E nem um único Português se revoltou com o que viu e ouviu.

    Olhe, minha senhora

    Como é que os são-tomenses abençoados por Marcelo Rebelo de Sousa e pelo seu próprio governo vieram parar a um bairro da lata nas traseiras de Loures, tão escondido quanto possível debaixo da vegetação mas já com um bar instalado a confortar os espíritos todos os sábados à noite e domingos de ressaca?

    Então, muito pura e simplesmente todas estas pessoas sofreram com o aumento dos custos da habitação, como todos nós sofremos. Na sua maioria, tinham rendimentos tão baixos, e queriam poupar tanto para por os filhos a estudar, que se limitavam a alugar um quarto. Às vezes tinham que encaixar quatro ou cinco crianças nascidas entretanto dentro desse quarto – nunca, em fase nenhuma do processo, houve alguém que se lembrasse de fazer uma campanha de planeamento familiar junto daquela comunidade, no mínimo elucidar aquelas mulheres sobre a grande diferença que tomar a pílula pode fazer na vida delas, e assim impedir que a pobreza já esteja a rebentar pelas costuras ao fim do primeiro ano de experiência[11].

    Mas enfim, sempre eram quartos, E esses quartos davam para um corredor que tinha uma casa de banho ao fundo. Está bem que era só uma casa de banho para seis portas mas sempre era uma verdadeira casa de banho, com banheira para os nenés e com tudo. Os empregos podiam ficar em Lisboa e aquele subúrbio da Margem Sul podia ficar longe de Lisboa, mas sempre existiam transportes e para esses transportes sempre existia o passe social, sempre o mesmo passe social para cada um deles. Desde que existissem quartos baratos, empregos de trabalho escravo para pessoas sem qualificações, e jardins de infância clandestinos para deixar a criançada, a vida levava-se para a frente.

    Só que o custo das rendas começou a subir, e o dos quartos também,

    E, à medida que se esticavam tanto a guerra na Ucrânia como o governo de Donald Trump, os empregos começaram a rarear – e aquela comunidade de língua oficial portuguesa não era como os ciganos, para dar só um exemplo; não estava protegida por absolutamente nenhum decreto-lei nem coisa nenhuma.

    De maneira que a salvação começou a andar de boca em boca, e todos aqueles são-tomenses, um por um, devagarinho, foram aparecendo num sítio chamado QUINTA DO TALUDE, um terreno vago em Loures com uma vegetação crescida que lembrava a de África. Todos compraram paredes de lussatite e telhados de chapa ondulada, todos se ajudaram uns aos outros, todos embelezaram as suas novas casas o mais que puderam, fizeram-se  baixas de água e de electricidade, começaram a aparecer colchões, fogões, estofos, espelhos, sardinheiras, partilhas, enfim – tudo o que a pessoa precisa para não ceder ao desespero. Viver numa barraca nunca foi o sonho de ninguém, mas no Talude, ao menos, graças à política espontânea de interajuda o futuro parecia menos mau: faz hoje exactamente uma semana que se instalou a primeira fossa asséptica, e isto põe fim ao pesadelo dos cocós para dentro de latas de Nescafé e outras humilhações assim.

    Entretanto, a disciplina é severa e todas as crianças vão à escola.

    Mas de repente chega esta segunda-feira, a senhora autarca sem empatia que fala aos berros traz consigo a Força de Intervenção Rápida[12] para entrar no bairro e ao meio dia começa a destruir sessenta casas. Aquela gente que volte para de onde veio. Não tinha nada de estar ali. Mas esta criatura será do CHEGA? Não se percebe. O que se vê muito bem são os olhos muito grandes de um menino de nove anos. Olhe, minha senhora, já reparou nesse menino? A senhora acaba de derrubar a barraca dele. Destruiu-lhe o estojo dos lápis de cor com que ele estava a fazer os trabalhos de casa. E agora, como vai ser? O que diz este rapaz quando chegar à escola sem o trabalho acabado, “deram-me cabo da barraca e já não posso nem fazer os TPCs, a stora por favor chame a autarca das demolições que ela lhe confirma logo tudo isto aos berros com muito orgulho no que anda a fazer”?

    Nessa noite, homens, mulheres, idosos, crianças, todas estas pessoas calmas e crédulas que vieram para Portugal com a bênção do Presidente da República juntaram o que conseguiram reunir e dormiram ao relento.

    Sabe uma coisa, minha senhora?

    É evidente que a senhora é um perigo público, uma vez que se entende logo, só de ouvir o seu discurso frenético jorrar da sua postura chauvinista, que é de tal forma bruta como as casas que mandou avançar uma polícia especial contra gente séria cujo historial ignora por completo, ao ponto de ignorar mesmo a questão dos escravos, dos “nativos” maltratados que trabalharam depois deles nas roças do cacau, da pobreza profunda e analfabeta, sem antenas de TVCabo e muito menos antenas de wireless para a internet, que até hoje se seguiu à independência, da sua vinda a Portugal com a maios das legalidades que depois deles se seguiu à independência da ilha. Aliás, é evidente que a senhora não quis nem perceber que estas pessoas a quem, depois do meio-dia, deu ordens para destruir sistematicamente sessenta casas, estavam dispostas a todos os sacrifícios para poder por os filhos na escola. É horrível, mas mete-se pelos olhos dentro: a senhora não se informou com ninguém, porque a senhora só viu as barracas.O que é isto, mas o que é isto?

    Barracas de pretos, ainda por cima?

    Dos pretos mais escuros de todos?

    Toda a gente sabe que os pretos são muito perigosos.

    Sim, chefe. Eu vou já tirá-los dali e plantar imediatamente um Mac Donald’s naquele mesmo bosquedo, com um parque infantil à volta, para que eles não tenham ilusões de voltar.

    A senhora é uma besta, é uma bruta, está completamente desinformada, os outros Portugueses parecem dar-lhe razão porque nem reagem à maldade que a senhora semeia no seu caminho uma vez que estão preocupadíssimos com maldades muitíssimo maiores do que uma primeira fossa asséptica destruída e dezenas de criaturas que dormem ao ar livre com os seus filhos, mas olhe lá uma coisa.

    É que ao menos lembre-se do Antigo Regime e do terrível ditador António de Oliveira Salazar, a quem ficámos a dever o pesadelo da guerra em África e 48 anos de ditadura. Se não se lembra de nada, eu esclareço: ao menos o Dr. Salazar, quando ia destruir um bairro de barracas porque queria por naquele sítio preciso uma qualquer modernice, como por exemplo um pilar da Ponte Sobre o Tejo – olhe minha senhora, ao menos o doutor Salazar construía primeiro um bairro camarário para acolher os desalojados, e só depois é que mandava avançar os bulldozers,

    Estamos em 2025, e a senhora, ao achar normal desalojar as pessoas sem lhes propor qualquer outra solução em troca, acaba de conseguir ser ainda mais reacionária e mais racista[13] do que o Dr. Salazar.

    E, esta noite, eu sinto vergonha de ser Portuguesa.

    ***

    Soluções precárias * Finalmente, depois do Bairro do Talude ir ficando mais e mais espezinhado ao longo da semana, o Tribunal de Loures acorda e manda suspender aquelas demolições infames. No entanto, nenhum juiz determina que é preciso oferecer a cada uma das famílias atingidas um quarto de hotel, ou pelo menos autorização para reerguer a sua casa em segurança, enquanto o processo está a ser estudado. Da mesma forma, ninguém fala de um banco de empregos. As pessoas continuam a dormir ao relento. A senhora autarca já não aparece na televisão aos berros – mas, pelo que se viu, isso não oferece a ninguém qualquer garantia de segurança.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora



    [1] O último Livro do Novo Testamento – e, por decorrência, de toda a Bíblia.

    [2] As mesmas pessoas tão frias como as víboras que vão guiar um cordão de fugitivos ao longo de quatro dias num deserto escaldante cheio de caveiras e de coiotes, e só de estarem eles na liderança, com todos aqueles desgraçados totalmente dependentes nas suas mãos, sentem logo um prazer canalha em, ainda antes da partida, passar algumas camisinhas para as mãos das mulheres do grupo, advertindo-as de que de certeza que vão ser violadas, eles não querem chatices e portanto nem vão tentar atravessar-se à frente dos bandidos, mas elas que não deixem de pedir ao violador que primeiro meta a camisa. O que há mais ali naquele deserto são doenças sexualmente transmissíveis. Às tantas correu o boato de que os passadores estavam feitos com os violadores, e disparavam um morteiro para o ar a sinalizar “carne fresca” de cada vez que partiam com um grupo onde houvesse mulheres. A jornalista da CNN que foi para o deserto fazer uma reportagem na primeira pessoa, com a câmara escondida na roupa, confirmou tudo isto e ganhou um Grande Prémio de Jornalismo quando voltou para a América. Mas comeu por tabela. A sua violação envolveu mais do que um indivíduo, e foi tão brutal que destruiu a câmara. Por favor desculpem todos estes pormenores sórdidos, mas eu ainda estava no Massachusetts quando tudo isto aconteceu e era uma história grosseira com narração ofegante da miúda, muito provavelmente morta de medo, que se acompanhava passo a passo. A mim aquilo parecia-me tudo completamente desnecessário, e afligia-me porque dava uma boa medida do quanto as pessoas normais já andavam absolutamente fascinadas com os caminhos do Mal. A violação da jornalista “ao vivo” chegou a passar em câmara lenta. Mais tarde ela descobriu que contraíra sífilis naquele pesadelo do deserto (os violadores atacaram o grupo todas as noites, dizia ela que simplesmente pelo prazer da humilhação das mulheres; nenhum deles aceitou usar a camisa) e isto permitiu-lhe voltar a fazer várias presenças televisivas e aparecer em várias revistas, alertando sabiamente as outras mulheres da sua idade para este perigo que nunca se sabe onde está: os homens que o transportam consigo não trazem isso escrito na cara. Finalmente, escreveu um livro e fez um grande tour. Imagina-se que, finalmente, enriqueceu, e portanto ganhou alguma coisa com toda esta história tão vil.

    Já agora, ressalve-se um detalhe nada despiciendo: a miúda tinha uma cara engraçada, muito fresca, e um corpinho atlético bom para o deserto, tudo isto com tranças e missangas, de certa forma reminiscente da falecida sprinter Flo-Jo – porque claro, esta miúda era negra. Estava a ver aquela reportagem e a lembrar-me de que os americanos nunca mandariam uma estagiária loirinha, de nariz arrebitado e olhos tão azuis como o Pacífico, para aquele deserto que o Bem esqueceu.

    [3] E basicamente qualquer outro monstro que funcione a sangue inventado pela Marvel no entretanto. Confesso que, nos últimos anos, não tenho conseguido acompanhar aquela profusão cada vez mais lamentavelmente comercial de criaturas.

    [4] Parafraseando Simone Beauveoir.

    [5] Eu, então, que conto todas as moedinhas, nem isso posso fazer.

    [6] Note-se que, mesmo se exercermos alguma destas profissões, é preciso querermos ajudar para sairmos das nossas rotinas confortáveis e partirmos para a Faixa de Gaza, por exemplo, onde Israel está declaradamente a chacinar todos os palestinianos que encontrar no caminho, com o beneplácito de Donald Trump. E sabemos, logo à partida, que em troco da nossa ajuda podemos perfeitamente ser bombardeados e morrer, logo ali, de um momento para o outro. O Mal funciona assim, pelo que as nossas escolhas nunca são fáceis.

    [7] Nunca saberemos por que razão.

    [8] E, no caso de Putin, conseguir que ninguém saiba nada sobre a localização e o conteúdo dos seus offshores, e outras pilhagens abrigadas cuidadosamente em águas internacionais.

    [9] A letra da celebérrima SÔDADE, a morna imortalizada pela voz de Cesária Évora, é sobre a tristeza dos escravos cabo-verdianos exportados das suas ilhas doces para a violência do trabalho nas roças de São Tomé, onde sabem que vão morrer de malária e de cansaço sem nunca mais voltar a ver quem amam.

    [10] Disto eu fui testemunha desde os quatro anos, e agora lembro-me com toda a clareza. O navio LUANDA fazia escala em São Tomé, e havia sempre um dono muito rico de uma roça no meio da floresta que estava no cais à espera do meu Pai, que de uma forma ou de outra lhe tinha “salvado a vida” numa passagem pelo Hospital Militar. As roças destas pessoas, com aquele calor, serviam almoços elaboradíssimos, havia um quarteto vestido de branco com toda a gente a suar mas eles sempre muito disciplinados a tocar o que hoje compreendo ser uma tentativa de lounge music – e sim, e os roceiros gostavam era de insultar os “nativos” o mais alto possível, para mostrarem bem ao meu Pai quem é que mandava ali. Pelas costas disto tudo, eu e os membros do quarteto fazíamos caretas uns aos outros na maior das leviandades. Quando o LUANDA partisse para Lisboa, o português voltaria a ser o único branco da roça, e já não teria outra vez ninguém a quem mostrar a sua superioridade.

    [11] Confesso que aqui me senti bastante parva, porque formação de Planeamento Familiar em Lisboa e organização de programas de PF entre as mulheres são-tomenses que fossem suficientemente palpitantes para elas terem vontade de lá ir foi uma das teclas em que eu bati mais, juntamente com o médico que me acompanhava, nas minhas missões voluntárias em São Tomé. Aqui acho importante acrescentar que, para meu grande desgosto, os meus filhos nunca quiseram ir lá comigo nas férias. Tinham medo de chegar lá, sair do avião, apanhar ali mesmo uma doença horrorosa, e morrer sem apelo nem agravo nem tempo para descer a escada até ao chão. O Pai deles também nunca quis vir comigo a África, fosse onde fosse, e o seu pânico americano baseava-se nas as mesmíssimas razões: “Clarinha, não, por favor. Não me obrigues a ir contigo a áfrica, um continente cheio de doenças que em dois ou três dias matam logo um gajo. Tu passaste lá a infância e meteste montes de formigas brancas fritas à boca  por isso é diferente, estás imunizada dos pés à cabeça.  Mas tem cuidado, a sério, não leves lá os nossos filhos.” Provavelmente a senhora autarca de Loures que tomou a palavra no tocante a expulsar dali aquela gente também está toda minada por preconceitos básicos deste tipo em relação a África, e acredita que a SIDA se transmite no vento, como uma constipação vulgar. Que vergonha.

    [12] Mas que merda é esta, desculpem? Onde é que a criatura julga que vai entrar? Por junto, encontrou algumas pessoas imóveis, sentadas ou deitadas no chão. Passou-lhes olimpicamente por cima, toda muito bem protegida. Cabra.

    [13] Mais fascista, como se dizia nos anos da Revolução, quando esta gaja parece ainda não ter nascido.

    [1] Para quem não conhece mais este mimo da mitologia Clássica, Sísifo é um jovem que só poderá continuar a sua vida se conseguir empurrar um pedregulho anguloso e pesado até ao cimo da montanha que vai a subir. Todos os dias arrasta esse pedregulho à sua frente, com os habitantes da montanha a observar o esforço. Todos os dias consegue chegar lá a cima. Mas, todos os dias, demasiado cansado para encaixar o pedregulho num sítio que o retenha, pura e simplesmente há ali um momento em que abre os braços e deixa o fruto do seu esforço rolar pela encosta abaixo. Parece que a hipótese de ir construindo pontos de apoio para poder descansar todos os dias e continuar apenas no dia seguinte, quebrando o esforço – sei lá – numa semana, ao invés de um simples dia nem sequer lhe ocorre. Isto não é fossanguice, porque Sísifo quer apenas obedecer muito depressa às disposições dos deuses. Isto é apenas acreditar que um jovem pode fazer o que um deus faz. Isto é criancice – é um mito que ilustra muitos outros, daqueles relacionados com a omnipotência própria das crianças.

    [2].”L’Homme de René Descartes“, ou “Tratado do Homem“, é uma obra inacabada de René Descartes, escrita na década de 1630 e publicada postumamente, primeiro em latim em 1662 e depois em francês em 1664. No tratado, Descartes descreve o funcionamento do corpo humano através de leis mecânicas, incluindo os músculos e os principais órgãos. Descartes tenta sobretudo explicar fenómenos invisíveis, tais como como a transmissão da dor e a dor fantasma, com ênfase nos

    sentidos, e na perceção sensorial. Até à sua morte na corte da Rainha Cristina, na Suécia, Descartes tentou em vão juntar ao tratado a localização precisa da epífise, ou seja, o ponto onde a alma se liga ao corpo.

    [3] EMBORA CONHEÇA OS CAMINHOS, EU NUNCA CHEGAREI A CÓRDOBA: Verso maravilhoso e premonitório de Frederico Garcia Lorca, cuja morte a caminho de Granada pela estrada que vem de Madrid (“Córdoba” seria uma figura de estilo para “Granada”, berço do poeta) ainda hoje se encontra por esclarecer. É certo que o poeta não se sentia seguro em Madrid, onde todos os seus amigos lhe imploraram que ficasse, exactamente por uma questão de maior protecção. Mas não se sabe se os receios de Lorca eram de cariz sexual (Lorca era homossexual, e não o escondia) ou político. Como, em ambos os casos, o cadáver de Lorca é seguido de lançamento para uma vala comum e consecutivo desaparecimento. Ou seja, setenta anos mais tarde, se a execução a tiro de um dos maiores poetas de Espanha veio de uma liga de cidadãos “dignos” que incluía membros da sua própria família, ou de uma organização sem perdões das forças fascistas que lhe montou uma cilada muito hábil no, continua a ser um mistério para todos nós. Tudo o que sabemos é que o homem de inspiração quase divina foi assassinado no dia 19 de agosto de 1936, num recanto à margem da estrada Víznar-Alfaca, na sua província natal. 

    [4] SAPERE AUDE (OUSAR SABER) é a frase famosa cunhada por Immanuel Kant que define o espírito arrojado de querer estudar tudo e saber tudo característico do Período das Luzes, que marcou a Europa do século XVIII até ao terramoto de Lisboa em 1755.

    [5] Estas Nações, aparentemente sobrepovoadas por criaturas que não sabemos com o que é que se parecem mas sabemos que estão associadas ao mal, foram criadas no âmbito das visões infernais contadas por São João Evangelista na sua velhice, quando se recolheu sozinho na ilha de Patmos e escreveu O APOCALISE, o último livro do Novo testamento.

    [6] História verdadeira das incríveis desgraças da vida no mar, esta do século XVII e narrada por François Leguat. Leguat era um huguenote francês que em 1689 escapou de França com cerca de outros duzentos seguidores hugenotes, tentando escapar às perseguições e chacinas religiosas. Tinha-lhes sido prometida  a fértil e abundante ILHA DA REUNIÃO, mas afinal despejaram-nos, um ano mais tarde, num penhasco árido e sem lavoura possível chamada ROCHEDO DE RODRIGUEZ, quando da população inicial já só restavam oito. Ao fim de um ano, quando

    [7] Está a falar connosco e tira e põe os óculos, tira e põe os óculos, e quando faz isso os olhos crescem e descem, crescem e descem, e tudo é bom de ver. Diga-me, Clara Pinto Correia: se só pudesse levar só uma outra pessoa para uma ilha deserta…

    [8] Atenção mulheres! Se vos doerem os dentes e conseguirem aguentar até Belém, subam a Rua dos Jerónimos, entrem na Clínica dos Jerónimos (18 A/B à vossa direita, se forem a subir ao longo do estilo manuelino), façam um ar desesperado, e digam que pelo amor de Deus, têm que ser vistas imediatamente pelo Dr. Bruno. Podem dar o meu nome como referência. Mesmo que não vos doam os dentes, peçam-lhe que os veja pelo menos uma vez. Juro que vale a pena. Eu, que já corri o mundo, nunca tinha visto um dentista assim. Sabia que eu é que tinha descoberto o descoberto o centrossoma masculino na fertilização do mamífero! Até me vieram as lágrimas aos olhos.

    [9] Esta figura de estilo não consta do mito. Sísifo só assumiria comportamentos de degradação semelhante se fosse um mero humano. Humano como a Mafaldinha – e toma lá que já ouviste, ó mais-que-perfeita sem vergonha.

    [10] Adoro ouvir as conversas das pessoas.

    [11] Ou  podia: não sabíamos.

    [12] Esperem lá. A SENHORA? A criatura era da minha idade, caraças. Não era nenhuma SENHORA. Era um GAJA, como eu. Só que, conceda-se – como vim a saber pela autoestrada, era uma pobre GAJA de cabelo pintado, e de facto com vida de SENHORA. Tomava conta da sogra, que vivia lá em casa, e chamava-lhe “A MÃEZINHA”, Detalhes tramados.

    [13] É que eu sei exactamente o que é o horror encerrado nestas práticas. Quando eram pequeninos, os meus filhos foram expostos a este género de nojo. “Mas eu nunca engoli, Mãe, eu vomitei sempre!” – era noite, estávamos os três enfiados na minha cama a falar do passado deles, e esta frase pequenina, nesta voz pequenina de menina, arrepiaram-me tanto, fizeram-me ficar tão tonta, que eu pensei que ia desmaiar. Abracei-os muito contra mim, cantei-lhes o LE TEMPES DES CERISES baixinho, devagarinho, com muito carinho, e lá se foi o desmaio.

    [14] Auditório enfiado agora à pressa nesta história. Representa ums grande quantidade de gente de todos os quadrantes reunida sob o mesmo tecto.