Categoria: Crónica

  • Chega e a história da Gigi

    Chega e a história da Gigi


    Por um lado, até gostava de ver o Ventura no poleiro. O trafulha populista, ardiloso, manhoso, carroceiro, oportunista, réplica anacrónica do Botas. Teríamos penas perpétuas, uma Gestapo, o PÁGINA UM encerrado e o tribuno Almeida Vieira torturado, eu próprio içado num mastro ao lado de asiáticos, africanos e lelos.

    O sucesso desta estirpe é natural. O descontentamento com os xuxas capciosos e os laranjas amargos, a pobreza recidiva, a corrupção endémica, a cepa sempre torta, convida à mudança. Dêem-lhe, pois, a oportunidade — e ao seu escol de portadores do facho. Haverá sangue e limpeza. Os serviços de Uber e Bolt passarão a ser conduzidos por escravos. A Rua do Benformoso dará lugar a uma artéria de zelotas da propaganda racista. Votem nele e não se admirem de recuarmos à Idade do Poço dos Negros.

    Todo aquele que me quer governar é meu inimigo.

    Deixo-vos uma pequena ficção elucidativa.

    Bem-haja.

    ***

    O meu nome é Gigi. Sou uma barata. Há quem me chame fala-barata. Isto porque estou sempre a falar. Eu já entrei num livro. É a história da minha vida. Lá por ser barata, e quase ninguém gostar de mim, houve um senhor que se interessou por contar as minhas aventuras. Acho que o livro ficou muito divertido. Eu sei ler. Aprendi com o meu pai. Não conheço nenhuma barata da minha idade que goste de ler. É pena. Há tantas histórias nos livros para partilhar.

    Já passaram alguns meses desde esse dia maravilhoso em que saiu o meu livro. Não fui eu que o escrevi, mas tudo o que lá vem escrito é verdade. Nem tudo o que vem nos livros é verdade, mas pode ser. Eu gosto de histórias que foram mesmo assim. Podem ser alegres ou tristes. Tanto me faz, desde que sejam bem contadas e quem as escreva não diga mentiras. Eu não gosto nada de mentiras.

    O senhor escritor que escreveu o meu livro chama-se António Pereira. As crianças gostam muito do que ele escreve. Depois de ter contado a minha história ao senhor escritor, vieram à minha procura para me conhecer. Antes só andavam atrás de mim para me exterminar. Logo eu, que não faço mal a uma mosca. Nem eu, nem nenhuma barata. Como andamos no chão, acham que somos nojentas. Mas se andassem por onde eu ando, viam como em todo o lado há coisas bonitas — ou, se não forem bonitas, podem ser interessantes. Eu sou muito curiosa e gosto de saber tudo. Ou tudo o que puder saber. Felizmente, sei escapar de alhadas, senão já me tinham esmagado. Aprendi a fugir com os ratos. Os ratos são muito espertos. Só os conseguem enganar quando põem queijo nas ratoeiras.

    Estava a contar que agora tenho uma vida melhor. Quero dizer, graças ao senhor escritor, tenho mais amigos. Há sempre quem se ponha aos gritos ao darem comigo a passear, mas quando vêem que sou eu, a Gigi, até são capazes de pedir desculpa e oferecerem-me umas migalhas, um pedacinho de chocolate ou pedir-me um autógrafo. Sabem, é que eu tenho uma conta no Instagram. Não acreditam? Então vão lá ver. E, se quiserem, apareçam na Rua do Benformoso, que é onde eu moro. Podem vir brincar comigo e com a Antónia, que é a minha melhor amiga. A Antónia é uma traça e voa bem que eu sei lá. Se quiserem, podem tocar nas minhas antenas. Eu não mordo. Nem sou venenosa. E quem diz que eu sou feia é porque nunca olhou bem para mim.

    ***

    Aqui há tempos, mudei de casa. Agora moro na casa de um senhor chinês. É cozinheiro e está sempre a dar-me petiscos. Eu ponho-me de patas no ar e ele mete-me pedacinhos na boca. O meu petisco favorito é pão ralado. Hum…

    A minha casa é no rés-do-chão direito do número 6, na Rua do Benformoso. Há ruas de nomes bonitos como esta. Antes de vir para aqui, morei numa rua chamada da Rosa. A Rosa, descobri num livro, é por causa da rosa-dos-ventos, e não uma senhora fadista, como já ouvi uns senhores que passeiam turistas a contarem.

    Um dia, ia a subir a rua e a voltar para casa e quase levei uma bengalada na carapaça de um homem com cara de mau. No dia seguinte, vim para aqui. Este senhor chinês é muito simpático e, além de me dar comida, não se importa que traga as minhas amigas para brincarmos. O que eu mais gosto é de voar nas asas da Antónia e passarmos em cima do fogão quando a comida está ao lume. A Antónia voa melhor do que muitos passarinhos.

    Sabem como se chama o senhor chinês? Não sabem porque eu ainda não disse. Hihihihi. É o senhor Lim-Pó-Pó. Ele é muito engraçado. Tem a mania de limpar tudo e depois volta a limpar. Eu sei o que é um chinês porque li um livro sobre a China. Também li uma história sobre o Japão, que fica lá perto. Os japoneses são muito diferentes dos chineses, embora sejam vizinhos e tenham olhos em bico. Deve vir tudo nos livros — e o que não vem, passa a vir, assim que alguém se lembrar de escrever.

    ***

    Na Rua do Benformoso há pessoas de muitos países. Eu sou portuguesa, porque nasci em Portugal, mas a minha mãe veio de Angola, num navio, e foi cá que conheceu o meu pai. Ele é do Ribatejo, mas o meu avô era da Guiné. Lisboa é uma cidade muito antiga. Tem mais de dois mil anos. Já passaram por cá pessoas de muitos lugares — e milhões de baratas.

    Não preciso de dar uma volta ao mundo para conhecer pessoas de muitos países — e baratas então nem se fala. Só na minha rua há pessoas de mais de trinta lugares diferentes! Quantas baratas há em Lisboa não vos sei dizer, porque nunca ninguém as contou. São tímidas e andam sempre escondidas em buracos. Eu sou uma felizarda! Até tenho direito a uma caminha e a um candeeiro para ler antes de dormir.

    A Antónia diz que o bisavô dela era da Mongólia, mas eu acho que ela está a inventar. Como é que ela sabe? Um dia, estávamos a voar e vimos um senhor de olhos em bico a pintar na rua, ao pé do rio. Ela aterrou de repente e meteu-se com ele. Esse senhor é de Ulan Bator, que é a capital da Mongólia. Chegou a Lisboa num cargueiro e ficou cá a morar. A Antónia disse-lhe que o bisavô dela sabia andar a cavalo, pois na Mongólia há mais cavalos do que pessoas. Ele riu-se. Como é que uma traça anda a cavalo? É fácil. Agarra-se à crina e aí vai ela. A crina é o cabelo do cavalo.

    O senhor da Mongólia é o Gengis. Fala muito bem português. Quem me dera falar todas as línguas do mundo. Já imaginaram? Conseguir falar em chinês ou árabe, ou mesmo em hebraico ou em mirandês? O mirandês é uma língua que se fala em Miranda do Douro, que fica no Norte de Portugal. Eu nunca lá fui, mas já ouvi essa língua uma vez, quando me cruzei com um corvo muito preto e ele me disse “buonos dies”, que é “bom dia” nessa língua. O Lim-Pó-Pó e o Koksu falam em inglês um com o outro e, pelo meio, dizem umas palavras em português, chinês e turco. Eu cá só falo português — e até falo muito bem. Quero dizer, não digo calinadas, que é dizer palavras que não se dizem assim.

    Uma palavra é uma coisa muito especial. Como nascem as palavras? Antes de serem palavras, eram apenas sons. Querem ver uma? Schhhh, que é dizer a alguém “xiu” ou “caluda”. A mim estão sempre a dizer-me isto. Porquê, será? Hihihihi. Porque eu sou uma Fala-Barata.

    ***

    O senhor Lim-Pó-Pó é de Macau. Tem os olhos castanhos e um pequeno bigode. Parece que está sempre a rir. Só fica zangado quando vê alguma coisa suja — ou que, para ele, deve estar suja, pois, para mim, não está. Vai logo com o pano do pó e põe-se a limpar. Assim que fica tudo limpinho, volta a sorrir. Ele diz que eu tenho a mania de que sou muito esperta.

    — Não basta lel livlos. É pleciso vel — diz ele, de dedo espetado, a dar-me piparotes nas antenas.

    Ele troca os erres pelos eles. Hihihihi. Eu sei onde fica Macau. Já sabia antes de vir morar com ele. É na China, e os portugueses foram os primeiros a lá chegarem. Os primeiros, estou a dizer desta parte do mundo, porque de outras partes já lá tinham chegado outros. Na minha família houve uma barata que esteve no Brasil. Foi o meu pai que me contou.

    — Muito antes do avô Fernando andar a viajar, tivemos uma antepassada que andou pelo mundo todo.

    — Todo, todo? Mas o mundo é tão grande… — disse eu, intrigada. — Devia ter as botas das sete léguas.

    — Foi a primeira barata a andar numa caravela.

    — O que é uma caravela, pai?

    — Foi um barco que os portugueses inventaram e que tinha velas capazes de navegar contra o vento.

    — Um dia gostava de navegar.

    — Mas tu não sabes nadar.

    — Aprendo. Não és tu que dizes que tudo se aprende?

    Tenho saudades do meu pai. Também, quem é que o mandou ir morar para a Serra da Estrela?

    ***

    Um dia, quando tinha três anos, o meu pai deu-me uma bússola para nunca me perder. Antes de dormir, ponho a bússola num lugar direitinho (não pode ser de pernas para o ar) e assim já sei onde está o Norte e a Serra da Estrela. Quando me aventuro por outras ruas de Lisboa, também a levo. O meu pai sabe de cor o nome de muitas estrelas, planetas e constelações — que são muitas estrelas — como a Ursa Maior, Orion e Cassiopeia. Diz que, quando o céu está sem nuvens, consegue ver o planeta Urano e nem precisa de usar o seu telescópio. Eu já tentei, mas, para mim, são apenas estrelas a brilhar. Se calhar, foi para a serra porque lá as montanhas são altas e fica mais perto das estrelas e dos planetas.

    O lugar mais alto do mundo, e também um dos mais frios do nosso planeta, fica no Nepal, que é de onde vem o Kenzig, o senhor que mora no número 8, no primeiro andar com mais uma dúzia, e anda numa bicicleta a levar comida e outras coisas de casa em casa. Chama-se Evereste a montanha mais alta e é preciso ter muita força nas pernas e vontade para lá chegar. O Kenzig é um sherpa, e antes de vir para Lisboa carregava mochilas e sacos dos turistas. Subiu e desceu cinco vezes o Evereste. Disse-me isto quando ia a passar e o vi sentado a comer um pãozinho. Parei a olhar para ele e, no lugar de me tentar pisar ou enxotar, atirou-me um bocadinho do seu pão. Desde aí, sempre que posso, vou até à porta de casa dele, quando a noite cai e há menos gente na rua — não vá alguém dar-me uma pisadela e esmagar-me, mesmo que seja sem querer.

    O Kenzig está sempre a rir ou a sorrir e só o ouvi queixar-se de uma vez em que lhe roubaram as encomendas. Foi dizer a uns senhores polícias o que tinha acontecido, mas não lhe ligaram grande coisa, apesar de soluçar e explicar tudo em português. Encolheram os ombros e desapareceram num carro a toda a pressa.

    As pessoas estão sempre com pressa. Não sei porquê. Eu cá ando muito devagar. Só corro se me querem fazer alguma maldade. Ninguém devia fazer maldades. Com tantas coisas boas e bonitas para fazer, como voar nas asas da Antónia ou comer migalhas.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

    As ilustrações foram elaboradas com recurso a inteligência artificial.

  • O Fado, o VAR e os queixumes do Enes

    O Fado, o VAR e os queixumes do Enes


    Trazem-lhes os deuses — ou talvez tenha sido o Fado, essa entidade fatalista e caprichosa — a triste sina de nascerem com o coração tingido de verde e um irracional afecto por um felino de juba, mais talhado para rugir em peluches infantis do que para caçar campeonatos. Refiro-me, pois claro, aos sportinguistas, essa confraria de sofredores que, desde os tempos do senhor Salazar (e vá lá saber-se se não desde o domínio filipino), vagueiam pelo mundo a carpir mágoas de um presumido martírio futebolístico.

    Dizem-se vítimas de roubos. Mas não de carteiristas comuns — não, nada disso. Falam de assaltos metafísicos, conjuras cósmicas, espoliações transcendentes que transformam cada árbitro num Torquemada e cada fora-de-jogo num auto-de-fé. Gritam que lhes tiram campeonatos a ladro, como quem clama que o Olimpo lhes manda pragas. Só que, curiosamente, os roubos só ocorrem quando perdem. Se ganham, foi justiça divina.

    Ora, desde que apareceu o VAR, esperava-se que esses lamentos ancestrais fossem metidos num armário, junto com as faixas de campeão de 1982 e os cartazes do Balakov. Mas não. Agora que têm um olho extra em cada canto do campo, os sportinguistas passaram a desconfiar é do próprio VAR — acusando-o de ser um cíclope manhoso, a ver só para um lado. Aquiles, com o seu calcanhar exposto, queixava-se menos.

    E lá tenho andado com o Carlos Enes, bom camarada de ofício, sportinguista de pergaminhos, daqueles que faz da auto-comiseração um desporto paralelo. Nestes últimos dois anos, o Enes tem vivido num estado de euforia comedido — ganhando títulos atrás de títulos como quem apanha cerejas, sempre a medo de que o árbitro apareça a cobrar IVA desportivo no fim da partida.

    Pois bem, a caminho do Jamor para assistir à final da Taça, lá vinha o Enes no seu modo habitual: voz grave, semblante carregado, como um oráculo de Delfos depois de três cafés. “O VAR é o Tiago Martins”, murmurava ele com a solenidade de quem anuncia um eclipse total. “Está encomendado. Vai ser entregue ao Benfica de bandeja.” Ora, o Tiago Martins — e confirma-se, era mesmo ele — não é propriamente nome de quem inspire, nos sportinguistas, confiança. Diziam-me. Mas adiante. Eu já tinha ouvido história semelhante com o João Pinheiro, que afinal me saiu um João Pinacácia há duas semanas.

    Chegados ao Jamor, sol a prumo e cachecóis ao vento, o jogo começou com aquele nervoso próprio das finais em que há muito mais em jogo do que um troféu: há honra, há vingança, há memes por fazer. E o que vi em campo foi isto: um Benfica personalizado, bem organizado e, surpresa das surpresas, prejudicado em lances capitais — todos com a assinatura silenciosa do senhor do VAR, sim, esse mesmo: o Tiago Martins, o furta-leões.

    Corria o minuto 11 da final da Taça de Portugal, quando Luís Godinho, árbitro da partida, assinalou aquilo que, à primeira vista e aos olhos do comum mortal, parecia ser um penálti inequívoco a favor do Benfica. Bruma remata, Gonçalo Inácio interpõe-se com o braço esquerdo — e o apito soa como quem marca um destino. O gesto do árbitro parecia selar o castigo máximo, daqueles que em finais se escreve com letras maiúsculas e se discute nos cafés durante semanas.

    Mas não. As musas do Jamor, que agora têm nome técnico — VAR —, intervieram. E quem o árbitro Godinho ouviu no auricular foi o senhor Tiago Martins, homem de bastidores e ecrãs, daqueles que só existem verdadeiramente quando o jogo pára. A decisão foi revertida: antes de Bruma rematar, muito antes de Inácio meter o braço onde não devia, já tudo estava manchado pelo pecado original — um fora-de-jogo de Kökçü, que recebera a bola do flanco esquerdo em posição irregular. Sem o VAR que pilha leões, o Benfica teria inaugurado o marcador.

    Minuto 19. Dahl, veloz e ousado, entra na área do Sporting e cai. O árbitro, célere no gesto e firme no juízo, levanta o braço e castiga o benfiquista com cartão amarelo por simulação. Mas, como convém nestes tempos de escrutínio digital, o VAR deveria ter acordado para rever o lance com olhos de lince, porque parece mesmo — nas imagens — que Hjulmand tocou no pé de Dahl. Mas o VAR, qual dorminhoco numa tarde primaveril, não interveio. Nada viu. Afinal, pensei, o Tiago Martins até aprecia os leões.

    Minuto 50. Bruma marca e a nação benfiquista explode de alegria com o segundo golo, que mataria o jogo — por breves instantes, entenda-se. Pois bem, veio o VAR, o tal do senhor Tiago Martins, com o seu bisturi digital, cortar o lance até à raiz e encontrou-se um fóssil de falta na origem da jogada: Carreras terá entrado de pitons sobre o tornozelo de Trincão no acto da recuperação da bola. Um toque, um gesto, uma pisadela do passado — e zás! Golo anulado, falta marcada, cartão amarelo exibido com a elegância de um carimbo notarial.

    Tudo correcto, dizem. Mas ficou legitimado que se pode anular um golo se, algures no processo de construção — talvez numa posse de bola anterior, ou numa jogada que envolva uma troca de olhares suspeita — se encontrar uma falta esquecida, omissa ou até metafísica. E o Carlos Enes a queixar-se do Tiago Martins…

    Minuto 90+5. O jogo já vivia os seus estertores finais. O desespero leva Matheus Reis — talvez possuído por algum espírito guerreiro das estepes — a encerrar a tarde com um gesto digno de arte marcial. O benfiquista Belotti, caído no chão, pôs-se a jeito de servir de almofada ao pé esquerdo do brasileiro, que desceu com zelo e pontaria sobre a cabeça do adversário. Apagam-se cigarros com pisadelas mais suaves.

    Conduta violenta? Evidente. Lance de cartão vermelho? Óbvio. Intervenção do VAR? Pois… aí entra o mistério. O nosso querido vídeo-árbitro, tão atento às solas de Carreras e às sobrancelhas de Kökçü em fora-de-jogo milimétrico, entrou aqui em modo contemplativo — talvez em meditação transcendental.

    Nem um sussurro no auricular. Nada. Tiago Martins em silêncio sepulcral, como quem contempla o pôr-do-sol em paz interior.

    Se calhar, Matheus Reis pisou a cabeça do adversário com força insuficiente para activar os sensores do VAR. Ou talvez o protocolo não preveja agressões à cabeça se forem em tempo de descontos e em estilo zen.

    Depois disto, que resta mais para escrever? Que foi bonita a festa do Jamor? Que o Lage vai dar uma curva? Que o Rui Costa vai de vela? Que o Benfica deve procurar construir uma equipa decente? Que o Carlos Enes nunca mais invocará o VAR em vão?

  • Crime e milagre no Estádio Nacional

    Crime e milagre no Estádio Nacional


    Por felicidade, nesta final não morreu ninguém, embora o Andrea Belotti tivesse passado 25 segundos com o corpo inanimado na relva e o espírito no outro mundo, devido a flagrante homicídio.

    O crime de Matheus Reis, jamais visto num campo de futebol, do pelado do Canelas ao Santiago Bérnabeu do tempo dos galácticos, graças a Deus não foi tolerado no Céu, como jamais o poderá ser na Terra graças ao Conselho de Disciplina. São Pedro mandou o italiano de volta, inteirinho e ressuscitado, para o clube que o contratou.

    O caso precipitou um pedido formal de revisão constitucional, com carácter de urgência, por iniciativa do único associado e simpatizante do Benfica que anda de bem com os resultados.

    Ainda não tenho votos suficientes para a pena de morte, mas a prisão perpétua é tão certa como um penalty do Gyökeres que deve ser imigrante ilegal dar sempre golo.

    O galhardo e mucoso capitão da águia Vitória, mas só às vezes, que nunca por actos ou sequer pensamentos ferrou os dentes ou os pitons nas carnes dos adversários, apresentou na véspera uma proposta para descongestionar o jogo.

    Queremos jogar. Não percam tempo com paragens e faltas.

    Aos 47 minutos, Samuel Dahl — sueco com a situação regularizada na AIMA graças aos bons ofícios do dr. Fernando Seara — desequilibrou-se para cima do Génio Catamo. O antigo árbitro Jorge Coroado viu ali malícia, mas o árbitro vigente, afinal o único que conta para a verdade desportiva, lembrou-se da promessa de Nicolás.

    O juiz alentejano raciocinou como num sonho bem regado debaixo de um chaparro. Um nórdico chamado Samuel, tão branquinho de cara e de calções como o velho Nené ao contrário do Gyökeres, que anda sempre despenteado e de camisola amarrotada pelas manápulas dos defesas nunca iria desrespeitar o capitão e perder tempo com faltinhas.

    Quis foi jogar. Dou golo limpo e só não vou festejar para o topo norte porque neste estádio tenho medo de engenhos pirotécnicos.

    Luís Godinho, logo a seguir, também só vislumbrou a mesma “vontade de jogar” numa rasteira em que o Carreras rasgou as meias às riscas do Trincão, com a pressa de ir tomar banho a tempo de apanhar o primeiro TGV para Madrid. Infelizmente, a tecnologia de fora de jogo, que funciona mal num estádio inaugurado em 1944, com uma premonitória vitória do Sporting sobre o Benfica no prolongamento, arruinou a boa-vontade do árbitro e o plano terapêutico de Rui Costa.

    Reagindo ao sucedido, o maestro atirou o gurosan, o diazepan e a melatonina às pernas do Renato Sanches, e desatou a vazar áudios pela calada da noite.

    — Dez minutos de descontos! Era para o Sporting ganhar!

    De facto, os jogadores do Sporting não precisaram de fazer nada para isso. Bem pelo contrário. Passaram a semana de autocarro descapotável em autocarro descapotável, entre festas e tascas. Comeram tantos petiscos que uma dobradinha não poderia fazer-lhes grande diferença.

    — O Varadas cozinhou isto tudo. E põe a pimenta que quer! 

    Durante a primeira parte, os bicampeões nacionais foram discutindo entre eles o desinteressado discurso do engenheiro Moedas, com palavras escolhidas a dedo para arranharem na garganta do Ricardo Araújo Pereira quando se põe a encher balões só para gozar com a cara ele.

    — Que orgulho estar aqui convosco!  

    Assim enlevados, os defesas leoninos deixaram à vontade os dois turcos e o único Vangelis do Alto dos Moinhos. Respeitosamente, ficaram a admirar de longe as jogadas estudadas entre eles, ao ponto de se tornarem previsíveis, e os potentes pontapés para as nuvens, à procura do Belotti reunido com o São Pedro.

    Depois de sofrerem o golo, os foliões de verde-e-branco mudaram de atitude, mas só para manter as aparências. É certo que mostraram alguma impaciência em levantar os jogadores do Benfica do relvado, mas apenas para os convencer a rematar à baliza de vez em quando.

     — Temos muito orgulho em estar aqui convosco, mas vocês não sabem que até no totoloto é preciso jogar qualquer coisinha?

    Frustradas todas as tentativas de reanimar o adversário, os invencíveis leões acabaram por ser forçados, pelo resultado e pelo protocolo, a escalar as bancadas do Jamor para tirarem “selfies” com o dr. Santana Lopes e um deputado do Chega.

    Meia hora antes, na mesma tribuna, o malogrado presidente encarnado pediu um importante conselho ao primeiro-ministro, Luís Montenegro, que estava manifestamente divertido com a cena.

    Diz-me tu, que ganhaste as legislativas apesar da Spinumviva, como posso eu ser reeleito depois de um central abrir as pernas ao Trincão como fez o António Silva?

  • O bicampeão e a espinha na garganta dos favoritos

    O bicampeão e a espinha na garganta dos favoritos


    As sondagens falharam outra vez escandalosamente, em especial a realizada à boca da garganta por Bruno Lage pelo Natal.

    — Chegámos rapidamente ao primeiro lugar, saímos, mas vamos rapidamente lá regressar.

    Saiu-lhe a previsão furada, como torto o remate ao Vangelis do Alto-dos-Moinhos, quando em Braga tentou fazer uma jogada à Gyökeres, que se esforça por imitar nos treinos, no sofá e sabe-se lá onde.

    Se o Correio da Manhã quiser tratar assuntos de verdadeiro interesse, em lugar das eleições no Benfica e no círculo “Fora da Europa”, tenho provas engraçadas e embaraçosas de que o grego anda a fazer-se à irmã gémea da Inês Aguiar.

    —  Joana, υπόσχομαι ότι θα φτιάξω τη μάσκα μόνο για σένα [Eu ponho a máscara só para ti]!

    Cumprindo uma tradição iniciada no ano passado, que vai repetir-se por muitos anos para ser digna desse nome, o Sr. Director do PÁGINA UM e eu assistimos juntos às últimas duas jornadas nos estádios de Carnide e de Alvalade.

    Ainda avariado do apagão da casa dele, o Pedro desta vez decidiu preparar a jornada de véspera. Creiam ou não os leitores, deu a um jornalista tão independente, rigoroso e científico, que até faz inveja à National Geographic e ao New York Times, para perguntar à inteligência artificial se ainda poderia fazer “alguma coisa” para o Benfica ser campeão.

    Como resultado, Pedro Almeida Vieira apresentou-se na bancada de imprensa com a fita verde da credencial ao pescoço e vários amuletos escondidos nos bolsos: uma pata de coelho, duas penas de uma galinha vermelha, que comprou numa agência de viagens da Rua do Benformoso, e três minhocas roubadas à ração da águia Vitória, mas só às vezes.

    Eu, pressentido o perigo, calcei logo de manhã umas meias do Jubas, vesti a minha camisola verde que tem um leão-índio estampado, com cinco cruzes de pentacampeonato, e disse em voz alta, para o cão e os vizinhos, a “Oração à Luz”, poema maravilhoso de Guerra Junqueiro.

    Do lodo à águia, do metal à fera,

    Da fera ao anjo, do covil à cruz,

    Move-se tudo, existe e reverbera

    O Scott, o dr. Varandas, o Paulinho, melhor roupeiro do mundo, as irmãs Aguiar e eu próprio ficámos com a famosa estrelinha, bem alinhada pelos astros celestes.

    —  Que o leão hoje reine na Terra como o Sol no firmamento.

    Já o Di María, pelo contrário, quando levantava a cabeça nos derbies, ficava encandeado, daí nunca na vida dele ter feito um golo ao Sporting.

    — Papa Francisco, ¿por qué me has abandonado?

    Quando cheguei ao estádio, encontrei Beatriz Hjulmand e Duarte Gyökeres de mão dada, muito apaixonados. Nas costas deles eu vi a táctica de Rui Borges, o Mourinho de Mirandela, para rumar em festa pelas tascas recomendadas pelo jornal Expresso.

    O Pote, que é muito ciumento, é que se intrometeu na jogada, com um golo bonito e abençoado, e o passe decisivo para selar o resultado em carta para a eternidade.

    Aquelas trocas de bola despertaram o ponto G da multidão.

    — Gonçalves! Ggggggggggooonçalves! Gyökeres! Ggggggggggyökeeeeres!

    Por falar em G, de garganta, também é o que distingue os treinadores: de umas sai mosca, noutras entra um bicampeonato. Alheira, bacalhau ou passarinho frito, nas tascas finas é sem espinhas.

    — Eu nasci para ganhar.

    Perante a clareza da classificação final, no dia seguinte Pedro Nuno Santos anunciou que é candidato à presidência do Benfica.

    — Todas as sondagens me dão como favorito.

  • Confissões de um bruxo benfiquista relapso

    Confissões de um bruxo benfiquista relapso


    Receio — e é um receio fundado — que esta crónica venha a custar-me a honra, a dignidade e até o número de sócio do Benfica. Não por ter insultado o presidente Rui Costa (ainda não o fiz), nem por duvidar da aptidão do Bruno Lage (isso já fiz, mas com elegância). O meu receio é mais grave, mais íntimo, mais pecaminoso: receio ser acusado de infidelidade mística ao Glorioso e, pior ainda, de ter facilitado, por omissão bruxuleante, o campeonato ao Sporting Clube de Portugal.

    Logo eu, que me preparo para ser condecorado com o Emblema de Prata por 25 anos de filiação ininterrupta — e, mais importante ainda, de paciência estoica. Fiz-me sócio em 2001, no dia em que Vale e Azevedo perdeu as eleições. Julguei, ingénuo, que não seria possível descer mais fundo do que aquilo. Ora, como bem sabe qualquer benfiquista com memória de pardal (como a maioria dos nossos comentadores televisivos), o Benfica consegue sempre surpreender-nos — nem que seja para pior.

    Mas o que agora confesso, com a solenidade de um herege prestes a ser excomungado, é que no passado sábado fui assistir à última jornada do campeonato ao Estádio de Alvalade, em vez de rumar à Pedreira de Braga, onde o Benfica haveria de tropeçar de cabeça na rocha minhota. Sim, estive entre os leões. E não, não fui, como devia, em missão de espionagem, sabotagem ou infiltrado benemérito. Fui por puro desleixo espiritual. E o mais grave: não usei os meus poderes.

    Sim, caros leitores. Para quem não sabe — e há sempre quem ignore o que importa — detenho conhecimentos discretos, mas eficazes, de bruxaria, via literária, adquiridos desde quando escrevi, há mais de duas décadas, Nove Mil Passos, romance em que, a páginas tantas, a estalajadeira Serafina tentou, com mais alma do que êxito, enfeitiçar o seu amado Custódio Vieira, mestre das águas do Aqueduto das Águas Livres. Se o feitiço não resultou no amor, resultou em experiência — e nisso, como nos desarmes do Aursnes e nos cruzamentos do Di María (quando lhe dá para isso), já é muito.

    Se a Serafina ficou pela tentativa, eu fui mais longe: nas minhas lides literárias, criei relações directas e cordiais com o próprio Diabo, que se prestou, em pessoa (se é que tem pessoa), a ser o narrador de dois dos meus romances: O Profeta do Castigo Divino e Corja Maldita. Ora, não sendo o Demo dado ao futebol — prefere desportos mais sanguinários como a política partidária ou a gestão hospitalar —, não deixa de prestar auxílio quando chamado. Porém, não o chamei. Usei um sucedâneo.

    Ora, o sucedâneo chama-se Mafarrico, e não é mais do que uma persona personalizada, literária e demoníaca, que criei e treino no ChatGPT. Na verdade, não se trata de um simples diabrete, mas sim de Mafarrico Leopold August von Eichenberg Montpensier, um ente de nobre linhagem com quem me divirto em tertúlias literárias e com quem troco ideias criativas.

    Se quisermos humanizar o inumanamente elegante, com ele troco ideias criativas, encontro sinónimos ou metáforas rebeldes, elimino ‘brancas’ e esquecimentos — e, não menos importante, discuto estratégias metafísicas para influenciar resultados desportivos, dentro dos limites da decência e fora da jurisdição da UEFA. Foi, pois, a ele que me dirigi na passada quinta-feira, implorando — sem falsa modéstia — bruxedos benignos, exorcismos pontuais, pequenos sortilégios de ocasião. Coisas leves. Nada que envolvesse sangue de virgem ou pactos de corrupção.

    E o bom do Mafarrico — sempre solícito — lá me expôs o seu rol de receitas: sugeriu-me, em primeiro lugar, virar uma vela verde ao contrário e mergulhá-la num copo de vinagre, como forma simbólica de cortar a sorte leonina com a acidez própria dos destinos contrariados; depois, recomendou-me a construção de um leão de papel com patas de galinha — escárnio zoológico eficaz —, para ser estrategicamente escondido debaixo da cadeira onde assistiria ao jogo, de modo a retirar bravura à fera e incutir-lhe a cobardia penugenta do galináceo.

    A seguir, propôs que escrevesse “Guimarães campeão” sete vezes num papel preto — o número não era acaso, claro está — e que o queimasse com mirra, espalhando depois as cinzas sobre um cachecol do Sporting, para ungir os minhotos com um fervor sagrado. Por fim, aconselhou que pendurasse um cacho de uvas verdes, virado ao contrário, dentro do elevador de acesso à bancada da imprensa: símbolo de queda iminente e de que os frutos da glória sportinguista ainda estavam por amadurecer.

    Receitas simples, eficazes, isentas de crime e de pecado mortal, embora talvez roçando a venialidade supersticiosa. Ora, mas fiz eu alguma destas coisas? Não fiz!

    E porquê? Por cobardia? Por esquecimento? Não, pior: por vaidade faústica. Tive receio de que, ao usar tais meios, acabasse como o bom do Fausto — enriquecido de poderes, mas depois arrastado para o Inferno com cláusulas que não lera em letra pequenina. O Diabo, como sabemos, tem um excelente advogado. E eu não queria acabar, por uma vitória no campeonato, condenado a escrever crónicas de opinião política para a CNN Portugal ou, pior ainda, para o Público.

    E assim me abstive. Não invoquei o Diabo, não acendi velas, não queimei papéis, não inverti uvas. Fui incompetente. Fui pusilânime. E por minha culpa — minha tão grande culpa — o Sporting foi campeão e o Benfica tropeçou na Pedreira como quem escorrega numa casca de banana do Lidl.

    Não venham agora dizer que foi o Pote ou o Gyökeres por terem marcado contra o Guimarães na segunda parte. Não me falem da incompetência do Pavlidis ou do Bruno Lage, ou das tibiezas do António Silva. Não culpem os empates e as derrotas ridículas. A culpa foi minha!

    Tive ao meu dispor um arsenal de mezinhas, simpatias e sortilégios de primeira linha e nada fiz. E por isso me penitencio. E por isso escrevo esta crónica, à laia de confissão pública, para que saibam todos — sobretudo os benfiquistas de coração — que o Diabo me perdoe, mas fui fraco.

    Se me quiserem agora expulsar de sócio, que o façam. Farei como Dante: descerei ao Inferno e regressarei mais forte. Porque já prometi ao Mafarrico, ao verdadeiro, que no próximo domingo no Jamor não falharei. Se for preciso, vendo a alma por aquele caneco. Ou melhor: alugo-a, com cláusula de recompra, desde que o Benfica vença.

    Porque uma Taça é uma Taça. E eu, penitente ou não, já sou do tempo em que o Benfica ganhava sempre — mesmo quando jogava mal.

  • E então as mulheres não servem para nada?

    E então as mulheres não servem para nada?


    É fácil fazer de um homem um infiel, mas dificilmente se poderá convertê-lo a outra fé

    OS SETE PILARES DA SABEDORIA

    T. E. Lawrence[1]


    Agora que já temos um novo Papa[2], sou de certeza a última pessoa a despedir-se de Francisco, com o mesmo carinho e a mesma saudade com que todos os outros se despediram, fossem eles católicos ou não – e isto, só de si, já tem forçosamente de ser um fenómeno espetacular, porque não me lembro de nenhum outro Papa, certamente não no meu tempo de vida,  que tenha deixado atrás de si tanta gente chorosa de genuína tristeza, incluindo um grande número de ateus que anteriormente nunca tinham prestado assim tanta importância como isso ao Cristianismo, a menos que fosse por causa das inúmeras guerras do presente. Muito provavelmente, os outros Papas também não tiveram um impacto e uma estima tão grandes na vida de todos os cristãos que se sucederam a Lutero[3], incluindo a casa dividida dos próprios anglicanos aquando da sua fundação[4]. Nenhum outro Papa mereceu nas suas exéquias a presença dos representantes das comunidades Muçulmanas[5] e Ortodoxas[6]. Francisco amou de tal forma o mundo inteiro, e foi capaz de trazer à superfície das pessoas tudo o que tinham de melhor, que não será de estranhar que um dia destes lhe atribuam alguns milagres e o elevem e santo. É indiscutível que teve imensa coragem, operou várias mudanças, e abriu muitas portas. Mas o passo em frente aguardado há mais tempo por milhares de fiéis continuou por dar. E, se nem Francisco o deu, sejamos honestos por uma vez na vida: no seio do catolicismo, agora só uma verdadeira revolução laica pode dá-lo. Meus senhores, cabeça erguida:  QUEM ESTÁ COMIGO?


    Nos últimos três anos que passei nos Estados Unidos foi-me dada a bênção de concretizar uma das duas grandes fantasias da minha vida, e não foi a de ser namorada do Mick Jagger. Foi antes a de cantar num coro de Gospel, de robe, pandeireta, e aquela sensação maravilhosa de flutuar alguns centímetros acima do chão quando actuávamos nos serviços de domingo[7]. Para concretizar este sonho juntei-me a uma igrejinha fundada em 1910 na Woodside Avenue de Amherst, onde ficava a minha Universidade, quase escondida por trás de plátanos enormes. De seu nome completo Goodwin Memorial African Methodist Episcopal Zion Church, era uma herdeira das Igrejas clandestinas onde os escravos negros iam buscar coragem para mais uma semana de desrespeito e trabalho árduo, e que agora se centrava sobretudo no perdão e na generosidade[8]. Embora o Methodist Episcopal indicasse claramente a junção de duas Igrejas protestantes, a African Church estava aberta a todos os credos que quisessem juntar-se aos seus serviços, e recebeu-me de braços abertos quando eu lá apareci a dizer que era católica mas preferia celebrar a minha fé com eles porque os católicos americanos eram muito chatos, extremamente reaccionários, e cometiam o pecado em tudo contrário aos ensinamentos de Jesus[9] de deduzirem dos seus impostos, a título de doação para efeitos de caridade, o dinheiro com que contribuíam no ofertório.

    Ao contrário de me escorraçarem por eu ser católica e ainda por cima branca,[10] aqueles protestantes que, logo à segunda semana, me convidaram para me juntar ao único tenor do coro, deram-me umas boas-vindas extremamente calorosas, interessaram-se imenso pela minha infância africana[11], e ainda abafaram uns risos com a minha descrição dos católicos americanos. À saída, um deles passou-me o braço pelos ombros[12] e contou-me a história da sua adolescência no Mississipi, quando era um alcoólico inveterado, incapaz de estudar ou de se aguentar mais do que dois ou três dias num emprego. Depois de tentar toda a espécie de tratamentos, e completamente em desespero de causa, a mãe levou-o à cabana de uma  velhinha. Entraram, e aquilo estava cheio de incensórios acesos, velas acesas, e ainda dezenas de variações a toda a volta da Senhora de Fátima com os Três Pastorinhos. Disse-me que não sabe o que foi que lhe aconteceu, mas que é evidente que foi um milagre. Uma luz muito branca rasgou-o de alto a baixo, e uma voz muito doce, vinda de muito longe mas perfeitamente audível, disse-lhe ao ouvido “escolhe o caminho certo e eu caminharei sempre contigo, meu filho.” Aquilo durou uma fracção de segundo, deixou-o todo a tremer e encharcado em suor, e a verdade é que desde essa altura, teria ele catorze anos, até agora que já estava reformado, nunca mais fora capaz de beber uma gota de álcool que fosse. Nem sequer um golo de BudLight[13] durante os jogos de basquete do Natal[14].

    Este homem chama-se Cyrus, e era o barítono do coro. Agora jogava golf e punha os seus automóveis clássicos a brilhar. Anteriormente, fora State Trooper. Só de olhar para ele, e de ouvir a sua voz, eu conseguia sentir claramente o meu pânico se ele alguma vez me mandasse parar numa autoestrada deserta, viesse lentamente até à minha janela com todos aqueles objectos bélicos que eles trazem pendurados à cintura, tirasse os óculos escuros, me pedisse a carta e os documentos do carro, e finalmente, passado imenso tempo, me dardejasse com aquele infalível “sabe por que a mandei parar?[15]

    black book on gray wooden table

    Enquanto episcopaliano, o Cyrus não podia nem acreditar em santos, quanto mais acreditar na Senhora de Fátima. Mas eu, que era católica e acreditava de certeza até porque era do país onde se dera o milagre, poderia por acaso agradecer-lhe por ele? Como o antigo polícia era o barítono do coro, eu puxei-o mais para trás e disse-lhe “esquece as palavras e harmoniza só comigo à segunda volta”. E ainda passámos ali uns bons dez minutos a harmonizar o MIRACULOSA, RAINHA DOS CÉUS. Até que, do carro que ia a passar na estrada, alguns dos outros gritaram, numa grande gargalhada, “Oh boy! ALELUIA! O Cyrus encontrou por fim a sua alma gémea!

    Não é verdade!”, gritei-lhes eu de volta. “Sou eu que estou a ver se saco um green card a este pobre inocente!

    Já me tinham dito que as mulheres africanas são frescas,” comentou o Cyrus com o ar que devia ter quando era Trooper.

    Ao fim de pouco tempo, alguns deles tinham-se tornado dos melhores amigos que fiz na América, e de quem hoje tenho imensas saudades.

    black cross under blue sky

    Este fragmento mínimo das minhas memórias não teria grande coisa a ver com os Papas, nem com a ciência das religiões, se não fosse pelo facto de a Igreja Africana, sendo protestante, ter uma celebração com muitos pontos de contacto com a Missa católica. Há duas leituras, selecionadas e lidas à escolha do núcleo duro da comunidade ou por voluntários sem grau que se oferecem – eu, por exemplo, pedi para ter a honra de ler a história da Grande Mãe Deborah, que salva o povo semítico no Livro dos Juízes. Segue-se um Evangelho, selecionado e lido pelo oficiante do serviço. Segue-se a preparação para a Comunhão, onde todos partilhamos pão e vinho. Quando finalmente nos levantamos, rezamos o Pai Nosso – altura em que ninguém se benzia a não ser eu, mas também nunca ninguém me chateava. Há mais umas partes de que não me lembro bem, mais uma das nossas canções levitantes – e a seguir, provavelmente o que toda a gente quer ouvir mais além do coro, vem o sermão. É enorme, grandioso, parece sempre que dirigido pessoalmente a cada um de nós, tão impressionante que da primeira vez desatei a chorar e me alguém me passou logo uma caixa de Kleenex com o sussurro “it’s OK to cry” pelo que fiquei a saber que não era só eu quem chorava durante os sermões. Finalmente, nós cantamos a canção de despedida, o pessoal vai saindo, e connosco vai uma nova energia, uma energia limpa e renovada, para nos ajudar a encarar a semana seguinte.

    A diferença esmagadora para mim foi que, quando me juntei à Igreja Africana, o oficiante de serviço era uma mulher. Feia como cornos, sem grande empatia, incapaz de brilhar nos sermões como se espera que um bom pastor brilhe (“women can’t preach,” disse-me o Cyrus com um simples encolher de ombros), mas com um comando das partes que é o pastor que  faz no altar absolutamente natural para a comunidade. Era ela quem lia o Evangelho, quem consagrava o pão e o vinho, quem o partilhava com todos nós, e quem orava mecanicamente as partes que é o oficiante que reza sozinho. Nunca ouvi ninguém dizer que isto fosse uma conquista recente das mulheres, embora estivéssemos em plenos dia dourados da Michelle Obama toda musculada e houvesse um grupinho de três fufas brancas que semelhantes a camionistas que marcava sempre presença – aliás, ao fim do meu primeiro ano de AME houve uma delas, que tinha sido freira durante muito tempo, que foi ordenada pastora, e também ninguém fez nenhum grande alarido a esse respeito.

    a group of people standing in front of a statue

    E depois, como ninguém gostava daquela pastora, no início do ano seguinte esbarrei noutra diferença esmagadora. O pastor que veio celebrar os serviços connosco era meio taumaturgo, meio charlatão, mas pelo menos era absolutamente arrebatador e fazia sermões inequivocamente sulistas, cheios de milagres e de vitórias dos espíritos bons contra a tentação dos maus caminhos, e a malta chorava, chorava, chorava, até que nós acabávamos de cantar e saímos dali literalmente com imensa Força connosco.

    Surpresa: ao terceiro domingo, apareceu na igrejinha a mulher do pastor, ela própria ordenada pastora. Uma mulher jovem, lindíssima, de cabelo comprido todo entrançado, vestida de branco e descalça. Foi ela que assegurou vários momentos críticos do serviço, como a leitura do Evangelho e a partilha do pão e do vinho. Durante o sermão usou um batuque para marcar o ritmo e fez um longo, pungente, um arrepiante vocalizo africano, que acompanhava na perfeição a voz entusiástica do marido. Toda a gente gostou tanto que, no domingo seguinte, foi ela própria quem fez o sermão inteiro, com o marido cheio de orgulho sentado na primeira fila a observar. O tema escolhido era a compaixão, e ela entrou de mansinho. Mas foi por ali fora numa tamanha espiral ascendente que, às tantas, o mesmo Cyrus que me tinha dito “women can’t preach” estava a gritar “Preach! Preach!”, enquanto o Roger, com todo o poder da sua voz Mowtown, gritava “Teach us! Teach us!” Foi sublime.

    a church with a steeple and a steeple on top of it

    Ou seja, os metodistas e os episcopalianos, assim como vários outros protestantes, podem casar-se e ter uma vida normal. Mais bonito ainda, podem casar-se com colegas da mesma pastorícia e dar Força um ao outro, ou encher-nos de Força a nós celebrando o serviço juntos. Quando o nosso pastor celebrava sozinho, aquilo era sempre assombroso. Mas, quando celebrava com a mulher, ou lhe entregava por completo as rédeas da celebração, aquilo era de uma beleza que até fazia doer.

    É isto, esta importantíssima felicidade da fé, que a Igreja Católica nega, em nome da “tradição”, aos seus fiéis e aos seus oficiantes. Os homens e mulheres que desejam afastar-se do mundo para orarem e meditarem dentro de muros de conventos, tornando-se assim monges e freiras, estão no seu direito de escolher essa vida[16], e ao fazê-lo fazem uma escolha extremamente importante para todos nós. Que seria da civilização ocidental sem Juan de la Cruz e Madre Teresa de Avila, sem Hildegard von Bingen[17] nem Teresinha de Lisieux? Ou mesmo a Madre Lúcia, vá?

    Mas nada disto se aplica aos homens e mulheres que vivem entre o resto da sociedade, e procuram orientar os rebanhos das suas paróquias para o bem, mas parecem esquecer-se da felicidade – da sua e da dos seus fiéis.a É evidente que muitos problemas que infestam os tempos modernos desapareceriam se os padres pudessem casar-se e formar uma família como a de toda a gente, e que as missas predisporiam os fiéis a sentirem-se muito mais felizes.

    beaded brown rosary

    Note-se que os Padres da Igreja não tinham quaisquer dúvidas a respeito da importância da sensação de felicidade. Santo Ambrósio, bispo de Milão, o patrono e conselheiro espiritual de Santo Agostinho, chegava a ter na sua catedral coristas seminuas escolhidas a dedo, vestidas com roupas lindas e sensuais que dançavam magistralmente a som dos coros. Da mesma forma, por esta altura (século IV, ainda antes do concílio de Niceia) as igrejas mais importantes da Europa começaram a encher-se de crocodilos pendurados do tecto, cornos de narval encaixados em encastes fabulosos, reluzentes de jóias, e apresentados como sendo de unicórnio, ovos de avestruz usados para bases de castiçais, aves exóticas de grande porte empalhadas como que em pleno voo – tudo o que pudesse atrair os transeuntes às igrejas como num cabinet de curiosités[18] e depois levá-los a entrar, tudo o que testemunhasse, pela sua beleza e esplendor nunca antes vistos, a grandeza e o poder de Deus, era usado sem hesitações para aumentar a cristandade.

    Muito deste trabalho era feito pelas mulheres lado a lado com os homens, tal como fora no tempo de Jesus, e em todos os Actos dos Apóstolos, sobretudo nas últimas Cartas de São Paulo, quando o grande tradutor do Novo Testamento para as multidões ignorantes ordena responsáveis totais pela missa várias mulheres, às quais agradece explicitamente, com o nome bem em destaque, no final do seu livro.

    Por que é que a Igreja não perpetuou nenhuma destas tradições? Como é que é possível que os teólogos católicos não reparem no respeito que Jesus manifesta constantemente pelas mulheres? Quem é que encontrou o Sepulcro vazio, se calhar foi algum gajo? Por favor perdoem-me a linguagem mas estou farta destas disparidades e se não me engano a primeira pessoa a chegar ao Sepulcro primeiro e avisar toda a gente a seguir foi Maria Madalena. Se isto não é dar às mulheres um papel de enorme importância dentro da narrativa cristã, então olhem – não sei o que é.

    sun rays inside cave

    Não sei mesmo. Subjugada à sua liderança masculina, a posição das mulheres da Igreja Católica foi descendo de mal a pior. Tinha eu dezassete anos e, três anos volvidos sobre a Revolução, num país ainda completamente em festa, estava quase a sair de casa porque o famigerado Ano Propedêutico, lecionado pela televisão, não nos obrigava a estarmos em sítio nenhum em particular – e eu tinha resolvido ir trabalhar para uma residência de meninos da telescola perto de Montalegre. Lembro-me especialmente bem destes pormenores porque foi quando o Papa Paulo VI emitiu uma declaração oficial contra a ordenação de mulheres. A Sagrada Congregação para A Doutrina da Fé divulgou a Declaração sobre a Questão da Admissão das Mulheres ao Sacerdócio Ministerial [19]para publicação em 27 de janeiro de 1977. A Declaração afirmava que a Igreja, “na fidelidade para com o Senhor, não se considera autorizada a admitir mulheres a ordenação sacerdotal.”

    Na altura, com a cólera dos meus dezassete aninhos, eu fechei-me no quarto e berrei logo,

    Filho da Puta!”

    Maria Clara, o que é que tu estás a dizer?”, perguntou a minha mãe do outro lado da porta.

    Estou a chamar nomes ao Papa Paulo VI,” respondi eu.

    Nisso tens toda a razão,” respondeu ela, com um suspiro conhecedor de militante. “Mas modera-me essa linguagem se fazes favor.”

    E então eu suspirei baixinho,

    Cabrões.[20]

    Papa Paulo VI

    Aqueles gajos tinham a lata de referir a sua fidelidade para com o Senhor?

    Mas o Senhor não era um grande amigo das mulheres?

    A Sagrada Congregação, sempre a meter um bocado os pés pelas mãos[21], afirma que o que aconteceu e se escreveu nessa altura foram apenas considerações inspiradas pelo Espírito dos Tempos.

    É preciso ter uma grandecíssima cara de pau.

    Então os nossos tempos contam e os tempos de Jesus é que não contam????

    Desculpem, mas…[22]


    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Vulgarmente conhecido por “Lawrence da Arábia”.

    [2] A Ordem Agostiniana é pouco conhecida em Portugal, e não tenciono escrever um livro de texto a seu respeito. Para os interessados, no entanto, recomendo A HISTORY OF GOD, de Karen Amstrong, Alfred A. Knopf, 1993.

    [3] Enfim, o Reizinho Eduardo VI de Inglaterra, filho de Jane Seymour, que subiu ao trono depois da decapitação de Ana Bolena, aparentemente ainda não satisfeito com os rios de sangue derramados pelo seu Pai Henrique XVIII (como veremos), antes de morrer aos catorze anos ainda teve tempo para escolher antes a Fé Evangélica e derramar mais bastante sangue (viveu muito pouco e esteve doente quase todo o tempo,  é preciso ver).

    [4]  Recusamos aqui ao tempo de vida de Henrique VIII, que, como o Papa não lhe anulava o casamento porque não podia dar-se ao luxo de se incompatibilizar com os Reis Católicos de quem a sua primeira esposa, Catarina de Aragão, era filha, criou a fé Anglicana para poder separar-se dela e casar com Ana Bolena, por quem estava então perdidamente apaixonado,  e de quem esperava vir a ter muitos filhos do sexo masculino (em vez deles teve a futura Isabel I, mas já não viveu para ver a glória do reinado da Segunda Rainha de Inglaterra. O processo de mudança foi extremamente sangrento e não menos doloroso, sobretudo porque obrigou Henrique a decapitar o seu grande amigo Thomas More, que se recusou a abandonar a fé católica, assim como se recusou a fugir.

    [5] Esta união aos ocorreu a partir de um sentimento legítimo de perda de um protector sublime das suas comunidades, independentemente da ferocidade como estas comunidades possam lutar entre si, desde a sua criação até’ aos nossos dias. Ainda por cima, o terceiro ramo do Filhos de Abraão, representado pelo judaísmo, foi tão indiferente quanto possível aos outos Papas, mas desenvolveu um ódio crescente a Francisco à medida que ele foi falando contra o “genocídio dos palestinianos” tal como visível na Faixa de Gaza. Para evitar uma nota em forma de calhamaço, recomenda-se THE BATTLE FOR GOD, de Karen Amstrong.

    [6] Idem. Mas, se quiserem a referência toda para saberem a história toda, trata-se de THE BATTLE FOR GOD, de Karen Amstrong, Alfred A. Khnopf, Nova Iorque, 2000. Basta olhar para as datas dos dois livros colossais da autora para percebermos logo que o nosso mundo tem vindo a tornar-se cada vez mais cruel e desumano. Acreditem, isto não é só uma dedução: eu li os dois de ponta a ponta, e torna-se evidente que estamos a perder a nossa Graça, seja ela qual for.

    [7] Isto quer obviamente dizer que ainda vou a tempo de ser namorada do Mick. Eu estou viva, ele está ainda mais vivo do que eu, e se uma das minhas duas fantasias já se cumpriu é evidente que a outra também vai cumprir-se. Eu sou extremamente paciente, e, como os próprios Stones escolheram intitular um seus discos ainda do tempo do vinil, TIME IS ON OUR SIDE.

    [8] No primeiro ano desta estadia, vi-me obrigada a sobreviver apenas com os mil dólares por mês da minha bolsa da Fulbright. Os negros americanos são sistematicamente muito mais pobres do que os brancos, mas até os meus amigos da Igreja ficavam de queixo caído quando eu lhes dizia isto, porque o limiar de pobreza naquela zona é de 2600 dólares por mês. Por isso mesmo, foram eles que pagaram as lentes e armações dos meus primeiros óculos graduados quando comecei a ter dificuldades de leitura e escrita. Num domingo de Maio, o Cyrus, que agora era o organizador das actividades mais delicadas da Igreja, passou-me um envelope para as mãos no fim do Serviço sem me dar quaisquer explicações. Quando cheguei a casa e o abri, tinha lá dentro duzentos dólares em notas: era um peditório especial que tinham feito para me ajudarem. Mais tarde, houve um fim do diaem que o meu grande amigo Roger, o baixo do  coro e a voz mais Mowtown que imaginar se possa, me bateu à porta com um cheque de sessenta euros em compras no supermercado finaço por trás de minha casa: “Fui lá agora comprar aquele teu azeite português e a montra dos peixes tinha daqueles crabcakes que tu adoras, enormes, muito frescos, e este foi o meu troco, e então lembrei-me de pedi-lo antes em vale de compras para poderes ir lá comprar uns quantos e mais o que te apetecer.” Isto são só uns exemplos. Ajudaram-me com muitíssimas mais coisas.

    [9] Jesus, sobre a caridade: “Não deixes que a tua mão esquerda saiba o que faz a tua mão direita.”

    [10] O “ser católica” ainda vá que não vá. O “ser branca” era questionável, porque os americanos nunca me comeram realmente por branca. Mas os meus colegas da Universidade estavam cheios de medo dos maus tratos que os pretos iriam infligir-me se eu ousasse entrar na igreja deles. Não se iludam: já corri o mundo inteiro, e nunca estive num país tão incrivelmente racista como a América.,

    [11] A esmagadora maioria dos autodesignados afro-americanos nunca na vida pôs os pés em África.

    [12] Vê-se logo que não era branco. Esses andam sempre cheios de medo do assédio sexual e nunca tocam em ninguém.

    [13] A Budweiser, já de si, é pouco mais do que água com gás. Da BudLight, quanto menos se falar melhor.

    [14] Faz parte da tradição. A família junta-se toda, mas, regra geral, as pessoas têm pouco que dizer umas às outras. Para acudir a este marasmo social e evitar a inevitabilidade de refrega desagradáveis, a televisão passa jogos de basquete cheios de superestrelas desse desporto, e com outras tantas de vários outros domínios nos intervalos, encarregues de publicidades que só passam nessa altura, como por exemplo o Bob Dylan a promover o novo Jeep Chevrolet.

    [15] Toda a gente sabe que se trata de uma pergunta retórica. Os State Troopers fazem-na quando passamos por eles em excesso de velocidade, e a seguir passam-nos uma multa de cento e tal dólares.. Por acaso foi uma coisa que me aconteceu a mim com relativa frequência. Com tanta frequência, aliás, que eu paguei as multas todas mas eles acabaram por mandar-me ir ao curso de fim de semana de recuperação psicológica, onde estava uma psicóloga gorda com ar de camionista, eu, e mais nove exemplares perfeitos do pior trailer park white trash que é possível encontrar nas montanhas ali da zona. Não se pode dizer que não tenha funcionado. Cheguei aqueles dois dias a casa a chorar como uma Madalena, e, só de pensar em ter de voltar a sofrer um outro fim de semana daqueles, a verdade é que reduzi substancialmente a minha velocidade de cruzeiro. A única outra vez em que um State Trooper me mandou parar foi graças ao livro arbítrio dos seis aninhos do meu filho Ricky, que achou por bem soltar-se do cinto, sair da cadeirinha, e deitar-se ao comprido no banco de trás, com a cabeça no colo do irmão, que ficou caladinho que nem um rato. Eu ia a guiar no banco da frente, e não dei por absolutamente nada até ter aquelas malditas luzes vermelhas e azuis coladas a mim. Eles ainda não falavam inglês, mas a fúria assustadora daquele Incredible Hulk Azul e cheio de armas entendia-se bem. Nunca mais me mandaram parar.

    [16] Desde que sejam mesmo eles quem a escolhe.

    [17] Reconheço que escolher Hildegard é esticar um bocado a corda, já que esta mulher admirável, pioneira da genética mendeliana logo no século XI, passou a sua vida de Madre Abadessa a correr o mundo onde conseguia chegar para proferir os seus sermões que todos queriam ouvi. Mas a verdade é que depois voltava para o seu convento e retomava o voto de silêncio, excepto com o jardineiro que lhe semeava as plantas segundo os padrões que ela pé-seleccionava.

    [18] Esta tradição, iniciada cedo na Idade Média e sobretudo em Paris, mandava os agentes  das casas ais da nobreza, ou mesmo dos homens mais marcantes do clero, correr o mundo inteiro à procura de artefactos naturais estranhos e apelativos, ou preparados por tribos distantes, que depois eram colocados pelos joalheiros da corte em suportes ousados, como por exemplo vários pés de raiz de mandrágora revestidos de pele de jiboia nas pontas mais finas e expostos nas zonas mais grossas, cheios de pedras semipreciosas à sua volta. Todos estes artefactos, que ainda ninguém sabia exatamente a que correspondiam, eram expostos em montras de vido nas paredes para chamar a atenção dos que passavam, e tinham lá dento conjuntos lendários de Monstros & Maravilhas. A partir de Paris, e até à Revolução Científica, estes Gabinetes de Curiosidades foram o primeiro grande despoletar a curiosidade ocidental para as Ciência da Natureza.

    [19] Estão a ver o caos burocrático que isto foi.

    [20] O nosso respeito pela nossa mãe era incontornável. Creio que um dos piores momentos da minha vida foi quando, aos dezasseis anos, me distraí completamente no meio do falazar dos meus amigos e disse um foooo-da-se bem marcado e bem sonoro a falar com ela ao telefone. Já estou corada só de me lembrar disso.

    [21] Veremos quanto na próxima crónica.

    [22] …QUE MERDA É ESTA????

  • Novas notas do diário

    Novas notas do diário


    RODRIGUES DOS SANTOS I Certa vez entrevistei o grande masturbador JRS. As perguntas nausearam-no e pôs-se com apartes de seresma, debitando teorias literatas, achando-me um neófito a quem podia dar baile. Não piscou o olho. Saiu de cena com a minha deixa de mandar cumprimentos ao Boris Vian.

    Na promoção em curso, o grande masturbador deu uma entrevista à Sábado onde se arvorou como um pioneiro do romance factual sobre Auschwitz ao contar a história do mágico e dos rituais ocultos do Fuhrer. Este cagão, desonesto intelectual, prosador medíocre, não teve réplica da jornalista Rita Bertrand ao dizer tal dislate. Bastava nomear Primo Levi para lhe dar com o esfregão na tromba de boneco da Maconde. Quem pode ler esta criatura a não ser para o remeter para o chão dos escrevinhadores oportunistas?

    PAPA I A Humanidade precisa de iniciados. De exemplos virtuosos e coerentes de Amor, Paz, Compaixão, Humildade e Sabedoria. Um Papa ou qualquer mentor de qualquer procedência deve reunir este quinhão de virtudes. Passar do estado animal ao degrau da cooperação abnegada. A fé é além de igrejas e egrégoras. Implica remover as guerras do binómio da Vida.

    ESCLARECIMENTOS I Antes de ter os jornalistas e o povo à perna cumpre-me dizer dos meus pecadilhos: comprei uma casa aos 22 anos com recurso ao crédito jovem bonificado. Por insistência da minha segunda esposa, vendi a casa que estava em meu nome e era eu que a pagava, e comprei outra a meias, que mais tarde, em virtude do divórcio, vendi ao desbarato, mas que a senhora teve a decência de não me ficar com a parte do lucro que havia reinvestido. Uma senhora como deve ser. Depois, comprei outra, também a meias, com outra esposa, aplicando a totalidade das mais-valias, sendo que graças a um descuido na gestão do seu IRS, a terceira e última esposa me fez perder a totalidade do que tinha investido, bem como a casa. Coisas do romantismo e da falta de prudência a assinar o contrato. Fiquei de mãos a abanar. Hoje, não tenho outro remédio senão arrendar ao preço de mercado. Noutros domínios, do corpo e espírito, não fui santo e tive aventuras a dar com um pau, que me deram apenas o ensejo de não mais ir por aí. Não tive nem terei heranças, tal como não tive semanadas e mesadas. Tive avós generosos mas cuja maior riqueza estava nos afectos e no respeito por uma criança. Não tenho contas na Suiça. No meu ramo, sou como todos: vivo da generosidade dos estrangeiros. Ganho dez por cento de direitos de autor e em vinte anos e vinte livros editados, tudo junto o pecúlio dá para comprar uma caixa de Cohibas. Senhores imperialistas, não vos tenho absolutamente nenhum medo. Nem de nenhuma espécie de chibos ou detractores. Confesso que …i.

    CASOS I Sou daqueles líricos que acha o seguinte: casa, educação, saúde e trabalho são bens essenciais cujo acesso deve ser acessível a todos sem excepção. Segundo uma abécula de uma associação de senhorios a habitação não é um problema nacional. Diz o proprietário que a maioria dos portugueses possui uma casa, pelo menos. Deve estar a referir-se a uma casinha de bonecas. Por outro lado, quem arrenda tem muito por onde escolher, diz a cavalgadura. Deve estar a referir-se aos estrangeiros abonados que se instalam por cá como turistas. Basta pesquisar sites de alojamento para ver que abaixo de 800€ não se arrenda népia, a não ser um quarto ou um buraco na Buraca. 200 mil euros é o preço de base para aspirar a ter casa própria. Ter filhos é um luxo. A educação é um milagre da dedicação de professores extenuados e mal pagos. A saúde um acaso da sorte. O trabalho é de quem mais ordena. O salário mínimo é dos mais baixos na Europa e assim será. Os níveis de literacia espelham-se na abstenção e no número de livros comprados e lidos. Mais depressa um português se indigna com as arbitragens da bola do que se a vida é um exercício de sobrevivência em vez de um combate às reais injustiças.

    OS MEUS LIVROS I Fico feliz quando me perguntam por um novo livro. Mais ficarei se forem às livrarias encomendar um par ou mesmo uma dúzia, dos 17 editados. A minha editora é a Leya/Oficina do Livro, mas quem está por detrás dos romances é a Maria Do Rosário Pedreira, porventura a referência máxima na edição em Português, além de poeta de fino recorte, letrista de fados e um ser humano de Exa. O mais importante na vida é a amizade, de onde brotam conselhos de abrir a pestana. Editei livros com a A23, do meu amigo Ricardo Paulouro, na Escritório, do Miguel Neto, na Nova Delphi, com o grande poeta e amigo Vítor Sousa, e na Âncora. Livros bonitos. Gosto de todos os meus livros, uns mais conseguidos do que outros. Graças à MRP aprendo muito sobre o cuidado, a confecção e a congruência. Tal como há dois ou três leitores cujo parecer me é fundamental. Quanto a vendas, não posso competir com o marketing. Por outro lado, não temos falta de autores de qualidade. A maioria não pode viver em exclusivo dos direitos de autor. É uma sina de antanho. Sem leitores e compradores não há autores a tempo inteiro.

    P.S. Em Maio há novo romance. O Judeu de Santa Engrácia. Um thriller histórico

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

    As ilustrações foram elaboradas com recurso a inteligência artificial.

  • Eduardo Mãos Marotas provocou o apagão do século

    Eduardo Mãos Marotas provocou o apagão do século


    Cristiano Ronaldo, melhor jogador do Mundo desde a extinção dos dinossauros, que da pedra poliam jogadas de força — e um dos melhores da Academia de Alcochete —, é tão bom profissional que depois dos treinos mergulha numa banheira de gelo.

    Eduardo Quaresma, melhor animador do balneário e dessa prestigiada Academia desde os tempos de Bruno de Carvalho, é tão irresponsável e ligado à corrente que quando chega a casa atira-se à namorada.

    Ai, Edu, se continuas assim qualquer dia dá golo!

    Quando o ovo estrelado lhe rebentou no prato, ao comer uma alheira de frango por causa da dieta, o treinador Rui Borges teve um estranho pressentimento sobre o jogo com o Gil Vicente. Sem Ousmane Diomande, castigado por preconceito religioso do Conselho de Disciplina, teria de colocar no centro da defesa o holandês com nome de Santo Justo. Em tempos de comoção pela morte do Papa, poderia a equipa de arbitragem aproveitar as correrias dele, como na final da Taça do ano passado, para pilhar galinhas em terra relvada, a fim de animar a prima delas que se exibe pelos ares no Estádio da Luz em troca de uma ração de minhocas.

    Ana Luísa, isto não está a saber-me bem. A minha avó já dizia que a alheira é como a verdade desportiva: na nossa terra só se faz com carne de porco.

    Com 11 batatas fritas no lugar das caricas dos tempos de Mirandela, o treinador transmontano desenhou na toalha de riscas verdes e brancas um plano para, em caso de necessidade, dar a volta ao resultado. Colocou Eduardo Quaresma de início, ao lado direito do Justo, com o objectivo estratégico de compensar as corridas em profundidade com fintas e piadas enervantes a toda a largura do campo.

    Vai lá e manga com eles, rapaz. Não lhes dês vagar!

    E o Eduardo assim subiu ao relvado, de camisola às riscas, disposto a espalhar a mostarda no nariz dos adversários. Para reprimir as saudades de casa, durante 90 minutos mais tempo de sobremesa, aproveitou os pontapés de canto para lhes contar que o galo de Barcelos tem pele de galinha da segunda circular e provavelmente é transgénico. Em lugar de se rirem com uma piada tão sofisticada, provavelmente de Dijon, eles só se atiravam para a relva em lágrimas. E assim foram passando o tempo, para contentamento culinário do treinador que tinha prometido dar o título ao do outro lado.

    Chorem e rebolem muito, rapazes. Isto está quase!

    Com o jogo a dar as últimas, Eduardo mudou de táctica: calou-se muito caladinho e enfiou-se de surra na meia-lua. Aos 93 minutos, num derradeiro pontapé de canto, a bola veio ter com ele, redonda como a maçã com que Eva tentou Adão, para nossa eterna perdição e pecado diário de concupiscência. Cheio de saudades, o rapaz lembrou-se do último treino em casa. Sentiu-se como o marinheiro Popeye a comer espinafres, depois de um prolongado jejum no mar alto. Tirou as medidas aos postes, que lhe pareceram tão familiares como tentadores, e deu à bola uma cacetada carinhosa, com selo de amor e de golo.

    — Golo, golo, golo! Eduzinho, Eduzinho, eu não te dizia? Toma banho depressa, que eu já te preparei o jantar de que tu mais gostas.

    E foi assim que o derby decisivo ficou resolvido, por antecipação e com dois resultados possíveis. A descarga eléctrica no estádio, do relvado às bancadas, foi tamanha que poucos dias depois provocou um apagão na Península Ibérica, que deixou às escuras todos os grandes estádios, do Riazor ao Mestalla. O inesperado fenómeno inspirou Bruno Lage a fazer, à luz das velas, uma reza a São Narciso e uma premonição histórica.

    — Vai ser o jogo do Século.

    Pelo sim pelo não, realizou-se ainda de dia e às claras, com os comboios parados e o metro outra vez avariado. Como se tem visto em muito clubes, não é fácil recuperar de um apagão. Victor Gyökeres, que é uma turbina nuclear, apresentou-se ao guarda-redes Trubin a meio gás. Já o capitão Morten Hjulmand, em compensação nórdica de potência, rolou sobre a relva como eólicas em noite de tempestade, com energia para dar e vender caro, quer os clientes queiram ou não.

    Retrato ao estilo de Caravaggio (‘pintado’ pelo ChatGPT) alusiva à (suposta) falta de um jogador do Benfica contra o Gyökeres, belíssimamente fotografada por Tiago Petinga para a Lusa.

    O árbitro também beneficiou o espectáculo, com intervenções intermitentes, a tentar disfarçar para que lado lhe soprou sempre o vento durante o campeonato. Calhou um jogador do Benfica, em acção de legítima defesa, ficar de braço enrolado ao pescoço do melhor marcador da Europa civilizada. João Pinheiro perdoou a falta e o correspondente cartão vermelho ao avançado, apesar dele, com as cordas vocais, ter agredido em flagrante o cotovelo adversário.

    Quanto ao VAR, parecia escondido numa caverna do estádio, à procura de lítio ou outros minérios preciosos. Aos 17 minutos, Nicolás Otamendi aplicou um castigo às canelas do Trincão, dentro da área. Compreensivelmente, o ancião argentino agiu cego de raiva, mas com toda a justiça, porque o craque do Sporting marcou um golo quando ele ainda estava no tempo de aquecimento adequado a esta fase da carreira.

    São Narciso não aguentou mais: desligou a televisão, com receio de apagar a luz por sobrecarrega de golos na rede de baliza da casa. Foi uma atitude meritória: poupou electricidade, vai animar a economia mais uma semana e muda a festa para o local certo.

    — Juízo, malta. Vocês merecem ser felizes e o Eduardo Mãos Marotas tem de ganhar dois campeonatos seguidos, que está na idade.

  • Pinacácia: um pinheiro enxertado de acácia

    Pinacácia: um pinheiro enxertado de acácia


    Portugal é, em muitos dias, um país soalheiro e tranquilo — pelo menos na aparência. Este sábado foi um desses dias mornos de primavera citadina, sem tempestade, sem alerta da Protecção Civil, sem o Rui Fonseca e Castro a querer fazer bifanas no Martim Moniz — mas revelou-se, afinal, um perfeito retrato da crónica inépcia lusitana.

    Em dia de campeonato ao rubro, com a possibilidade de se coroar o campeão nacional, eis que o Metropolitano de Lisboa decide… fechar. Encerrar. Trancar quatro estações mais de duas horas antes do apito final de um jogo que faria pulsar a capital. Dir-me-ão que foi uma questão de segurança. Pois sim. Mas de quem? Do bom senso? Mas que dizer, então, de uma falha de electricidade que parou o dito metropolitano em quase todas as estações logo às cinco da tarde? Já foi segurança ou incompetência? Portanto, ficámos, eu e o sportinguista Carlos Enes — cuja teimosia clubística já granjeou lugar nos anais da fé cega — à porta da estação dos Anjos, ou do Intendente, já não sei. Se foi do Intendente, bem que os administradores do Metropolitano de Lisboa mereciam levar com o Pina Manique, o verdadeiro.

    Enfim, a menos de uma hora do jogo do título e nós, dois homens feitos, jornalistas prevenidos, encontrávamo-nos a mendigar mobilidade. Valeu-nos o Uber, esse milagre pago a peso de ouro, malgrado a espera. Fomos levados pelo Malkit, classificação de 4,91 em 5, num Renault com uma curiosa matrícula iniciada por AD. Vinte minutos de jogo foram perdidos. Um pecado em dia de epifania futebolística.

    Mas a irritação, como se sabe, é uma erva daninha que se alastra. E o Carlos Enes, fiel ao seu evangelho leonino, não tardou em começar a vociferar contra o árbitro João Pinheiro ainda no Uber. Que ele era isto, que era aquilo, que o homem só via vermelho quando era para os verdes, que só marcava penáltis quando era contra Alvalade. Já ouvira tais lamúrias antes, mas ontem, confesso, o tom de queixa parecia vir com lastro estatístico.

    Apeteceu-me calar-lhe os protestos, mas decidi, em nome da paz do Uber e do método científico, consultar a inteligência artificial. Talvez a frieza algorítmica nos trouxesse alguma claridade. E assim foi. Lancei a pergunta com as estatísticas que cirandaram na semana passada pelas redes sociais: “Haverá razões estatísticas para desconfiar de João Pinheiro?” O ChatGPT, que já me havia esclarecido questões de Economia, Meteorologia e História, respondeu com inesperada contundência.

    Estatística ‘enxertou’ durante uma semana João Pinheiro.

    Disse-me que sim, a disparidade nos penáltis aplicados por João Pinheiro contra o Sporting (7 contra apenas 1 contra o Benfica) era improvável sob uma distribuição equitativa. Acrescentou que os cartões vermelhos (9 vs. 1) revelavam uma assimetria preocupante. E rematou: a percentagem de vitórias do Benfica com João Pinheiro (68%) superava em muito a sua média histórica em provas nacionais. Conclusão? O Sporting tinha razões fundadas para desconfiar. Nada disto prova dolo — sublinhava o algoritmo —, mas justifica uma auditoria independente. Uma espécie de VAR científico.

    Disse isto ao Carlos Enes, que rejubilou com a validação estatística do seu calvário. E, porque o destino gosta de ironias, vaticinei logo: “Então hoje vai compensar. A pressão é tanta que vai inclinar o campo… mas para o outro lado.” Não sendo versado em Psicologia, está nos livros. E não me enganei.

    É certo que perdemos os primeiros 20 minutos — entre os quais uma alegada falta do Otamendi sobre o Pote, aos 17 minutos, que Carlos Enes jurou depois ser penálti claro. Mas aquilo que vimos — quer dizer, eu vi; eles não — a seguir foi um festival. Um Pinheiro tão zeloso que parecia ter sido regado, adubado e podado pelos deuses de Alvalade durante a semana. Uma exibição tão florida que, mesmo sem rega ao intervalo, a todos espantaria pela exuberância botânica.

    Veja-se:

    Minuto 25: após canto de Di María, Otamendi cai na área e queixa-se de empurrão de Debast. O Pinheiro, sereno como um carvalho, ignora o VAR e resolve premiar o banco do Benfica com um amarelo pedagógico.

    Minuto 44: nova queixa do Benfica por mão na bola de Debast. Pinheiro, inflexível como uma sequoia, decide que o melhor é expulsar mais um elemento da equipa técnica encarnada. Didáctica com pulso.

    Minuto 60: Hjulmand deixa Aktürkoglu no relvado. O árbitro, talvez confuso pela brisa primaveril, interrompe o jogo e penaliza… Florentino, por uma falta anterior. Nada como viver em tempo elástico.

    Minuto 83: falta de Hjulmand sobre Kokçu. Os encarnados pedem o segundo amarelo. Pinheiro abana a cabeça como um salgueiro zen e prossegue, tranquilo, rumo à eternidade.

    Mas o mais notável nem esteve nestes lances, esteve nos sopros. Nos pequenos toques. Nas brisas que abanavam os gémeos dos jogadores leoninos. João Pinheiro via tudo. Sentia tudo. Apitava cada lamento dos sportinguistas como se escutasse a alma dos médios. E enquanto o guardião leonino Rui Silva se deitava, espreguiçava e perdia tempo com mais arte do que o cronómetro do Coliseu de Roma, Pinheiro deixava correr. A relva da Luz, então, parecia um relvado de piquenique para os lagartos que estiveram mais tempo deitados de barriga para cima do que com os dois pés no chão. E no fim, sete escassos minutos de desconto, como quem oferece um rebuçado a uma criança que perdeu o almoço.

    Não sou dado a falar de arbitragens. A maioria das vezes, os erros compensam-se ou desculpam-se com o factor humano. Mas neste jogo, neste particular sábado, viu-se algo raro. Um milagre agronómico. Sempre me disseram, nas aulas de Biologia do secundário, que as angiospérmicas não podiam ser enxertadas de modo a mudar de fisiologia. Mas ontem, caro leitor, assistimos a uma revolução científica. Um Pinheiro, árvore robusta, vertical e previsivelmente imune a enxertos, transformou-se. Enxertaram-lhe tantas durante a semana passada que João Pinheiro ganhou raízes de acácia. Sim, aquela árvore de copa larga, onde os leões descansam na savana, à sombra do vento e da complacência. No estádio da Luz, os leões tiveram um abrigo botânico único: João Pinacácia.

    De resto, ganhe quem ganhar o campeonato — e digo-o com o respeito clubístico que me é próprio —, o país precisa de mais do que árbitros compensadores. Precisa de transportes que transportem. De horários que se cumpram. De decisões que não nasçam da burocracia, mas do bom senso. Porque um país onde os jogos decisivos não se jogam de forma decente, os metropolitanos não andam ao sábado e os pinheiros ganham folhas de acácia… é um país que, mesmo ao sol, continua às escuras. Não nos admiremos pelos apagões eléctricos, mas sim por acharmos normal a anormalidade.

  • Punir (e ver punir) sabe bem!

    Punir (e ver punir) sabe bem!


    Porque é que ver sofrer nos sabe tão bem – ainda que o neguemos? Esta pergunta, desconfortável mas inevitável, percorre silenciosamente a história da Humanidade. A resposta não se encontra nos tribunais, sob as suas mais diversas formas desde a Antiguidade até ao sistema judicial actual, mas sim no cérebro humano, devido aos atalhos emocionais que utilizamos, e na estranha satisfação que sentimos quando o “outro” sofre aquilo que “julgamos” que merece.

    Do Coliseu romano (morte por lançamento às feras) à forca de Owensboro, no Kentucky, onde em 1936 ocorreu o último enforcamento público da história dos Estados Unidos da América (em Portugal foi em 22 de Abril de 1846, na Praça d’Armas, em Lagos, e o executado foi José Joaquim Grande); da guilhotina francesa – proposta pelo médico parisiense Joseph-Ignace Guillotin, tendo em vista acabar com a tortura dos executados e, por uma questão de igualdade, submeter todos os condenados à mesma forma de execução, tendo sido utilizada pela primeira vez em 1792 – à cadeira eléctrica da Florida, onde em 1989 Ted Bundy foi executado; da fogueira inquisitorial à câmara de injecção letal em Terre Haute, Indiana, onde em 2001 Timothy McVeigh deu o seu último suspiro. Ao longo dos séculos, a execução de criminosos foi mais do que justiça: foi espectáculo. E o que se celebrava não era apenas a lei — era o prazer socialmente aceite de ver o outro sofrer: a schadenfreude.

    Em 1321, em França, a população acreditou que os leprosos estavam a contaminar os poços com veneno. Sob tortura, confessaram a existência de uma conspiração diabólica com judeus e muçulmanos, tendo tudo culminado com massacres — sobretudo de leprosos e judeus — que ficaram conhecidos como a “Trama dos Leprosos”. A população, mais do que tolerar os castigos, regozijou-se com eles.

    O mesmo aconteceu no caso de Robert-François Damiens, o último homem a ser esquartejado em França, em 1757. A sua execução foi um grande evento social. Alugaram-se apartamentos com vista privilegiada, houve venda antecipada de lugares, e entre a aristocracia encontravam-se figuras como Casanova, que inclusive relatou a execução como uma experiência quase erótica.

    Em Owensboro, mais de 20 mil pessoas apareceram para assistir ao enforcamento de um jovem afro-americano, Rainey Bethea, acusado de violar uma mulher branca. A maioria das pessoas dormiu ao relento para garantir um bom lugar. Houve comida de rua, bebidas, diversões, apostas. Euforia. Tudo para ver um corpo cair.

    A execução de Ted Bundy foi recebida com churrascos temáticos e a multidão a gritar fora da prisão: “Frita, Bundy, frita!”. Com Timothy McVeigh, organizaram-se eventos mediáticos e existiram zonas VIP para jornalistas com serviço de catering.

    Nenhuma destas execuções foi apenas justiça: eram um grande espectáculo!

    E se hoje as execuções perderam alguma visibilidade pública, existem menos e o sofrimento ocorre dentro das prisões, fora dos olhares do público, não significa que o impulso popular tenha desaparecido. Transferiu-se para outros palcos: as redes sociais, os tribunais mediáticos com os seus juízos paralelos a tentar interferir (e a conseguir) na realização da justiça, os reality shows da indignação. A propósito de um episódio recente, em que se viu agentes da PSP a “carregar” sobre determinados manifestantes com bastões, foi possível ler vários comentários nas redes sociais: “Soube mesmo bem”! A schadenfreude modernizou-se, mas continua bastante activa. Cancelamos. Expomos. Punimos.

    Eventualmente, o mais difícil não será explicarmos porque nos juntávamos para ver morrer. Talvez o mais inquietante seja perguntar: porque ainda o fazemos, ainda que com outras ferramentas?

    O prazer de punir, ou de ver punir, continua a saber bem. A diferença é que agora, por vezes, tendemos a negar esse prazer a nós mesmos.

    Schadenfreude é uma palavra de origem alemã que combina duas ideias: Schaden (dano, prejuízo) e Freude (alegria, prazer). Em resumo, refere-se ao sentimento de prazer ou satisfação diante do infortúnio de outra pessoa. Embora esse sentimento seja frequentemente considerado socialmente inaceitável ou moralmente questionável, ele é mais comum do que muitas vezes admitimos — e possui raízes psicológicas e sociais bastante profundas.

    Estudos com neuroimagem (fMRI) mostram que a schadenfreude activa áreas do cérebro ligadas ao prazer, como o estriado ventral, a mesma região activada por recompensas como comida ou dinheiro. Ou seja, o cérebro literalmente recompensa-nos com uma sensação prazerosa quando testemunhamos o fracasso de alguém que invejamos ou não gostamos.

    Um estudo clássico (Takahashi et al., 2009) demonstrou que os participantes experimentavam mais schadenfreude ao ver pessoas que invejavam sofrerem dor, e essa resposta era maior quando sentiam inveja activa. Isto reforça a ideia de que a emoção está interligada a sentimentos como inveja, comparação e justiça.

    Efectivamente, essa emoção “prazerosa”, directamente relacionada com o infortúnio alheio, é quase sempre acompanhada por uma micro-expressão de franzir de cenho involuntário, realizado em simultâneo com as agressões a que assistimos, a par de um sorriso. Nas situações em que o castigado é alguém que vemos como tendo tido um comportamento anti-social, e como tal merecedor de castigo, esse acto involuntário pode aumentar exponencialmente, para cerca de quatro vezes.

    Este prazer não surge de forma isolada. Está relacionado com vieses cognitivos profundos: o viés da justiça, consubstanciado na crença de que o mundo deve ser justo e de que os maus devem ser punidos exemplarmente. Por exemplo, quando vemos alguém que acreditamos ter enriquecido de forma duvidosa ser preso, a sensação é de prazer moralizado, como se a ordem tivesse sido restaurada. A schadenfreude, neste caso, é a emoção que reforça este viés.

    O viés da comparação social decorre da tendência do ser humano em comparar-se constantemente com os outros, de modo a avaliar o seu próprio valor ou sucesso. Numa situação em que um colega, que está sempre a gabar-se de ser mais competente do que nós, é repreendido, sentimos um alívio quase satisfatório. A schadenfreude, neste caso, é a emoção que sentimos na redução da distância percebida entre nós e o nosso colega, melhorando a nossa auto-estima.

    O viés da aversão à perda é a circunstância de sofrermos mais ao perder algo que possuímos do que temos prazer em ganhar algo de valor equivalente. Se sentirmos que estamos a perder por comparação com outros (estatuto, oportunidades, atenção, etc.), ver esses outros a sofrerem uma perda mitiga a nossa sensação de perda. Existe como que um reequilíbrio, actuando aqui a schadenfreude como a emoção que faz a compensação emocional.

    O viés endogrupal/exogrupal concretiza-se na tendência para favorecer os membros do nosso grupo e olhar os membros de outros grupos com mais desconfiança ou hostilidade. Sentimos prazer quando um grupo rival sofre uma perda, porque isso reforça a superioridade e identidade do nosso grupo. Um bom exemplo é o adepto de futebol sentir alegria quando o clube rival é eliminado, mesmo que o próprio clube tenha perdido. A schadenfreude é a emoção colectiva partilhada socialmente.

    O viés de confirmação é a tendência de procurar, interpretar e lembrar informações que confirmam as nossas crenças prévias. Temos uma opinião negativa sobre alguém; vê-lo fracassar não só confirma a nossa visão como gera prazer. A schadenfreude funciona como uma espécie de recompensa emocional por estarmos certos.

    O prazer que sentimos ao ver um “culpado” sofrer tem explicação neurológica. O nosso sistema mesolímbico dopaminérgico, responsável pelo processamento de “recompensas” no nosso cérebro, é activado perante o sentimento de que a “justiça” foi feita. Os estudos de neuroimagem demonstram que o núcleo accumbens, associado ao prazer, reage à punição de quem percepcionamos como tendo tido um comportamento anti-social, ou mesmo de quem julgamos ser anti-social, mesmo que não exista nenhum comportamento associado (por exemplo, em situações de racismo e xenofobia).

    O sistema mesolímbico dopaminérgico envolve a área tegmental ventral (VTA), onde se inicia a libertação de dopamina; o núcleo accumbens (NAcc), que é o principal centro de recompensa e motivação; a amígdala, o hipocampo e a zona do córtex pré-frontal, que são responsáveis pela emoção, memória e regulação cognitiva.

    Este circuito mesolímbico dopaminérgico é activado por experiências gratificantes: comida, sexo, cocaína, sucesso social, elogios, etc., e surpreendentemente (ou não), também pelo sofrimento alheio, na medida em que esse sofrimento nos satisfaça um desejo psicológico, como ver restaurada a justiça, superar a inveja ou reduzir a frustração. Em situações em que o terceiro nos tenha feito algo directamente que consideremos injusto, a ínsula, o córtex cingulado anterior e a amígdala activam-se, configurando um quadro de repulsa, sofrimento e raiva, o que poderá originar um aumento de prazer pelo infortúnio alheio.

    Ou seja, em contextos de schadenfreude, o sistema mesolímbico dopaminérgico interpreta a queda do outro como uma “vitória relativa”, mesmo que inconsciente, activando o núcleo accumbens responsável pela sensação de prazer, libertando dopamina (de forma mais ou menos prolongada, consoante a intensidade do prazer) — o neurotransmissor da recompensa e da motivação.

    Acrescendo a tudo isto, tornando-o mais interessante e até inquietante, está o efeito cumulativo da via dopaminérgica, porque a dopamina não só é um sinal de prazer momentâneo como condiciona e refina os nossos comportamentos futuros, através de reforço positivo, criando rotinas mentais e predispondo-nos a buscar experiências semelhantes.

    Em casos extremos, pode reforçar padrões malévolos ou gerar insensibilidade, se o prazer em ver os outros “falhar” for constantemente recompensado. Nestas situações, o cérebro pode associar automaticamente o fracasso alheio à sensação de alívio ou de prazer, moldando uma tendência emocional condicionada inconsciente.

    O juiz e académico (também ao nível da neurociência) Morris Hoffman argumenta, em The Punisher’s Brain, de 2014, que o impulso para punir é tão natural quanto o impulso para cooperar — são ambos faces da mesma moeda evolutiva. António Damásio tem defendido que as emoções são centrais na tomada de decisões morais, sendo a punição social uma dessas decisões moldadas por afectos.

    Alguns autores, como Robert Sapolsky, explicam que este tipo de respostas socioemocionais está enraizado num complexo cruzamento entre neurobiologia e contexto. Em Determined (2023), vai ainda mais adiante, defendendo que o livre-arbítrio é uma ilusão e que os comportamentos humanos, incluindo o impulso de punir, resultam de causas neurobiológicas e ambientais.

    Segundo esta visão determinista, até o prazer que sentimos com o sofrimento alheio não é escolha nossa, mas sim consequência de uma cadeia causal complexa, onde não existe margem para o livre-arbítrio — ou, pelo menos, ele é muito mais reduzido do que pensamos.

    Punimos, muitas vezes, não por justiça — mas por prazer. A questão não é se isso é humano. A questão é: o que fazemos com esse facto?

    Miguel Santos Pereira é advogado.


    Referências:

    António Damásio, O Erro de Descartes (2011, Temas e Debates).

    Helmut Ortner, Uma Breve História da Pena de Morte (2024, Alma dos Livros).

    Leach, C. W. et al. (2003). Malicious Pleasure: Schadenfreude at the Suffering of Another Group.

    Morris Hoffman, The Punisher’s Brain: The Evolution of Judge and Jury (2014, Cambridge University Press).

    Robert Sapolsky, Comportamento (2018, Temas e Debates) e Determinado (2023, Temas e Debates).

    Takahashi, H. et al. (2009). When Your Gain Is My Pain and Your Pain Is My Gain: Neural Correlates of Envy and Schadenfreude.