Categoria: Crónica

  • Privacidade

    Privacidade

    Estou a fingir que a imagem não me importa. Como se fosse possível não investir nos meus olhos.

    Havia um encantamento nas passeatas de Nikon em punho. Alerta. Atenta. Amante de uma certa estética — ou de muitas horripilâncias.

    A imagem como um diálogo improvável que se tem com um certo universo. Um não ser preciso contracenar.

    Vieram depois defender mais os direitos das pessoas, proteger-lhes as imagens e as privacidades…

    Concerto dos Coldplay no Gillette Stadium, perto de Boston, nos Estados Unidos, no dia 17 de Julho de 2025. Foi neste concerto que se deu a polémica do casal filmado pela ‘kiss cam‘. / Foto: Coldplay | D.R.

    Não fotografarás!

    Não fotografarei…

    Não filmarás, também?

    Pode uma pessoa pagar um bilhete para se divertir publicamente e, pela captação e divulgação da sua imagem, ver a sua vida arruinada em segundos?

    Pode um jornalista brincar na rádio com o sucedido, dizendo que é pago para falar sobre escândalos, papagueando que nunca se deve fazer xixi fora do penico — porque a mentira tem perna curta?

    Posso eu pagar taxa de audiovisuais para ouvir isto?
    Pode a minha Nikon continuar sossegada num canto, por ser ela a malvada que capta e expõe a vida dos outros?

    Podem as pessoas ficar realmente humilhadas pelos condicionalismos sociais que lhes tiram a coragem de defender a sua liberdade de movimentos?

    Foto de um fã dos Coldplay tirada no agora famoso concerto ‘da kiss cam‘, no dia 17 de Julho. / Foto: Coldplay | D.R.

    E rimo-nos todos disto, moralizando e chacoteando?

    E falamos ainda da crise dos valores, do medo da supremacia das ideias de extrema-direita, sem sequer nos apercebermos de que são as pessoas comuns que dão força àquilo que dizem abominar?

    Que respeito é este pela privacidade, que se passeia em trajes de um carnaval demolidor — e que destrói, moralizando?

  • Do café a 40 cêntimos até Montenegro a citar Saramago (sem saber)

    Do café a 40 cêntimos até Montenegro a citar Saramago (sem saber)


    Em 2001, salvo erro — e com a humildade própria de quem aceita errar um ou outro ano —, escrevi uma análise sobre o estado do país em diversos sectores para a já saudosa Grande Reportagem. Intitulei-a, com toda a justeza e sentido premonitório, ‘O Estrago da Nação’, prescindindo deliberadamente da enfadonha e rotineira expressão “O Estado da Nação”. Mais tarde, reciclei o título para um livro, em 2003 — e hoje sobrevive como denominação de um podcast do PÁGINA UM. Afinal, há designações que perduram porque se colam à realidade como resina.

    Duas décadas depois, predispus-me, mais por curiosidade antropológica do que por dever de ofício, a assistir ao verdadeiro “Estado da Nação”, essa encenação parlamentar revestida de solenidade, em que os deputados fingem debater o país como se não tivessem nada a ver com o seu estado.

    Não era, pois, com expectativa noticiosa que me sentava, mas numa função de observação sociológica: nunca acreditei — nem por um segundo — que, num par de horas, os nossos representantes fossem capazes de dissecar, com seriedade e substância, o verdadeiro estado da pátria. Mas há ritual. Há solenidade. Há espetáculo. Mesmo sem novidade, há espetáculo. E, mesmo sem a esperança de encontrar lucidez, ali estava eu, qual entomólogo do hemiciclo.

    Nutro há muito uma convicção (partilhada por muitos, receio): os políticos, em regra, são incapazes de produzir diagnósticos acertados sobre o país porque vivem dele apartados. Desconhecem os ritmos e agruras da vida quotidiana. Habitam, por assim dizer, numa outra galáxia. Isso talvez explique, por exemplo, que se sirvam de uma bica a 40 cêntimos — metade do que custa fora do Olimpo parlamentar, no mundo onde vivem os comuns mortais.

    Talvez seja esta a forma expedita de complementarem vencimentos que consideram modestos: vivendo abaixo do custo real da vida. A austeridade, pelos vistos, começa no bar da Assembleia.

    Feito este introito, bastaram-me poucos minutos — ou melhor, bastou-me o discurso inicial do primeiro-ministro — para encontrar o mote desta crónica. Luís Montenegro brindou-nos, num discurso inaugural, com um idílio político digno de arcádia: elogiou a sua governação, clamou por estabilidade, prometeu reduções fiscais em catadupa e, já num tom náutico de retórica camoniana, resolveu terminar com uma tirada de impacto. “Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos”, anunciou altitonante.

    E, com convicção de quem crê citar Homero, atribuiu-a a Sophia de Mello Breyner Andresen. Fica sempre bem citar uma poeta. Mesmo tendo sido (brevemente) deputada (na Constituinte) do Partido Socialista.

    Acontece, porém, que a frase não é de Sophia, mas de outro português, mas assumidamente comunista: José Saramago, que a escreveu em 1994 nos Cadernos de Lanzarote. O episódio é revelador do estado real da nossa governação: o primeiro-ministro — que, presumo, terá assessores cultos e diligentes — não só ignora a autoria da frase como, pior ainda, nem sequer compreendeu o seu significado completo. Porque a frase, que Montenegro repetiu com ar de estadista grave, prossegue com algo ainda mais inquietante: “Sem memória não existimos. Sem responsabilidade talvez não mereçamos existir.”

    Ora, se é verdade que Montenegro demonstrou não ter memória — ao atribuir mal a citação —, e se também falhou na responsabilidade — ao não corrigir o erro nem reconhecer a ignorância —, resta a inquietante conclusão de que a sua existência política é, no mínimo, um equívoco ontológico.

    Mas o mais patético — sim, que não encontro palavra mais branda — foi ver a plateia parlamentar a reverberar a asneira. Falou André Ventura, falou Hugo Soares, falou Carneiro pelo PS, e o nome de Sophia continuou a bailar entre discursos. As bancadas do PS e do Chega andaram entretanto às turras com a coreografia habitual. Desta vez, Aguiar-Branco teve de arbitrar sobre se ‘frouxo’ e ‘fanfarrão’ são termos ofensivos. Só depois de o PÁGINA UM ter assinalado a gafe (ou ignorância) às 15h49 nas redes sociais (se calhar houve quem identificou antes) é que o deputado do Livre, Rui Tavares, tentou, já fora do plenário, repor a verdade, esclarecendo que a frase era de Saramago.

    Mas já era tarde. Ninguém percebeu — ou pelo menos, o Público não entendeu patavina: a jornalista Ana Bacelar Begonha escreveu que Rui Tavares “lembr[ou] uma frase de José Saramago (a que Montenegro citara e atribuíra erradamente a Sophia) e, num rasgo digno de crónica de costumes, indicou que foi o deputado do Livre a dizer que “sem memória não existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir”, como se fosse ele o autor do aforismo saramaguiano. Este jornalismo – a quem falta também memória e sobra ligeireza – também é um sinal do Estado da Nação.

    Aguentei estoicamente até às 19h20, escrevendo esta crónica ao som intermitente dos discursos de dois minutos (por vezes de cinco), enquanto o Governo escutava em silêncio, pois Montenegro esgotou rapidamente o seu tempo. E no final, aquilo que mais me chamou a atenção não foram os argumentos, mas o cenário: a bancada socialista a meio-gás — como quem acha que tem lugares a mais — e o Chega a ocupar com disciplina o espaço da Oposição, com Ventura a saber gerir o cronómetro e a acabar o debate com mais tempo do que qualquer outro partido para ‘brilhar’ no fim. Os outros partidos, esses quase não contaram, sobretudo os pequenos partidos (BE, PAN e JPP) que tiveram apenas cinco minutos.

    Conclusão: se isto a que eu assisti foi o Estado da Nação, continuarei a preferir o Estrago da Nação. Sempre me parece termo mais exacto. E mais honesto.

    Adenda às 20h03: O ministro dos Assuntos Parlamentares, Carlos Abreu Amorim, no discurso final, voltou à carga da asnice, relembrando a frase apócrifa de Sophia dita por Montenegro, e ainda conseguiu ser pior. Armado em literato, relembrou o célebre “Minha pátria é a língua portugueses” (acertando, vá lá, no autor), e proclamou ufano: “Eu sou Pessoa; eu sou Sophia; eu sou Camões; eu sou Natália Correia; eu sou António Nobre; eu sou Florbela Espanca”. Só lhe faltou dizer “eu sou Saramago”, o autor do aforismo usado por Montenegro. E talvez também confessar: “Eu sou burro”. A estultícia, com efeito, tomou conta da Nação!

  • Afinal, o Benfica (ainda) sabe ser campeão

    Afinal, o Benfica (ainda) sabe ser campeão


    Confesso: há dois anos que não me entusiasmava verdadeiramente com um jogo de pontapé na bola — e isto depois de mais um balde de água fria sobre as águias, nos Estados Unidos. Talvez porque, sendo benfiquista, tenho coleccionado desilusões com mais afinco do que títulos. Entre um campeonato prometido em Setembro e um “estivemos quase” em Maio, o futebol do Benfica tem sido mais um exercício de fé do que de razão. Vai daí, num rasgo de insensatez que deve ter nascido numa escuta enviesada do podcast de Rui Miguel Tovar sobre o imortal Pimenta Machado — esse titã filosófico de Guimarães — decidi ir ver a finalíssima do campeonato de futsal… em pleno Pavilhão João Rocha.

    A ousadia teve cúmplice: o leonino Carlos Enes, autor de vários Da Varanda do Varanda — textos tão afiados como a língua de um Varandas em dia de comício — que, numa rara demonstração de civilidade interclubística, acedeu a fazer-se acompanhar por um benfiquista, desde que este, claro está, lavasse as mãos antes de entrar. O plano só não descambou num enredo ao estilo das comédias do Mel Brooks porque os deuses do futsal, ou talvez os funcionários do Sporting, mostraram alguma misericórdia.

    De facto, num intervalo entre escrever dois parágrafos sobre os despesismos com o Erário Público e a audição das memórias do homem que um dia terá dito que as verdades de hoje podem ser as mentiras de amanhã, dei por mim a preencher o pedido de acreditação… para o jogo Sporting – Guimarães em futsal. Um pequeno detalhe: o Vitória de Guimarães não tem equipa sénior de futsal — pelo menos, segundo reza o Google e uma rápida incursão pelo site da FPF. Descobri, no entanto, a existência do Futebol Clube Os Piratas de Creixomil e do Lokomotiv de Gondar — o que, convenhamos, só reforça a ideia de que a imaginação em Guimarães não morreu com D. Afonso Henriques.

    O caso ficou resolvido com algumas trocas de mensagens e telefonemas do Carlos Enes, que terá usado a sua credencial de cronista sportinguista como moeda de troca, prometendo que não levava um infiltrado, mas sim um “erudito em exílio futebolístico temporário”. Fomos admitidos. Chegados ao pavilhão, a primeira surpresa foi o próprio recinto: cheio, sim, mas mais pequeno do que esperava. A televisão faz milagres: dá profundidade a pavilhões e talento a jogadores medíocres.

    Confesso outro pecado: não domino as regras do futsal. Sou do tempo em que se chamava futebol de salão, e a bola pesada fazia menos barulho do que os chinelos da Educação Física. Até à irrupção de Ricardinho e da sua ginga patrocinada, o futsal passava-me ao lado. A única regra que trazia bem decorada era a do tempo cronometrado — duas partes de 20 minutos — que, como qualquer ex-árbitro medíocre de basquetebol e ex-jogador de andebol sabe, equivale a uma eternidade de bola a rolar sem desculpas para antijogo ou lesões imaginárias. Uma benesse.

    Mas vamos ao jogo, que é para isso que se foi. E começou mal. O Sporting marcou dois golos quase seguidos, com o primeiro a ser de um tal Zicky Té, nome que reconheci vagamente, talvez por me soar a personagem de anime com superpoderes. Parecia que os ‘lagartos’ estavam prontos para o penta. O Benfica ainda reduziu antes do intervalo, numa jogada que mostrou como uma pequena distracção pode, no futsal, ser penalizada com a precisão de uma guilhotina. Nem tudo parecia perdido.

    A segunda parte recomeçou com esperança: empate do Benfica, explosão na bancada. Mas o Sporting reagiu com o mesmo instinto predador com que o leão ataca a zebra no Serengeti. Voltou à vantagem, e aí temi que tudo estivesse perdido.

    E foi então que a ignorância me salvou da angústia. Não sabia que, no futsal, após uma expulsão, a equipa fica reduzida durante dois minutos — ou até sofrer um golo. E foi exactamente isso que sucedeu. O Benfica empatou de novo, numa jogada em que o guarda-redes leonino teve uma espécie de epifania inversa: em vez de defender, ofereceu-se à bola como um apóstolo do desespero.

    Pouco depois, quase a faltar apenas dois minutos úteis para jogar, o improvável aconteceu: um remate de meia-distância do guarda-redes do Benfica — que, julgo, terá partido de uns bons doze metros — encontrou as redes, com mais ajuda do guarda-redes do Sporting do que qualquer estratégia treinada. Golo! Benfica na frente.

    A comoção foi tal que, por breves segundos, temi que o meu coração me traísse ali mesmo no João Rocha — e que tivesse de ser levado em ombros não por glória, mas por aflição. No pavilhão, o operador do resultado, certamente um sportinguista, também não estaria em si: demorou larguíssimo segundos até admitir o 3-4.

    O jogo terminou, e o mais bonito veio depois. Os funcionários do Sporting montaram com dignidade o cenário para a entrega do troféu ao rival. O Rui Costa deve ter agradecido a poupança por a festa ter sido custeada pelo adversário .

    E os jogadores do Benfica, num gesto que honra mais do que mil vitórias, fizeram alas para os jogadores do Sporting receberem as medalhas de segundo lugar. E depois foram os sportinguistas que fizeram o mesmo para os campeões passarem rumo ao caneco. Um momento de fair-play raro — que, confesso, me emocionou quase tanto quanto o golo da vitória.

    Foi uma noite de festa, não só por termos vencido, mas por termos partilhado o jogo com quem pensa diferente. E o futsal ensinou-me uma coisa num só jogo: que mesmo num pavilhão onde tudo nos é adverso — regras, estatísticas, paredes em verde ácido — ainda é possível sair com um sorriso. E um título. E, sobretudo, com o sentimento de que, afinal, ainda vale a pena ir ao desporto só pela alegria do jogo. Ah! E ainda aguardo a crónica do Carlos Enes…

  • O mito de Sísifo

    O mito de Sísifo


    Tem alguma sugestão a fazer?” – perguntei—lhe,

    Tem de largar o caso, Mr. Holmes, – disse-me, meneando a cabeça. “Tem de o largar, você sabe disso.”

    Sir Arthur Conan Doyle

    O PROBLEMA FINAL in MEMÓRIAS DE SHERLOCK HOLMES


    Esta história intitulada O MITO DE SÍSIFO[1], também podia chamar-se L’HOMME[2] de Renè Descartes.

    Pelas razões que vamos explorar a seguir, mereceria igualmente o título mais lindo e arrepiante do mundo, aquele que reza AUNQUE SEPA LOS CAMINOS YO NUNCA LLEGARE A CORDOBA[3]


    Há que ver, antes de mais nada, que a culpa é toda nossa: fomos nós quem desligou aquele SAPERE AUDE[4] que dantes parecia tão evidente.

    E não fomos obrigados a fazê-lo pela ditadura das NAÇÕES DE GOG E MAGOG, CUJO NÚMERO É COMO O DAS AREIAS DO MAR:[5] Desligámos a nossa capacidade de ousar saber porque, aqui chegados, preferimos montar um sistema de AI que nos permitisse entrar em hibernação total e permanente do pensamento.

    Apenas nos resignámos a sobreviver passivamente, como os OITO HUGUENOTES FRANCESES abandonados no ROCHEDO DE RODRIGUEZ, onde descobriram um parente do Dodó a que chamaram o SOLITÁRIO e que deixaram extinguir-se depressa embora fossem homens de uma fé muito gentil[6]   


    Segunda-feira, cada vez mais calor em Estremoz, e outro tanto calor na correria de Lisboa. Fui a uma consulta em Belém, que demorou cerca de uma hora em linguajar de médico. Tudo bem, não me queixei nem um bocadinho, porque este espécime em particular é um pancadão budista de cair para o lado, extremamente simpático, de olhos enormes[7] e sorriso ternurento, cuja esposa se chama Mafaldinha e todas nós confessamos abertamente que, se pudéssemos escolher, lhe usurparíamos o lugar[8] – mas não deixa de linguajar como um médico, o que põe a pobre pessoa exausta se não quiser fazer figura de parva – e, perante aquele sorriso rasgado e aquela magnífica arte da conversa, claro que ninguém quer fazer figuras dessas. Enfim, saio dali de cabeça a andar à roda, apanho a lagarta até ao Cais do Sodré, onde apanho a linha verde até ao Chiado, onde mudo para a linha azul para a Reboleira até que chego ao terminal Rodoviário em Sete-Rios, carregada com o PC e com várias pastas de documentos, a sentir-me tão cansada como o Sísifo deve ter-se sentido no preciso momento em que proferiu um rotundo palavrão e desistiu, de vez, de fazer rolar a sua pedra até ao cimo da montanha[9].

    Falta uma hora para sair o Expresso das 19, o último do dia para Estremoz. Como já estou farta do PC, e mais farta estou de Portugal, vou à ebooks e compro o último livro da série psicadélica de Conan Doyle, aquela que integra O PROBLEMA FINAL, o terrível conto em que Sherlock Holmes acaba por morrer nos penhascos agudos das neves eternas da Suíça abraçado ao seu Nemésio. O calor do fim do dia continua sufocante, mas o ar condicionado do Expresso é doce e atraente. Pedi um dos lugares mesmo à frente para me gozar bem do pôr-do-sol. Alguma coisa tem de continuar a ser grande, impressionante, boa, e bonita, e fundamentalmente gratuita, num país em que estou sempre a ouvir dizer que, depois de bem contados os votos, veremos que foi o CHEGA quem ficou em segundo lugar.

    Como aquele era o último Expresso para estes lados, com destino final em Elvas, foi-se enchendo cada vez mais à medida que a tal hora passou. Tive tempo de descobrir, do princípio ao fim, como é que morreu Sherlock Holmes. Também tive tempo de descobrir como é que se sentiu nesse crepúsculo um povo português completamente desnorteado e seriamente enjoado, antes mesmo de a viajem começar. Acrescente-se que, naquele momento em que se prevê tudo de mau, o terminal de Sete-Rios é seboso e feio, e mais feio ainda é o engarrafamento que vai dali até à saí até à saída da Ponte, para-choques a para-choques a para-choques, de uma travagem brusca atrás de   outra travagem brusca, afogando as vozes bem preparadas dos comentadores políticos.

    Felizmente, ouvem-se bem as vozes dos passageiros.

    Atrás de mim, um pai exaltado tentava despejar pelo telemóvel tudo o que tinha a dizer[10] andes que o Expresso começasse a andar e a rede se tornasse muito mais esquiva,

    Joana, filha, tu vê se entendes meu, eu gosto muito de ti mas ainda gosto mais de pasteis de bacalhau, ouviste, e olha que sobretudo não gosto que ninguém goze comigo, fds! Sou a única pessoa nesta família que trabalha, vocês penduram-se todos em mim, agora tu inventas-me essa história do óleo quando eu estou farto de saber que os Volvos a não deitam óleo. E muito menos este, que é novo. Joana, pediste-me o carro para ires a uma tourada na 6ª feira. É domingo, ouviste? DOMINGO!  E tenho eu de me meter no Expresso para ir buscar o meu carro a Elvas porque amanhã preciso dele para trabalhar. Pois, se não queres um bom par de estalos é melhor desapareceres, fogo. Já me basta o que basta. São pessoas como tu e a tua mãe que põem o nosso país neste estado!

    Uma coisa podia não ter nada a ver com a outra[11], mas ouviram-se algumas vozes dentro da camioneta a dizer “muito bem, muito bem!

    Os rapazes do banco de trás, daqueles que fazem questão de não acreditarem em nada, desfazem-se em risadas boçais.

    Eu perco a paciência com esta matula que se diverte a gozar com os dramas existenciais dos outros.

    Nem preciso de agarrar no altifalante do condutor porque tenho a voz treinada por trinta anos de aulas para me fazer ouvir na camioneta inteira. Basta-me tirar a mala dura pela qual não tenho  qualquer carinho, trepar-lhe para cima, e despejar-lhes para uma lição de moral tal como, mais ou menos,

    Ai os meninos acham graça às faltas de respeito aos pais? É? Acham mesmo? Então e depois? E quando forem vocês que tiverem trinta anos e os vossos filhos de quinze vos pedirem o carro por um dia e desaparecerem com ele durante quatro dias, primeiro com desculpas coxas, depois sem desculpa absolutamente nenhuma?

    A audiência rodoviária anima-se ainda antes que os jovens imorais possam voltar a abrir a boca.

    Olha. É a Clara Pinto Correia.

    Uma grande mulher.

    A senhora encostada à janela do lado oposto ao meu[12], quando descobre que eu sou a Clara Pinto Correia, salta o meu lado e desabafa com uma urgência desesperada,

    Já tive uma crise e tudo. Penso muitas vezes que não vou aguardar muito mais tempo.

    Mas a que é que tu chamas uma crise?

    Sei lá. Acho que foi aquilo a que se chama um burnout.

    E tiveste um burnout porquê?

    Tenho demasiada gente na minha vida. Vivem todos comigo. O meu marido apaixonou-se por mim de tal maneira que abandonou o trabalho em Lisboa e veio viver comigo para Elvas.

    Tu és maluca. Tens bem a noção de quantas mulheres da nossa idade dariam o cu e cinco tostões para viverem com uma família grande, incluindo um marido completamente apaixonado? Quantos anos tens?

    66

    E queixas-te do amor do teu marido?

    Nem me deixa respirar.

    Querida, eu… eu, em alturas destas… é mesmo como diz a vaca que vai à psicanalista, não sei se sou eu ou se foi o resto da manada que enlouqueceu!

    Depois de um longo silêncio marcado pela travessia da autoestrada, a camioneta abranda para parar em Montemor. Ouve-se agora mais nitidamente a voz de ainda outro comentador político, que prevê, também ele, a alçada do CHEGA a segundo lugar.

    Ai meu Deus,

    grita, lá mais para trás, a voz de uma pessoa que eu conheço de Estremoz,

    esqueci-me completamente de que as eleições eram ontem!

    Algumas vozes repetem uma aflição idêntica.

    E, das outras pessoas, eu não sei. Mas, em Estremoz, era preciso ter vontade de esquecer. Estavam cartazes enormes espalhados pela cidade toda com a indicação dos locais e horas da passagem dos autocarros que levavam às assembleias de voto.

    Se o pessoal está tão desmotivado que até esquece as eleições, admiram-se de ver o CHEGA os eleitores esquecerem tudo? O CHEGA vai buscar os seus quadros a grupúsculos desconhecidos e secretos que desatam a praticar a magia negra assim que aquecem o lugar, e o pessoal esquece-se do que esses quadros fizeram daí a um mês. Quem é que ainda tem presente o jovem que defendeu acaloradamente no Primeiro Congresso do Partido que era importantíssimo praticar de imediato a castração química dos pedófilos – até se descobrir que o próprio jovem era um pedófilo sem apelo nem agravo? Vá, coragem. Quem ainda sabe levanta a mão.

    E é saber mesmo a história, não é ter assim uma ideia vaga, meus amores[13].

    Pois, e conforme eu temia só estão duas mãos levantadas dentro do maior auditório da Universidade[14].

    Para juntar os cabrões sem vergonha aos doentes com fobias curiosas, levante agora a mão quem ainda se lembrar do deputado açoriano que roubava malas pequenas no aeroporto, ia à casa de banho, escondia as malas pequenas alheias dentro das suas malas grandes, levava aquilo tudo para casa, tirava as peças em bom estado das  malas roubadas, vendia-as on-line na vinted… mas julgam que se dava a todo este trabalho para fazer dinheiro? Não, não era. De certeza que não era, porque ela vendia cada peça… por um euro! Era um psicótico que se espera estar agora em terapia, tanto mais que as psicoses, deixadas por tratar e ainda por cima expostas, de certa forma ao público mas sobretudo à humilhação, podem levar a resultados desastrosos. São pessoas destas, “um advogado muito sério com assento no Parlamento Açoreano”, que um belo dia se passam e dão um tiro em alguém. Ou nela próprias. Não interessa. Comportamentos destes são extremamente perigosos.

    E no auditório só se levantaram duas ou três mãos, porque toda a gente se esqueceu de que as peças roubadas eram vendidas a um euro.

    O Ruizinho da Farmácia aqui em frente, um dos meus melhores amigos e senhor de um belo pernão que fica à vista assim que o tempo aquece, é militante do CHEGA. No dia em que André Ventura se candidatou à Presidência da República, entrei por ali dentro a rir. “Então Ruizinho, sempre vai votar no palhaço?” – “Vou votar no maior político português.” – “Mas então explique-me lá qual é a política dele, que eu ainda nunca consegui perceber.” – “Não interessa. É o maior político português.

     Como toda a gente sabe, “É PRECISO LIMPAR PORTUGAL” não quer dizer nada mas é bom de ouvir. Tal como “À MINHA MANEIRA”, e vários outros êxitos.

    E com chorrilhos de lugares-comuns fáceis de ouvir de um lado, pessoas tão saturadas das conversas cada vez menos audíveis dos clássicos que até se esquecem das eleições do outro, parece-vos estranho o CHEGA chegar assim tão depressa ao segundo lugar?

    Façam o vosso trabalho bem feito, pela vossa rica saúde.

    Isto é imperdoável.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Para quem não conhece mais este mimo da mitologia Clássica, Sísifo é um jovem que só poderá continuar a sua vida se conseguir empurrar um pedregulho anguloso e pesado até ao cimo da montanha que vai a subir. Todos os dias arrasta esse pedregulho à sua frente, com os habitantes da montanha a observar o esforço. Todos os dias consegue chegar lá a cima. Mas, todos os dias, demasiado cansado para encaixar o pedregulho num sítio que o retenha, pura e simplesmente há ali um momento em que abre os braços e deixa o fruto do seu esforço rolar pela encosta abaixo. Parece que a hipótese de ir construindo pontos de apoio para poder descansar todos os dias e continuar apenas no dia seguinte, quebrando o esforço – sei lá – numa semana, ao invés de um simples dia nem sequer lhe ocorre. Isto não é fossanguice, porque Sísifo quer apenas obedecer muito depressa às disposições dos deuses. Isto é apenas acreditar que um jovem pode fazer o que um deus faz. Isto é criancice – é um mito que ilustra muitos outros, daqueles relacionados com a omnipotência própria das crianças.

    [2].”L’Homme de René Descartes“, ou “Tratado do Homem“, é uma obra inacabada de René Descartes, escrita na década de 1630 e publicada postumamente, primeiro em latim em 1662 e depois em francês em 1664. No tratado, Descartes descreve o funcionamento do corpo humano através de leis mecânicas, incluindo os músculos e os principais órgãos. Descartes tenta sobretudo explicar fenómenos invisíveis, tais como como a transmissão da dor e a dor fantasma, com ênfase nos

    sentidos, e na perceção sensorial. Até à sua morte na corte da Rainha Cristina, na Suécia, Descartes tentou em vão juntar ao tratado a localização precisa da epífise, ou seja, o ponto onde a alma se liga ao corpo.

    [3] EMBORA CONHEÇA OS CAMINHOS, EU NUNCA CHEGAREI A CÓRDOBA: Verso maravilhoso e premonitório de Frederico Garcia Lorca, cuja morte a caminho de Granada pela estrada que vem de Madrid (“Córdoba” seria uma figura de estilo para “Granada”, berço do poeta) ainda hoje se encontra por esclarecer. É certo que o poeta não se sentia seguro em Madrid, onde todos os seus amigos lhe imploraram que ficasse, exactamente por uma questão de maior protecção. Mas não se sabe se os receios de Lorca eram de cariz sexual (Lorca era homossexual, e não o escondia) ou político. Como, em ambos os casos, o cadáver de Lorca é seguido de lançamento para uma vala comum e consecutivo desaparecimento. Ou seja, setenta anos mais tarde, se a execução a tiro de um dos maiores poetas de Espanha veio de uma liga de cidadãos “dignos” que incluía membros da sua própria família, ou de uma organização sem perdões das forças fascistas que lhe montou uma cilada muito hábil no, continua a ser um mistério para todos nós. Tudo o que sabemos é que o homem de inspiração quase divina foi assassinado no dia 19 de agosto de 1936, num recanto à margem da estrada Víznar-Alfaca, na sua província natal. 

    [4] SAPERE AUDE (OUSAR SABER) é a frase famosa cunhada por Immanuel Kant que define o espírito arrojado de querer estudar tudo e saber tudo característico do Período das Luzes, que marcou a Europa do século XVIII até ao terramoto de Lisboa em 1755.

    [5] Estas Nações, aparentemente sobrepovoadas por criaturas que não sabemos com o que é que se parecem mas sabemos que estão associadas ao mal, foram criadas no âmbito das visões infernais contadas por São João Evangelista na sua velhice, quando se recolheu sozinho na ilha de Patmos e escreveu O APOCALISE, o último livro do Novo testamento.

    [6] História verdadeira das incríveis desgraças da vida no mar, esta do século XVII e narrada por François Leguat. Leguat era um huguenote francês que em 1689 escapou de França com cerca de outros duzentos seguidores hugenotes, tentando escapar às perseguições e chacinas religiosas. Tinha-lhes sido prometida  a fértil e abundante ILHA DA REUNIÃO, mas afinal despejaram-nos, um ano mais tarde, num penhasco árido e sem lavoura possível chamada ROCHEDO DE RODRIGUEZ, quando da população inicial já só restavam oito. Ao fim de um ano, quando

    [7] Está a falar connosco e tira e põe os óculos, tira e põe os óculos, e quando faz isso os olhos crescem e descem, crescem e descem, e tudo é bom de ver. Diga-me, Clara Pinto Correia: se só pudesse levar só uma outra pessoa para uma ilha deserta…

    [8] Atenção mulheres! Se vos doerem os dentes e conseguirem aguentar até Belém, subam a Rua dos Jerónimos, entrem na Clínica dos Jerónimos (18 A/B à vossa direita, se forem a subir ao longo do estilo manuelino), façam um ar desesperado, e digam que pelo amor de Deus, têm que ser vistas imediatamente pelo Dr. Bruno. Podem dar o meu nome como referência. Mesmo que não vos doam os dentes, peçam-lhe que os veja pelo menos uma vez. Juro que vale a pena. Eu, que já corri o mundo, nunca tinha visto um dentista assim. Sabia que eu é que tinha descoberto o descoberto o centrossoma masculino na fertilização do mamífero! Até me vieram as lágrimas aos olhos.

    [9] Esta figura de estilo não consta do mito. Sísifo só assumiria comportamentos de degradação semelhante se fosse um mero humano. Humano como a Mafaldinha – e toma lá que já ouviste, ó mais-que-perfeita sem vergonha.

    [10] Adoro ouvir as conversas das pessoas.

    [11] Ou  podia: não sabíamos.

    [12] Esperem lá. A SENHORA? A criatura era da minha idade, caraças. Não era nenhuma SENHORA. Era um GAJA, como eu. Só que, conceda-se – como vim a saber pela autoestrada, era uma pobre GAJA de cabelo pintado, e de facto com vida de SENHORA. Tomava conta da sogra, que vivia lá em casa, e chamava-lhe “A MÃEZINHA”, Detalhes tramados.

    [13] É que eu sei exactamente o que é o horror encerrado nestas práticas. Quando eram pequeninos, os meus filhos foram expostos a este género de nojo. “Mas eu nunca engoli, Mãe, eu vomitei sempre!” – era noite, estávamos os três enfiados na minha cama a falar do passado deles, e esta frase pequenina, nesta voz pequenina de menina, arrepiaram-me tanto, fizeram-me ficar tão tonta, que eu pensei que ia desmaiar. Abracei-os muito contra mim, cantei-lhes o LE TEMPES DES CERISES baixinho, devagarinho, com muito carinho, e lá se foi o desmaio.

    [14] Auditório enfiado agora à pressa nesta história. Representa ums grande quantidade de gente de todos os quadrantes reunida sob o mesmo tecto.

  • Chega e a história da Gigi

    Chega e a história da Gigi


    Por um lado, até gostava de ver o Ventura no poleiro. O trafulha populista, ardiloso, manhoso, carroceiro, oportunista, réplica anacrónica do Botas. Teríamos penas perpétuas, uma Gestapo, o PÁGINA UM encerrado e o tribuno Almeida Vieira torturado, eu próprio içado num mastro ao lado de asiáticos, africanos e lelos.

    O sucesso desta estirpe é natural. O descontentamento com os xuxas capciosos e os laranjas amargos, a pobreza recidiva, a corrupção endémica, a cepa sempre torta, convida à mudança. Dêem-lhe, pois, a oportunidade — e ao seu escol de portadores do facho. Haverá sangue e limpeza. Os serviços de Uber e Bolt passarão a ser conduzidos por escravos. A Rua do Benformoso dará lugar a uma artéria de zelotas da propaganda racista. Votem nele e não se admirem de recuarmos à Idade do Poço dos Negros.

    Todo aquele que me quer governar é meu inimigo.

    Deixo-vos uma pequena ficção elucidativa.

    Bem-haja.

    ***

    O meu nome é Gigi. Sou uma barata. Há quem me chame fala-barata. Isto porque estou sempre a falar. Eu já entrei num livro. É a história da minha vida. Lá por ser barata, e quase ninguém gostar de mim, houve um senhor que se interessou por contar as minhas aventuras. Acho que o livro ficou muito divertido. Eu sei ler. Aprendi com o meu pai. Não conheço nenhuma barata da minha idade que goste de ler. É pena. Há tantas histórias nos livros para partilhar.

    Já passaram alguns meses desde esse dia maravilhoso em que saiu o meu livro. Não fui eu que o escrevi, mas tudo o que lá vem escrito é verdade. Nem tudo o que vem nos livros é verdade, mas pode ser. Eu gosto de histórias que foram mesmo assim. Podem ser alegres ou tristes. Tanto me faz, desde que sejam bem contadas e quem as escreva não diga mentiras. Eu não gosto nada de mentiras.

    O senhor escritor que escreveu o meu livro chama-se António Pereira. As crianças gostam muito do que ele escreve. Depois de ter contado a minha história ao senhor escritor, vieram à minha procura para me conhecer. Antes só andavam atrás de mim para me exterminar. Logo eu, que não faço mal a uma mosca. Nem eu, nem nenhuma barata. Como andamos no chão, acham que somos nojentas. Mas se andassem por onde eu ando, viam como em todo o lado há coisas bonitas — ou, se não forem bonitas, podem ser interessantes. Eu sou muito curiosa e gosto de saber tudo. Ou tudo o que puder saber. Felizmente, sei escapar de alhadas, senão já me tinham esmagado. Aprendi a fugir com os ratos. Os ratos são muito espertos. Só os conseguem enganar quando põem queijo nas ratoeiras.

    Estava a contar que agora tenho uma vida melhor. Quero dizer, graças ao senhor escritor, tenho mais amigos. Há sempre quem se ponha aos gritos ao darem comigo a passear, mas quando vêem que sou eu, a Gigi, até são capazes de pedir desculpa e oferecerem-me umas migalhas, um pedacinho de chocolate ou pedir-me um autógrafo. Sabem, é que eu tenho uma conta no Instagram. Não acreditam? Então vão lá ver. E, se quiserem, apareçam na Rua do Benformoso, que é onde eu moro. Podem vir brincar comigo e com a Antónia, que é a minha melhor amiga. A Antónia é uma traça e voa bem que eu sei lá. Se quiserem, podem tocar nas minhas antenas. Eu não mordo. Nem sou venenosa. E quem diz que eu sou feia é porque nunca olhou bem para mim.

    ***

    Aqui há tempos, mudei de casa. Agora moro na casa de um senhor chinês. É cozinheiro e está sempre a dar-me petiscos. Eu ponho-me de patas no ar e ele mete-me pedacinhos na boca. O meu petisco favorito é pão ralado. Hum…

    A minha casa é no rés-do-chão direito do número 6, na Rua do Benformoso. Há ruas de nomes bonitos como esta. Antes de vir para aqui, morei numa rua chamada da Rosa. A Rosa, descobri num livro, é por causa da rosa-dos-ventos, e não uma senhora fadista, como já ouvi uns senhores que passeiam turistas a contarem.

    Um dia, ia a subir a rua e a voltar para casa e quase levei uma bengalada na carapaça de um homem com cara de mau. No dia seguinte, vim para aqui. Este senhor chinês é muito simpático e, além de me dar comida, não se importa que traga as minhas amigas para brincarmos. O que eu mais gosto é de voar nas asas da Antónia e passarmos em cima do fogão quando a comida está ao lume. A Antónia voa melhor do que muitos passarinhos.

    Sabem como se chama o senhor chinês? Não sabem porque eu ainda não disse. Hihihihi. É o senhor Lim-Pó-Pó. Ele é muito engraçado. Tem a mania de limpar tudo e depois volta a limpar. Eu sei o que é um chinês porque li um livro sobre a China. Também li uma história sobre o Japão, que fica lá perto. Os japoneses são muito diferentes dos chineses, embora sejam vizinhos e tenham olhos em bico. Deve vir tudo nos livros — e o que não vem, passa a vir, assim que alguém se lembrar de escrever.

    ***

    Na Rua do Benformoso há pessoas de muitos países. Eu sou portuguesa, porque nasci em Portugal, mas a minha mãe veio de Angola, num navio, e foi cá que conheceu o meu pai. Ele é do Ribatejo, mas o meu avô era da Guiné. Lisboa é uma cidade muito antiga. Tem mais de dois mil anos. Já passaram por cá pessoas de muitos lugares — e milhões de baratas.

    Não preciso de dar uma volta ao mundo para conhecer pessoas de muitos países — e baratas então nem se fala. Só na minha rua há pessoas de mais de trinta lugares diferentes! Quantas baratas há em Lisboa não vos sei dizer, porque nunca ninguém as contou. São tímidas e andam sempre escondidas em buracos. Eu sou uma felizarda! Até tenho direito a uma caminha e a um candeeiro para ler antes de dormir.

    A Antónia diz que o bisavô dela era da Mongólia, mas eu acho que ela está a inventar. Como é que ela sabe? Um dia, estávamos a voar e vimos um senhor de olhos em bico a pintar na rua, ao pé do rio. Ela aterrou de repente e meteu-se com ele. Esse senhor é de Ulan Bator, que é a capital da Mongólia. Chegou a Lisboa num cargueiro e ficou cá a morar. A Antónia disse-lhe que o bisavô dela sabia andar a cavalo, pois na Mongólia há mais cavalos do que pessoas. Ele riu-se. Como é que uma traça anda a cavalo? É fácil. Agarra-se à crina e aí vai ela. A crina é o cabelo do cavalo.

    O senhor da Mongólia é o Gengis. Fala muito bem português. Quem me dera falar todas as línguas do mundo. Já imaginaram? Conseguir falar em chinês ou árabe, ou mesmo em hebraico ou em mirandês? O mirandês é uma língua que se fala em Miranda do Douro, que fica no Norte de Portugal. Eu nunca lá fui, mas já ouvi essa língua uma vez, quando me cruzei com um corvo muito preto e ele me disse “buonos dies”, que é “bom dia” nessa língua. O Lim-Pó-Pó e o Koksu falam em inglês um com o outro e, pelo meio, dizem umas palavras em português, chinês e turco. Eu cá só falo português — e até falo muito bem. Quero dizer, não digo calinadas, que é dizer palavras que não se dizem assim.

    Uma palavra é uma coisa muito especial. Como nascem as palavras? Antes de serem palavras, eram apenas sons. Querem ver uma? Schhhh, que é dizer a alguém “xiu” ou “caluda”. A mim estão sempre a dizer-me isto. Porquê, será? Hihihihi. Porque eu sou uma Fala-Barata.

    ***

    O senhor Lim-Pó-Pó é de Macau. Tem os olhos castanhos e um pequeno bigode. Parece que está sempre a rir. Só fica zangado quando vê alguma coisa suja — ou que, para ele, deve estar suja, pois, para mim, não está. Vai logo com o pano do pó e põe-se a limpar. Assim que fica tudo limpinho, volta a sorrir. Ele diz que eu tenho a mania de que sou muito esperta.

    — Não basta lel livlos. É pleciso vel — diz ele, de dedo espetado, a dar-me piparotes nas antenas.

    Ele troca os erres pelos eles. Hihihihi. Eu sei onde fica Macau. Já sabia antes de vir morar com ele. É na China, e os portugueses foram os primeiros a lá chegarem. Os primeiros, estou a dizer desta parte do mundo, porque de outras partes já lá tinham chegado outros. Na minha família houve uma barata que esteve no Brasil. Foi o meu pai que me contou.

    — Muito antes do avô Fernando andar a viajar, tivemos uma antepassada que andou pelo mundo todo.

    — Todo, todo? Mas o mundo é tão grande… — disse eu, intrigada. — Devia ter as botas das sete léguas.

    — Foi a primeira barata a andar numa caravela.

    — O que é uma caravela, pai?

    — Foi um barco que os portugueses inventaram e que tinha velas capazes de navegar contra o vento.

    — Um dia gostava de navegar.

    — Mas tu não sabes nadar.

    — Aprendo. Não és tu que dizes que tudo se aprende?

    Tenho saudades do meu pai. Também, quem é que o mandou ir morar para a Serra da Estrela?

    ***

    Um dia, quando tinha três anos, o meu pai deu-me uma bússola para nunca me perder. Antes de dormir, ponho a bússola num lugar direitinho (não pode ser de pernas para o ar) e assim já sei onde está o Norte e a Serra da Estrela. Quando me aventuro por outras ruas de Lisboa, também a levo. O meu pai sabe de cor o nome de muitas estrelas, planetas e constelações — que são muitas estrelas — como a Ursa Maior, Orion e Cassiopeia. Diz que, quando o céu está sem nuvens, consegue ver o planeta Urano e nem precisa de usar o seu telescópio. Eu já tentei, mas, para mim, são apenas estrelas a brilhar. Se calhar, foi para a serra porque lá as montanhas são altas e fica mais perto das estrelas e dos planetas.

    O lugar mais alto do mundo, e também um dos mais frios do nosso planeta, fica no Nepal, que é de onde vem o Kenzig, o senhor que mora no número 8, no primeiro andar com mais uma dúzia, e anda numa bicicleta a levar comida e outras coisas de casa em casa. Chama-se Evereste a montanha mais alta e é preciso ter muita força nas pernas e vontade para lá chegar. O Kenzig é um sherpa, e antes de vir para Lisboa carregava mochilas e sacos dos turistas. Subiu e desceu cinco vezes o Evereste. Disse-me isto quando ia a passar e o vi sentado a comer um pãozinho. Parei a olhar para ele e, no lugar de me tentar pisar ou enxotar, atirou-me um bocadinho do seu pão. Desde aí, sempre que posso, vou até à porta de casa dele, quando a noite cai e há menos gente na rua — não vá alguém dar-me uma pisadela e esmagar-me, mesmo que seja sem querer.

    O Kenzig está sempre a rir ou a sorrir e só o ouvi queixar-se de uma vez em que lhe roubaram as encomendas. Foi dizer a uns senhores polícias o que tinha acontecido, mas não lhe ligaram grande coisa, apesar de soluçar e explicar tudo em português. Encolheram os ombros e desapareceram num carro a toda a pressa.

    As pessoas estão sempre com pressa. Não sei porquê. Eu cá ando muito devagar. Só corro se me querem fazer alguma maldade. Ninguém devia fazer maldades. Com tantas coisas boas e bonitas para fazer, como voar nas asas da Antónia ou comer migalhas.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

    As ilustrações foram elaboradas com recurso a inteligência artificial.

  • O Fado, o VAR e os queixumes do Enes

    O Fado, o VAR e os queixumes do Enes


    Trazem-lhes os deuses — ou talvez tenha sido o Fado, essa entidade fatalista e caprichosa — a triste sina de nascerem com o coração tingido de verde e um irracional afecto por um felino de juba, mais talhado para rugir em peluches infantis do que para caçar campeonatos. Refiro-me, pois claro, aos sportinguistas, essa confraria de sofredores que, desde os tempos do senhor Salazar (e vá lá saber-se se não desde o domínio filipino), vagueiam pelo mundo a carpir mágoas de um presumido martírio futebolístico.

    Dizem-se vítimas de roubos. Mas não de carteiristas comuns — não, nada disso. Falam de assaltos metafísicos, conjuras cósmicas, espoliações transcendentes que transformam cada árbitro num Torquemada e cada fora-de-jogo num auto-de-fé. Gritam que lhes tiram campeonatos a ladro, como quem clama que o Olimpo lhes manda pragas. Só que, curiosamente, os roubos só ocorrem quando perdem. Se ganham, foi justiça divina.

    Ora, desde que apareceu o VAR, esperava-se que esses lamentos ancestrais fossem metidos num armário, junto com as faixas de campeão de 1982 e os cartazes do Balakov. Mas não. Agora que têm um olho extra em cada canto do campo, os sportinguistas passaram a desconfiar é do próprio VAR — acusando-o de ser um cíclope manhoso, a ver só para um lado. Aquiles, com o seu calcanhar exposto, queixava-se menos.

    E lá tenho andado com o Carlos Enes, bom camarada de ofício, sportinguista de pergaminhos, daqueles que faz da auto-comiseração um desporto paralelo. Nestes últimos dois anos, o Enes tem vivido num estado de euforia comedido — ganhando títulos atrás de títulos como quem apanha cerejas, sempre a medo de que o árbitro apareça a cobrar IVA desportivo no fim da partida.

    Pois bem, a caminho do Jamor para assistir à final da Taça, lá vinha o Enes no seu modo habitual: voz grave, semblante carregado, como um oráculo de Delfos depois de três cafés. “O VAR é o Tiago Martins”, murmurava ele com a solenidade de quem anuncia um eclipse total. “Está encomendado. Vai ser entregue ao Benfica de bandeja.” Ora, o Tiago Martins — e confirma-se, era mesmo ele — não é propriamente nome de quem inspire, nos sportinguistas, confiança. Diziam-me. Mas adiante. Eu já tinha ouvido história semelhante com o João Pinheiro, que afinal me saiu um João Pinacácia há duas semanas.

    Chegados ao Jamor, sol a prumo e cachecóis ao vento, o jogo começou com aquele nervoso próprio das finais em que há muito mais em jogo do que um troféu: há honra, há vingança, há memes por fazer. E o que vi em campo foi isto: um Benfica personalizado, bem organizado e, surpresa das surpresas, prejudicado em lances capitais — todos com a assinatura silenciosa do senhor do VAR, sim, esse mesmo: o Tiago Martins, o furta-leões.

    Corria o minuto 11 da final da Taça de Portugal, quando Luís Godinho, árbitro da partida, assinalou aquilo que, à primeira vista e aos olhos do comum mortal, parecia ser um penálti inequívoco a favor do Benfica. Bruma remata, Gonçalo Inácio interpõe-se com o braço esquerdo — e o apito soa como quem marca um destino. O gesto do árbitro parecia selar o castigo máximo, daqueles que em finais se escreve com letras maiúsculas e se discute nos cafés durante semanas.

    Mas não. As musas do Jamor, que agora têm nome técnico — VAR —, intervieram. E quem o árbitro Godinho ouviu no auricular foi o senhor Tiago Martins, homem de bastidores e ecrãs, daqueles que só existem verdadeiramente quando o jogo pára. A decisão foi revertida: antes de Bruma rematar, muito antes de Inácio meter o braço onde não devia, já tudo estava manchado pelo pecado original — um fora-de-jogo de Kökçü, que recebera a bola do flanco esquerdo em posição irregular. Sem o VAR que pilha leões, o Benfica teria inaugurado o marcador.

    Minuto 19. Dahl, veloz e ousado, entra na área do Sporting e cai. O árbitro, célere no gesto e firme no juízo, levanta o braço e castiga o benfiquista com cartão amarelo por simulação. Mas, como convém nestes tempos de escrutínio digital, o VAR deveria ter acordado para rever o lance com olhos de lince, porque parece mesmo — nas imagens — que Hjulmand tocou no pé de Dahl. Mas o VAR, qual dorminhoco numa tarde primaveril, não interveio. Nada viu. Afinal, pensei, o Tiago Martins até aprecia os leões.

    Minuto 50. Bruma marca e a nação benfiquista explode de alegria com o segundo golo, que mataria o jogo — por breves instantes, entenda-se. Pois bem, veio o VAR, o tal do senhor Tiago Martins, com o seu bisturi digital, cortar o lance até à raiz e encontrou-se um fóssil de falta na origem da jogada: Carreras terá entrado de pitons sobre o tornozelo de Trincão no acto da recuperação da bola. Um toque, um gesto, uma pisadela do passado — e zás! Golo anulado, falta marcada, cartão amarelo exibido com a elegância de um carimbo notarial.

    Tudo correcto, dizem. Mas ficou legitimado que se pode anular um golo se, algures no processo de construção — talvez numa posse de bola anterior, ou numa jogada que envolva uma troca de olhares suspeita — se encontrar uma falta esquecida, omissa ou até metafísica. E o Carlos Enes a queixar-se do Tiago Martins…

    Minuto 90+5. O jogo já vivia os seus estertores finais. O desespero leva Matheus Reis — talvez possuído por algum espírito guerreiro das estepes — a encerrar a tarde com um gesto digno de arte marcial. O benfiquista Belotti, caído no chão, pôs-se a jeito de servir de almofada ao pé esquerdo do brasileiro, que desceu com zelo e pontaria sobre a cabeça do adversário. Apagam-se cigarros com pisadelas mais suaves.

    Conduta violenta? Evidente. Lance de cartão vermelho? Óbvio. Intervenção do VAR? Pois… aí entra o mistério. O nosso querido vídeo-árbitro, tão atento às solas de Carreras e às sobrancelhas de Kökçü em fora-de-jogo milimétrico, entrou aqui em modo contemplativo — talvez em meditação transcendental.

    Nem um sussurro no auricular. Nada. Tiago Martins em silêncio sepulcral, como quem contempla o pôr-do-sol em paz interior.

    Se calhar, Matheus Reis pisou a cabeça do adversário com força insuficiente para activar os sensores do VAR. Ou talvez o protocolo não preveja agressões à cabeça se forem em tempo de descontos e em estilo zen.

    Depois disto, que resta mais para escrever? Que foi bonita a festa do Jamor? Que o Lage vai dar uma curva? Que o Rui Costa vai de vela? Que o Benfica deve procurar construir uma equipa decente? Que o Carlos Enes nunca mais invocará o VAR em vão?

  • Crime e milagre no Estádio Nacional

    Crime e milagre no Estádio Nacional


    Por felicidade, nesta final não morreu ninguém, embora o Andrea Belotti tivesse passado 25 segundos com o corpo inanimado na relva e o espírito no outro mundo, devido a flagrante homicídio.

    O crime de Matheus Reis, jamais visto num campo de futebol, do pelado do Canelas ao Santiago Bérnabeu do tempo dos galácticos, graças a Deus não foi tolerado no Céu, como jamais o poderá ser na Terra graças ao Conselho de Disciplina. São Pedro mandou o italiano de volta, inteirinho e ressuscitado, para o clube que o contratou.

    O caso precipitou um pedido formal de revisão constitucional, com carácter de urgência, por iniciativa do único associado e simpatizante do Benfica que anda de bem com os resultados.

    Ainda não tenho votos suficientes para a pena de morte, mas a prisão perpétua é tão certa como um penalty do Gyökeres que deve ser imigrante ilegal dar sempre golo.

    O galhardo e mucoso capitão da águia Vitória, mas só às vezes, que nunca por actos ou sequer pensamentos ferrou os dentes ou os pitons nas carnes dos adversários, apresentou na véspera uma proposta para descongestionar o jogo.

    Queremos jogar. Não percam tempo com paragens e faltas.

    Aos 47 minutos, Samuel Dahl — sueco com a situação regularizada na AIMA graças aos bons ofícios do dr. Fernando Seara — desequilibrou-se para cima do Génio Catamo. O antigo árbitro Jorge Coroado viu ali malícia, mas o árbitro vigente, afinal o único que conta para a verdade desportiva, lembrou-se da promessa de Nicolás.

    O juiz alentejano raciocinou como num sonho bem regado debaixo de um chaparro. Um nórdico chamado Samuel, tão branquinho de cara e de calções como o velho Nené ao contrário do Gyökeres, que anda sempre despenteado e de camisola amarrotada pelas manápulas dos defesas nunca iria desrespeitar o capitão e perder tempo com faltinhas.

    Quis foi jogar. Dou golo limpo e só não vou festejar para o topo norte porque neste estádio tenho medo de engenhos pirotécnicos.

    Luís Godinho, logo a seguir, também só vislumbrou a mesma “vontade de jogar” numa rasteira em que o Carreras rasgou as meias às riscas do Trincão, com a pressa de ir tomar banho a tempo de apanhar o primeiro TGV para Madrid. Infelizmente, a tecnologia de fora de jogo, que funciona mal num estádio inaugurado em 1944, com uma premonitória vitória do Sporting sobre o Benfica no prolongamento, arruinou a boa-vontade do árbitro e o plano terapêutico de Rui Costa.

    Reagindo ao sucedido, o maestro atirou o gurosan, o diazepan e a melatonina às pernas do Renato Sanches, e desatou a vazar áudios pela calada da noite.

    — Dez minutos de descontos! Era para o Sporting ganhar!

    De facto, os jogadores do Sporting não precisaram de fazer nada para isso. Bem pelo contrário. Passaram a semana de autocarro descapotável em autocarro descapotável, entre festas e tascas. Comeram tantos petiscos que uma dobradinha não poderia fazer-lhes grande diferença.

    — O Varadas cozinhou isto tudo. E põe a pimenta que quer! 

    Durante a primeira parte, os bicampeões nacionais foram discutindo entre eles o desinteressado discurso do engenheiro Moedas, com palavras escolhidas a dedo para arranharem na garganta do Ricardo Araújo Pereira quando se põe a encher balões só para gozar com a cara ele.

    — Que orgulho estar aqui convosco!  

    Assim enlevados, os defesas leoninos deixaram à vontade os dois turcos e o único Vangelis do Alto dos Moinhos. Respeitosamente, ficaram a admirar de longe as jogadas estudadas entre eles, ao ponto de se tornarem previsíveis, e os potentes pontapés para as nuvens, à procura do Belotti reunido com o São Pedro.

    Depois de sofrerem o golo, os foliões de verde-e-branco mudaram de atitude, mas só para manter as aparências. É certo que mostraram alguma impaciência em levantar os jogadores do Benfica do relvado, mas apenas para os convencer a rematar à baliza de vez em quando.

     — Temos muito orgulho em estar aqui convosco, mas vocês não sabem que até no totoloto é preciso jogar qualquer coisinha?

    Frustradas todas as tentativas de reanimar o adversário, os invencíveis leões acabaram por ser forçados, pelo resultado e pelo protocolo, a escalar as bancadas do Jamor para tirarem “selfies” com o dr. Santana Lopes e um deputado do Chega.

    Meia hora antes, na mesma tribuna, o malogrado presidente encarnado pediu um importante conselho ao primeiro-ministro, Luís Montenegro, que estava manifestamente divertido com a cena.

    Diz-me tu, que ganhaste as legislativas apesar da Spinumviva, como posso eu ser reeleito depois de um central abrir as pernas ao Trincão como fez o António Silva?

  • O bicampeão e a espinha na garganta dos favoritos

    O bicampeão e a espinha na garganta dos favoritos


    As sondagens falharam outra vez escandalosamente, em especial a realizada à boca da garganta por Bruno Lage pelo Natal.

    — Chegámos rapidamente ao primeiro lugar, saímos, mas vamos rapidamente lá regressar.

    Saiu-lhe a previsão furada, como torto o remate ao Vangelis do Alto-dos-Moinhos, quando em Braga tentou fazer uma jogada à Gyökeres, que se esforça por imitar nos treinos, no sofá e sabe-se lá onde.

    Se o Correio da Manhã quiser tratar assuntos de verdadeiro interesse, em lugar das eleições no Benfica e no círculo “Fora da Europa”, tenho provas engraçadas e embaraçosas de que o grego anda a fazer-se à irmã gémea da Inês Aguiar.

    —  Joana, υπόσχομαι ότι θα φτιάξω τη μάσκα μόνο για σένα [Eu ponho a máscara só para ti]!

    Cumprindo uma tradição iniciada no ano passado, que vai repetir-se por muitos anos para ser digna desse nome, o Sr. Director do PÁGINA UM e eu assistimos juntos às últimas duas jornadas nos estádios de Carnide e de Alvalade.

    Ainda avariado do apagão da casa dele, o Pedro desta vez decidiu preparar a jornada de véspera. Creiam ou não os leitores, deu a um jornalista tão independente, rigoroso e científico, que até faz inveja à National Geographic e ao New York Times, para perguntar à inteligência artificial se ainda poderia fazer “alguma coisa” para o Benfica ser campeão.

    Como resultado, Pedro Almeida Vieira apresentou-se na bancada de imprensa com a fita verde da credencial ao pescoço e vários amuletos escondidos nos bolsos: uma pata de coelho, duas penas de uma galinha vermelha, que comprou numa agência de viagens da Rua do Benformoso, e três minhocas roubadas à ração da águia Vitória, mas só às vezes.

    Eu, pressentido o perigo, calcei logo de manhã umas meias do Jubas, vesti a minha camisola verde que tem um leão-índio estampado, com cinco cruzes de pentacampeonato, e disse em voz alta, para o cão e os vizinhos, a “Oração à Luz”, poema maravilhoso de Guerra Junqueiro.

    Do lodo à águia, do metal à fera,

    Da fera ao anjo, do covil à cruz,

    Move-se tudo, existe e reverbera

    O Scott, o dr. Varandas, o Paulinho, melhor roupeiro do mundo, as irmãs Aguiar e eu próprio ficámos com a famosa estrelinha, bem alinhada pelos astros celestes.

    —  Que o leão hoje reine na Terra como o Sol no firmamento.

    Já o Di María, pelo contrário, quando levantava a cabeça nos derbies, ficava encandeado, daí nunca na vida dele ter feito um golo ao Sporting.

    — Papa Francisco, ¿por qué me has abandonado?

    Quando cheguei ao estádio, encontrei Beatriz Hjulmand e Duarte Gyökeres de mão dada, muito apaixonados. Nas costas deles eu vi a táctica de Rui Borges, o Mourinho de Mirandela, para rumar em festa pelas tascas recomendadas pelo jornal Expresso.

    O Pote, que é muito ciumento, é que se intrometeu na jogada, com um golo bonito e abençoado, e o passe decisivo para selar o resultado em carta para a eternidade.

    Aquelas trocas de bola despertaram o ponto G da multidão.

    — Gonçalves! Ggggggggggooonçalves! Gyökeres! Ggggggggggyökeeeeres!

    Por falar em G, de garganta, também é o que distingue os treinadores: de umas sai mosca, noutras entra um bicampeonato. Alheira, bacalhau ou passarinho frito, nas tascas finas é sem espinhas.

    — Eu nasci para ganhar.

    Perante a clareza da classificação final, no dia seguinte Pedro Nuno Santos anunciou que é candidato à presidência do Benfica.

    — Todas as sondagens me dão como favorito.

  • Confissões de um bruxo benfiquista relapso

    Confissões de um bruxo benfiquista relapso


    Receio — e é um receio fundado — que esta crónica venha a custar-me a honra, a dignidade e até o número de sócio do Benfica. Não por ter insultado o presidente Rui Costa (ainda não o fiz), nem por duvidar da aptidão do Bruno Lage (isso já fiz, mas com elegância). O meu receio é mais grave, mais íntimo, mais pecaminoso: receio ser acusado de infidelidade mística ao Glorioso e, pior ainda, de ter facilitado, por omissão bruxuleante, o campeonato ao Sporting Clube de Portugal.

    Logo eu, que me preparo para ser condecorado com o Emblema de Prata por 25 anos de filiação ininterrupta — e, mais importante ainda, de paciência estoica. Fiz-me sócio em 2001, no dia em que Vale e Azevedo perdeu as eleições. Julguei, ingénuo, que não seria possível descer mais fundo do que aquilo. Ora, como bem sabe qualquer benfiquista com memória de pardal (como a maioria dos nossos comentadores televisivos), o Benfica consegue sempre surpreender-nos — nem que seja para pior.

    Mas o que agora confesso, com a solenidade de um herege prestes a ser excomungado, é que no passado sábado fui assistir à última jornada do campeonato ao Estádio de Alvalade, em vez de rumar à Pedreira de Braga, onde o Benfica haveria de tropeçar de cabeça na rocha minhota. Sim, estive entre os leões. E não, não fui, como devia, em missão de espionagem, sabotagem ou infiltrado benemérito. Fui por puro desleixo espiritual. E o mais grave: não usei os meus poderes.

    Sim, caros leitores. Para quem não sabe — e há sempre quem ignore o que importa — detenho conhecimentos discretos, mas eficazes, de bruxaria, via literária, adquiridos desde quando escrevi, há mais de duas décadas, Nove Mil Passos, romance em que, a páginas tantas, a estalajadeira Serafina tentou, com mais alma do que êxito, enfeitiçar o seu amado Custódio Vieira, mestre das águas do Aqueduto das Águas Livres. Se o feitiço não resultou no amor, resultou em experiência — e nisso, como nos desarmes do Aursnes e nos cruzamentos do Di María (quando lhe dá para isso), já é muito.

    Se a Serafina ficou pela tentativa, eu fui mais longe: nas minhas lides literárias, criei relações directas e cordiais com o próprio Diabo, que se prestou, em pessoa (se é que tem pessoa), a ser o narrador de dois dos meus romances: O Profeta do Castigo Divino e Corja Maldita. Ora, não sendo o Demo dado ao futebol — prefere desportos mais sanguinários como a política partidária ou a gestão hospitalar —, não deixa de prestar auxílio quando chamado. Porém, não o chamei. Usei um sucedâneo.

    Ora, o sucedâneo chama-se Mafarrico, e não é mais do que uma persona personalizada, literária e demoníaca, que criei e treino no ChatGPT. Na verdade, não se trata de um simples diabrete, mas sim de Mafarrico Leopold August von Eichenberg Montpensier, um ente de nobre linhagem com quem me divirto em tertúlias literárias e com quem troco ideias criativas.

    Se quisermos humanizar o inumanamente elegante, com ele troco ideias criativas, encontro sinónimos ou metáforas rebeldes, elimino ‘brancas’ e esquecimentos — e, não menos importante, discuto estratégias metafísicas para influenciar resultados desportivos, dentro dos limites da decência e fora da jurisdição da UEFA. Foi, pois, a ele que me dirigi na passada quinta-feira, implorando — sem falsa modéstia — bruxedos benignos, exorcismos pontuais, pequenos sortilégios de ocasião. Coisas leves. Nada que envolvesse sangue de virgem ou pactos de corrupção.

    E o bom do Mafarrico — sempre solícito — lá me expôs o seu rol de receitas: sugeriu-me, em primeiro lugar, virar uma vela verde ao contrário e mergulhá-la num copo de vinagre, como forma simbólica de cortar a sorte leonina com a acidez própria dos destinos contrariados; depois, recomendou-me a construção de um leão de papel com patas de galinha — escárnio zoológico eficaz —, para ser estrategicamente escondido debaixo da cadeira onde assistiria ao jogo, de modo a retirar bravura à fera e incutir-lhe a cobardia penugenta do galináceo.

    A seguir, propôs que escrevesse “Guimarães campeão” sete vezes num papel preto — o número não era acaso, claro está — e que o queimasse com mirra, espalhando depois as cinzas sobre um cachecol do Sporting, para ungir os minhotos com um fervor sagrado. Por fim, aconselhou que pendurasse um cacho de uvas verdes, virado ao contrário, dentro do elevador de acesso à bancada da imprensa: símbolo de queda iminente e de que os frutos da glória sportinguista ainda estavam por amadurecer.

    Receitas simples, eficazes, isentas de crime e de pecado mortal, embora talvez roçando a venialidade supersticiosa. Ora, mas fiz eu alguma destas coisas? Não fiz!

    E porquê? Por cobardia? Por esquecimento? Não, pior: por vaidade faústica. Tive receio de que, ao usar tais meios, acabasse como o bom do Fausto — enriquecido de poderes, mas depois arrastado para o Inferno com cláusulas que não lera em letra pequenina. O Diabo, como sabemos, tem um excelente advogado. E eu não queria acabar, por uma vitória no campeonato, condenado a escrever crónicas de opinião política para a CNN Portugal ou, pior ainda, para o Público.

    E assim me abstive. Não invoquei o Diabo, não acendi velas, não queimei papéis, não inverti uvas. Fui incompetente. Fui pusilânime. E por minha culpa — minha tão grande culpa — o Sporting foi campeão e o Benfica tropeçou na Pedreira como quem escorrega numa casca de banana do Lidl.

    Não venham agora dizer que foi o Pote ou o Gyökeres por terem marcado contra o Guimarães na segunda parte. Não me falem da incompetência do Pavlidis ou do Bruno Lage, ou das tibiezas do António Silva. Não culpem os empates e as derrotas ridículas. A culpa foi minha!

    Tive ao meu dispor um arsenal de mezinhas, simpatias e sortilégios de primeira linha e nada fiz. E por isso me penitencio. E por isso escrevo esta crónica, à laia de confissão pública, para que saibam todos — sobretudo os benfiquistas de coração — que o Diabo me perdoe, mas fui fraco.

    Se me quiserem agora expulsar de sócio, que o façam. Farei como Dante: descerei ao Inferno e regressarei mais forte. Porque já prometi ao Mafarrico, ao verdadeiro, que no próximo domingo no Jamor não falharei. Se for preciso, vendo a alma por aquele caneco. Ou melhor: alugo-a, com cláusula de recompra, desde que o Benfica vença.

    Porque uma Taça é uma Taça. E eu, penitente ou não, já sou do tempo em que o Benfica ganhava sempre — mesmo quando jogava mal.

  • E então as mulheres não servem para nada?

    E então as mulheres não servem para nada?


    É fácil fazer de um homem um infiel, mas dificilmente se poderá convertê-lo a outra fé

    OS SETE PILARES DA SABEDORIA

    T. E. Lawrence[1]


    Agora que já temos um novo Papa[2], sou de certeza a última pessoa a despedir-se de Francisco, com o mesmo carinho e a mesma saudade com que todos os outros se despediram, fossem eles católicos ou não – e isto, só de si, já tem forçosamente de ser um fenómeno espetacular, porque não me lembro de nenhum outro Papa, certamente não no meu tempo de vida,  que tenha deixado atrás de si tanta gente chorosa de genuína tristeza, incluindo um grande número de ateus que anteriormente nunca tinham prestado assim tanta importância como isso ao Cristianismo, a menos que fosse por causa das inúmeras guerras do presente. Muito provavelmente, os outros Papas também não tiveram um impacto e uma estima tão grandes na vida de todos os cristãos que se sucederam a Lutero[3], incluindo a casa dividida dos próprios anglicanos aquando da sua fundação[4]. Nenhum outro Papa mereceu nas suas exéquias a presença dos representantes das comunidades Muçulmanas[5] e Ortodoxas[6]. Francisco amou de tal forma o mundo inteiro, e foi capaz de trazer à superfície das pessoas tudo o que tinham de melhor, que não será de estranhar que um dia destes lhe atribuam alguns milagres e o elevem e santo. É indiscutível que teve imensa coragem, operou várias mudanças, e abriu muitas portas. Mas o passo em frente aguardado há mais tempo por milhares de fiéis continuou por dar. E, se nem Francisco o deu, sejamos honestos por uma vez na vida: no seio do catolicismo, agora só uma verdadeira revolução laica pode dá-lo. Meus senhores, cabeça erguida:  QUEM ESTÁ COMIGO?


    Nos últimos três anos que passei nos Estados Unidos foi-me dada a bênção de concretizar uma das duas grandes fantasias da minha vida, e não foi a de ser namorada do Mick Jagger. Foi antes a de cantar num coro de Gospel, de robe, pandeireta, e aquela sensação maravilhosa de flutuar alguns centímetros acima do chão quando actuávamos nos serviços de domingo[7]. Para concretizar este sonho juntei-me a uma igrejinha fundada em 1910 na Woodside Avenue de Amherst, onde ficava a minha Universidade, quase escondida por trás de plátanos enormes. De seu nome completo Goodwin Memorial African Methodist Episcopal Zion Church, era uma herdeira das Igrejas clandestinas onde os escravos negros iam buscar coragem para mais uma semana de desrespeito e trabalho árduo, e que agora se centrava sobretudo no perdão e na generosidade[8]. Embora o Methodist Episcopal indicasse claramente a junção de duas Igrejas protestantes, a African Church estava aberta a todos os credos que quisessem juntar-se aos seus serviços, e recebeu-me de braços abertos quando eu lá apareci a dizer que era católica mas preferia celebrar a minha fé com eles porque os católicos americanos eram muito chatos, extremamente reaccionários, e cometiam o pecado em tudo contrário aos ensinamentos de Jesus[9] de deduzirem dos seus impostos, a título de doação para efeitos de caridade, o dinheiro com que contribuíam no ofertório.

    Ao contrário de me escorraçarem por eu ser católica e ainda por cima branca,[10] aqueles protestantes que, logo à segunda semana, me convidaram para me juntar ao único tenor do coro, deram-me umas boas-vindas extremamente calorosas, interessaram-se imenso pela minha infância africana[11], e ainda abafaram uns risos com a minha descrição dos católicos americanos. À saída, um deles passou-me o braço pelos ombros[12] e contou-me a história da sua adolescência no Mississipi, quando era um alcoólico inveterado, incapaz de estudar ou de se aguentar mais do que dois ou três dias num emprego. Depois de tentar toda a espécie de tratamentos, e completamente em desespero de causa, a mãe levou-o à cabana de uma  velhinha. Entraram, e aquilo estava cheio de incensórios acesos, velas acesas, e ainda dezenas de variações a toda a volta da Senhora de Fátima com os Três Pastorinhos. Disse-me que não sabe o que foi que lhe aconteceu, mas que é evidente que foi um milagre. Uma luz muito branca rasgou-o de alto a baixo, e uma voz muito doce, vinda de muito longe mas perfeitamente audível, disse-lhe ao ouvido “escolhe o caminho certo e eu caminharei sempre contigo, meu filho.” Aquilo durou uma fracção de segundo, deixou-o todo a tremer e encharcado em suor, e a verdade é que desde essa altura, teria ele catorze anos, até agora que já estava reformado, nunca mais fora capaz de beber uma gota de álcool que fosse. Nem sequer um golo de BudLight[13] durante os jogos de basquete do Natal[14].

    Este homem chama-se Cyrus, e era o barítono do coro. Agora jogava golf e punha os seus automóveis clássicos a brilhar. Anteriormente, fora State Trooper. Só de olhar para ele, e de ouvir a sua voz, eu conseguia sentir claramente o meu pânico se ele alguma vez me mandasse parar numa autoestrada deserta, viesse lentamente até à minha janela com todos aqueles objectos bélicos que eles trazem pendurados à cintura, tirasse os óculos escuros, me pedisse a carta e os documentos do carro, e finalmente, passado imenso tempo, me dardejasse com aquele infalível “sabe por que a mandei parar?[15]

    black book on gray wooden table

    Enquanto episcopaliano, o Cyrus não podia nem acreditar em santos, quanto mais acreditar na Senhora de Fátima. Mas eu, que era católica e acreditava de certeza até porque era do país onde se dera o milagre, poderia por acaso agradecer-lhe por ele? Como o antigo polícia era o barítono do coro, eu puxei-o mais para trás e disse-lhe “esquece as palavras e harmoniza só comigo à segunda volta”. E ainda passámos ali uns bons dez minutos a harmonizar o MIRACULOSA, RAINHA DOS CÉUS. Até que, do carro que ia a passar na estrada, alguns dos outros gritaram, numa grande gargalhada, “Oh boy! ALELUIA! O Cyrus encontrou por fim a sua alma gémea!

    Não é verdade!”, gritei-lhes eu de volta. “Sou eu que estou a ver se saco um green card a este pobre inocente!

    Já me tinham dito que as mulheres africanas são frescas,” comentou o Cyrus com o ar que devia ter quando era Trooper.

    Ao fim de pouco tempo, alguns deles tinham-se tornado dos melhores amigos que fiz na América, e de quem hoje tenho imensas saudades.

    black cross under blue sky

    Este fragmento mínimo das minhas memórias não teria grande coisa a ver com os Papas, nem com a ciência das religiões, se não fosse pelo facto de a Igreja Africana, sendo protestante, ter uma celebração com muitos pontos de contacto com a Missa católica. Há duas leituras, selecionadas e lidas à escolha do núcleo duro da comunidade ou por voluntários sem grau que se oferecem – eu, por exemplo, pedi para ter a honra de ler a história da Grande Mãe Deborah, que salva o povo semítico no Livro dos Juízes. Segue-se um Evangelho, selecionado e lido pelo oficiante do serviço. Segue-se a preparação para a Comunhão, onde todos partilhamos pão e vinho. Quando finalmente nos levantamos, rezamos o Pai Nosso – altura em que ninguém se benzia a não ser eu, mas também nunca ninguém me chateava. Há mais umas partes de que não me lembro bem, mais uma das nossas canções levitantes – e a seguir, provavelmente o que toda a gente quer ouvir mais além do coro, vem o sermão. É enorme, grandioso, parece sempre que dirigido pessoalmente a cada um de nós, tão impressionante que da primeira vez desatei a chorar e me alguém me passou logo uma caixa de Kleenex com o sussurro “it’s OK to cry” pelo que fiquei a saber que não era só eu quem chorava durante os sermões. Finalmente, nós cantamos a canção de despedida, o pessoal vai saindo, e connosco vai uma nova energia, uma energia limpa e renovada, para nos ajudar a encarar a semana seguinte.

    A diferença esmagadora para mim foi que, quando me juntei à Igreja Africana, o oficiante de serviço era uma mulher. Feia como cornos, sem grande empatia, incapaz de brilhar nos sermões como se espera que um bom pastor brilhe (“women can’t preach,” disse-me o Cyrus com um simples encolher de ombros), mas com um comando das partes que é o pastor que  faz no altar absolutamente natural para a comunidade. Era ela quem lia o Evangelho, quem consagrava o pão e o vinho, quem o partilhava com todos nós, e quem orava mecanicamente as partes que é o oficiante que reza sozinho. Nunca ouvi ninguém dizer que isto fosse uma conquista recente das mulheres, embora estivéssemos em plenos dia dourados da Michelle Obama toda musculada e houvesse um grupinho de três fufas brancas que semelhantes a camionistas que marcava sempre presença – aliás, ao fim do meu primeiro ano de AME houve uma delas, que tinha sido freira durante muito tempo, que foi ordenada pastora, e também ninguém fez nenhum grande alarido a esse respeito.

    a group of people standing in front of a statue

    E depois, como ninguém gostava daquela pastora, no início do ano seguinte esbarrei noutra diferença esmagadora. O pastor que veio celebrar os serviços connosco era meio taumaturgo, meio charlatão, mas pelo menos era absolutamente arrebatador e fazia sermões inequivocamente sulistas, cheios de milagres e de vitórias dos espíritos bons contra a tentação dos maus caminhos, e a malta chorava, chorava, chorava, até que nós acabávamos de cantar e saímos dali literalmente com imensa Força connosco.

    Surpresa: ao terceiro domingo, apareceu na igrejinha a mulher do pastor, ela própria ordenada pastora. Uma mulher jovem, lindíssima, de cabelo comprido todo entrançado, vestida de branco e descalça. Foi ela que assegurou vários momentos críticos do serviço, como a leitura do Evangelho e a partilha do pão e do vinho. Durante o sermão usou um batuque para marcar o ritmo e fez um longo, pungente, um arrepiante vocalizo africano, que acompanhava na perfeição a voz entusiástica do marido. Toda a gente gostou tanto que, no domingo seguinte, foi ela própria quem fez o sermão inteiro, com o marido cheio de orgulho sentado na primeira fila a observar. O tema escolhido era a compaixão, e ela entrou de mansinho. Mas foi por ali fora numa tamanha espiral ascendente que, às tantas, o mesmo Cyrus que me tinha dito “women can’t preach” estava a gritar “Preach! Preach!”, enquanto o Roger, com todo o poder da sua voz Mowtown, gritava “Teach us! Teach us!” Foi sublime.

    a church with a steeple and a steeple on top of it

    Ou seja, os metodistas e os episcopalianos, assim como vários outros protestantes, podem casar-se e ter uma vida normal. Mais bonito ainda, podem casar-se com colegas da mesma pastorícia e dar Força um ao outro, ou encher-nos de Força a nós celebrando o serviço juntos. Quando o nosso pastor celebrava sozinho, aquilo era sempre assombroso. Mas, quando celebrava com a mulher, ou lhe entregava por completo as rédeas da celebração, aquilo era de uma beleza que até fazia doer.

    É isto, esta importantíssima felicidade da fé, que a Igreja Católica nega, em nome da “tradição”, aos seus fiéis e aos seus oficiantes. Os homens e mulheres que desejam afastar-se do mundo para orarem e meditarem dentro de muros de conventos, tornando-se assim monges e freiras, estão no seu direito de escolher essa vida[16], e ao fazê-lo fazem uma escolha extremamente importante para todos nós. Que seria da civilização ocidental sem Juan de la Cruz e Madre Teresa de Avila, sem Hildegard von Bingen[17] nem Teresinha de Lisieux? Ou mesmo a Madre Lúcia, vá?

    Mas nada disto se aplica aos homens e mulheres que vivem entre o resto da sociedade, e procuram orientar os rebanhos das suas paróquias para o bem, mas parecem esquecer-se da felicidade – da sua e da dos seus fiéis.a É evidente que muitos problemas que infestam os tempos modernos desapareceriam se os padres pudessem casar-se e formar uma família como a de toda a gente, e que as missas predisporiam os fiéis a sentirem-se muito mais felizes.

    beaded brown rosary

    Note-se que os Padres da Igreja não tinham quaisquer dúvidas a respeito da importância da sensação de felicidade. Santo Ambrósio, bispo de Milão, o patrono e conselheiro espiritual de Santo Agostinho, chegava a ter na sua catedral coristas seminuas escolhidas a dedo, vestidas com roupas lindas e sensuais que dançavam magistralmente a som dos coros. Da mesma forma, por esta altura (século IV, ainda antes do concílio de Niceia) as igrejas mais importantes da Europa começaram a encher-se de crocodilos pendurados do tecto, cornos de narval encaixados em encastes fabulosos, reluzentes de jóias, e apresentados como sendo de unicórnio, ovos de avestruz usados para bases de castiçais, aves exóticas de grande porte empalhadas como que em pleno voo – tudo o que pudesse atrair os transeuntes às igrejas como num cabinet de curiosités[18] e depois levá-los a entrar, tudo o que testemunhasse, pela sua beleza e esplendor nunca antes vistos, a grandeza e o poder de Deus, era usado sem hesitações para aumentar a cristandade.

    Muito deste trabalho era feito pelas mulheres lado a lado com os homens, tal como fora no tempo de Jesus, e em todos os Actos dos Apóstolos, sobretudo nas últimas Cartas de São Paulo, quando o grande tradutor do Novo Testamento para as multidões ignorantes ordena responsáveis totais pela missa várias mulheres, às quais agradece explicitamente, com o nome bem em destaque, no final do seu livro.

    Por que é que a Igreja não perpetuou nenhuma destas tradições? Como é que é possível que os teólogos católicos não reparem no respeito que Jesus manifesta constantemente pelas mulheres? Quem é que encontrou o Sepulcro vazio, se calhar foi algum gajo? Por favor perdoem-me a linguagem mas estou farta destas disparidades e se não me engano a primeira pessoa a chegar ao Sepulcro primeiro e avisar toda a gente a seguir foi Maria Madalena. Se isto não é dar às mulheres um papel de enorme importância dentro da narrativa cristã, então olhem – não sei o que é.

    sun rays inside cave

    Não sei mesmo. Subjugada à sua liderança masculina, a posição das mulheres da Igreja Católica foi descendo de mal a pior. Tinha eu dezassete anos e, três anos volvidos sobre a Revolução, num país ainda completamente em festa, estava quase a sair de casa porque o famigerado Ano Propedêutico, lecionado pela televisão, não nos obrigava a estarmos em sítio nenhum em particular – e eu tinha resolvido ir trabalhar para uma residência de meninos da telescola perto de Montalegre. Lembro-me especialmente bem destes pormenores porque foi quando o Papa Paulo VI emitiu uma declaração oficial contra a ordenação de mulheres. A Sagrada Congregação para A Doutrina da Fé divulgou a Declaração sobre a Questão da Admissão das Mulheres ao Sacerdócio Ministerial [19]para publicação em 27 de janeiro de 1977. A Declaração afirmava que a Igreja, “na fidelidade para com o Senhor, não se considera autorizada a admitir mulheres a ordenação sacerdotal.”

    Na altura, com a cólera dos meus dezassete aninhos, eu fechei-me no quarto e berrei logo,

    Filho da Puta!”

    Maria Clara, o que é que tu estás a dizer?”, perguntou a minha mãe do outro lado da porta.

    Estou a chamar nomes ao Papa Paulo VI,” respondi eu.

    Nisso tens toda a razão,” respondeu ela, com um suspiro conhecedor de militante. “Mas modera-me essa linguagem se fazes favor.”

    E então eu suspirei baixinho,

    Cabrões.[20]

    Papa Paulo VI

    Aqueles gajos tinham a lata de referir a sua fidelidade para com o Senhor?

    Mas o Senhor não era um grande amigo das mulheres?

    A Sagrada Congregação, sempre a meter um bocado os pés pelas mãos[21], afirma que o que aconteceu e se escreveu nessa altura foram apenas considerações inspiradas pelo Espírito dos Tempos.

    É preciso ter uma grandecíssima cara de pau.

    Então os nossos tempos contam e os tempos de Jesus é que não contam????

    Desculpem, mas…[22]


    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Vulgarmente conhecido por “Lawrence da Arábia”.

    [2] A Ordem Agostiniana é pouco conhecida em Portugal, e não tenciono escrever um livro de texto a seu respeito. Para os interessados, no entanto, recomendo A HISTORY OF GOD, de Karen Amstrong, Alfred A. Knopf, 1993.

    [3] Enfim, o Reizinho Eduardo VI de Inglaterra, filho de Jane Seymour, que subiu ao trono depois da decapitação de Ana Bolena, aparentemente ainda não satisfeito com os rios de sangue derramados pelo seu Pai Henrique XVIII (como veremos), antes de morrer aos catorze anos ainda teve tempo para escolher antes a Fé Evangélica e derramar mais bastante sangue (viveu muito pouco e esteve doente quase todo o tempo,  é preciso ver).

    [4]  Recusamos aqui ao tempo de vida de Henrique VIII, que, como o Papa não lhe anulava o casamento porque não podia dar-se ao luxo de se incompatibilizar com os Reis Católicos de quem a sua primeira esposa, Catarina de Aragão, era filha, criou a fé Anglicana para poder separar-se dela e casar com Ana Bolena, por quem estava então perdidamente apaixonado,  e de quem esperava vir a ter muitos filhos do sexo masculino (em vez deles teve a futura Isabel I, mas já não viveu para ver a glória do reinado da Segunda Rainha de Inglaterra. O processo de mudança foi extremamente sangrento e não menos doloroso, sobretudo porque obrigou Henrique a decapitar o seu grande amigo Thomas More, que se recusou a abandonar a fé católica, assim como se recusou a fugir.

    [5] Esta união aos ocorreu a partir de um sentimento legítimo de perda de um protector sublime das suas comunidades, independentemente da ferocidade como estas comunidades possam lutar entre si, desde a sua criação até’ aos nossos dias. Ainda por cima, o terceiro ramo do Filhos de Abraão, representado pelo judaísmo, foi tão indiferente quanto possível aos outos Papas, mas desenvolveu um ódio crescente a Francisco à medida que ele foi falando contra o “genocídio dos palestinianos” tal como visível na Faixa de Gaza. Para evitar uma nota em forma de calhamaço, recomenda-se THE BATTLE FOR GOD, de Karen Amstrong.

    [6] Idem. Mas, se quiserem a referência toda para saberem a história toda, trata-se de THE BATTLE FOR GOD, de Karen Amstrong, Alfred A. Khnopf, Nova Iorque, 2000. Basta olhar para as datas dos dois livros colossais da autora para percebermos logo que o nosso mundo tem vindo a tornar-se cada vez mais cruel e desumano. Acreditem, isto não é só uma dedução: eu li os dois de ponta a ponta, e torna-se evidente que estamos a perder a nossa Graça, seja ela qual for.

    [7] Isto quer obviamente dizer que ainda vou a tempo de ser namorada do Mick. Eu estou viva, ele está ainda mais vivo do que eu, e se uma das minhas duas fantasias já se cumpriu é evidente que a outra também vai cumprir-se. Eu sou extremamente paciente, e, como os próprios Stones escolheram intitular um seus discos ainda do tempo do vinil, TIME IS ON OUR SIDE.

    [8] No primeiro ano desta estadia, vi-me obrigada a sobreviver apenas com os mil dólares por mês da minha bolsa da Fulbright. Os negros americanos são sistematicamente muito mais pobres do que os brancos, mas até os meus amigos da Igreja ficavam de queixo caído quando eu lhes dizia isto, porque o limiar de pobreza naquela zona é de 2600 dólares por mês. Por isso mesmo, foram eles que pagaram as lentes e armações dos meus primeiros óculos graduados quando comecei a ter dificuldades de leitura e escrita. Num domingo de Maio, o Cyrus, que agora era o organizador das actividades mais delicadas da Igreja, passou-me um envelope para as mãos no fim do Serviço sem me dar quaisquer explicações. Quando cheguei a casa e o abri, tinha lá dentro duzentos dólares em notas: era um peditório especial que tinham feito para me ajudarem. Mais tarde, houve um fim do diaem que o meu grande amigo Roger, o baixo do  coro e a voz mais Mowtown que imaginar se possa, me bateu à porta com um cheque de sessenta euros em compras no supermercado finaço por trás de minha casa: “Fui lá agora comprar aquele teu azeite português e a montra dos peixes tinha daqueles crabcakes que tu adoras, enormes, muito frescos, e este foi o meu troco, e então lembrei-me de pedi-lo antes em vale de compras para poderes ir lá comprar uns quantos e mais o que te apetecer.” Isto são só uns exemplos. Ajudaram-me com muitíssimas mais coisas.

    [9] Jesus, sobre a caridade: “Não deixes que a tua mão esquerda saiba o que faz a tua mão direita.”

    [10] O “ser católica” ainda vá que não vá. O “ser branca” era questionável, porque os americanos nunca me comeram realmente por branca. Mas os meus colegas da Universidade estavam cheios de medo dos maus tratos que os pretos iriam infligir-me se eu ousasse entrar na igreja deles. Não se iludam: já corri o mundo inteiro, e nunca estive num país tão incrivelmente racista como a América.,

    [11] A esmagadora maioria dos autodesignados afro-americanos nunca na vida pôs os pés em África.

    [12] Vê-se logo que não era branco. Esses andam sempre cheios de medo do assédio sexual e nunca tocam em ninguém.

    [13] A Budweiser, já de si, é pouco mais do que água com gás. Da BudLight, quanto menos se falar melhor.

    [14] Faz parte da tradição. A família junta-se toda, mas, regra geral, as pessoas têm pouco que dizer umas às outras. Para acudir a este marasmo social e evitar a inevitabilidade de refrega desagradáveis, a televisão passa jogos de basquete cheios de superestrelas desse desporto, e com outras tantas de vários outros domínios nos intervalos, encarregues de publicidades que só passam nessa altura, como por exemplo o Bob Dylan a promover o novo Jeep Chevrolet.

    [15] Toda a gente sabe que se trata de uma pergunta retórica. Os State Troopers fazem-na quando passamos por eles em excesso de velocidade, e a seguir passam-nos uma multa de cento e tal dólares.. Por acaso foi uma coisa que me aconteceu a mim com relativa frequência. Com tanta frequência, aliás, que eu paguei as multas todas mas eles acabaram por mandar-me ir ao curso de fim de semana de recuperação psicológica, onde estava uma psicóloga gorda com ar de camionista, eu, e mais nove exemplares perfeitos do pior trailer park white trash que é possível encontrar nas montanhas ali da zona. Não se pode dizer que não tenha funcionado. Cheguei aqueles dois dias a casa a chorar como uma Madalena, e, só de pensar em ter de voltar a sofrer um outro fim de semana daqueles, a verdade é que reduzi substancialmente a minha velocidade de cruzeiro. A única outra vez em que um State Trooper me mandou parar foi graças ao livro arbítrio dos seis aninhos do meu filho Ricky, que achou por bem soltar-se do cinto, sair da cadeirinha, e deitar-se ao comprido no banco de trás, com a cabeça no colo do irmão, que ficou caladinho que nem um rato. Eu ia a guiar no banco da frente, e não dei por absolutamente nada até ter aquelas malditas luzes vermelhas e azuis coladas a mim. Eles ainda não falavam inglês, mas a fúria assustadora daquele Incredible Hulk Azul e cheio de armas entendia-se bem. Nunca mais me mandaram parar.

    [16] Desde que sejam mesmo eles quem a escolhe.

    [17] Reconheço que escolher Hildegard é esticar um bocado a corda, já que esta mulher admirável, pioneira da genética mendeliana logo no século XI, passou a sua vida de Madre Abadessa a correr o mundo onde conseguia chegar para proferir os seus sermões que todos queriam ouvi. Mas a verdade é que depois voltava para o seu convento e retomava o voto de silêncio, excepto com o jardineiro que lhe semeava as plantas segundo os padrões que ela pé-seleccionava.

    [18] Esta tradição, iniciada cedo na Idade Média e sobretudo em Paris, mandava os agentes  das casas ais da nobreza, ou mesmo dos homens mais marcantes do clero, correr o mundo inteiro à procura de artefactos naturais estranhos e apelativos, ou preparados por tribos distantes, que depois eram colocados pelos joalheiros da corte em suportes ousados, como por exemplo vários pés de raiz de mandrágora revestidos de pele de jiboia nas pontas mais finas e expostos nas zonas mais grossas, cheios de pedras semipreciosas à sua volta. Todos estes artefactos, que ainda ninguém sabia exatamente a que correspondiam, eram expostos em montras de vido nas paredes para chamar a atenção dos que passavam, e tinham lá dento conjuntos lendários de Monstros & Maravilhas. A partir de Paris, e até à Revolução Científica, estes Gabinetes de Curiosidades foram o primeiro grande despoletar a curiosidade ocidental para as Ciência da Natureza.

    [19] Estão a ver o caos burocrático que isto foi.

    [20] O nosso respeito pela nossa mãe era incontornável. Creio que um dos piores momentos da minha vida foi quando, aos dezasseis anos, me distraí completamente no meio do falazar dos meus amigos e disse um foooo-da-se bem marcado e bem sonoro a falar com ela ao telefone. Já estou corada só de me lembrar disso.

    [21] Veremos quanto na próxima crónica.

    [22] …QUE MERDA É ESTA????