O insulto culto, ou a arte de dignificar o vernáculo contra os árbitros


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CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS

(não inclui esta crónica inédita; para ler o prólogo e três crónicas do livro, veja aqui)

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No decurso das décadas — ou, quem sabe, dos últimos minutos, se o tempo se medir pelo espírito —, venho reflectindo sobre a natureza da ofensa nas orelhas e da injúria nas ventas. Insultar de viva voz, minhas senhoras e meus senhores, é uma das mais sublimes manifestações da natureza humana: tem fígado, tem bílis, tem língua, tem espuma e até perdigotos, mas requer cálculo, génio e, sobretudo, um sentido de estética.

Quem ofende mal, degrada-se; quem ofende bem, sendo eloquente e grandiloquente a cinzelar um impropério ou a tingir uma contumélia, entra na História. Os romanos chamavam-lhe vituperium, uma exposição dos vícios. Os teólogos medievais viram aí o eco do pecado original — a palavra fere mais do que o punho. Mas os portugueses, sempre modestos nos grandes dons, reduziram a ofensa ao palavrão, ao vernáculo soez, ao reles e baixo calão.

Ora, é contra essa degenerescência da ofensa que venho hoje derramar esta tinta metafísica. Escreveu o árbitro Gustavo Correia que, após um jogo do Benfica, irrompeu em campo o digno — ou indigno — senhor Mário Jorge Branco, director-geral da equipa, bradando: “Honra as insígnias que tens ao peito, és uma vergonha do caralho! Vou rebentar contigo e com o João Bento!” E, como não bastasse, perseguiu o homem do apito até ao túnel dos balneários, aos berros: “Podes ter a certeza que eu vou-te rebentar todo! Não vales merda nenhuma! Palhaços do caralho!”

Confesso que, ao ler tais expressões, senti uma espécie de vexame estético, um pudor linguístico, um rubor da alma. Não pelas ameaças em si — que são banais, como o vinho em adega —, mas pela pobreza do estilo. O insulto, como defendo, para ter força, deve vir ungido de imaginação e cultura. Este, porém, soçobra na mesquinhez do calão, e até o próprio diabo, se por acaso tivesse ouvido, teria abanado a cabeça: “Oh, filho, nem para blasfemar tens talento!”

Se o director benfiquista pretendia distinguir-se pela veemência, sabendo que levaria cartão vermelho directo, deveria ter-se elevado ao nível das grandes escolas do veneno verbal. Há quem toque piano e há quem esmurre o balcão de uma taberna. O senhor Mário Branco preferiu o pinho ao marfim. Saiu-se mal. Por isso, aquilo que eu recomendo de imediato é a criação de um Conservatório Nacional do Vitupério, onde se ensine afrontas, desdouros e agravos com cadência, harmonia e erudição.

Porque, reabilitadas donzelas e cavalheiros desagravados, um vitupério digno deve ser entoado como uma ópera, recitado como um sermão e pronunciado como uma catilinária — porém, sempre arremessado com a elegância e a velocidade de um discóbolo de Míron. Dizer “vou rebentar contigo” é coisa de casa de pasto. Mas dizer, por exemplo, “o seu juízo é tão torpe que Apolo, ao ouvi-lo, taparia as orelhas com cera de Ulisses” — ah, isso já é música!

Portanto, se o Benfica, esse clube de tantas glórias e façanhas, quer ser Águia entre as aves; se deseja que, com os seus voos, se aligeire a todas elas, de sorte a deixá-las vizinhas da terra ao mesmo passo que se aproxima do Céu; se aspira sublimar os seus desempenhos — deixando muito rasteiros todos os empenhos dos outros —, então convoque sem demora mestres de instrução para introduzir os seus dirigentes, treinadores e jogadores na augusta arte de invectivar com elevação.

Que Rui Costa, presidente reeleito e guardião dos pergaminhos, convoque as Musas do Estádio da Luz e recrute eruditos mestres de Literatura Portuguesa, para que as futuras ofensas se esculpam com a perfeita mão de Fídias e se delineiem com o traço certeiro de Apeles — umas cintilando como verso, outras inflamadas como sermão, e outras, enfim, destilando o aroma cortês da retórica e o perfume grave da oratória.

Se há-de haver insolências, então que haja variedade: umas barrocas, outras românticas, algumas simbolistas e, para as ocasiões mais dramáticas, um ou outro modernista devidamente inflamado.

Dessa sorte, se um língua-de-fel preferir um estilo à Gil Vicente, esse cronista das almas do povo, então erguerá o árbitro a personagem de moralidade e vociferará com teatral sarcasmo:

“Ó juiz de apito torto, filho bastardo da cegueira! Que inferno de alma é a tua, que nem o diabo te quer! Julgas justiça e semeias um escárnio mais torpe que a balança de Judas! Oh, criatura de chumbo, nem o diabo te emprestava as tenazes!”

Na eventualidade de o caluniador-de-pitons aspirar a herói das letras, elegendo Camões por patrono, o vitupério subirá ao tom da epopeia e daí descerá em trovões de decassílabos:

“Ó árbitro sem luz, de peito insano,
Que ao justo fazes dano por costume,
Trocas o apito em fado desumano,
E a lei de Deus traís sem queixume.
Se o Céu, que te vê, ouvir engano,
Cair-te-á na testa o próprio lume;
E em vez de glória, servo à cegueira,
Terás no inferno a vara extrema.”

Se ao desbocado-de-feira lhe agradar mais a verve do Padre António Vieira, será então mister erguer um púlpito sobre a relva, castigando o árbitro com a força da teologia e da oratória:

“Ó avantesma viva do juízo corrompido! Se Deus te fez homem, tu fizeste-te instrumento da iniquidade! O teu apito é trombeta de mentira; e quando o sopras, os anjos tapam os ouvidos com as asas! Maldito seja o som com que confundes o faltoso e o justo!”

Caso a escolha do vituperador-da-canelada recair em ardósia mais moralista — inspirada no tom sereno do Padre Manuel Bernardes — então poderá golpear o erro com mansidão edificante, embora a afronta venha a soar mais como homilia do que como ofensa:

“Senhor, a vossa consciência deve ser mais leve que o vosso sopro, e os erros que cometestes pesam mais do que o próprio jogo. Se apitais sem fé, é porque a perdestes; e quem perde a fé perde também o ouvido da razão. Digo-vos: sois pior que Pilatos, pois no apito final lavais as mãos em suor alheio.”

Se o escarnecedor de bancada se inclinar para o magistério de Bocage, o incendiário boémio do Sado, então brandirá as palavras como espadas, gargalhando entre rimas:

“Ó árbitro de choldra, vil soprista,
Que vendes justiça a preço de vista,
Se um dia assoprares pró Céu,
Deus te mandará directo ao breu.
E, lá chegado, hás-de escutar,
Mil demónios a t’apitar!”

Caso a doutrina estimada pelo trovador de maledicências seja a de Júlio Dinis, o romântico da candura, sempre haverá murmuração, mesmo se com ternura amarga:

“Senhor árbitro, perdoe-me o romantismo, mas o seu erro é tão constante que até nas aldeias os amores morrem ao ouvir o seu apito. Consigo, a justiça foge do campo como rapariga ofendida.”

Se a inspiração do tratante de bílis azeda vier de Camilo Castelo Branco, o cínico e febril de São Miguel de Seide, então apontará a pena como punhal, e a ofensa mostrar-se-á ao gosto de tragédia doméstica:

“Sois um génio, mas daqueles que apitam sem dor e castigam sem decoro. Fosse eu o juiz supremo, e vós seríeis réu — não pelas falhas cometidas, mas por fazerdes da burrice uma profissão liberal.”

Na hipótese de o chicote do maldizente estar afeito ao requinte de Eça de Queirós, com o monóculo da ironia e a frieza do bisturi, o agravo soará então como diagnóstico moral:

“Vossa Senhoria é uma notável alegoria lusitana: representa o zelo sem inteligência, a vaidade sem talento, o poder sem decoro. O vosso apito é a metáfora sonora da mediocridade terrena — uma espécie de burocracia em decibéis.”

Admitindo-se que o mestre escolhido pelo cuspidor de veneno seja Fernando Pessoa, haverá aí um campo infindável de vozes a vituperar, e cada heterónimo fará o seu dardo.

No caso de Álvaro de Campos, rugirá, eléctrico e desvairado:“Ah, homem! Tu és o ruído da injustiça, o vento podre do engano, o motor fumegante da vergonha humana!” Se estiver nos dias de Ricardo Reis, frio como mármore, ditará: “O erro é o destino dos homens; e o destino, cego, sopra o teu apito.” E se a hora for a de Bernardo Soares, arrastando melancolia, exclamará:“És um funcionário do erro, um arquivista da infâmia.”

Havendo ainda a hipótese de, na escola de predilecção do boca-de-víbora, estar Almada Negreiros, entre traços e raiva, o insulto virá certamente em linhas e ângulos cruzados:

“Ó Juiz do Apito! És o cubismo da injustiça! Um rectângulo de cegueira e uma esfera de tolice! Só não te rebento porque, oco, fugirias da geometria! Pim!”

Caso o caluniador do relvado resolva seguir a mão espiralada de José Saramago, com paciência para parábolas que se arrastam como sermões de penitência, assentes em vírgulas que dão volta e meia ao estádio antes do ponto final, as palavras deixarão de ofender para começar a revelar: não será já um grito ao apito, mas uma autópsia moral da sociedade. Assim, à maneira do Nobel, a invectiva tomar-lhe-á este tom:

“Ó árbitro que não vês e, no entanto, julgas, és o retrato exacto de um país inteiro, que fecha os olhos enquanto diz querer ver melhor, e assim apenas escreve a história das derrotas — não as do Benfica somente, mas daqueles todos, e tolos, que confundem o sopro com inteligência.”

E, finalmente, se a feição do cavaleiro da injúria for a de António Lobo Antunes, cansado da carne e da alma, a infâmia terá um tom clínico, triste de introspecção:

“Ó homem, se te desejasse rebentar agora, seria apenas para perceber se dentro de ti há alguma coisa que ainda apite — e que não seja o vazio. Tu nem és a solidão do erro; és o eco de um Deus bêbedo perdido em África.”

Eis, pois, a minha sugestão pedagógica: uma escola de literatura aplicada ao insulto do inculto, onde o Benfica cultivará dirigentes barrocos, treinadores realistas e jogadores lírico-decadentes — todos aptos a conceder opróbrios aos árbitros com estilo, cadência e alma.

A criação de tal academia não seria, convenhamos, perda para o futebol lusitano. Antes pelo contrário: seria a sua mais alta elevação estética desde a invenção do pontapé de trivela. Imagine-se o Estádio da Luz convertido em templo de humanidades, com os jogadores a recitarem injúrias em verso branco e os dirigentes a improvisarem epigramas ao quarto árbitro, enquanto o VAR, em vez de assistentes de vídeo, empregaria leitores do Instituto Camões.

E quem sabe se, nesse dia, as claques não trocariam o cântico tribal pelo coro alexandrino, e cada cartão amarelo seria sucedido de uma citação de Aristóteles sobre a moderação das paixões…

Não garanto, contudo, que a erudição evite mais cartões vermelhos, embora seja plausível que muitos árbitros, ignorantes das letras, nem percebam que estão a ser achincalhados — ou, vaidosos, julguem até estar a receber elogios. Mas, mesmo havendo expulsão, será ao menos uma vitória da língua — uma exclusão por excesso de literatura.

Adeus — e um piparote.

Brás Cubas