Há concertos que se assistem com os olhos e outros que se escutam apenas com o espírito — sobretudo quando o promotor decide que a lei é um incómodo. No caso do concerto dos Leprous, ontem em Lisboa, o espírito teve de bastar. A empresa Free Music, promotora do evento, achou preferível cometer dois crimes — obstrução à liberdade de imprensa e desobediência a entidade reguladora — a permitir que um jornalista fizesse o seu trabalho.
A promotora preferiu o arbítrio à transparência, a força à razão. E, paradoxalmente, acabou por oferecer à crítica o mais curioso dos desafios: escrever sobre um concerto que não se viu, mas que se sente, porque os Leprous são, em si mesmos, uma experiência sensorial que transcende a mera presença física.

Fundados em 2001 na Noruega, os Leprous são uma das bandas mais desafiantes e sublimes do metal progressivo contemporâneo — e, atrevo-me a dizer, um dos grupos mais sofisticados de toda a música moderna, independentemente de géneros.
A voz etérea e quase sobrenatural de Einar Solberg — que atravessa o barítono e o tenor lírico, com domínio absoluto dos falsetes e uma expressividade rara no metal progressivo, sobressaindo mesmo entre as batidas mais pesadas — e o virtuosismo desconcertante e inesgotável do baterista Baard Kolstad formam o núcleo de uma alquimia sonora que conjuga técnica, emoção e risco artístico em doses raras. Acompanhados por mais três guitarristas virtuosos (Tor Oddmund Suhrke, Robin Ognedal e Simen Daniel Børven), os Leprous são um daqueles casos em que a palavra “progressivo” deixa de ser etiqueta de prateleira e se torna programa estético.
Os Leprous vivem, porém, num território próprio: demasiado intensos para o mainstream, demasiado melódicos para o underground, demasiado humanos para o metal puro. Até fazem covers dos seus ‘patrícios’ de outra geração, os a-ha, com uma sonoridade desarmante. Talvez por isso permaneçam uma das bandas mais subestimadas da actualidade. Não lhes falta talento, nem catálogo, nem presença — falta-lhes, sim, a estrutura de promoção que o seu valor mereceria.

Embora façam tournées por esse mundo fora — esta, que se prolongará pela Europa até Fevereiro de 2026, sucedeu a outra pelas Américas, incluindo o Brasil —, actuam geralmente em salas pequenas, como se ainda não se tivesse reparado na dimensão da sua arte. E talvez a culpa resida em promotores de segunda divisão, como esta Free Music, que nem os sabe divulgar nem respeita quem os deseja destacar.
Mas falemos de música — a única justiça que importa. A minha relação com os Leprous começou tarde, em 2020, durante a pandemia, quando, perdido nas ondas do Spotify, tropecei no extraordinário ‘Live at Rockefeller Music Hall’, de 2016. Foi amor auditivo à primeira nota. Gravado em Oslo, o disco é uma aula de intensidade controlada: os arranjos intricados, a tensão emocional e a voz arrebatadora de Solberg transformam-no num dos mais notáveis registos ao vivo da última década.
O tema ‘Slave’ é, para mim, um dos momentos definidores da música moderna — uma mistura de dor, redenção e catarse que ouvi em loop durante meses (e ainda agora oiço), como se cada repetição acrescentasse uma camada de sentido. De forma profética, ‘Slave’ espelhou para mim o confinamento interior dos tempos pandémicos, quando cada quarto se tornou cela e espelho dos próprios demónios. A repetição de “Make your move / End it all” traduz o desespero de uma humanidade paralisada entre o medo e o desejo de libertação.
Regressemos ao álbum ‘Live At Rockefeller Music Hall’, descrito no próprio texto promocional da editora Inside Out Music com propriedade: “marks the first live release by groundbreaking Norwegian modern progressive metal group Leprous… this release proves the public acclaim to be well deserved.” E assim é. A gravação, misturada por David Castillo e masterizada por Tony Lindgren, capta a essência de uma banda que, em palco, se revela mais orgânica, mais tensa, mais viva do que em estúdio. E foi assim que este concerto me puxou para outros álbuns dos Leprous, numa sequência inevitável de descobertas.
E eis que chegamos ao presente, ‘Melodies of Atonement’, um original do ano passado, e ao novo ‘An Evening of Atonement’, já deste ano, um registo ao vivo no Poppodium 013, na cidade holandesa de Tilburg, uma das salas mais respeitadas da Europa, onde a banda celebrou uma espécie de reconciliação com o passado: 21 faixas que percorrem toda a carreira, desde o inaugural ‘Tall Poppy Syndrome’ até ao recente ‘Melodies of Atonement’. Falta-lhe — e é uma grande e imperdoável falha — ‘The Last Milestone’, um epílogo do álbum ‘Malina’ (2017), que nada tem de metal progressivo, mas que é, talvez por isso mesmo, de uma beleza emotiva que, além de tudo, demonstra a voz sobreatural e sobredotada (e o seu controlo absoluto) de Einar Solberg.
Lendo as críticas aos concertos recentes dos noruegueses, sei bem o que perdi, se Einar Solberg e os seus companheiros tiverem tido uma noite normal. Os jornalistas que assistiram às datas europeias descrevem-no como um espectáculo de contrastes, onde ‘The Price’, ‘Nighttime Disguise’ e ‘Slave’ alternam com as confissões melódicas de ‘Alleviate’, ‘Below’ e ‘Castaway Angels’; a vulnerabilidade de ‘I Hear the Sirens’ e ‘Distant Bells’ convive com a fúria de ‘Like a Sunken Ship’ e ‘Forced Entry’. Uma performance de cinco músicos no limite das suas capacidades — sem orquestrações nem adornos —, em que a emoção se impõe à produção. “A chave de um bom álbum ao vivo”, escreveu um crítico britânico, “é captar o poder do desempenho, e ‘An Evening of Atonement’ faz isso na perfeição.”
E é precisamente isso que eu esperaria ter visto em Lisboa: uma demonstração de técnica e entrega, uma comunhão sonora entre o cerebral e o visceral. Imagino Kolstad a incendiar o palco, como faz sempre, com aquela precisão que transforma a bateria num instrumento melódico, e Solberg a elevar-se sobre a multidão, quase como um pregador laico da melancolia. Imagino a alternância entre o recato e o delírio, a pulsação matemática e o arrebatamento emocional. Imagino — porque o promotor decidiu que a imaginação seria a única forma legítima de assistir ao concerto. E preferiu também ter de gastar tempo e dinheiro a responder por dois processos-crime.

Quanto a mim, aguardarei o regresso dos Leprous, que, em apenas cinco anos, actuaram pelo menos três vezes em Portugal. E quando voltarem, que tragam boa energia e arranjem outro promotor.
Porque se assim for, será sinal de que estão, enfim, a ascender ao patamar que há muito merecem: o dos músicos sérios com reconhecimento devido — porque trabalham com quem respeita o público, a imprensa e a música. E não com empresas de saldo, como a Free Music, que contam tostões e mesmo sobrevivem (mal, e com prejuízos em 2024) à custa de uma mediocridade que nem o eco de bandas magníficas consegue disfarçar.
Nota final: 5 em 5 (para os Leprous); 0 em 5 (para a Free Music)
N.D. O incidente ocorrido no concerto dos Leprous em Lisboa não é apenas um episódio lamentável de má gestão cultural: é um caso com contornos penais claros.
De acordo com o artigo 19.º da Lei de Imprensa (Lei n.º 2/99, de 13 de Janeiro), comete o crime de obstrução à liberdade de imprensa quem impedir, perturbar ou condicionar o exercício legítimo da actividade jornalística. A infracção é punível com pena de prisão até um ano ou multa até 120 dias, podendo ainda implicar responsabilidade civil por danos causados ao jornalista e ao órgão de comunicação social.
Paralelamente, o artigo 348.º do Código Penal define o crime de desobediência para quem recuse cumprir uma ordem legítima emanada de autoridade pública, neste caso uma deliberação vinnculativa e de efeitos imediatos da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. É uma infracção autónoma, punível com prisão até um ano ou multa até 120 dias, agravada quando a ordem desobedecida tem sanção expressa.
Acresce que o promotor impediu o trabalho de um jornalista devidamente identificado e não aceitou a deliberação mesmo na presença de dois agentes da PSP (Ricardo Tinoco, n.º 159029, e Miguel Marques, n.º 159426), que tiveram acesso à deliberação da ERC, o que constitui flagrante delito presenciado por autoridade policial. Esta ocorrência será também participada ao Ministério Público.
Podem muitos considerar que esta é uma obstaculização menor do acesso à informação. Não é assim – é um caso grave, porque consubstancia uma prática ilegal. Hoje num concerto, amanhã num teatro, depois num congresso partidário, a seguir no Conselho de Ministros, e por aí fora.
Obviamente, em novo espectáculo promovido pela Free Music, o PÁGINA UM solicitará uma acreditação que, se não concedida em tempo útil, levará a nova participação à ERC e a novas queixas-crime no Ministério Público se o acesso não for novamente permitido.
