A serena fúria de Luís Montenegro


PRÉ-VENDA na LOJA DO PÁGINA UM da obra CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS

(não inclui esta crónica inédita; para ler o prólogo e três crónicas do livro, veja aqui)

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A morte, meus caros vivos, tem um encanto que não vem do requiescat in pace, nem do rumor dos arcanos, mas da perspectiva que concede. Visto de baixo, o mundo passa a ser uma álgebra de tontices; visto de cima, uma aritmética de disparates. Entre o túmulo e o firmamento, passa-se a compreender ainda melhor que o homem — esse bípede de vaidades inflamáveis — não foi feito à imagem de Deus, mas à semelhança de um barómetro: varia conforme o tempo e o vento.

Dizia um certo sábio, talvez grego, que o homem, para se distinguir dos demais, quis parecer um animal racional. Mas eu, que já vi filósofos em lágrimas, generais em pânico e padres em apostas, inclino-me a pensar que se mede o homem — e qualquer donzela — não pela razão, mas pela turbulência das paixões que o atravessam. Na verdade, aquilo que separa o homem do boi não é a razão: é a retórica. O boi pasta, simplesmente, sem se emocionar; o homem, incapaz de se conter, pastoreia as suas emoções com argumentos.

Passei parte dos meus longos ócios póstumos a estudar a zoologia sentimental — um trabalho de entomólogo moral, mais próximo de François de La Rochefoucauld do que de Charles Darwin — e cheguei à conclusão de que a humanidade se divide, não por classes sociais, mas por espécies espirituais, que variam conforme a proporção de emoção e motivo que trazem no sangue. A emoção é o fogo; o motivo, o pavio. E há quem viva a arder sem saber porquê.

Permitam-me, pois, que vos apresente, plangentes donzelas e arrebatados cavalheiros, o resultado dessa investigação, baptizada com a solenidade que convém aos delírios científicos: Zoologia do Espírito Humano, em seis espécies — ou seis caricaturas, o que vem a dar no mesmo.

Primeira espécie: os Racionais Emotivos. São aqueles que raciocinam chorando — ou bufando de indignação —, os filósofos de lenço e punho cerrado. Constroem silogismos entre soluços ou imprecações e citam Kant com os olhos húmidos ou as veias do pescoço túrgidas. A lógica deles é uma elegia com surtos de fúria; o raciocínio, uma ópera em permanente crescendo. Confundem clareza com comoção e julgam que o argumento só é verdadeiro se arrancar lágrimas ou gritos à plateia. São os discípulos tardios de Rousseau e de todos os sentimentalistas inflamáveis, que acreditam que a emoção é o selo da verdade e a lágrima — ou o berro — a prova empírica da alma.

Segunda espécie: os Emotivos Racionais. Estes choram raciocinando — ou raciocinam em plena irritação contida —, o que não deixa de ser uma proeza. Conseguem transformar o soluço em argumento e a cólera em tese. Não confundem emoção com razão: casam-nas em regime de comunhão de bens, com acta notarial e assinatura reconhecida. São os cartesianos do coração, sentimentalistas de laboratório, que amam como quem redige um protocolo científico e se enfurecem com planificação estratégica. O pranto deles tem método, a ira tem bibliografia. Se forem traídos, elaboram gráficos; se forem correspondidos, fazem um relatório de impacto emocional. São capazes de quantificar o ciúme em percentagem e converter a dor em gráfico de barras — com uma citação de Kant no rodapé.

Terceira espécie: os Racionais Irracionais. Este grupo tem a lógica nos lábios e o caos no crânio. Por regra, confundem o raciocínio com vocabulário e a sabedoria com volume de voz. Falam como quem constrói um templo, mas o altar é de areia. São uns doutores em redundância e uns engenheiros do disparate. Quando dizem “a bem da Nação”, é sinal de que estão a escavar o abismo. Juram adorar a razão, mas tratam-na como amante clandestina: citam-na, mas não a seguem.

Quarta espécie: os Irracionais Racionais. Ah, esses são, para mim, os mais sublimes — e, por isso, os mais perigosos. Possuem a eloquência dos profetas e a prudência dos incendiários. Falam com o peso das tábuas da lei e pensam com a leveza de uma folha em vendaval. Assumem-se como santos, tecnocratas, ministros e outros apóstolos da certeza — missionários do absolutismo moral que confundem a inspiração divina com o despacho em Diário da República. Tomam o instinto por revelação e o decreto por dogma, e são capazes de citar Aristóteles para justificar uma isenção do IVA, ou Santo Agostinho para cortar subsídios aos desfavorecidos, ou até Platão para aumentar a tarifa da luz. Julgam-se intérpretes exclusivos da Verdade e, por isso, falam com a segurança de quem recebe ordens do Céu, mas com o vencimento pago pela Terra.

Quinta espécie: os Emotivos Imotivos. Nesta classe encontramos emoção farta, mas nenhuma motivação. São os inflamados da inércia, os entusiastas do repouso. Comovem-se com as grandes causas da Humanidade — desde que estas não exijam sair do sofá nem trocar o pijama. Pregam virtudes com a mesma eloquência com que evitam praticá-las. São os mártires da intenção, os heróis do pretexto: sofrem por tudo, mas nada fazem por nada. Por vezes, assinam petições, com esforço. A sua chama interior não aquece nem alumia — é uma fogueira sem lenha. Cansam-se da esperança antes de a pôr em prática e, quando a vontade desperta, já é hora da sesta. São os Oblómovs da moral, como o Ilía Ilich de Ivan Gontcharov: puros santos da apatia, com um ideal por dia e um bocejo por parágrafo.

Sexta espécie: os Imotivos Emotivos. Estes são o reverso dos anteriores, embora aparentados no fracasso. Se os emotivos imotivos se emocionam sem agir, estes emocionam-se sem sentir. São movidos por uma perpétua comoção, mas sem direcção — uma febre sem doença. A emoção neles é reflexa, quase muscular: indignam-se por hábito e comovem-se por contágio. Como adianta o conceito, não precisam de motivo relevante — basta uma manchete, um post, um rumor. A sua alma é meteorológica: muda conforme a previsão moral do dia. Choram ao pequeno-almoço e revoltam-se ao jantar, sempre por causas que esquecerão ao deitar. São o coro coral dos tempos modernos, os apóstolos da comoção instantânea. Dir-se-ia que o seu coração vibra em push notification, e que cada lágrima é patrocinada pelo algoritmo.

E, para que ninguém diga que estas categorias são mera abstracção teórica, apresento um espécime empírico — um caso de estudo digno da secção de curiosidades morais do além: um primeiro-ministro português, exemplar acabado da subespécie Racional Emotivo em estado de combustão cívica.

Após a divulgação de notícias pela CNN Portugal e pela revista Sábado — segundo as quais procuradores do Ministério Público consideram dever ser aberto um inquérito-crime sobre a Spinumviva, a sua empresa familiar —, Luís Montenegro ofereceu à Nação o espectáculo raro da fúria serena. Declarou-se “completamente tranquilo”, mas também “estupefacto e revoltado”. Disse esperar o “juízo do Ministério Público”, embora já o tivesse proferido em nome próprio. E, para selar a sua paz interior, exclamou três vezes “pouca-vergonha!”, como se a indignação, repetida em triplicado, tivesse virtudes purificadoras.

Foi um instante sublime da dialéctica emocional: o homem que promete calma em tom de trombeta mostra a serenidade feita trovão. Falou de “deslealdade processual” e de “manobras obscuras” e, num raro rasgo de filosofia, advertiu que a democracia tem vulnerabilidades — sobretudo quando alguém ousa investigar a sua empresa familiar.

Vede o sublime equilíbrio de um Racional Emotivo: “Estou completamente tranquilo”, disse ele, “embora absolutamente estupefacto e mesmo revoltado.” — uma tranquilidade que transpira histeria, mas com boa dicção. A frase, per si, constitui uma epifania lógica: o encontro do logos com o delírio, a síntese perfeita entre Buda e Aquiles. Aristóteles teria desmaiado de perplexidade; Santo Agostinho acrescentaria um capítulo às ConfissõesDa Ira dos Serenos; e Pilatos, que lavava as mãos em bacias, sorriria ao ver um político moderno lavar-se aos microfones.

Dir-se-ia que o vosso Montenegro encarna o espírito trágico dos tempos hodiernos: o governante que se julga um novo Cícero, mas fala como um Jeremias em campanha. É o racional emotivo na sua forma mais pura: pensa em cláusulas jurídicas e sente em chamas. Acredita na serenidade, mas só a pratica em estado de exaltação.

No entanto, reconheço em Montenegro uma estranha coerência — a coerência da incoerência universal. O homem moderno, seja político ou cidadão, vive agora condenado ao paradoxo de querer parecer racional para disfarçar o quanto é emotivo, e querer parecer emotivo para mascarar o quanto é calculista. Luís Montenegro é, pois, apenas o espelho polido dessa humanidade que se penteia diante do caos: tranquilo no verbo, vulcânico na alma; cartesiano na gramática, romântico na temperatura. A sua serenidade é uma forma superior de exaltação — como se o fogo, envergonhado de arder, se fizesse passar por cinza.

Mas o dilema do vosso primeiro-ministro é que o seu dialecto emocional já não encontra tradutores. Fala a língua dos Racionais Emotivos, mas o país está povoado de outras espécies. Nas cúpulas, abundam os Racionais Irracionais, doutorados em retórica e licenciados em disparates. Nos púlpitos e nas tribunas, multiplicam-se os Irracionais Racionais, visionários do expediente, que confundem fé com orçamento e dogma com decreto. Nas praças e nos ecrãs, campeiam os Emotivos Imotivos, inflamados de sofá, heróis do clique e do bocejo militante; e, a seu lado, os Imotivos Emotivos, almas meteorológicas que se indignam por reflexo, comovem-se por algoritmo e adormecem reconciliadas com a própria comoção.

O resultado é uma nação inteira entregue à zoologia do espírito: o Parlamento como um jardim de criaturas morais, o Governo e a oposição como um viveiro de contradições, e o povo — essa plêiade de corações fatigados — dividido nas redes sociais entre o entusiasmo e a apatia. Assim, o discurso político de Luís Montenegro nada mais é do que um hino à incoerência organizada: promete serenidade e pratica alarme; proclama racionalidade e cultiva histeria; invoca a verdade, mas só acredita no eco. Cada “pouca-vergonha” proferido em nome da calma é uma prece ao deus da turbulência.

E eu, do meu observatório póstumo, sorrio com indulgência e diversão, constatando que o vosso primeiro-ministro não é uma anomalia; é uma regularidade estatística da espécie. O seu “estou tranquilo, mas revoltado” ficará, talvez, como o novo lema da portugalidade — esse cata-vento que oscila entre a lágrima e o édito, entre o argumento e o grito, entre a serenidade que declama e a exaltação que pratica.

Adeus, e um piparote.

Brás Cubas