PRÉ-VENDA na LOJA DO PÁGINA UM da obra CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS (até 10 de Setembro)
(não inclui esta crónica; para ler o prólogo e três crónicas, veja aqui)
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Sou um defunto autor – digo-o sem modéstia, mas também sem vanglória, pois já não me resta carne para ser modesto nem vaidade para me gabar. A morte, ao contrário do que se supõe, não vos roubará o vício de observar os vivos: apenas vos concederá a deliciosa distância que permite rir dos seus desatinos sem remorso.
E que grande circo me cabe agora assistir, entre Fogos e Férias, neste país que há muito vive condenado a três letras fatigadas – Fado, Fátima e Futebol. Pois é: eis-me aqui a falar de uma nação que teve Camões a cegar para ver mais fundo, Sophia a dar voz ao mar, mas que agora, por perverso sortilégio democrático, se vê representada por um primeiro-ministro que, tendo escalado alto nos degraus da política, não logrou, todavia, elevar o espírito além da soleira da taberna. É um Ulisses sem Ítaca, um Édipo sem tragédia, um Salomão sem provérbios: chegou longe, sim, mas apenas na geografia dos cargos, enquanto na cartografia da inteligência permanece fiel a uma província desolada, onde as letras são ornamento supérfluo e a cultura um incómodo que convém confundir.

Falo-vos, claro, minhas argutas donzelas e perspicazes leitores, de Luís Montenegro, o homem que governa Portugal desde 2024, e que há semanas subiu ao Parlamento para encerrar um discurso com uma citação erudita. Ah, o velho truque da retórica: “como diz Sophia”, proclamou ele, e recitou a frase “Nós somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos”. Bonito, não fosse um pormenor: a frase era de Saramago, nos Cadernos de Lanzarote. Sophia quedou-se muda no jazigo em Carnide, as cinzas de Saramago gargalharam em Lanzarote, e Montenegro saiu como um novo Édipo de São Bento, furando os olhos da cultura sem sequer saber onde estava a faca.
Fácil se percebeu, por esta amostra risível, porque não há Ministério da Cultura neste governo. Para quê, se o próprio chefe não distingue a socialista Sophia do comunista Saramago? Já se mostrou temerário nomear um ministro da Agricultura que poderia confundir trigo com tremoço, ou uma ministra da Saúde que, mesmo com diploma de farmácia, prescreveu o encerramento de urgências para salvar vidas.
Montenegro, porém, supera essas caricaturas, fazendo da ignorância não uma falha, mas um princípio doutrinário. Naquele instante parlamentar, o país compreendeu: a confusão não é lapso, é método; a ignorância não é acidente, é programa; e a cultura, se resistir, será apenas por obra e graça do Espírito Santo – e nem sempre Ele está disponível para milagres tão repetitivos.

Aliás, Montenegro quer, à sua maneira, deixar marco na Cultura portuguesa. É verdade que outros governantes, em tempos idos, o fizeram erguendo, fundando, protegendo: D. Dinis criou a Universidade em 1290, legando ao reino um farol de saber; D. Manuel I mandou imprimir as primeiras grandes edições régias, introduzindo a tipografia como instrumento de poder e de conhecimento; D. João V, mesmo estroina, engrandeceu a memória nacional com a monumental biblioteca da Universidade de Coimbra, templo barroco do livro; e a rainha D. Maria II patrocinou a criação do Conservatório Real de Lisboa, que formou gerações de músicos e actores.
Montenegro, porém, não se inscreve nessa galeria de benfeitores: prefere a linhagem dos iconoclastas domésticos. Aproxima-se mais de Pombal quando, ao expulsar os Jesuítas em 1759, entregou a pilhagem das suas bibliotecas à voragem dos ratos e dos alfarrabistas; dos liberais de 1834 que, sob pretexto de modernidade, extinguiram conventos e dispersaram tesouros monásticos inteiros, vendendo incunábulos a peso de papel; dos republicanos iconoclastas de 1910 que, em nome da laicidade, serraram retábulos, destruíram imagens sacras e transformaram claustros seculares em armazéns ministeriais; ou ainda dos censores do Estado Novo, que fizeram da tesoura uma arma contra qualquer ideia demasiado alta. Para cúmulo, não esqueçamos os zelosos burocratas do século XIX que, com diligência de almoxarife, desfizeram códices e pergaminhos medievais como se fossem trastes inúteis, nem a voragem municipal do século XX que, no afã de “progresso”, deixou perder livrarias inteiras dos antigos colégios jesuítas de Coimbra.
É essa a marca que Montenegro deseja deixar: não a construção, mas a extinção; não o fomento, mas a erradicação; não a memória, mas o esquecimento. Assim ficará inscrito no panteão da vossa história cultural: não ao lado dos que edificaram universidades, bibliotecas e conservatórios, mas na fileira dos que, por cálculo ou tacanhez, reduziram a pó o património que lhes coube guardar.

Por isso, o seu Governo anuncia a extinção do Plano Nacional de Leitura e da Rede de Bibliotecas Escolares. Eis a pedagogia montenegrina: não havendo livros, não há erros de citação; não havendo bibliotecas, não há lapsos de memória; e não havendo leitura, não há risco de pensamento. É um regresso ao Éden, mas sem serpente nem maçã – apenas com a inteligência saloia como árvore da vida.
Dir-se-á que exagero. Não: este é o retrato fiel de uma pátria que transformou sabedoria em despesa e leitura em luxo. Recordo que Nero, diante do incêndio de Roma, tocava lira; Montenegro, diante da extinção da cultura, cita Sophia enquanto apaga Saramago. E se Átila deixou a Europa em cinzas, Montenegro prefere deixar os liceus em branco – páginas em branco, programas em branco, cabeças em branco. Montenegro prepara um vale branco de ignorância.
Muitas de vós, leitoras queridas, e muitos de vós, estimados leitores, concordarão comigo. Porém, ainda julgo que há algo para além da ignorância enraizada: há também aqui um cálculo político, uma prudência quase maquiavélica. Porque paira sobre São Bento uma presença larvar ainda mais temível do que a própria ignorância: a fantasmagoria literária de André Ventura.

Imaginem, senhores, que nas negociações com o Chega, entre a caça aos imigrantes e o fogo das serranias causadas pelos incendiários a condenar à prisão perpétua, Ventura exige que os seus livros, impressos em vanity press, figurem no Plano Nacional de Leitura. Um apocalipse pedagógico! Crianças de tenra idade a estudar A Culpa é do Benfica com a mesma solenidade com que se lê O Meu Pé de Laranja Lima. Adolescentes a sublinhar 50 Razões para Mudar para o Benfica, ilustrado com cartas astrais da Maya, como quem descobre a epopeia de Camões. Professores, de lágrimas nos olhos, a explicar que o herói da nova literatura nacional é um ciclista toxicodependente, seropositivo e ninfomaníaco que, no romance Montenegro, conquista a Volta a Espanha com a mesma bravura com que Ulisses conquistou Ítaca.
Vede, pois, o drama: adolescentes confundirem o protagonista do romance com o primeiro-ministro em exercício; ou pior, debaterem nas aulas a pérola venturiana intitulada A Última Madrugada do Islão, onde o palestiniano Yasser Arafat surge travestido de personagem gay, numa obra promovida por um académico nigeriano. Perante tais riscos, que faria um estadista prudente? Extinguir o Plano, claro está!
Notai bem – e convenhamos que lhe ameniza a incultura –, há aqui um gesto de génio disfarçado. Montenegro, ao abolir o Plano Nacional de Leitura, mata a leitura, sim, mas por um fim supostamente superior: salvar a pátria da leitura errada. Torna-se um Ulisses às avessas: finge loucura não para evitar a guerra de Tróia, mas para impedir que o cavalo venturista entre nas bibliotecas. No fim, protege a cultura não através do cultivo, mas arrancando-a, destruindo-a – é como se, para evitar os fogos rurais, a melhor solução fosse cortar todas as árvores, decepar todos os arbustos, ceifar todas as ervas para, em seguida, se alcatroarem montes e vales.

A História, ironicamente, até lhe dá alguma legitimidade. A Inquisição proibiu livros para salvar almas. Os liberais de 1834 pilharam conventos para “modernizar” a nação. Salazar preferiu estatísticas a poesia para elevar o produto interno bruto e manter súbditos dóceis. Montenegro, mais higiénico, não proíbe nem censura: simplesmente extingue. Assim como Faraó endureceu o coração contra Moisés, Montenegro endurece o espírito contra Sophia e Saramago. Em vez de tábuas da lei, oferece tabelas de Excel; em vez de profetas, relatórios trimestrais com protecção de dados garantida pela Spinumviva.
Portanto, se me perguntarem, direi: Montenegro é coerente. Melhor extinguir planos do que arriscar Ventura ver os seus volumes aprovados para leitura recomendada – ou obrigatória, às tantas. Melhor a desertificação total do que a floresta de papel contaminada pelo populismo. Eis a astúcia: ao matar a leitura, salva-se a inocência das criancinhas e dos adolescentes. É de mestre – mestre ignorante, mas mestre.
Adeus, e um piparote.
Brás Cubas