Na Rīgas Doms, uma hora entre tubos e eternidade

Deambular por Riga é um prazer de altos rendimentos: histórico, arquitectónico e sensorial, sobretudo no Verão — ou melhor, no Verão, porque no Inverno ignoro como seja —, quando a luz se estende até depois das 22 horas e os cafés ao ar livre vibram com línguas que, imagino, vêm de todos os cantos do mundo.

Era isso que fazia — perambulava — pelas ruelas medievais e praças seculares desta cidade báltica, com um olhar ora absorto nas fachadas de inspiração germânica, ora atento aos movimentos do presente.

Deparo-me, porém, junto à Catedral de Riga, com um concerto de música rock — vejo, mais tarde, tratar-se de um festival organizado por uma empresa local, que decidiu este ano abrir o espectáculo à cidade.

Saio dali pouco depois de ter despejado, inadvertidamente, parte de uma garrafa de água com gás sobre a minha t-shirt, e começo a contornar a imponente Rīgas Doms. Dou então por mim a menos de meia hora do início de um recital de órgão.

O dilema era real: valeria a pena interromper a caminhada para “gastar” uma hora dentro de uma catedral — ainda que grandiosa — a ouvir música que não saberei decifrar tecnicamente? Havia ainda o detalhe do bilhete: vinte euros. Aqui, ao contrário de certas instituições culturais portuguesas, que estendem credenciais aos jornalistas como quem oferece rebuçados, não se fazem favores de última hora.

A ponderação económica impôs-se: de um lado, a continuidade da exploração urbana — gratuita, imprevisível, luminosa; do outro, a hipótese única de assistir a um recital integrado no 38.º Festival Internacional de Música de Órgão de Riga, com um instrumento histórico e uma intérprete consagrada. Qual o custo de oportunidade? A pergunta que qualquer economista faria. E a resposta pareceu-me quase óbvia: seria um desperdício não arriscar.

A compra do bilhete foi, assim, uma decisão racional — e, como haveria de constatar, também sensorialmente acertada. Primeiro, porque o instrumento em causa era o órgão construído em 1884 pela célebre firma E. F. Walcker & Co., tido como o mais inovador do mundo à data da sua inauguração.

Não sendo um entendido — muito pelo contrário —, as suas características impressionam: quatro manuais, 124 registos, 17 combinações de registos, um pedal de crescendo, 26 foles e um total de 6718 tubos. Um colosso romântico. Descubro online que mede 22 metros de altura, por 11 de largura e 10 de profundidade — e a sua imponência, mas também beleza, são de uma teatralidade solene, como se a própria arquitectura do som ali ganhasse corpo de pedra e fôlego divino.

A sua história está ainda ligada ao próprio Franz Liszt, que terá composto o arranjo coral “Nun danket alle Gott” — “Agora agradecemos todos a Deus” — para a inauguração do instrumento.

E por falar em Liszt, ele era um dos três compositores do programa da noite. Os outros dois: Felix Mendelssohn e Louis Vierne. Mendelssohn, prodígio alemão, foi dos primeiros a redescobrir e divulgar a obra de Bach, escrevendo música de apurada clareza e fervor protestante.

Liszt, o virtuoso húngaro, criador do poema sinfónico, exprime na sua música para órgão um dramatismo quase litúrgico. Vierne, francês, organista titular da Notre-Dame de Paris, compôs algumas das obras mais densas, visionárias e comoventes do repertório organístico do século XX — mesmo sendo cego desde a infância.

Quanto à intérprete, Liene Andreta Kalnciema, é natural da Letónia, mas a sua carreira está também estabelecida na Alemanha. Laureada em diversos concursos internacionais — entre eles o Petr Eben, na República Checa, e o Wadden Sea, na Dinamarca —, percorreu já salas e igrejas da Suécia, Canadá, Espanha, Bélgica e Polónia.

No folheto não constava qualquer passagem por Portugal, apesar de termos também órgãos belíssimos, como os da Igreja de São Vicente de Fora e da Basílica da Estrela, em Lisboa. Desde 2006, é presença regular nas actividades musicais da Catedral de Riga.

E nesta noite, embora uma pequena câmara permitisse aos espectadores acompanhar, num ecrã discreto, os movimentos firmes e silenciosos de Liene Andreta Kalnciema — mãos ágeis, pés exactos, gestos contidos —, a experiência manteve-se profundamente envolta num mistério acústico. Porque, ainda que se vislumbre a intérprete por vários pequenos ecrãs distribuídos pela nave da catedral, a música não se entrega ao olhar: impõe-se pelo espaço, pelo eco, pela vibração.

Em todo o caso, para um neófito como eu, as imagens revelavam também algo de insólito: ao lado da organista, surgia, quase imóvel mas vigilante — embora por vezes se movesse de um lado para o outro com agilidade —, uma figura auxiliar. Uma espécie de segundo cérebro e terceiro braço, cuja função não se limitava a virar páginas, mas incluía mudar registos, accionar combinações, antecipar intenções. A música, percebemos então, é ali fruto de uma simbiose silenciosa.

O órgão, por vezes, parece um murmúrio subterrâneo de catedrais soterradas; noutras, um exército de trombetas celestes em alvorada litúrgica; e, ainda noutros instantes, assemelha-se ao resfolegar de um titã adormecido, prestes a erguer-se em colunas de som. Escutá-lo foi como assistir a um ritual antigo, em que a matéria sonora, mais do que compreendida, é sentida com o corpo inteiro.

Houve momentos em que o som parecia brotar do subsolo da catedral, como se cada tubo fosse uma raiz a conduzir o espírito para dentro da terra; noutros, o som erguia-se como cúpula, abraçando a nave e elevando os ouvintes até zonas sublimes da emoção. Para quem não é especialista — como é o meu caso —, valeu a experiência pela sensação de tempo suspenso e de contemplação. Não é todos os dias que se escutam, de uma só vez, três gigantes do romantismo europeu em diálogo íntimo com uma catedral de pedra e eco.

E se a dúvida inicial era entre continuar a deambular ao ar livre ou ceder à sedução de uma hora sob um tecto sacro, a resposta veio em forma de recompensa estética. Saí da catedral com as pernas descansadas, sim, mas sobretudo com o espírito mais pleno. O preço do bilhete, afinal, foi barato para o que se ganhou: beleza, grandeza e silêncio — esse silêncio precioso depois do último acorde, quando ninguém ousa aplaudir por alguns segundos, como se o tempo, enfim, tivesse de pedir licença para voltar a avançar.

Por vezes, vale a pena entrar para dentro das coisas. Mesmo em Riga. Mesmo com sol.

Nota final: 4 em 5.