Sporting 1.1


Regressei ao derby contra o Sporting como deve regressar um benfiquista dos tempos modernos: sem grande fé, sem grande expectativa e com aquela teimosia quase antropológica de quem acredita que, um dia, talvez veja um jogo inteiro do início ao fim. Na época passada perdi meia parte do jogo — e a paciência com o Metropolitano, que decidiu tirar uma folga nesse dia, obrigando-me a ir de Uber. Nada mais humilhante para um cidadão que ainda acredita nos transportes públicos do que chegar à Luz dentro de um Toyota híbrido.

Este ano, como manda a tradição, voltei a não ver o início. Mas, justiça seja feita, não por culpa da engenharia soviética do Metropolitano de Lisboa. Não — desta vez a responsabilidade foi inteiramente do Benfica, que decidiu encerrar a Porta 30, o acesso habitual dos jornalistas. Talvez para testar a nossa resiliência física, talvez para demonstrar que a orientação espacial também deveria contar na estatística.

Eu e mais uns quantos jornalistas lá fomos, como peregrinos enganados, conduzidos até à Porta 11-D, uma entrada que, sinceramente, ficaria melhor num parque temático ou num túnel de fuga de um parque eólico. A partir daí seguiu-se a travessia épica pelos subterrâneos da Luz: corredores intermináveis, rampas, portas que só abrem com códigos e — deixemos esta parte ficcionada, porque o parque é como todos os parques subterrâneos do mundo —, para terminar, negociações diplomáticas com um segurança que tinha, naquele momento, mais poder do que o Pedro Gonçalves no lance do golo aos 12 minutos. Que, claro, também não vi.

A verdade é que perdi mais de meia parte da primeira parte. Não vi o golo do Sporting, essa oferta generosa da defesa benfiquista. Não vi o empate embrulhado de Sudakov, que — dizem — terá empurrado a bola quase por acidente, mas não há acidentes estatísticos: a bola entrou, logo vale. Mas vi, isso sim, algo que a esmagadora maioria dos 65.247 espectadores não viram: os subterrâneos da Luz. E devo confessar algo que nunca pensei formular publicamente: são deslumbrantes.

Porque, ao contrário do que se passa à superfície — onde o Benfica insiste em alternar entre jogos sofríveis e empates que oferecem vantagem ao Porto —, nas catacumbas chega-se à conclusão de que Portugal é afinal um país eficientíssimo, um país rico. Riquíssimo! Uma potência que só não aparece nos relatórios da OCDE porque, aparentemente, eles nunca foram ao piso -3 do Estádio da Luz. Ali, onde o PIB tem forma de berlina alemã, percebe-se verdadeiramente a distribuição do rendimento: desigual, sim, mas muito fotogénica.

Enquanto atravessava o parque subterrâneo — esse Olimpo automóvel onde a cilindrada é argumento moral — dei por mim a reconsiderar décadas de análise económica. Não há crise em Portugal. Não há austeridade. Não há salários estagnados. Tudo isso é ficção literária. A realidade estava ali, luzidia: BMWs e Mercedes como quem colecciona cromos, Teslas a brotar como orquídeas de estufa, e até um punhado de Range Rivers, Porsches, Ferraris e Maseratis estacionados com a displicência de quem encosta um Fiat Punto em Santo Amaro. No meio da opulência, encontrei um Smart, encolhido, constrangido, quase a pedir desculpa por existir. O dono, creio eu, deve ser alvo de intervenção psicológica urgente.

Quando finalmente cheguei ao elevador de serviço — após vencer portas, rampas e um segurança que exigiu mais explicações do que um juiz de instrução — e mordisquei o meu farnel, o jogo ia embalado para o intervalo. Sentei-me e percebi que o futebol português continua a oferecer aquilo que melhor domina: imprevisibilidade organizativa, golos que perco sistematicamente e uma sensação de déjà vu que Freud teria prazer em facturar.

Na segunda parte, observando um jogo de caca, percebi algo extraordinário: o desfile automóvel tinha sido infinitamente mais emocionante do que o próprio derby. O Benfica dominou mas não convenceu; o Sporting respirou mas não existiu; e Prestianni tratou de acrescentar irritação à noite sendo expulso ao minuto 90,para que os descontos fossem em sofrimento. Resumindo: um empate tão útil para o Benfica e para o Sporting quanto um saco de moedas de chocolate numa reunião do FMI.

No fim, embora continue sem perceber a decisão de encerrar a Porta 30, reconheço que, ao cabo e ao resto, ofereceram-me material para reportagem. Fosse outro jogo menos relevante, teria ficado ali, no piso -3, a fazer um levantamento sistemático deste fenómeno sociológico: um país pobre ao ar livre e riquíssimo no subsolo.

Se na próxima vez me obrigarem a repetir a romaria pelos corredores subterrâneos, farei então o inventário exaustivo daquela fauna mecânica. Quem sabe se não encontrarei um Koenigsegg tímido atrás de um pilar, à espera pacientemente do próximo derby — e de nós, peregrinos ludibriados da Porta 30.