A simetria perfeita do rosto. A tez pálida, quase translúcida. Os cabelos castanhos-claros e ondulados a emoldurar delicadamente a face. Um ser etéreo.
Poderia ser um anjo. Se existirem, este é certamente o retrato de um deles.
O absoluto oposto das robustas figuras barrocas. Leve, longilíneo.
Adivinho-lhe o toque da pele: suave, fresca, infantil. Uma pureza imaculada, que nem o batom vermelho e a sombra azul- que adivinho decalcados da Marilyn de Andy Warhol – conseguem profanar.
Boina francesa, cinzento-escura. Um casaco curto, azul-marinho, aberto sobre a blusa de riscas largas, azuis e brancas. Calças soltas. O corpo ligeiramente inclinado, apoia-se sobre a frágil grade que delimita o terminal rodoviário.

É presença absoluta e, paradoxalmente, ausência também.
Dono de uma segurança que desarma. Sereno. Fuma, lenta e sedutoramente, pela boquilha.
Sabe que está a ser observado. E há, nos seus mais ínfimos movimentos e expressões, a naturalidade de uma coreografia ensaiada ao milímetro.
Criatura feita de contradições e, ainda assim, celestial.
– És tão belo Tadzio. Tão belo! – penso.
Olho em volta. Procuro Aschenbach. A estação está cheia. Encontro-os: um, outro, depois outro… e ainda aquele ali.
Tantos.
Dirijo novamente a minha atenção para Tadzio. Também ele procura. Imagino que aqui esteja todos os dias. Que faça parte desta paisagem, embora completamente deslocado no meio dos turistas vestidos sem qualquer aprumo, a arrastar ruidosamente os tróleis, mochilas às costas, mãos insuficientes para os sacos de lembranças, um cannolo comprado no último minuto, cartões de crédito, bilhetes…

No meio desta desordem, ele: a imagem da harmonia.
Pressente-me. Interroga-me com o olhar. E, ao mesmo tempo que me questiona, ignora-me generosamente.
Para meu deleite: a mesma pose, os mesmos meneios, a mesma expressão.
O anjo sedutor sabe o quanto é belo.
É pouco mais que uma criança. Rói-me por dentro a curiosidade: Por que está aqui? Existe para além deste lugar? Quem é, afinal?
Ávida de respostas, busco em vão Thomas Mann, mas na nossa direção caminha apenas Aschenbach. Trocam um breve olhar e partem os dois. Aflige-se o meu coração de mãe:
– Não vás! – suplico.

Ouço hoje a notícia da sua morte.
Tadzio faleceu aos setenta anos, dizem.
Nem imaginam como se enganam.
Os anjos não morrem.
Caem.
Mas não morrem.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
