Fisco ignora tribunais e insiste em ‘rapinar’ herdeiros


Numa espécie de faroeste fiscal, a Autoridade Tributária (AT) decidiu tornar-se um ‘fora-da-lei’ e recusar cumprir um acórdão peremptório do Supremo Tribunal Administrativo (STA), de Abril deste ano, relativo a mais-valias de quinhões de herança.

Herdeiros em situação em tudo idêntica à que foi alvo do acórdão do STA estão a ter de pagar mais-valias ao Fisco na venda da sua parte em herança em imóveis, num caso evidente de incumprimento da lei por parte da AT. As queixas de contribuintes têm ido parar aos tribunais, mas nem sentenças recentes a dar razão aos lesados pelo Fisco demovem a AT de manter a prática ilegal.

Isto porque, na venda de quotas herdadas em imóveis, o Fisco continua a optar ilegalmente por tratar os herdeiros como co-proprietários quando, segundo o acórdão do STA, a participação dos herdeiros no acto de venda “é a título da sua qualidade de herdeiro e titular dos direitos inerentes, e não como contitular do direito de propriedade sobre esse bem”.

Mas, como entendeu o STA, “alienar um direito sobre um património autónomo (herança) não é a mesma coisa do que alienar um direito de propriedade ou afim sobre um mais imóveis, mesmo que a herança seja constituída apenas por imóveis e não estando a alienação de herança prevista na norma de incidência das transmissões de direitos sobre imóveis não é possível tributá-la em sede de categoria G em IRS por força do princípio da tipicidade da lei fiscal”.

Além dos processos que correm em tribunal contra a AT, as queixas de herdeiros a quem o Fisco cobrou mais-valias indevidamente têm também chegado à DECO-Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor.

O Juiz Conselheiro Jorge Aragão Seia, presidente do STA. / Foto: D.R. | STA

A jurista Carla Dourado, do Gabinete de Proteção Financeira da DECO, indicou ao PÁGINA UM que “a interpretação da AT [do acórdão do STA], veiculada através de um ofício circulado, tem gerado litígios, com os contribuintes a impugnarem judicialmente liquidações adicionais de IRS, muitas das quais têm sido anuladas pelos tribunais arbitrais”. Apontou que decisões judiciais, adoptadas depois do acórdão do STA, deram razão aos a herdeiros lesados, designadamente uma adoptada a 3 de Junho e outra a 13 de Agosto.

O caso julgado pelo STA referia-se a um herdeiro de “uma quota ou quinhão hereditário” de um prédio urbano. Este herdeiro, “por meio de escritura pública de compra e venda, procedeu à transmissão do seu quinhão hereditário do prédio”, em Setembro de 2014. Ou seja, “conjuntamente com os restantes herdeiros, do dito prédio, procederam à venda do imóvel na sua totalidade, sendo que cada um dos alienantes recebeu a sua parte do valor da venda, de acordo com a sua quota, conforme consignado em escritura pública”.

O imóvel foi vendido por 160 mil euros e o herdeiro recebeu o montante de 13.309 euros, referente à sua parte. As despesas da escritura, foram imputadas a cada um dos herdeiros na proporção do seu quinhão. O Fisco cobrou ilegalmente mais-valias a este herdeiro, o qual “apresentou reclamação graciosa [junto da AT] contra a liquidação e pagamento das mais-valias, tendo a mesma sido indeferida por despacho de 13 de Dezembro de 2016”.

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Foto: D.R.

O STA entendeu, na apreciação desta situação, que “no caso concreto estamos perante a alienação de imóvel que integra a herança indivisa (sendo a nosso ver despiciendo que se trate do único bem da herança), sendo que a participação dos herdeiros no ato de venda ao abrigo dos citados normativos é a título da sua qualidade de herdeiro e titular dos direitos inerentes, e não como contitular do direito de propriedade sobre esse bem”. Ou seja, o STA considerou ser incorreta a afirmação de que o contribuinte “é herdeiro de uma quota-parte do imóvel e nessa qualidade detém um direito real sobre o respetivo imóvel”.

Segundo o STA, “na verdade, com a venda do imóvel este bem é substituído na herança pelo produto da sua venda, o qual será objecto de partilha (conjuntamente com outros bens se houver) de acordo com as regras da sucessão e não com base numa pretensa contitularidade do imóvel”. Entendeu, “assim, que a transmissão pelos herdeiros de imóvel que faz parte de herança indivisa não consubstancia “alienação onerosa de direitos reais” para os efeitos do disposto na previsão da alínea a) do nº1 do artigo 10º do CIRS, e nessa medida não são apurados ganhos tributáveis na esfera jurídica dos herdeiros”.

Mas o Fisco tem mostrado recusa em cumprir o acórdão do STA, o que tem deixado contribuintes lesados atónitos com as respostas que recebem da AT indeferindo os seus pedidos de devolução de mais-valias cobradas sobre venda de quinhão de herança.

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Foto: D.R.

A AT tem procurado, de várias formas, incumprir com este acórdão. Em algumas situações, tem recusado a devolução a herdeiros de mais-valias cobradas invocando o facto de, na escritura de venda do imóvel, não constar que se transmitiu o direito de um ou de vários herdeiros à herança ou ao quinhão hereditário como um todo. Ou seja, mesmo quando na escritura consta que uma quota do imóvel era detida por herdeiros (de um falecido que detinha essa parcela), o Fisco aproveita para sacar milhares de euros aos contribuintes.

Ora, o acórdão do STA foi claro. Também a jurista Carla Dourado, da DECO, não tem dúvidas: “da nossa interpretação do referido acórdão resulta claramente que a alienação de quinhão hereditário não configura alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis, nos termos do artigo 10º, nº 1, alínea a) do Código do IRS”.

O que os contribuintes lesados podem fazer perante a recusa da AT em cumprir a lei? Neste caso, a jurista da DECO recomenda que os contribuintes iniciem “um pedido uma revisão oficiosa do IRS relativo aos anos em que foram tributadas as mais-valias, por carta registada ou por e-mail, dirigidos ao chefe do serviço de Finanças da área do seu domicílio fiscal, enviando documentação de suporte e fundamentando o seu pedido no acórdão uniformizador de jurisprudência do STA”.

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Foto: D.R.

Recorda que, se o contribuinte “não receber uma resposta dentro de quatro meses, considera-se que o pedido não foi aceite” e, “nessa altura, pode contestar através de recurso hierárquico, recurso contencioso ou impugnação judicial”. Pode recorrer ao CAAD, Centro de Arbitragem Administrativa, “que é entidade competente para dirimir conflitos em matéria tributária, permitindo aos contribuintes recorrerem a este centro de arbitragem quando discordem de certas decisões da AT”.

Também salientou que “o acompanhamento destas situações deve ser feito por um advogado que possa acautelar os direitos e legítimos interesses” dos contribuintes. Caso o contribuinte não tenha meios financeiros para contratar um advogado, “deve recorrer ao apoio judiciária via Segurança Social que permite o acesso à proteção jurídica a quem não tem meios económicos para suportar os custos de um processo judicial”. Este pedido pode ser feito online, através da Segurança Social Direta, ou presencialmente em qualquer serviço de atendimento.

Mas enquanto os processos de contribuintes lesados se arrastam na Justiça, com a AT a andar de recurso em recurso, o certo é que o dinheiro das mais-valias cobradas já “voou” para os cofres do Fisco, que continua impunemente a fingir que não consegue ler o que está na lei.

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A AT tem cobrado de forma abusiva mais-valias a herdeiros quando quem vendem as suas quotas herdadas de imóveis. / Foto: D.R.

Este não é o único caso de desobediência à lei e atropelo de acórdãos de tribunais por parte de entidades do Estado. Mas tratando-se da AT, é uma situação que tem deixado contribuintes desorientados quando se dão conta de que terão de gastar dinheiro e tempo para fazer com que o Fisco cumpra efectivamente a lei.

Esta atitude da AT arrisca também ser vista como um sinal de que vale tudo neste “faroeste” em que, mesmo quando a lei é clara, vale sempre a pena tentar contorná-la, sobretudo quando um “xerife”, como é o Fisco, se torna ele próprio num “fora-da-lei”. Ou melhor, quando se assume como um verdadeiro Xerife de Nottingham, que saca todos os impostos, os devidos e não devidos.