Incompatibilidade: vice-presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social anda a esconder empresa há quatro anos


O vice-presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), Pedro Correia Gonçalves, está a exercer funções em situação de incompatibilidade por ser sócio-gerente de uma empresa de consultadoria criada em 2021. Na verdade, a grave condição de incompatibilidade — que, por lei, pode implicar perda de mandato — verifica-se desde há quatro anos, uma vez que, antes de tomar posse como vice-presidente da ERC, Correia Gonçalves — considerado um protegido de Aguiar-Branco, presidente da Assembleia da República — já exercia o cargo de director executivo da ERC, equiparado a director-geral, portanto um alto cargo público.

De acordo com a investigação do PÁGINA UM, Pedro Correia Gonçalves — que durante anos perambulou por gabinetes ministeriais e foi consultor na sociedade de advogados fundada por Aguiar-Branco — constituiu, em 14 de Maio de 2021, a Noble Ventures, como sociedade unipessoal, ou seja, sendo sócio único e gerente. Nessa data acumulou, desde logo, uma incompatibilidade séria que, se conhecida, teria levantado problemas de imediata apreciação. Recorde-se que, desde 14 de Abril de 2018 — saído, no dia anterior, das funções de assessor do PSD na Assembleia da República, onde estava desde 2016 — assumira funções de director executivo da ERC, cargo com estatuto de dirigente de 1.º grau.

Pedro Correia Gonçalves.

Ainda que o objecto social da empresa não se apresentasse explicitamente ligado à comunicação social, a incompatibilidade era evidente. O estatuto do pessoal dirigente — aplicável ao director executivo, equiparado a dirigente de 1.º grau — determina um regime de exclusividade, impondo “a renúncia ao exercício de quaisquer outras actividades ou funções de natureza profissional, públicas ou privadas, exercidas com carácter regular ou não, e independentemente da respectiva remuneração”. As excepções possíveis — ensino ou palestras — carecem de autorização superior e, em qualquer caso, não podem ser prestadas através de empresa detida pelo próprio.

Mais grave é a manutenção da empresa após Novembro de 2023, data em que Pedro Correia Gonçalves tomou posse como membro do Conselho Regulador da ERC, por indigitação da Assembleia da República sob proposta do PSD. Aqui, as incompatibilidades resultam expressamente do Estatuto da ERC, que remete para o regime aplicável aos titulares de altos cargos públicos e estabelece que, durante o mandato, “não podem exercer qualquer outra função pública ou actividade profissional, excepto o exercício de funções docentes no ensino superior, em tempo parcial”.

Apesar disso, durante toda a existência da Noble Ventures, Correia Gonçalves jamais fez menção pública à empresa, nem tão-pouco os seus superiores, no período em que foi director executivo, tinham conhecimento formal da situação. Em diversos currículos, o actual vice-presidente omite ser detentor e gerente de uma sociedade unipessoal. E nem sequer fez qualquer menção a essa actividade empresarial, incompatível, quando foi ouvido na Assembleia da República quando foi ouvido pelos deputados.

Contactado pelo PÁGINA UM, Pedro Correia Gonçalves recusa qualquer “incompatibilidade jurídico-legal” — o que não corresponde à realidade — e afirma que “a referida sociedade foi e encontra-se devidamente referenciada na declaração entregue junto do Tribunal Constitucional”. Também aqui surge uma incongruência difícil de explicar para quem é jurista: actualmente, quem recebe as declarações de rendimentos e património dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos é a Entidade da Transparência, sediada em Coimbra, e não o Tribunal Constitucional. Acresce que o PÁGINA UM solicitou acesso ao registo do vice-presidente da ERC junto da Entidade da Transparência, mas o documento não está disponível para consulta, aguardando-se esclarecimentos sobre os motivos dessa indisponibilidade.

Sobre o facto de não constar em nenhuma biografia a actividade empresarial iniciada em 2021, Correia Gonçalves limitou-se a dizer que “no currículo público constam as referências que o respectivo titular [ele] considera relevantes”. O PÁGINA UM não perguntou se, nos currículos privados do vice-presidente da ERC, as referências à existência da Noble Ventures já são facultadas para eventualmente efeitos de propostas de serviços presentes ou futuros.

O vice-presidente da ERC — entidade cuja missão inclui exigir transparência e detectar incompatibilidades no sector dos media — também não se mostrou expansivo quanto à natureza dos serviços prestados pela sua empresa, acabando por indicar apenas que se situariam “no âmbito da área académica”, isto é, “na área jurídica”. Correia Gonçalves recusando divulgar que tipo de trabalhos realizou e quais os clientes, alegando que estes “estão abrangidos pelo sigilo profissional.”

Membros do Conselho Regulador da ERC. Da esquerda para a direita: Helena Sousa (Presidente), Pedro Correia Gonçalves, Carla Martins, Telmo Gonçalves e Rita Rola.

Porém, o objecto social registado da Noble Ventures é, na verdade, muito mais vasto e vago, conforme constatou o PÁGINA UM: “consultoria de gestão e de negócios; gestão e prestação de serviços administrativos; gestão de investimentos; consultoria, marketing e eventos; arrendamento de bens imobiliários; formação; compra e venda de bens imobiliários, incluindo compra para revenda, e realização de estudos”. A inclusão de marketing e organização de eventos — áreas também exploradas por órgãos de comunicação social — agrava a incompatibilidade.

Por fim, Pedro Correia Gonçalves assegura que a Noble Ventures “não tem actividade de facto desde Novembro de 2022”, afirmação que não é verdadeira e surpreende tratando-se de argumentos de alguém da área jurídica, fazendo lembrar o caso de Manuel Pizarro quando tomou posse como ministro da Saúde no final de 2022. Em causa estava então uma empresa de consultadoria que, apesar de não ter receitas recentes, era utilizada pelo socialista para registar despesas pessoas, abatendo lucros acumulados sem pagar IRC — expediente ilegal, pois as despesas empresariais pressupõem sempre actividade efectiva, mesmo que seja investimento. Manuel Pizarro acabou por dissolver a empresa pouco tempo depois de entrar em funções.

No caso da Noble Ventures, trata-se de uma microempresa com receitas apenas nos dois primeiros anos (2021 e 2022) — o que já colocaria Pedro Correia Gonçalves à margem da lei, por acumular actividade privada sendo director executivo. Em 2021, segundo contas anuais consultadas pelo PÁGINA UM, a sociedade facturou quase 24 mil euros, fechando o ano com lucro de 18 mil euros. Em 2022 registou ainda cerca de 1.500 euros de proveitos e iniciou a erosão desses lucros. Nas contas de 2023 e 2024, a empresa serviu sobretudo para pagamento de despesas pessoais de quase 4.000 euros, mantendo ainda cerca de 15 mil euros em depósitos bancários em nome da sociedade.

Registo da criação da Noble Ventures quando Pedro Correia Gonçalves já era director executivo. O actual vice-presidente recusa revelar os clientes.

Mas tal não com a Nobel Ventures que agora serve para despesas pessoais do vice-presidente da ERC que até confesso que não tem actividade, logo acaba implicitamente por admitir que coloca na contabilidade activa despesas pessoais. E mesmo tratando-se de montantes modestos, a questão legal intromete-se ainda a parte ética, de enorme gravidade.

“A lei não exige lucro para haver incompatibilidade: basta a existência de gerência activa, gestão de contas bancárias ou despesas registadas para se configurar exercício de actividade profissional privada, incompatível com o regime de exclusividade imposto a quem dirige ou regula a comunicação social portuguesa”, sublinha um jurista ouvido pelo PÁGINA UM, lembrando que Pedro Correia Gonçalves “é um jurista e vice-presidente de um regulador com especiais deveres de fiscalização e transparência”. E conclui: “Se se exige transparência aos regulados, maior tem de ser a transparência do regulador; e, quando um dirigente mantém empresa activa, a perda de mandato não é figura retórica — é a consequência que a lei prevê.”