PRÉ-VENDA na LOJA DO PÁGINA UM da obra CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS
(não inclui esta crónica inédita; para ler o prólogo e três crónicas do livro, veja aqui)
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Por meu beneplácito, consenti que um defunto autor, dado a reminiscências filosóficas e a más inclinações literárias, execute hoje um serviço de utilidade pública: um tratado breve — brief, como agora se diz — sobre a divina arte de falar depressa, alto e pomposo, sem necessariamente dizer coisa alguma.
A modernidade baptizou este rutilante fenómeno de lightning talk — mas que, entre a portugalidade, por esse ardor de tradução que tudo estraga e nada melhora, já se viu grafado lightening, que é clareamento de pele e nada tem de trovão. Assim avança a civilização na Velha Lusitânia: a galope, de perna trémula, vocabulário alheio e desastre infalível. Em tempos, seguindo Cícero e Quintiliano, a eloquência pedia pausa, ordem e substância; Luciano e Aristófanes advertiam contra a artimanha que disfarça o nada. Agora, porém, em culto de velocidade, a encenação vale mais do que a ideia: a nuvem serve de espectáculo e o relâmpago de foguetório.

Inventou-se, pois, nos tempos hodiernos, o discurso que dura menos do que um bocejo, embora com mais efeitos que um laboratório de cosmética: insight, takeaway, call to action, storytelling, networking e um Q&A atirado aos ouvintes como quem dá milho aos pombos para disfarçar a pobreza do celeiro. Ali, não se cita Aristóteles — porque pesa. Cita-se o algoritmo — porque brilha. E, se for preciso, convoca-se a era da estupidez, mas com adjectivo envernizado: bold stupidity.
Confesso que, sendo homem do século XIX e cavaleiro de certa compostura, tive a veleidade de crer que a eloquência era uma estrita moral do pensamento: quando a ideia faltava, impunha-se o silêncio. A modernidade resolveu esse escrúpulo com uma solução admirável: quando a ideia falta, fala-se inglês.
Surge então, pois aqui, com graça de vitrina, Mafalda Anjos, dama do jornalismo de salão, que proclamou em cartaz vistoso — magenta de Pascoaes e roxo de procissão — a sua lightning — ou lightening, conforme a sorte do dicionário dos saxões — sobre “algoritmos e redes sociais na era da estupidez atrevida”. Notai: o atrevimento não mora no substantivo, mas no predicado.

Não digo isto por malquerença. Eu, Brás Cubas, lavrado nos cânones do oitocentos, com gosto pela ordem e pelo juízo, fui educado para tratar as donzelas com candura, respeito e uma certa temperança. Acontece que as musas do presente, emancipadas e livres — sinal de progresso, que saúdo —, descobriram, com o resto da humanidade, um defeito tão dos homens quanto da democracia: a estupidez. E, como toda a paixão moderna, a estupidez vem-lhes, amiúde neste século, com suplemento: o atrevimento, aquele que infecta quem, tendo lido meia dúzia de papers em voz alta, resolve convocar o povo ao teatro para lhe ensinar o funcionamento da mente de Tântalo por meio de slides.
Vede a cena, que se verá nas cercanias da antiga Collippo, banhadas pelo Lis e pelo Lena: Mafalda pousa angelicalmente on stage, sorri com decoro carismático e projecta o primeiro slide: “O algoritmo odeia-vos”. O segundo corrige: ««”Não — o algoritmo ama-vos, mas cobra”. O terceiro converte o algoritmo em entidade teológica: “O algoritmo prova-vos”. É a velha fatalidade das Parcas, agora baptizada machine learning. Entre uma buzzword e outra, falará de engagement — a forma polida de escravidão do polegar — e de branded content, publicidade com peruca, que muito ela usou na revista Visão. E com mais visão para o negócios, mesmo se falido, do que para o jornalismo.
Enfim, se algum ateniense de boa memória ressuscitar na plateia, espero que siga ainda a tempo de se refugiar no tonel de Diógenes de Sinope. Eu, por mim, assistirei: sempre admirei os números de ilusionismo, ainda mais se expostos com timbre de tia de Cascais.

Não me interpreteis mal. Há, sem dúvida, na ciência dos dados, uma bela gravidade pitagórica: em redes complexas, uma ordem de catedral; em algoritmos, verdadeiras rodas d’água intelectuais. Porém, aquilo que me diverte — e aqui começa a sátira — é a sua promoção a catecismo portátil, de quinze minutos e quatro bullets, onde tudo se resolve por decreto verbal. Chamai-lhe centelha dialéctica: ilumina por instantes para deixar o terreno mais escuro.
É a economia da frase feita: ouvimos “curadoria de conteúdos” — que é escolher o que convém —, depois “narrativa” — que é opinião com sapatos de verniz —, a seguir “literacia mediática” — que ora é necessidade escolar, ora bengala para a ignorância de quem fala. E quando se chega à “estupidez atrevida” — nunca da palestrante, ora essa! —, o auditório suspira, reconhecendo-se a si próprio, mas logo se absolve com um aplauso. Enfim, nada mais católico do que a confissão e contrição de pecados que não se pretendem corrigir, com a bênção de Anjos — ou da Mafalda Anjos.
Dir-me-ão que pego na dama em excesso. Não! Pego na moda — aquela mesma que transforma revistas em decks, prosas em keynotes e o antigo repórter em speaker. Tudo já se agrafou: os jornais, as consciências, as verbas e os adjectivos. Onde havia manchete, há branding; onde havia crítica, há partners; onde havia responsabilidade, há sponsorship. O jornalismo, que foi escola de paciência e de suor, tornou-se, por falta de leitores e sobra de plateias, um armazém de talks, podcasts e reels. E o que hoje se vende ao público, com lacinho e hashtag, é a promessa de um auto-diagnóstico: “Sois todos estúpidos; mas eu trago a cura em cinco tópicos.” Lembrai-vos de Swift, se é que o disse: quando um remédio vem com panfleto e riso, desconfiai do boticário.

Sei que corro o risco de parecer um velho azedo, mal ajustado à electricidade desta vossa centúria. Pode ser. A idade passada em ossos conserva rancores, como certas garrafas que azedam com o tempo. Mas, se quereis um juízo honrado, dir-vos-ei que não me ofende a leveza — ofende-me a simulação da gravidade. Um lightning até poderia ser belo, mesmo na modernidade: um aforismo com pulsação, um epigrama com veneno, um apotegma com gravidade, um haiku de raciocínio. Mas não — aquilo que me desafina é a pompa lacónica: a sujeita veste estola para dizer um telegrama.
“Mas é uma senhora, Brás Cubas” — diz-me um cavalheiro de bons hábitos. As senhoras, respondo, merecem o meu fino respeito, desde a Idalina que me negou um beijo até à Marcela que mo cobrou com juros, passando por Eugénia, flor triste e coxa, que me quis com inocência, e mesmo por Virgília, que me quis com elegância — e com marido. As senhoras ensinam-nos muito. Mas o respeito não impede o juízo, como o amor não suspende a lógica.
Quando uma dama assume tribuna para catequizar o povo com relâmpagos, não se lhe negam flores — concede-se o contraditório. E este, que ora ofereço, diz apenas o seguinte: a “estupidez atrevida”, tão fácil de apontar nas massas, às vezes acomete o púlpito, até por ser doença antiga, insidiosa e persistente, típica da vaidade e da superciliosa empáfia. Já Péricles sabia que a popularidade é um espelho que engorda. E o remédio, creio, não é outro talk: é a velha disciplina da verificação, a humildade de aprender e um certo pudor verbal — virtude que desalinha hashtags e compõe discursos.

Em todo o caso, concedo, enfim, que tudo isto pode ser implicância póstuma. Afinal, que direito tem um defunto de fiscalizar a gramática dos vivos? Nenhum. Mas, se me é lícito um conselho — conselho de quem já não teme perder leitores —, direi então à Mafalda Anjos: antes de subirdes ao estrado para explicar algoritmos ao mundo, baixai primeiro à razão.
Se o propósito é pensar, poupai o magenta e a fanfarra; trocai o lightning por uma vela, que às vezes alumia mais. E, se o assunto for “estupidez atrevida”, começai pelo espelho. Não falha: é a única curadoria que conheço que melhora o conteúdo.
Adeus, e um piparote.
Brás Cubas
