A ‘polícia da bolsa’ , o jargão usado para nomear a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), queixa-se frequentemente de falta de recursos humanos para melhor fiscalizar os mercados financeiros. Mas, como já se tornou hábito no sector público português, mesmo se os recursos humanos escasseiam, poucos decisores conseguem fugir à tentação de deixar obra feita, literalmente, com placa de inauguração à mistura.
Neste tipo de cultura vigente, os membros do conselho de administração da CMVM, liderado por Luís Laginha de Sousa – que trouxe a ‘escola’ do Banco de Portugal, de onde foi administrador entre 2017 e 2022 – não fogem à regra e aprovaram um projecto de melhoraria de interiores da sua sede em Lisboa, junto ao Hospital Curry Cabral, que não tem fim à vista nem contas perfeitamente definidas. Mas pelo que se tem já gasto é possível estimar que custarão para cima dos oito milhões de euros,

Só para a remodelação do piso técnico (onde se encontra maquinaria), do piso 1 e metade do piso 11, a CMVM está agora disposta, de acordo com um concurso público, a pagar um pouco mais de dois milhões de euros, que inclui um ginásio com balneários e ainda uma zona de gaming (jogos electrónicos) para os cerca de 220 trabalhadores. Note-se que esta remodelação é apenas de interiores, uma vez que o edifício do final dos anos 80 encontra-se em excelentes condições estruturais.
No futuro, serão avançadas as remodelações das outras áreas de um edifício com 13 pisos à superfície, não havendo ainda previsão de custos finais. Isto porque a CMVM, para que os gastos possam passar de forma discreta, tem desenvolvido a remodelação por fases. No ano passado, foi adjudicada à Arfus em Abril a remodelação do piso 0, incluindo o auditório, com um custo total de 652 mil euros, com IVA incluído. Contudo, se se juntar os gastos anteriores, incluindo os projectos de arquitectura, para já a factura chega já ultrapassa os três milhões de euros.
E a ‘procissão’ só agora vai no adro. Fazendo uma estimativa, atendendo às remodelações já adjudicadas e a concurso, que rondam cerca de 600 mil euros por piso, o custo global de melhorar todos os13 pisos aproximar-se-á dos oito milhões de euros, se não houver derrapagens.
O processo de remodelação do edifício da CMVM iniciou-se há cinco anos. O primeiro contrato conhecido, datado de Maio de 2020, visou uma due diligence técnica ao imóvel, num investimento modesto de 9.450 euros, destinado a avaliar as condições estruturais e funcionais do edifício.

Seguiram-se, em 2022 e 2023, novas empreitadas com valores progressivamente mais elevados, nomeadamente estudos prévios, projectos base de arquitectura e especialidades, bem como consultoria para renovação de espaços interiores, incluindo o hall de elevadores e zonas comuns.
Este ano, o processo atingiu uma nova etapa, com a aquisição de serviços para automatização e controlo do edifício (SACE), sinalizando a transição de uma fase de planeamento e reabilitação física para uma vertente mais tecnológica e de eficiência operacional.
Ao longo de cinco anos, a CMVM escolheu sucessivamente a Savills Portugal, uma sucursal de uma empresa britânica do sector imobiliário, para estas intervenções. Assim, os contratos celebrados desde 2020 somam 283.843 euros, valor que, acrescido do IVA a 23%, eleva o montante global já gasto para cerca de 349.127 euros.
Agora, passou-se para a fase do concurso para a escolha da empresa de construção que vai executar o projecto de remodelação profunda da sede da CMVM já está em marcha com um preço base de 1,7 milhões de euros. Com IVA aumenta para os 2,09 milhões.

Segundo o projecto de remodelação, consultado pelo PÁGINA UM, o objectivo da obra é actualizar os interiores do edifício, criar espaços de trabalho abertos e modernizar os espaços que se encontram “datados”, embora em boas condições.
Também os dois andares mais altos do edifício, 11º e 12º, que são usados pelos quadros de topo da CMVM, serão alvo de um “extreme makeover“: as madeiras nobres, o mobiliário clássico e as tapeçarias serão substituídos por uma decoração de interiores sofisticada, com um toque de estética escandinava — mas num país sem os recursos financeiros daquela região do Mundo, conforme das imagens que acompanham os documentos de procedimento concursal.
No final desta remodelação extrema, a sede da CMVM ficará irreconhecível. A intervenção abrange assim a reconstrução dos interiores de 13 pisos – do piso 1 ao 12.º e ainda um piso “técnico”. Cada piso tem cerca de 514 metros quadrados, sendo que o primeiro serve diversos fins, dispondo, por exemplo, de uma cafetaria que será ampliada.

Segundo os documentos do concurso com a “memória descritiva” do projecto de remodelação, “a construção do edifício data do ano de 1989, pelo que a sua linguagem arquitectónica é marcada por uma sobriedade nas formas e volumes, combinada com uma certa ousadia na utilização das cores, tanto no exterior, como no interior”.
Actualmente, os pisos “encontram-se organizados com base nos critérios de utilização, função, grau de confidencialidade e nível
hierárquico dos utilizadores”, sendo que “esta lógica é reflectida na compartimentação dos espaços e nos materiais utilizados em cada piso”. Assim, os pisos destinados a quadros de topo têm actualmente materiais nobres e mobiliário clássico. Os restantes pisos, estão decorados de forma mais austera e “fria”.
O documento destaca ainda que “os dois últimos pisos do edifício apresentam uma organização espacial distinta dos demais, onde a nobreza dos materiais se destaca”, mas “a reduzida incidência de luz natural e o pé direito baixo conferem a estes espaços uma atmosfera mais escura e pesada do que o desejável”.
Em resumo, o objectivo da remodelação é eliminar o aspecto “antiquado” dos espaços e criar interiores com mais luz e espaços abertos.

Todas as zonas no edifício vão ser renovadas, dos gabinetes da administração às casas-de-banho. No piso 1, a cafetaria vai ser “substancialmente expandida, com o intuito de acomodar um maior número de utilizadores” tendo o novo espaço sido “concebido com uma diversidade de ambientes acolhedores, promovendo a interação e o convívio, incluindo, também, uma zona de gaming, para fomentar a dinamização entre os colegas”.
Também no piso 1, o espaço multiusos será “significativamente ampliado e relocalizado numa zona mais reservada, proporcionando um ambiente propício à prática de exercício físico, complementado por balneários de apoio”.
Já que a CMVM tem meios escassos, o regulador concluiu que não precisa de tanto espaço e libertará três pisos, que ficarão disponíveis. Segundo a documentação disponibilizada no concurso. “constatou-se que a utilização integral do edifício pela CMVM se revelava excessiva, decorrente da ineficiência do
layout dos pisos, da área desproporcionalmente alocada à circulação e da existência de espaços que, face às novas necessidades, se tornaram obsoletos”.
Nesse sentido, “foi possível determinar que a ocupação necessária poderia ser optimizada, libertando três pisos para um novo inquilino”.

Deste modo, na remodelação, os três pisos que serão “libertados” — entre os piso 2 e 4 — vão ser renovados “com os acabamentos básicos de um espaço interior, incluindo as infraestruturas técnicas essenciais”, uma configuração, “frequentemente descrita como uma “tela em branco”, oferece ao futuro ocupante a flexibilidade de adaptar o espaço às suas necessidades específicas”.
Com este “libertar” de espaço no edifício, o conselho de administração da CMVM consegue encontrar, assim, um argumento para promover esta obra de renovação como trazendo eficiência. Resta saber se o papel do regulador da Bolsa como polícia dos mercados financeiros vai beneficiar com este “extreme makeover” da sede. Uma coisa é certa: os ‘scores‘ dos funcionários nos jogos electrónicos vão melhorar.