O salão de festas

Cansado de contar tostões, Inocêncio percebeu, a dada altura, que a pequena herança recebida podia abrir portas a um futuro mais risonho. Transmitida de geração em geração, a propriedade encontrava-se na posse da família desde tempos tão remotos que a sua origem se entrelaçava com a memória da fundação da pitoresca aldeia piscatória.

Quem, vindo de fora, por ali passava, encantava-se com a beleza da quinta: rústica, singular, autêntica, repetiam. Faltava-lhe, porém, conforto. O que para o humilde e despretensioso Inocêncio era bastante, revelava-se insuficiente aos olhos requintados de quem chegava em busca de uma “autenticidade refinada”.

As paredes caiadas e as portas de reixa eram lindas, mas a manutenção não dava tréguas; a cozinha, de lume aberto, um encanto, só que o fumo impregnava toda a casa; a cabana, very typical, não fosse a vaca tresandar, seria perfeita;  a água da nora fresca e deliciosa, já torneiras nem vê-las; e, pormenor fatal, ao fundo do terreno, quatro exíguas paredes de madeira a ocultar uma inesperada retrete.

O que para  Inocêncio era apenas normal, constituía para os visitantes um excesso de autenticidade: suportável em pequenas doses, por algumas horas. Não mais do que isso.

Ainda assim, foram os estrangeiros — cada vez mais numerosos na região — os primeiros a reconhecer o potencial daquela casa junto ao mar. Tentaram comprá-la por tuta e meia, justificando a pechincha com a extensa lista de obras indispensáveis: picar paredes, rebocar e pintar, substituir tetos e chão, derrubar a chaminé, remodelar a cozinha, instalar casas de banho, erguer uma pérgula na açoteia, mudar portas e janelas… um inventário tão exaustivo quanto conveniente.

Inocêncio, aconselhado por um amigo dos tempos de escola que agora trabalhava num banco, recusou a proposta. Pediu ele mesmo um empréstimo, fez as obras e converteu a sua herança num amplo salão de festas.

A inauguração foi um sucesso: rodeados por peças de artesanato e artes de pesca  restauradas e integradas na decoração, os convivas, elegantemente vestidos, deliciavam-se com canapés, petit fours e delicadas flûtes de champanhe.

Inocêncio, que nunca vira tanta cerimónia, não conseguia entender. Com peixe fresco em abundância, vinho de qualidade à disposição… e eles ali, entretidos a mordiscar umas coisinhas e a molhar os lábios. Mas lá que tinham um ar distinto, isso tinham. Muito bem vestidos. Chiques, sem dúvida.

Com o passar do tempo, porém, as festas transformaram-se. Os petit fours, que faziam as delícias nos primeiros eventos, desapareceram para dar lugar a outras miniaturas igualmente coloridas: rolinhos de arroz pastoso com peixe cru. Chamavam-lhe sushi. Inocêncio preferia chamar-lhe bolas de “arroz unidos venceremos”. Uma grande mistela, pensava ele. Mas os camones gostavam. Problema deles.

As festas multiplicaram-se e a sofisticação inicial depressa deu lugar ao excesso. As pirâmides de taças de champanhe foram substituídas por grades de cerveja barata; os canapés vistosos e até o sushi acabaram trocados por fish and chips a escorrer gordura e devorados sem cerimónia.

O espaço, cada vez mais irreconhecível, revelava-se surpreendentemente lucrativo. Tanto que Inocêncio decidiu ampliá-lo: primeiro uniu o salão às antigas cabanas e depois à casa onde sempre vivera. Ficou um belo mamarracho, é certo, mas a açoteia transformada em rooftop com DJ e música pela noite fora rendia ouro.

Não se ralava por dormir agora num quarto improvisado no palheiro. Também pouco lhe importavam as noites em claro, o barulho, a agitação e os estragos feitos por clientes embriagados: tudo se compunha, e o lucro compensava.

Até que as reservas começaram a rarear. O salão de festas perdera o encanto para os turistas: estava descaracterizado, já não tinha autenticidade. O que ali encontravam era igual a tudo o que existia na região, ou até nos países de onde vinham.

Inocêncio não compreendia como é que tamanho investimento podia ter sido em vão. Tinha remodelado tudo: o espaço estava moderno, requintado, com todas as comodidades e, no entanto, vazio.  Não lhe restou alternativa senão vendê-lo para saldar as dívidas. Da velha quinta não sobrou rasto. No seu lugar ergue-se hoje um cinco estrelas luzente. O antigo anfitrião viu-se reduzido a espetro. Um fantasma que vagueia agora pelo bairro, onde mora num apartamento com vista para a entrada de serviço do colosso envidraçado.

Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve