PRÉ-VENDA na LOJA DO PÁGINA UM da obra CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS
(não inclui esta crónica inédita; para ler o prólogo e três crónicas do livro, veja aqui)
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Ah, meus caros leitores — e vós também, argutas interlocutoras que me suportais nestas escavações filológicas —, há línguas que são traiçoeiras como serpentes e outras que, não sendo venenosas, têm a malícia de um gato de biblioteca: roçam-se em nós com doçura para, de súbito, soltar um arranhão no verbo.
A portuguesa, por exemplo, exige do órgão articulador, do músculo da boca e do miolo do cérebro, uma destreza quase coreográfica. Basta um leve tropeço de vogal, um deslize de consoante, e a mensagem — essa pobre vítima — cai esbarrapachada entre o sentido e o disparate. E, convenhamos, se ao falante se pede engenho, ao ouvinte se exige um ouvido agudíssimo, desses que captam a diferença entre “mola” e “mula”, entre “bento” e “vento”, entre “iminência” e “eminência”. Ou entre a beira da estrada e a Estrada da Beira.

A língua portuguesa — filha bastarda do latim, amancebada com mouros e marinheiros, baptizada entre cruzados e copeiros — nasceu, sabeis isso bem, sob o signo da confusão. Forjada à pressa entre um salmo e uma taberna, talvez por isso conserve o dom de tropeçar com elegância. Herdou de Roma a solenidade, da Galiza a doçura, dos árabes o floreio e do além-mar um gosto por errar o rumo – é, pois, uma língua que tanto filosofa como tropeça, capaz de dizer o sublime e o ridículo no mesmo fôlego.
Eis a razão por que os seus falantes são criaturas de duplo temperamento: líricos na paixão, processuais na ofensa. Ao verbo se concede a solenidade de um sacramento e a suspeita de uma cilada. Assim, no português, um “sim” pode querer dizer “talvez”, um “não” pode esconder um “espera um pouco”, e um “claro” costuma significar “não percebeste nada, pois não?”.
A fonética não articula — insinua. Cada sílaba sai com segundas intenções, como dama de véu que sorri sem mostrar os dentes. A ambiguidade, essa velha alcoviteira do verbo e concubina do adjectivo, anda sempre de braço dado com o sotaque, e todos erguem impérios de mal-entendidos. E nisto, a gramática, cambaleando na bengala, tropeça no cachimbo e acende o plenário.

Os poetas amam a língua, porque nela tropeçar é criar; os políticos veneram-na, porque nela escapar é vencer. Uns rimam com os desastres; outros justificam-se com eles. E assim se segue, entre a inspiração e a acta, entre o cântico e o requerimento — sempre à beira do riso e da querela.
Ora, chegados aqui, entremos numa tragicomédia parlamentar: o social-democrata Hugo Soares, homem de verbo carregado e gesto assertivo, ao dizer “dou-te a morada”, viu-se transformado em gladiador de bancada, supostamente prometendo “dou-te porrada”. O outro, Pedro Frazão, do Chega, ouviu o que quis, ou o que o instinto partidário lhe soprou ao tímpano. O hemiciclo, esse teatro do absurdo, converteu-se em coliseu, e os escribas do reino já preparavam as crónicas do duelo de armas.
A Comissão de Transparência, zeladora do bom tom e da exactidão semântica, analisou a questão com o rigor de um gramático medieval. Passaram-se horas em gravação, transcrição, interpretação, rectificação, até que, de tanto rebuscar, o tribunal da palavra acabou por ilibar — ou, melhor dizendo, ilibrou-se —, confundindo o ofendido e o ofensor num abraço de vocábulos. No fim, não houve porrada, nem morada, apenas a constatação de que a língua portuguesa, como o mar de Camões, “tem no engano a maior claridade”.

Mas não sejamos severos. Há virtude, sim, nesta trapalhada fonética. Os vates que o digam! Que seria da lira se as sílabas não se prestassem a equívocos sonoros? Que seria de um menestrel de vão de escada se “levanta-te” não rimasse com “canta-te”, e “chão” não soasse à “paixão”? Até o mais casto dos bardos se rende às confusões fecundas: o erro é o húmus do verso. O engenho poético vive desse jogo de sombras, desse intervalo entre o que se diz e o que se entende — intervalo por onde o riso, o erotismo e o escândalo costumam entrar.
Recordo, aliás, um serão em que troquei versos com dois amigos ultramarinos: Gregório de Matos, o “Boca do Inferno”, e Mário Quintana, esse santo das ironias serenas. Entre copos e metáforas, discutimos se o verbo deve servir o homem ou o homem servir o verbo.
Gregório, em riso brejeiro, sentenciou: “A palavra é como mulher de má fama: o que lhe falta em pudor sobra-lhe em malícia.” Quintana, com ar beatífico, acrescentou: “Toda palavra mal ouvida é um poema que se perde.” Eu, por minha parte, lembrei-lhes que entre “beber um copo” e “beber com um copo” há um abismo gramatical onde já tombaram muitas reputações.

E como nos basta já de teoria e reflexão, convoquei o bom Bocage, mestre das rimas atrevidas e das sílabas inflamadas, para que, com o sufixo –ada, entre a porrada e a morada, vos compusesse um relâmpago de sátira… rimada. E o velho libertino sorriu-me e, estalando os dedos como quem invoca um demónio da métrica, saiu-se com isto:
Versalhada da Morada e da Porrada
Neste Parlamento, de gente zangada,
Onde a retórica corre azedada,
Soou “morada” em voz agastada,
Mas o Chega, zangado, ouviu “porrada”.
De um lado, vi o Hugo, de fala exaltada,
Do outro o Frazão, mente tresloucada,
Um diz “minha casa é bem guardada”,
Mas o outro ouve “vem cá, levas pancada”.
Na acta ficou a cena entalada,
Em pauta fina e letra dobrada,
Mas por cada sílaba, mal pronunciada,
Faz-se insulto, confusão marada.
Ó língua nossa, tão enfeitiçada,
Que trocas sons com astúcia danada,
Pedes torrada e dão-te trancada
E dizes “morada” e é guerra declarada.
Enfim, o que vos quero dizer com isto, minhas doutíssimas donzelas e meus sapientíssimos cavalheiros? Quero dizer que há quem defenda que o diabo tem morada nos detalhes para nos dar porrada; e eu argumento ser nas vogais médias e nas consoantes chiadas. Um sopro mais áspero, e a harmonia cai em ruído; uma nasal a mais, e o amor vira maldição.
Já o Apóstolo São Tiago advertia que “a língua é um pequeno membro que incendeia uma grande floresta” — e se o dizia de espírito, vale também para o som. O comendador Carvalho sempre me garantiu que um “r” mal posto ou — pior ainda — omitido faz da diplomacia pancadaria.

Nem a filosofia escapa a este dilema: Aristóteles acreditava que o homem é o animal dotado de logos, mas esqueceu-se de dizer que o logos é também um labirinto. Os herdeiros de Babel arrastam-se nessa maldição, embora com graça e sarcasmo. Por isso, o episódio entre Soares e Frazão, longe de ser uma vergonha lusitana, é uma celebração involuntária do génio da língua de Camões e do Padre António Vieira: consegue discutir até a própria fala — e transformar o mal-entendido em narrativa, o insulto em piada, e a fonética em farsa.
Resta-me assim louvar a confusão, mãe da invenção. Porque se tudo se entendesse à primeira, que fariam os poetas, os cronistas e os parlamentares? Sem o deslize da língua, o riso extinguir-se-ia, e com ele a consciência da falibilidade humana. Por isso, atentai: entre torrada e porrada, entre fardo e fado, vibra o mesmo sopro divino: o da palavra, essa dádiva traiçoeira que, mesmo errando, ainda sempre todos salva da ensurdecedora mudez.
Adeus, e piparote
Adeus, e um piparote.
Brás Cubas