No que toca a literacia financeira, há autarquias que, não se duvide, precisam de umas aulas para aprender a gerir melhor o seu orçamento e poupar. É que alguns municípios têm gastado milhares de euros a contratar, por ajuste directo, serviços de educação financeira nas escolas públicas quando têm disponível um programa educativo gratuito da iniciativa ‘Todos Contam’ dos três reguladores financeiros.
Só este mês de Setembro, no espaço de oito dias, duas autarquias entregaram quase 100 mil euros à empresa privada Doutor Finanças para fornecer manuais sobre literacia financeira e disponibilizar um curso online.

O município de Santa Maria da Feira adjudicou no passado dia 8 de Setembro um contrato no valor de 74.250 euros à Doutor Finanças para a aquisição de “serviços para acções formativas de promoção de literacia financeira para alunos do 8.º ano do 3.º CEB (ciclo do ensino básico) enquadrado no Plano Estratégico Educativo Municipal”. O contrato tem um prazo de execução máximo, de forma continua, de 36 meses e foi adjudicado por ajuste directo após um procedimento de “contratação excluída”.
O contrato foi registado incorrectamente no Portal Base, que justifica o ajuste directo com a alínea d) do artigo 20º do Código dos Contratos Públicos que permite a ausência de concurso público “quando o valor do contrato for inferior a 20.000 euros”.
O contrato prevê a realização de “duas sessões de literacia financeira por turma, para um total de 50 turmas (um total de 100 sessões para o prazo total do contrato)” bem como a “elaboração
de conteúdos programáticos de literacia financeira”.

A empresa terá a seu cargo “o recrutamento da equipa de facilitadores, materiais de desgaste e todas as deslocações necessárias à implementação semanal do projeto nos 9 agrupamentos de escolas do município”.
O contrato exige que sejam alocados dois formadores com o mínimo de dois anos de experiência para o desempenho do serviço: um formador qualificado na área de intervenção social, com formação em finanças pessoais e desenvolvimento pessoal; um formador qualificado em administração e gestão de
empresas, com formação em finanças pessoais a particulares e
empresas.
Também o município de Espinho contratou a Doutor Finanças por ajuste directo, através de um contrato assinado no passado dia 1 de Setembro, no montante de 19.999 euros, para a “aquisição de livros e curso online” no âmbito de um projeto literacia financeira. Recorde-se que a legislação permite a realização de ajuste directo se o valor do contrato for inferior a 20.000 euros.

Este contrato visa conferir literacia financeira a alunos e respectivas famílias, sobretudo as mais vulneráveis, e tem um prazo de execução de 45 dias.
O montante pago inclui a aquisição de exemplares do livro Doutor Finanças e a Bata Mágica, “que introduz os mais novos ao mundo das finanças de forma lúdica e acessível”. Inclui ainda “a aquisição do curso online “Orçamento Pessoal e Familiar” com a duração de oito horas. Este curso “oferece aos adultos formação prática e concreta para a gestão do orçamento familiar” e, por ser online, “as famílias poderão fazer o mesmo, ao ritmo que desejarem e sem interferir no seu quotidiano”.
Assim, em apenas oito dias, a empresa Doutor Finanças facturou 94.249 euros, valor a que acresce IVA, para fornecer serviços de “literacia financeira” em escolas. Em Outubro do ano passado, a empresa já tinha obtido um primeiro contrato, com a autarquia de Ovar, no valor de 11.644,40 euros, sem IVA, no âmbito de um “ciclo sobre literacia financeira”.

Esta empresa, criada em 2014, presta aconselhamento financeiro e de investimentos e actua ainda como intermediário de crédito à habitação, entre outros serviços.
Além de se questionável as autarquias estarem a promover uma marca privada de serviços financeiros a alunos, pais e professores de escolas públicas, a principal dúvida é por que motivo estes municípios não solicitaram acções de formação da iniciativa ‘Todos Contam’, a qual é gratuita.
A iniciativa insere-se no Plano Nacional de Formação Financeira criado em em 2011 pelos três reguladores financeiros: Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM); Banco de Portugal; e ASF-Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões. O seu objectivo é melhorar os conhecimentos financeiros da população e contribuir para que tenham comportamentos financeiros adequados. O Plano trabalha com uma rede de parceiros públicos e privados.
A iniciativa dos reguladores disponibiliza acções de formação, manuais de literacia financeira e uma área de e-learning, entre outros recursos educativos. Todos os serviços prestados são grátis.

As autarquias podem contactar a iniciativa ‘Todos Contam’ para pedir acções de formação gratuita em literacia financeira. Também podem descarregar a imprimir os manuais e outros recursos pedagógicos disponibilizados no site. E várias autarquias têm-no feito.
No caso dos manuais de literacia financeira para os mais novos, a iniciativa ‘Todos Contam’ disponibiliza a série Cadernos de Educação Financeira que conta com um Guião para a Educação Financeira na Educação Pré-escolar, três volumes para os três ciclos do ensino básico, os Cadernos de Educação Financeira 1, 2 e 3, respetivamente, e um para o ensino secundário, o Caderno de Educação Financeira 4. Estes cadernos estão disponíveis para serem descarregados no portal ‘Todos Contam’ e no site da Direção-Geral da Educação.
Além dos cadernos e outros guias e recursos técnico-pedagógicos disponíveis gratuitamente, a iniciativa também dá formação a professores. A mais recente noticiada na plataforma decorreu em Lagos, no passado mês de Abril.

De resto, o portal oferece guias, informação e simuladores dirigidos a particulares, mas também a empresas.
O PÁGINA UM questionou os dois municípios sobre a contratação da empresa Doutor Finanças. Em resposta por escrito enviadas ao PÁGINA UM, o município de Santa Maria da Feira justificou a adjudicação do contrato por ajuste directo, no âmbito de um procedimento de “contratação excluída”, com o facto de “o objeto específico do contrato corresponde à realização de sessões de formação”.
Justificou também que “o preço base foi obtido através de consulta preliminar informal ao mercado, conforme previsto no Código dos Contratos Públicos”.
Segundo a autarquia, não foi solicitada formação gratuita no âmbito da iniciativa ‘Todos Contam’ porque “a entidade convidada [Doutor Finanças] apresentou um plano específico dirigido aos alunos do 8.º ano, com sessões em formato presencial”. Segundo o município, “esta abordagem representa uma mais-valia pedagógica, uma vez que favorece a transferência efetiva de competências para os alunos”.

Adiantou que, “apesar do seu inegável interesse, esta iniciativa [Todos Contam] não contempla sessões presenciais para os alunos do 8.º ano”. Contudo, a iniciativa ‘Todos Contam’ dá formação a professores e educadores para que estes possam também transmitir informação sobre literacia financeira aos mais novos. A iniciativa tem respondido positivamente a solicitações de autarquias sobre formação em literacia financeira e os municípios podem pedir acções de formação grátis quando quiserem.
Quanto ao município de Espinho, até à publicação deste artigo ainda não respondeu às questões enviadas ontem de manhã pelo PÁGINA UM.
Mas a Doutor Finanças não é a única entidade que tem lucrado com os programas de literacia financeira. Nos contratos disponíveis no Portal Base analisados pelo PÁGINA UM a Fundação António Cupertino de Miranda destaca-se como campeã nos contratos públicos para prestação de serviços relacionados com literacia financeira.
Esta Fundação facturou nos últimos 10 anos um total de 2.286.494 euros em 56 contratos públicos relacionados com literacia financeiras, grande parte dos quais nos anos mais recentes. Só desde 2023, a fundação criada pelo banqueiro Artur Cupertino de Miranda, falecido em 1988, e com sede em Vila Nova de Famalicão, assegurou a adjudicação de 30 contratos desta natureza com autarquias e comunidades intermunicipais, que somam quase 1,5 milhões de euros.

Entre os municípios, destacam-se os acordos estabelecidos com Gondomar, que totalizam 203.475 euros em diferentes contratos, bem como o Porto, com 174.400 euros. Também Santa Maria da Feira firmou contratos no valor de 102.000 euros, enquanto Valongo se comprometeu com 109.660 euros. Outros municípios a surgirem com contratos relevantes são Guimarães (67.400 euros), Paredes (93.000 euros) e a Trofa (72.000 euros), valores que confirmam uma rede de cooperação financeira alargada entre a fundação e as autarquias do Norte do país.
No plano das comunidades intermunicipais, o peso financeiro é igualmente notável. Só a Comunidade Intermunicipal do Tâmega e Sousa contratualizou 135.000 euros, seguido da do Cávado, que celebrou dois contratos no valor conjunto de 92.325 euros. A Comunidade Intermunicipal da Beira Baixa figura também como um parceiro assíduo, com três contratos que somam 153.000 euros, ao passo que a Comunidade do Ave aparece com um total de 52.175 euros.