Dizem que herdei os teus olhos. Sempre encolhi os ombros, neguei, desviei a conversa. Insistem, garantem-me que não há outros iguais. Respondo que já vi muitos parecidos, que é certamente impressão.
Hoje, sentada na cadeira, de frente para o meio-rosto do oftalmologista, ouço-o chamar a assistente:
— D. Isabel, chegue aqui. Ora espreite — diz-lhe.
Ela aproxima-se, ajeita-se, e eu sem perceber muito bem o que se passa. O que terá ele visto de tão estranho para chamar a senhora?

— Olhe que estou quase na reforma e nunca tinha visto uns olhos desta cor — conclui.
— Nem eu — responde a assistente, dando-me em seguida os parabéns, como se se tratasse de um grande feito
— A quem saiu com estes olhos? — pergunta o médico.
E respondo, pela primeira vez e quase para dentro, que foi a ti.
Vejo-me agora ao espelho. Repito gestos e movimentos que fiz centenas de vezes: aproximo-me, aponto luzes, abro completamente os olhos. Fui buscar uma fotografia tua. Procuro a mais pequena diferença que me permita dizer, de uma vez por todas e com segurança, que não são os teus olhos. Mas são: estão aqui, no meu rosto.
Noto, porém, que, felizmente, herdei apenas os olhos, não o olhar. Porque os teus olhos, diziam, enfeitiçavam. Quantas vezes juraste sinceridade? Quantos te confiaram vidas e bens? Quantas mulheres se perderam neles, fascinadas? Cheguei a acreditar que podias encantar serpentes, se quisesses.

Mas não foram os olhos: foi o teu olhar. Foi o teu modo de fixar sem pudor, de medir os outros sem compaixão, de atravessar as pessoas como alvos. Os teus olhos eram belos; o teu olhar, devastador.
Percebo agora que o que receio não é que descubram que herdei os teus olhos: é que confundam o meu olhar com o teu. É vergonha e temor de ter em mim o mais pequeno vestígio de ti.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve