(a)Ventura entre hambúrgueres e cidadãos


PRÉ-VENDA na LOJA DO PÁGINA UM da obra CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS

(não inclui esta crónica inédita; para ler o prólogo e três crónicas do livro, veja aqui)

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Homens políticos há que detêm uma rara particularidade, e nem precisam de ser cowboys de banda desenhada: têm reflexos mais rápidos do que a própria sombra. Mal a luz do acontecimento se projecta na parede, já eles deram um tiro — não importa em quê ou em quem —, e pouco importa também se o tiro é de pólvora seca ou de pólvora de feira.

É o caso de um certo tribuno lusitano que, no afã de mostrar serviço ao auditório, dispara antes de pensar. E, pensando bem, talvez nem pense de todo. Parece aqueles cães de jardim, que ladram a qualquer folha que voe, não por coragem ou por medo, mas por hábito nervoso. Vê um escândalo onde há protocolo, descobre uma desgraça onde há cerimónia, desvenda uma conspiração onde há uma banalidade internacional.

O episódio da semana, digno de nota para a posteridade, é, pois, a indignação do Dr. André Ventura — esse Savonarola das redes sociais — com a ida do vosso Presidente da República a um Burgerfest na Alemanha. O Parlamento, imagine-se — clamou ele, incrédulo — autorizou a deslocação de Marcelo, obviamente contra os votos do Chega, para estar presente naquilo que Ventura traduziu livremente como “festival de hambúrgueres”.

Ai de vós, pobres contribuintes, que pagarão a gasolina do Falcon presidencial para que Sua Excelência vá devorar cheeseburgers e batatas fritas ao som de música bávara, às tantas vestido de Lederhosen. Sim, porque hoje são hambúrgueres e daqui a poucas semanas será o Oktoberfest, onde se verá Marcelo de caneca de litro em punho, em cima da mesa, a entoar Ein Prosit der Gemütlichkeit, para gáudio dos seus assessores que, em trajes tiroleses, dançarão polca com criadas louras, de avental e trança, entre um fornecimento e outro de cerveja e salsichas, tudo ao compasso estridente da fanfarra.

Eis o disparate levado à sua forma mais gourmet: uma indignação servida em prato de porcelana bávara, com direito a espuma de cerveja e acompanhamento de oom-pah.

Quem saiba meia dúzia de palavras de alemão — ou que, pelo menos, tenha o bom hábito de consultar um dicionário antes de puxar do megafone digital — sabe que Bürger quer dizer “cidadão” em português. Logo, Bürgerfest é, portanto, uma singela mas relevante festa da cidadania. Mas Ventura, zeloso guardião da moral fiscal, resolveu transformar Goethe em McDonald’s e dar a Portugal a imagem de um Presidente viajando para um arraial de fast food. Eis o que dá misturar patriotismo inflamado com ignorância lexical: sai um hambúrguer malpassado, servido em prato de indignação moral.

No fundo, esta pressa em transformar tudo em escândalo é o próprio motor do populismo. Não há facto que não possa ser distorcido, palavra que não possa ser malbaratada, tradução que não possa ser retorcida para caber no figurino da revolta permanente — como massa de pizza atirada ao ar por um cozinheiro de taberna, moldada até ficar fina o bastante para tapar qualquer assunto e coberta de molho de furdunço para acicatar o sabor.

O velho Hobbes talvez chamasse a isto uma guerra de todos contra o bom senso. Assim, agora, já não se discutem ideias, mas memes; já não se debatem conceitos, mas prints de Twitter. E, no meio de tanta pressa, lá se vai a semântica, coitada, reduzida a carne picada.

Aliás, não é de hoje que a Humanidade tropeça nas palavras — e Ventura que se cuide. Basta lembrar que a palavra “idiota”, na Grécia Antiga, não significava tolo, mas o cidadão prudente que se abstinha de intervir na polis. Com o tempo, o sentido inverteu-se, e hoje chamamos idiota justamente a quem se mete em demasia na vida pública, sem ideias claras nem ditos assertivos, ao ponto de ver caldeirada até onde só há cerimónia protocolar.

Em todo o caso, o populismo adora a confusão lexical. Por exemplo, transforma imposto em roubo, subsídio em esmola, parlamento em covil — e, agora, cidadania em festa de hambúrgueres. E notem que é uma estratégia tão velha quanto eficaz: se a realidade não cabe no discurso, amassa-se a realidade até caber. E o povo, entretido, morde a isca, como quem morde uma sandes — ou uma bifana, mais apropriadamente.

Não nego que há ocasiões em que os governantes lusitanos gastam em viagens aquilo que falta aos hospitais e às escolas. Porém, uma indignação por Marcelo ir a Berlim celebrar a cidadania talvez seja exagerada. Indignem-se, sim, se ele ficasse em Belém, alheio ao mundo, enquanto lá fora se celebra o valor que ainda permite votar num sistema democrático onde até André Ventura pode ir a votos — mesmo se ele confundir um convite para a Festa della Befana em Roma com um banquete de bifanas, ou uma visita oficial aos Camarões com uma foliada de marisco.

Imagine-se, assim, o efeito cómico se Ventura fosse convidado ao tal Burgerfest: entraria desconfiado, olharia para o lado à procura do food truck, e ao ver uma conferência sobre direitos humanos, gritaria ao microfone: “Isto é uma vergonha! Eu vim para comer hambúrgueres e vocês estão a falar de Constituição!”. E talvez, no fim, posasse para a fotografia com ar grave, denunciando ao país a cabala internacional que lhe roubou o almoço.

Mas deixemo-nos de coisas. O episódio é menor, mas revela algo maior: a facilidade com que se gera espuma. O populista vive de transformar uma gota de leite em maré de espuma, um convívio protocolar em orgia de desperdício, um conceito em caricatura. Não é uma técnica de sobrevivência política, mas de crescimento: gritar sempre mais alto que a razão, para que a razão não se faça ouvir.

Festa della Befana com bifanas…

E o que resta disto para vós, serenas donzelas e tolerantes cavaleiros? Esperar que Marcelo organize o Präsidentielles Bifana-Fest e que Ventura denuncie ao país mais este ataque à moral e ao erário público? Ou rir? Rir como ria Voltaire dos pedantes, rir como ria Eça dos bacharéis, rir como ria o meu pai Machado de Assis dos Quincas Borbas deste mundo. Porque, no fim, nem sequer é um hambúrguer que está em causa, nem uma viagem presidencial, mas a capacidade de não se ser arrastado pela enxurrada da ignorância barulhenta.

E, posto isto, se é verdade que a cidadania se celebra, então brinde-se — não com Coca-Cola, mas com um bom vinho tinto, daqueles que dão paciência para aguentar tanta idiotice. Saúde, minhas confreiras e meus confrades, que a festa continua — e é bom que continue, mesmo que alguns insistam em confundi-la com a fila do McDrive.

Adeus, e um piparote.

Brás Cubas