Um (bom) concerto entre telemóveis e gritos

Perceba-se: um tipo anda já a meio dos cinquenta, com ares de respeitabilidade — pouca, é certo, porque o cabelo comprido não ajuda — e com o peso da idade a cair-lhe nos joelhos e nas pálpebras, e de repente dá por si a enfiar-se no Meo Arena para ver Shawn Mendes. Sim, Shawn Mendes, um rapaz com metade da minha idade, de apelido português, mas canadiano de nascença, que canta baladas capazes de fazer suspirar uma geração que poderia ser filha (ou, pior ainda, neta) deste escriba.

É a vida a passar e a passear-se. Os de hoje têm Shawn Mendes como nós tivemos George Michael na fase dos Wham! — pré-metafísica de Jesus to a Child — ou até Rick Astley, com aquele pop asseado que parecia saído de uma lavandaria britânica. E se quisermos rebobinar a cassete para os anos 90, o paralelo mais directo será talvez Robbie Williams na transição dos Take That para a carreira a solo — ainda sem o sarcasmo autodestrutivo — ou o Bryan Adams de (Everything I Do) I Do It for You, que fez suspirar meio planeta. Há até uma pontinha de Glenn Medeiros, também ele de raízes lusitanas, para quem se lembra de ouvir Nothing’s Gonna Change My Love for You nas rádios de 1987.

João Padinha / Everything is New

Aliás, o sucesso de Shawn Mendes em solo português não deixa de ter graça: há aqui uma espécie de herança lusófona que faz lembrar Nelly Furtado nos anos 2000, esse orgulho luso-canadiano que conquistou os tops mundiais like a bird.

Cheguei ao concerto quase às cegas: conhecia três ou quatro músicas, mas confesso que não saberia entoar o refrão de nenhuma. E aterrei, sem ver as actuações da belga Lubiana e da portuguesa Maro, num mar de adolescentes e jovens adultos, talvez 95% mulheres — os outros 5%, presumo, seriam namorados resignados — e esperei para ver o que dali saía.

Antes de Shawn Mendes aparecer, depois da entrada dos músicos, concebi um título possível da crónica: Um concerto de telemóveis e (de) gritos. Os telemóveis formaram uma maré luminosa constante — grava-se tudo, mesmo que se veja pouco — e os gritos surgiam em modo sirene, sobretudo cada vez que o rapaz sorria, dizia “Lisboa” ou pegava na guitarra. Confesso: para quem está ali apenas para escrever uma crónica sociológica, quase como um extraterrestre, há encanto nisto. Mas também fica a sensação de que estamos num karaoke gigante: as fãs cantam tão alto que às vezes quase não se percebe se o homem canta mesmo bem ao vivo. Suspeitei logo no início que sim, mas só nas baladas mais intimistas consegui confirmar.

João Padinha / Everything is New

O concerto abriu com um foguetório e There’s Nothing Holding Me Back, e Mendes tomou conta do palco com uma naturalidade desarmante: calças largas, colete negro, um sorriso de fazer corar as adolescentes. O som esteve sempre coeso, a banda entusiasmada, e o alinhamento trouxe alguns temas que já conhecia: Wonder, Treat You Better, Monster, Lost in Japan em modo disco, e, inevitavelmente, Señorita, com as fãs a cantar de forma ensurdecedora.

E pelo meio, uma ligação genuína ao público. Mendes falou da família, disse sentir-se “em casa”, embora sem dizer uma frase em português, vestiu a camisola 21 em homenagem a Diogo Jota — uma espécie de ritual de ligação a Portugal — e até deixou cair umas palavras sobre Gaza, apelando ao fim do ódio e à escolha do amor. Foi o momento político da noite, relevante para uma plateia que talvez não siga de perto o que se passa no Médio Oriente.

Entre as músicas novas e as “velhas glórias” — não são assim tantas, que o rapaz tem apenas 27 anos —, Shawn Mendes equilibrou intimismo e espectáculo, emoção e energia. O cenário foi minimalista, sem grandes parafernálias, mas eficaz: uso ponderado dos ecrãs, fogo-de-artifício na medida certa, nada de Las Vegas, mas o suficiente para dar aquele sabor de noite grande.

Foto: Pedro Almeida Vieira

Na recta final, a sequência If I Can’t Have You, Why Why Why e In My Blood levou o público ao delírio, culminando com confettis, bandeiras de Portugal e a deliciosa ironia de sair ao som de Uma Casa Portuguesa. Há programadores de setlist que merecem um abraço só por estas ideias.

Saí do Meo Arena surpreendido: não porque sobrevivi sem perda auditiva permanente, mas porque percebi que Shawn Mendes tem mais estofo do que a simples máquina de hits pop faria supor. Tem carisma, voz, uma ligação genuína aos fãs e uma presença de palco que não se aprende nos reality shows. Tem, acima de tudo, uma coisa rara no mundo do mainstream: autenticidade. E, por entre telemóveis erguidos e gritos esganiçados, é isso que um bom concerto deve mostrar.

Nota final: 4 em 5.