Viajo até São Tomé e Príncipe em busca da literatura. Na mala, levo notas de algumas leituras, uma lista de obras e escritores por descobrir, e uma ansiedade imensa de começar a associar os textos aos seus lugares, às paisagens e às vozes que os inspiraram.
Um feliz acaso leva-me ao encontro de Conceição Lima: jornalista, professora, escritora, voz maior da lírica são-tomense. Há dias assim, raros e luminosos, em que a vida nos surpreende com encontros que ultrapassam as nossas melhores expectativas. Ocasiões felizes, em que temos a sorte de nos cruzar com pessoas verdadeiramente extraordinárias.

Nesse instante, a literatura deixa de ser apenas texto: transforma-se em território vivo, partilhado. Conceição falou-me, com entusiasmo e generosidade, da literatura, dos escritores e da história do seu país. Escuto-a, encantada, absorvendo cada palavra.
A certa altura, menciona um romance de Orlando Piedade: Os meninos judeus desterrados de Portugal para São Tomé e Príncipe por ordem d’El-Rei D. João II em 1493. Interrompo-a. Li que a ilha fora povoada por judeus forçados a embarcar para este destino longínquo e inóspito, mas não compreendo a referência às crianças.
Conta-me, então, a história de dois mil meninos e meninas, com idades entre os seis e os oito anos, filhos de judeus castelhanos que, fugindo da Inquisição, procuraram refúgio em Portugal. Crianças arrancadas dos braços dos pais e enviadas, por ordem do rei português, para as ilhas de São Tomé e Príncipe. Uma sentença de morte para a maioria. Um crime entre tantos outros cometidos em nome de um desígnio supostamente maior: o Império. Um crime contra crianças judias que, inevitavelmente, faz o meu pensamento recuar até às imagens de pequenos pijamas às riscas, alinhados por detrás do arame farpado dos campos de concentração nazis.

O massacre de crianças judias não foi apenas um episódio sombrio da história da Humanidade — é, na verdade, uma prática recorrente da Desumanidade. Tão cruel, tão insuportavelmente pesada, tão indigerível, que torna ainda mais chocantes as imagens que hoje vejo no ecrã da televisão: o massacre de crianças palestinianas, perpetrado por israelitas. E digo por israelitas, e não por Israel, de forma intencional. Incomoda-me a facilidade com que se diluem as culpas dos homens, transferindo-se a responsabilidade para um país, um império, uma religião ou uma qualquer instituição.
Os corpos dos meninos palestinianos embrulhados em panos ensanguentados, alinhados como um código de barras tenebroso, tal como os dos meninos judeus que antes deles foram levados para as naus e para as câmaras de gás,não são acasos da História. Não são tragédias inevitáveis. São crimes. Todos estes meninos foram assassinados por homens e mulheres. Gente com nome. Seres de carne e osso. Sem alma, acredito, mas de carne e osso.
E é, por tudo isto, de uma tristeza indizível que os meninos da Palestina morram agora às mãos de israelitas que um dia também foram meninos. Que tiveram o direito de o ser. Que cresceram com a memória da dor inscrita no corpo do seu povo. E que, ainda assim, se tornaram os carrascos: sem memória e sem misericórdia.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve