Olhos sorridentes, mãos roliças e voz de colo, Vivina era professora primária há tanto tempo que já não se lembrava de não o ser. Adorava a sua profissão. Nunca desejara outra coisa.
Contudo, de repente, começou a perguntar-se se, ao ter escolhido tão cedo o ensino, não teria deixado de considerar outras possibilidades. Se aquela decisão precoce não teria silenciado outros talentos.

E foi por esses dias que se deparou com um anúncio que lhe chamou a atenção: uma oficina de narração. Em horário pós-laboral, conduzida por uma conhecida formadora — era exatamente o que procurava. Inscreveu-se, por isso, sem hesitar.
As participantes eram todas mulheres, e todas mais ou menos da sua idade. Nas semanas seguintes, aprenderam técnicas de respiração, memorização e expressão. Abraçaram a experiência com uma alegria quase infantil — pelo menos até ao momento em que perceberam que a sessão final consistiria num sarau. Assustador, sim, mas também desafiante.
Cada uma recebeu um texto distinto. Vivina foi presenteada com um encantador conto de Clarice Lispector: Felicidade clandestina. Leu-o uma primeira vez e sentiu, desde logo, aquele texto como seu. Receou, todavia, não ser capaz de o memorizar. Ainda assim, agarrou a oportunidade de exercitar a memória, que há muito andava adormecida. Culpava a menopausa. As malfadadas alterações hormonais. O que mais poderia ser? Mas não estava disposta a resignar-se.

Durante os dias que antecederam o grande momento, as mulheres ensaiaram como se a própria vida dependesse de decorarem os textos que lhes haviam cabido em sorte. Partilharam entre si as estratégias de cada uma, e concluíram que a palavra de ordem era repetição. Vivina disse o texto vezes sem conta. Ensinou Clarice à gata, aos tachos, às plantas do jardim, aos azulejos do chuveiro, à roupa no estendal. Disse, repetiu, tropeçou, recomeçou, melhorou… Gravou-se, ouviu-se, corrigiu, gravou de novo.
Chegou a noite. Uma a uma, as mulheres vestiram os textos como uma segunda pele e exibiram-nos num desfile de palavras. Confiantes, orgulhosas de si mesmas e das companheiras de aventura. Vivina reconhecia, nos olhos esbugalhados e nos lábios cerrados da formadora, a ansiedade que ela própria sentia nas festas de final de ano escolar.
A ordem alfabética atirou-a para o final da sessão. Ouviu, com genuíno prazer, as suas colegas. Vibrou com o êxito de cada uma — palavras ondulantes, vozes expressivas, gestos teatrais.

Os aplausos e comentários calorosos, um bónus recebido com regozijo:
— Que presença!
— Que capacidade de envolver!
— Que emoção na voz!
Chegada a sua vez, fez-se um breve silêncio. Alguém comentou:
— As suas pausas… as suas pausas são divinas!
Vivina agradeceu com um sorriso e ficou em silêncio, a digerir. As pausas. Mal podia acreditar que, depois de tanto empenho e dedicação, lhe estavam a elogiar as pausas.
Nesse momento, lembrou-se de um menino do primeiro ano, a quem tinha um dia perguntado se estava a gostar da escola. Perante a resposta positiva do aluno, Vivina, entusiasmada, perguntou-lhe do que mais gostava.

O pequeno pôs um ar pensativo e sério e, depois de uns segundos de reflexão, respondeu:
— Dos intervalos.
E agora, tantos anos depois, lá estava ela a proporcionar bons momentos a quem deles desfrutava… nas pausas.
O seu grande talento era afinal o de se fazer ausente — no momento certo e com elegância, queria acreditar.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve