Dinheiro, morte e silêncio: como a Saúde Pública se tornou um mero negócio de interesses

a stethoscope on top of a pile of money

Vem nos manuais, como ensinamento quase sagrado: a agenda setting — esse processo pelo qual determinados temas ganham centralidade no debate público — não é neutra. Depende, antes de mais, de quem fala, de como fala, e sobretudo de quem tem acesso privilegiado aos meios de comunicação.

Num cenário ideal, a imprensa funciona como guardiã da relevância: um watchdog vigilante que impede que o ruído da propaganda se sobreponha às necessidades reais dos cidadãos. A imprensa, nesse modelo, não apenas filtra os temas da agenda política, mas molda-os segundo critérios de interesse público — e não segundo interesses comerciais ou corporativos.

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Hoje o ‘cão de guarda’ dorme ao colo de quem deveria vigiar, ronrona quando lhe estendem uma ração publicitária e ladra apenas quando a farmacêutica estala os dedos. E sobretudo no sector da Saúde, onde as emoções são tão inflamáveis quanto os milhões em jogo. Nos últimos anos — e muito em especial durante a pandemia da covid-19 — assistimos a uma inversão perversa do papel da comunicação social. Longe de agir como mediadora independente, a imprensa tornou-se co-agente de um conluio entre interesses privados (sobretudo da indústria farmacêutica), entidades reguladoras capturadas e ministérios complacentes. Ao invés de fiscalizar, participou. Ao invés de questionar, amplificou. Ao invés de desconfiar, vendeu.

Os media têm vindo a abdicar, cada vez mais, do seu papel fiscalizador para assumirem o de arautos e correias de transmissão de campanhas comerciais. Durante a pandemia, esse fenómeno atingiu o paroxismo: testes vendidos como salvação, vacinas endeusadas como tótem da civilização, fármacos experimentais glorificados antes mesmo de qualquer avaliação crítica.

O Ministério da Saúde, os reguladores e uma parte significativa da comunidade médica — transformada em figurino de publicidade institucional — pactuaram, em aliança obscena, com este novo regime sanitário-mediático. Aquilo que se seguiu foi previsível: venderam-se vacinas e testes como quem vende electrodomésticos num canal de telecompra, com médicos mercenários a apresentarem o produto e jornalistas a assegurarem que não haveria espaço para dúvidas nem para alternativas.

Alternativas essas que, ironicamente, foram diabolizadas não por falta de provas científicas, mas por excesso de interesses. Veja-se a ivermectina, cujo debate foi abafado com histeria moralista, enquanto se publicavam estudos que, mesmo sem conclusões definitivas, mereciam consideração científica, como se pode observar nesta meta-análise publicada já este ano no Annals of Medicine and Surgery.

Em 2020, a jornalista Filipa Traqueia, actualmente no jornal Expresso, achou por bem dissertar no Polígrafo sobre a (in)utilidade da vitamina D, usando como fonte de informação o pneumologista Filipe Froes, um dos médicos com maiores ligações mercantilistas à indústria farmacêutica, conselheiro da DGS e da Ordem dos Médicos e ‘guru’ para a comunicação social durante a pandemia.

E sobretudo veja-se o caso da vitamina D, com provas acumuladas sobre o seu papel imunológico, transformada em suplemento menor por não trazer dividendos a multinacionais. Afinal, há mais lucro em administrar fármacos novos a milhões do que em distribuir sol e bom senso. Logo no início da pandemia, esse arauto do Jornalismo e da Ciência — estou a ironizar — chamado Polígrafo (e seguido por outros) tratou logo de menorizar a utilidade da vitamina D na prevenção e tratamento da covid-19. Isto, claro, com a imprescindível ajuda de um dos maiores mercenários da indústria farmacêutica, Filipe Froes.

Hoje, sobre a covid-19, sabe-se que “níveis baixos de vitamina D aumentaram o risco de infecção entre 1,26 e 2,18 vezes, o risco de doença grave entre 1,50 e 5,57 vezes, o risco de admissão em unidades de cuidados intensivos (UCI) em mais do dobro, e o risco de morte entre 1,22 e 4,15 vezes”, citando ipsis verbis as conclusões de uma meta-análise publicada este ano na Nutrition Reviews, da prestigiada Oxford Academic.

Mas se a pandemia foi um campo fértil para este jornalismo de parceria — entre aspas e sem ironia possível —, os anos que se seguiram não mostraram arrependimento. Pelo contrário, refinaram-se os métodos, disfarçaram-se melhor os conluios, construíram-se narrativas com roupagens de ciência e compaixão.

A nova fronteira de conquista são as doenças raras, sobretudo em idade pediátrica: um terreno fértil para comover corações, amolecer decisões orçamentais e justificar tratamentos a preços pornográficos. O objectivo é simples: quanto mais rara for a doença e mais jovem o doente, mais fácil será colocar o fármaco na agenda pública. Basta um caso mediático, uma associação de pais com boas relações, uma imprensa dócil e, claro, um ex-director de farmacêutica agora estrategicamente colocado numa comissão do Infarmed ou em cargo político com acesso ao Orçamento.

O caso ontem revelado pelo PÁGINA UM, sobre a entrada na Secretaria de Estado da Gestão da Saúde de um quadro da farmacêutica Sanofi, que negociou a compra de anticorpos monoclonais contra o Vírus Sincicial Respiratório (VSR), é paradigmático. A doença, cuja mortalidade é inexistente em Portugal, foi promovida à categoria de emergência sanitária. Resultado? Vinte milhões de euros em compras públicas para imunizar todos os recém-nascidos, incluindo os que nunca estariam em risco. O produto é caro, a doença tornou-se mediaticamente “fofa” — por força das conferências e notícias sobre o tema, mercadejadas pela imprensa — e o argumento parece inatacável: salvar alguns bebés do sofrimento e trauma de um eventual internamento. O agenda setting resulta nisto.

Quem ousará pôr travão, redefinindo prioridades? A imprensa — cúmplice, dependente e indiferente — não. As sociedades médicas, muitas delas sustentadas por apoios da indústria, também não. E os decisores políticos, alimentados pelo vaivém das portas giratórias entre Estado e farmacêuticas, muito menos.

Francisco Gonçalves, ex-Sanofi, e Ana Paula Martins, ex-Gilead: as ‘portas giratórias’ entre as farmacêuticas e o Ministério da Saúde.

Enquanto isso, o que sobra da saúde pública degrada-se em silêncio. Urgências encerradas. Hospitais saturados e mal equipados. Jovens médicos desmotivados e explorados, ao passo que as elites clínicas fazem fortuna acumulando salários públicos e avenças privadas. Listas de espera que se arrastam até ao absurdo. E, cereja pútrida no cimo do bolo, até mesmo doenças associadas à água potável e ao saneamento — ou à falta deles — a matarem 525 pessoas no ano de 2023 em Portugal.

Este número degradante foi publicado ontem discretamente pelo INE, sob a forma de “taxa de mortalidade devida a fontes de água insalubre ou a condições de saneamento e higiene deficientes ou inexistentes por 100.000 habitantes” (vd.aqui). Destas 525 mortes em 2023, três terão sido crianças com menos de 5 anos — portanto, mais do que mata o VSR. Em 2010, estes problemas sanitários tinham sido a causa de 116 óbitos, nenhum dos quais de crianças. Ninguém, na imprensa mainstream, que tem dezenas e dezenas de jornalistas, pegou no assunto. Tal como ninguém fez eco da notícia do PÁGINA UM em Setembro do ano passado onde já se revelava essa vergonhosa tendência de crescimento.

Sobre isto não há reportagens de abertura de telejornal? Onde está a indignação? Onde estão os editoriais de fundo?

Evolução da mortalidade por grupos etários entre 2010 e 2023 para doenças associadas a fontes de água insalubre ou a condições de saneamento e higiene deficientes ou inexistentes. Fonte: INE. Cálculos: PÁGINA UM com base na taxa de mortalidade e estimativas anuais da população por grupos etários.

Não estão. Porque essas mortes, por insalubridade e desleixo, não geram publicidade, nem contratos de venda de fármacos, nem parcerias. São mortes pobres de interesse, sujas de realidade. E dessas, a Senhora Ministra da Saúde, ex-Gilead, e o Senhor Secretário de Estado da Gestão da Saúde, ex-Sanofi, não estão para aí virados, porque a imprensa também não os faz virar para aí. Aquilo que interessa mesmo é vender fármacos, porque basta um contrato, enviar um camião com os medicamentos salvíficos (ou não tanto) e fazer a transferência bancária com o dinheiro dos contribuintes para os cofres dos accionistas das farmacêuticas.

Sem os chatos dos jornalistas watchdogs, agora amestrados em petdogs, o mundo tornou-se distópico: sobrevivemos sem noção de que a Saúde Pública serve quase só para, com contínuos negócios, alimentar uma contínua dependência dos fármacos do sector farmacêutico, que nos salvarão sempre, excepto prova em contrário, que nunca se procurará.