A Comissão Europeia quer manter a discriminação entre vacinados e não-vacinados, propondo o prolongamento do uso dos certificados digitais por mais um ano, até finais de Junho de 2023. E cita estudos que comprovam a “utilidade” das proibições de acesso como incentivo para a toma de mais doses da vacina. Caso seja aprovado o novo regulamento, além da manutenção de uma política segregacionista, com uma quarta dose serão vendidas pelo menos mais de 300 milhões de vacinas na União Europeia, um negócio superior a 6 mil milhões de euros para as farmacêuticas. E acrescem também custos operacionais de gestão dos certificados na ordem dos 10 mil milhões de euros.
Em contraciclo com as decisões de alguns países europeus – como a Dinamarca, Finlândia, Noruega e Reino Unido – em cessar já a discriminação dos cidadãos em função do seu estado vacinal contra a covid-19, a Comissão Europeia quer estender por mais um ano a aplicação dos certificados digitais para condicionar ou proibir a circulação aérea e o acesso a certos lugares públicos por não-vacinados.
Numa altura em que a pandemia se encontra já numa fase claramente endémica, a Comissão von der Leyen – adepta da imposição da vacinação obrigatória universal, incluindo a jovens e crianças – tem já pronta uma proposta de regulamento para prolongar até 30 Junho de 2023 o controlo de entradas através deste certificado, que apenas atesta a toma de vacinas ou a ocorrência de uma infecção recente.
Como os certificados têm agora uma validade de nove meses, a implementação desta medida garante às farmacêuticas pelo menos mais um reforço vacinal. No limite, quem tomou a chamada “dose de reforço” até finais de Novembro do ano passado terá de receber uma quinta dose para não sofrer restrições de circulação até ao meio do próximo ano.
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No texto que acompanha a sua proposta de regulamento, a Comissão Europeia mostra ser uma fervorosa adepta do uso do certificado digital para o condicionamento de acesso em espaços públicos no interior de cada país (por exemplo, em restaurantes, ginásios ou eventos culturais e desportivos) como instrumento de “incentivo” para a vacinação. E menciona expressamente dois estudos que provam que a implementação do certificado digital convenceu muitos a vacinarem-se.
Num desses estudos, ainda em fase de working paper, investigadores belgas e franceses defendem que durante o Verão do ano passado os “certificados covid” contribuíram para um aumento substancial na aceitação de vacinas: mais 13,0 pontos percentuais (pp) na França, mais 6,2 na Alemanha e mais 9,7 na Itália. Ou seja, na verdade, assumem que as pessoas não se vacinaram por acreditar no poder de protecção da vacina; quiseram, sim, apenas continuar a movimentar-se livremente.
Mas os investigadores também garantem que o certificado salvou vidas, embora através de uma mera análise contrafactual – ou seja, fazendo estimativas sobre eventuais mortes que teriam ocorrido se não houvesse aquele aumento de vacinação. Na sua opinião, sem esse reforço de vacinação teriam morrido mais 3.979 pessoas por covid-19 na França, 1.133 na Alemanha e 1.331 na Itália, além de avultadas perdas económicas.
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Saliente-se, contudo, que nestes três países – tal como, aliás, em Portugal – morreram mais pessoas por covid-19 no Verão de 2021 (com vacina) do que no Verão de 2020 (ainda sem vacina).
Noutro estudo (sem peer review), também mencionado pela Comissão Europeia, e que aborda igualmente a realidade do Canadá, aponta-se para uma subida semanal superior a 60% na primeira toma da vacina após a decisão das autoridades em impor o uso de certificado digital como forma de discriminação dos cidadãos não-vacinados.
Recorde-se que, na União Europeia, onde já se emitiram mais de mil milhões de certificados, a vacina contra os efeitos do SARS-CoV-2 só passou a ser obrigatória na Áustria, e para certas profissões em outros Estados-membros, como a Grécia e Hungria (para profissionais de saúde), na França (profissionais de saúde e forças de segurança) e na Itália (para as duas anteriores classes, e também para professores e trabalhadores de lares).
Estas decisões são polémicas, tanto mais que, por norma, nem os Estados nem as farmacêuticas assumem responsabilidades em caso de efeitos adversos. Em todo o caso, o Governo italiano já reservou 150 milhões de euros com vista a compensar eventuais reacções adversas da vacinação.
Face à relutância de uma franja importante da população em tomar a dose de reforço, a manutenção do certificado digital constitui assim uma forma de coerção e incentivo. Caso 80% da população europeia “vacinável” adira a um reforço, serão vendidas mais de 300 milhões de doses, o que representará um negócio de 6 mil milhões de euros para as farmacêuticas. Além disto, os custos operacionais previstos pela própria Comissão Europeia para o prolongamento do certificado digital podem ascender aos 10 mil milhões de euros.
A proposta da Comissão von der Leyen, apresentada no seu site em 23 línguas, está agora em consulta pública até ao próximo dia 8 de Abril, e a merecer já forte contestação, com uma elevada participação. Ontem, pelas 19 horas, o PÁGINA UM contabilizou 24.182 comentários, quase todos criticando o carácter desumano e discriminatório do certificado, até porque, como instrumento de controlo da doença, este papel não constitui nem garantia de não-infecção nem de não-transmissão da covid-19.
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Hoje, pelas 16 horas, o número de comentários já ultrapassava os 28.000, sendo que 53% provinham da Itália, 9% da Alemanha e 8% da França e também da Holanda. Com 451 comentários, Portugal encontrava-se na nona posição (2% do total). Além das opiniões de cidadãos, a proposta de regulamento incluía já comentários de 106 empresas ou associações empresariais, 23 universidades, 18 entidades públicas, 22 organizações de consumidores ou não-governamentais, cinco sindicatos e outras tantas associações de defesa do ambiente.
A Comissão Europeia promete que “todos os comentários recebidos serão resumidos e apresentados ao Parlamento Europeu e ao Conselho a fim de contribuir para o debate legislativo”.
Nota: Para leitura integral da proposta da Comissão Europeia, e para elaborar comentários, pode aceder AQUI.