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  • André Carvalho Ramos e uma queixa ‘à la ChatGPT’

    André Carvalho Ramos e uma queixa ‘à la ChatGPT’


    Sou jornalista há 27 anos e já vi muito nas redacções, nas minhas tarefas de edição. Mas não vi tudo. Vi estagiários a fazer batota, fazendo ‘corta e cola’ da Wikipedia. Vi jornalistas a copiar notícias de colegas sem os citar (tem acontecido muito com os media a copiar notícias do PÁGINA UM). E assisto hoje ao advento do recurso a ferramentas como o ChatGPT para a elaboração de textos, incluindo textos jornalísticos.

    O problema do uso de modelos de linguagem baseados em inteligência artificial é que não são fiáveis. Cometem erros, dão informação falsa e inventam. Inventam muito.

    Lembrei-me deste tipo de ferramentas quando li o texto da queixa que um pivot de TV fez junto dos reguladores da comunicação social, por entender (mal) que tinha de ter sido ouvido no âmbito de uma notícia do PÁGINA UM sobre jornalistas em situação de manifesta e pública incompatibilidade com a carteira profissional.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    Mas se o conteúdo das queixas do jornalista nos deixou perplexos, a reacção dos reguladores perante a forma como estava escrita a queixa e, depois, a deliberação da ERC, ainda nos deixaram mais estupefactos.

    Mas, afinal, o que tinha a queixa para causar espanto? Passo a explicar. Em causa está uma reclamação do jornalista André Carvalho Ramos (CP 6177), pivot da CNN/TVI. O nome do jornalista foi mencionado numa notícia que referia três dezenas de jornalistas em situação (pública e às claras) de incompatibilidade. Publicada em Outubro passado, a notícia tem como título: “Faroeste na imprensa: Comissão já tirou carteira a jornalistas por incompatibilidades; mas não toca no ‘peixe graúdo”.

    O nome de André Carvalho Ramos é mencionado por ser um dos dois jornalistas que constava da lista de formadores do Curso de Especialização em Media Training do GCIMedia Group e da Universidade Europeia. Esta formação não confere ao jornalista a categoria de docente universitário. É uma formação coordenada por um grupo de comunicação e relações públicas e uma universidade, destinado a formar, designadamente, executivos e gestores.

    Anúncio do GCIMedia Group a promover o seu curso na rede social LinkedIn. Desde Outubro, quando o PÁGINA UM publicou a notícia que menciona o nome do pivot da CNN/TVI, André Carvalho Ramos, até este mês de Fevereiro, o jornalista continuou a fazer parte da lista de formadores deste curso. Só hoje, consultada a página do curso, se verifica que o nome do pivot já não consta da mesma. Mas mantém-se o nome da jornalista Patrícia Matos.

    Os líderes da GCI coordenam e participam como formadores no curso, como é o caso de Pedro Costa, filho do ex-primeiro-ministro António Costa. O membro da comissão política nacional do PS é o actual director-geral da GCI, onde lidera “em particular a área de comunicação institucional”. André Gerson, CEO da GCI é um dos dois coordenadores do curso e Bruno Baptista, presidente do grupo de comunicação, é outro dos formadores.

    O curso da Universidade Europeia/Grupo GCIMedia em questão promete “reforçar competências essenciais ao desenvolvimento profissional no mercado da comunicação”, e dando a possibilidade aos participantes de poderem “progredir nas carreiras de comunicação, relações-públicas ou similar”. Entre as saídas profissionais consta ainda “integrar empresas de comunicação, agências de relações-públicas, departamentos de comunicação externa e outros em que o media training pode ser uma mais-valia”.

    Apesar de ser queixado junto dos reguladores por causa da notícia do PÁGINA UM, desde Outubro até esta semana, o nome do pivot manteve-se na lista de formadores deste curso e já estava no anúncio do programa a ter início em Outubro de 2025. Só ontem, consultada a página do curso, se verificou que o nome do jornalista já não consta da mesma. (Mantém-se, contudo, o nome da jornalista Patrícia Matos (CP 5341), da Medialivre (Now) e ex-pivot da TVI.)

    black computer keyboard

    No caso da queixa feita junto da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), o mais estranho é como é que a queixa foi sequer aceite pelo regulador, pelo menos naqueles termos. Quando recebi o pedido de esclarecimentos da CCPJ, inicialmente pensei que era uma partida. Só podia ser. É que o texto da queixa mencionava normas e disposições legais completamente trocados ou mal citados. Parecia até ser obra do ChatGPT, que de vez em quando inventa leis e acórdãos judiciais.

    Portanto, a minha resposta à CCPJ foi, na prática, um alerta para o regulador de que aqueles artigos que eram mencionados não diziam o que André Carvalho Ramos (ou o ChatGPT) referia que diziam.

    Pensei: “anda uma jornalista há 27 anos a trabalhar nesta profissão, para ter de responder a isto”.

    Na sua queixa, o pivot acusou-me de violar dois artigos do Estatuto do Jornalista (EJ) e uma norma do Código Deontológico (CD). Em causa, disse, estaria o artigo 14.º, n.º 1 do EJ, que, segundo André Carvalho Ramos impõe “ouvir as partes com interesses atendíveis nos casos que a notícia respeite diretamente”.

    Só que não é isso que diz este artigo. O que o número 1 do artigo 14.º impõe na alínea e), concretamente, é que o jornalista tem o dever de “procurar a diversificação das suas fontes de informação e ouvir as partes com interesses atendíveis nos casos de que se ocupem“.

    Ora, a norma não obriga o jornalista, na elaboração da notícia, a ter de ouvir individualmente todas as pessoas que são referidas na notícia em apreço. Neste caso, não tinha de ouvir o pivot porque se tratava de um facto público: o seu nome constava da lista de formadores do curso de media training. Era um facto. Público. O curso foi vendido e promovido na Internet e nas redes sociais com o nome e a fotografia do jornalista. E, entre a data em que a notícia foi publicada, a 16 de Outubro, e esta semana, o nome do pivot constou da lista de formadores do curso. Além disso, na elaboração da notícia, apesar de tudo, tive o cuidado de consultar e confirmar junto de diversas fontes, designadamente institucionais, sobre se o pivot estava numa situação de incompatibilidade ao constar da lista.

    black flat screen tv turned on displaying yellow emoji

    O segundo artigo do EJ invocado por André Carvalho Ramos é o número 1 do artigo 17.º, que segundo o pivot refere que o jornalista deve “assegurar o respeito pela presunção de inocência dos arguidos até à sua condenação final, bem como pela dignidade das pessoas mencionadas nas suas notícias”.

    Mas, o número 1 do artigo em questão, o qual é relativo a “correspondentes estrangeiros” versa assim: “É condição do exercício de funções de correspondente de órgão de comunicação social estrangeiro em Portugal a habilitação com cartão de identificação, emitido ou reconhecido pela CCPJ, que titule a sua actividade e garanta o seu acesso às fontes de informação“.

    Eventualmente, o pivot queria invocar a alínea c) do número 2 do artigo 14.º que indica que o jornalista deve “abster-se de formular acusações sem provas e respeitar a presunção de inocência“. Mas, talvez, se quisesse referir ao número 8 do CD que refere que “o jornalista deve salvaguardar a presunção de inocência dos arguidos até a sentença transitar em julgado“.

    Contudo, a presunção de inocência não se aplica neste caso, por ser apenas aplicável em juízo. Aliás, a aplicação generalizada desta disposição significaria que um jornalista jamais poderia denunciar coisíssima nenhuma, a não ser claro, decisões judiciais que tivessem transitado em julgado.

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    Por fim, André Carvalho Ramos invocou o número 8 do CD que, segundo o pivot, refere que o jornalista deve “procurar a verdade e, com rigor e isenção, relatar os factos com exatidão e interpretá-los de forma honesta”.

    Como vimos acima, não é isso que diz o número 8 do CD… Mas o número 1 do CD refere que “o jornalista deve relatar os factos com rigor e exatidão e interpretá-los com honestidade“.

    Mas na notícia em causa, foram relatados “factos com rigor e exatidão” e foram interpretados “com honestidade”. O pivot tem carteira profissional válida; é pivot da CNN/TVI, e o seu nome constava da lista de formadores do Curso de Especialização de Media Training do GCIMedia Group/Universidade Europeia; o curso não confere o estatuto de docente universitário; ser formador num curso deste tipo constitui uma incompatibilidade.

    Na sua queixa, o pivot refere ainda, genericamente, que a notícia contém “alegações infundadas” e “informações distorcidas”, mas não as identifica. E, até hoje, não pediu ao PÁGINA UM qualquer correcção de “alegações infundadas” e “informações distorcidas” concretas. E o seu nome permaneceu todos estes meses na lista de formadores do dito curso de media training.

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    O pivot também considerou ser “conteúdo ofensivo e difamatório” a referência ao “peixe graúdo” que é feita na notícia. Sobre o uso desta expressão, penso que é claro na notícia que se refere a jornalistas de órgãos de comunicação social nacionais (portanto, conhecidos do grande público), ao contrário de jornalistas de meios de comunicação social locais, regionais ou de nicho. Esta, até o ChatGPT consegue entender…

    A tudo isto, acresce que o pivot parece desconhecer que, de acordo com o artigo 2.º do Estatuto Disciplinar dos Jornalistas, a CCPJ apenas tem legitimidade para proceder à averiguação de infracções disciplinares que, “por acção ou omissão, violarem dolosa ou negligentemente algum dos deveres mencionados no n.º 2 do artigo 14.º do EJ”.

    Em resumo: responder a esta queixa tornou-se um exercício de ‘desatar nós’ e corrigir erros. Como quando estamos a interagir com o ChatGPT e ele ‘mete os pés pelas mãos’ e temos de insistir para que nos forneça a informação correcta.

    [Uma nota para confessar que, na minha resposta à CCPJ, por lapso, ao escrever apressadamente, troquei o número 8 com 9 do CD, mas juro que não usei o ChatGPT para escrever a resposta. Entretanto, já rectifiquei.]

    Só depois de “editar” a queixa que o pivot fez, pude começar a responder às alegações.

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    A queixa que André Carvalho Ramos fez junto da ERC só não é tão mirabolante porque este regulador, ao contrário da CCPJ, teve o discernimento e o bom senso de “convidar o queixoso”, através de dois ofícios em datas diferentes, a “suprir as deficiências do requerimento inicial e também para concretizar o conteúdo da queixa”. Ainda assim, também contém erros na citação de normas e disposições.

    Assim, na sua queixa à ERC, o pivot foi mais concreto e referiu ao regulador que “à data da publicação do artigo”, André Carvalho Ramos “já não fazia parte deste curso”. (Contudo, não apresenta provas). Ora, a notícia do PÁGINA UM é de 16 de Outubro de 2024 e o tal curso estava agendado para Novembro. Porém, apesar disso, e estando já a decorrer o mês de Fevereiro de 2025, certo é que o nome de André Carvalho Ramos continuava associado ao curso.

    Por outro lado, o pivot referiu à ERC que não é formador, mas docente porque pensa que o curso do qual não faz parte (segundo ele) lhe confere o título de docente universitário, o que é uma falsa conclusão.

    ERC

    Como nos garantiram duas fontes abalizadas, para alguém ser formalmente reconhecido como professor universitário, deve cumprir os requisitos do Estatuto da Carreira Docente Universitária (ECDU) no ensino superior público ou os regulamentos internos das universidades privadas.

    Isto implica um vínculo formal com a instituição universitária; qualificações académicas adequadas; e exercício de docência em cursos que fazem parte do sistema oficial de ensino superior (licenciaturas, mestrados, doutoramentos, pós-graduações reconhecidas com ECTS). Se o curso não atribui ECTS, não está enquadrado no sistema do ensino superior.

    Assim, as pessoas que leccionam tal curso, não se qualificam, por lei, como “professores universitários”. Ora, como se observa no plano de estudos do dito curso, não são atribuídas quaisquer unidades de ECTS, pelo que não estamos perante um curso que atribua o estatuto de professor a quem o lecciona, sendo que se está perante evidentes casos de formadores de media training.

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    Atropelando a legislação – e a lógica – a ERC acolheu a queixa e a versão de André Carvalho Ramos. De facto, para a ERC se o jornalista tivesse sido ouvido pelo PÁGINA UM, a notícia teria sido diferente, no que toca ao caso dele. Só que não.  Não teria mudado uma vírgula. Por dois motivos óbvios. Primeiro, porque a notícia foi publicada em Outubro e o curso iria começar em Novembro e o nome dele ainda constava da lista de formadores, que é pública. Se ele não iria ser formador, o nome não devia constar na lista de formadores do curso.

    Segundo, porque o nome de André Carvalho Ramos continuava, em Fevereiro de 2025, a figurar na lista de formadores do curso para a sua próxima edição. Mas, para a ERC, a lógica e os factos não são para aqui chamados.

    Acresce – e este dado é o mais relevante – , que a lei não obriga nenhum jornalista a ouvir André Carvalho Ramos, sobretudo quando se está perante a observação de factos que são públicos (anúncios publicitários ao curso nas redes sociais e página na Internet a promover o curso). Mas, para a ERC, a lei também não é para aqui chamada.

    Aquilo que está subjacente a essa norma é a necessidade de o jornalista auscultar as partes com interesses atendíveis; e assim se fez, citando mesmo a CCPJ, já sem referir a própria ERC que, sobre esta matéria, tem já tomado diversas posições, a solicitações diversas do PÁGINA UM.

    selective focus photography of people sitting on chairs while writing on notebooks

    Note-se, ainda, que foi o PÁGINA UM que pediu à ERC que enviasse a sua resposta/defesa para a CCPJ (o que a ERC fez a 23 de Dezembro de 2024), por eventualmente poder conter matéria da competência daquela entidade.

    Em jeito de conclusão, não sei o que será pior:

    – Um pivot da TV pensar que dar cursos de media training não é uma incompatibilidade;

    – Um pivot da TV fazer uma queixa com erros em que troca normas e disposições legais ou os cita mal;

    – A CCPJ aceitar a queixa como está escrita;

    – A CCPJ pedir à jornalista que escreveu a notícia uma resposta à queixa apresentada naqueles termos, de um jornalista cujo nome consta de um curso de media training;

    –  A ERC aceitar a queixa do pivot de TV;

    – A ERC deliberar que, sendo público que o pivot está na lista de formadores no curso de media training (agora para a edição de 2025), tinha de ser ouvido e que tal mudaria completamente a notícia.

    person sitting in front bookshelf

    Penso que, apesar de tudo, no meio disto tudo, escrever o texto da queixa à CCPJ e à ERC com troca de artigos e citações erradas é um mal menor.

    Pela positiva, sobra o facto de que a ERC até reconhece, na sua deliberação, que “a matéria noticiada pelo PÁGINA UM se reveste de interesse público e jornalístico”. Pena é que, neste caso, não tenha defendido esse interesse público e jornalístico.

    Mas é assim. Uns jornalistas constam de listas de formadores de cursos de media training coordenados por grupos de comunicação e relações públicas. Outros investigam e publicam notícias de “interesse público e jornalístico”. Quem é que a CCPJ e a ERC defendem? (Aliás, até perseguem os jornalistas do PÁGINA UM, como tem ficado evidente em diversas iniciativas destes reguladores, sendo a mais recente, a tentativa da CCPJ de não revalidar a minha carteira profissional).

    Se calhar, mesmo com as leis trocadas e mal citadas, não seríamos pior servidos se tivéssemos a regulação da comunicação social a ser feita pelo ChatGPT. Pelo menos, assim, sempre haveria uma justificação mais aceitável para os erros regulatórios e os atropelos das leis. E do Jornalismo e dos jornalistas.

    Elisabete Tavares é jornalista

    N.D. Ontem, o jornalista teve o cuidado de apagar os rastos da sua ligação à formação em media training em 2024, fazendo também desaparecer a referência a ser um formador na edição a começar em Outubro de 2025. No LinkedIn também apagou a publicação onde assumia que integrava a formação em media training em resposta a uma publicação do CEO da GCI, agência de comunicação liderada por Pedro Costa, filho de António Costa. Nesta sanha ‘apaguista’, bloqueou o acesso do director do PÁGINA UM ao seu perfil. Porém, ao contrário do ‘What happens in Vegas, stays in Vegas’, uma vez na Internet, fica registado na Internet – e o PÁGINA UM registou tudo no Archive.


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  • O Jornalismo nosso de cada dia

    O Jornalismo nosso de cada dia


    Aqui na Graça, em Lisboa, há uma padaria antiga que fabrica o seu pão no forno, diariamente. O aroma naquela rua é delicioso. Sou cliente habitual, como muitos dos meus vizinhos. No outro dia, dizia-me o padeiro: “a minha filha adolescente prefere pão do tipo ‘Bimbo’. Diz que este pão daqui sabe muito a pão. Gosta mais do outro, que está cheio de ‘produtos’”.

    Os meus filhos adoram o pão da padaria da Graça mas também comem pão do tipo ‘Bimbo’, de vez em quando. Mas recordei-me daquela situação na padaria a propósito do que se passa hoje no Jornalismo em Portugal e na regulação do sector. Os reguladores, grandes órgãos de comunicação social e muitos jornalistas já não apreciam o Jornalismo feito no forno, à antiga. Preferem o outro, que se vende no supermercado, mais apetecível, cheio de ‘produtos’, conservantes e aromatizantes para ser levezinho e durar mais tempo. Que segue a corrente das ideologias da moda e das temáticas amigas do poder, que prende e amansa as massas. O Jornalismo à antiga ‘sabe’ demasiado a Jornalismo, para eles.

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    Foto: D.R.

    O caso que se passou comigo na última semana, com a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) a ponderar não revalidar a minha carteira profissional sem qualquer fundamentação, gerou uma onda de apoio por parte dos leitores do PÁGINA UM, de cidadãos e de jornalistas (incluindo ex-membros da CCPJ). Foi a pressão gerada por essa onda de apoio que, acredito, levou à rápida revalidação do meu título profissional. Mas esta atitude arbitrária e perigosa da CCPJ é uma das provas de que o jornalismo ‘Bimbo’ está a vingar. Pelo menos junto dos reguladores, como a CCPJ.

    Mas não só. Também esta semana recebemos no PÁGINA UM uma deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC). Em causa estava uma queixa contra mim e contra o jornal feita pelo pivot da CNN/TVI André Carvalho Ramos (CP 6177). O jornalista foi um dos mencionados numa notícia que publicámos recentemente sobre jornalistas que exercem funções incompatíveis com a carteira profissional, por ser formador no Curso de Especialização em Media Training, o qual é promovido por um grupo de comunicação, GCIMedia Group, com a Universidade Europeia. São os dirigentes do grupo de comunicação que comandam o curso dirigido, designadamente, a gestores e executivos e com saídas profissionais na área de relações públicas. Frise-se que não se trata de uma licenciatura, pós-gradução ou curso de mestrado. [O jornalista da CNN/TVI referiu à ERC que “não fazia parte do curso”, tendo “cancelado a sua participação por motivos pessoais”. Por outro lado, referiu que não é formador, mas docente. Contudo, o seu nome continua a figurar na lista de formadores deste curso, como se pode confirmar no site que promove esta formação em media training. E o curso de especialização em causa não confere o estatuto de professor universitário.]

    Na sua deliberação, a ERC até reconhece o interesse público da notícia que publicámos e a sua relevância. Contudo, apesar de ser informação pública o facto de o referido jornalista ser um dos formadores do curso, porque está no site da Universidade, a ERC entende que o jornal deveria tê-lo ouvido. Note-se que na notícia são mencionados dezenas de jornalistas. Tudo o que está na notícia é público e os leitores (e os reguladores, como a ERC) encontram lá os links para conferir a informação que é dada sobre cada jornalista e as funções ‘extra’ jornalismo que desempenham, em situação de incompatibilidade.

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    Foto: D.R.

    Mais. O mesmo jornalista fez queixa junto da CCPJ que, perante os factos, pediu esclarecimentos… a mim. Regulação ‘Bimbo’, de novo.

    Mas estas atitudes da CCPJ e da ERC não são isoladas. Inserem-se numa cultura medíocre e decadente em que um dos seus expoentes foi o que sucedeu no último Congresso dos Jornalistas. O evento foi presidido pelo jornalista Pedro Coelho, da SIC, e teve entre os seus promotores o Sindicato dos Jornalistas. Ora, a organização entendeu (de forma perigosa) que os jornalistas que pretendiam cobrir o evento teriam de pagar para entrar. Ou seja, a pagar para poderem cobrir o Congresso dos Jornalistas.

    O PÁGINA UM recusou alinhar com aquela prática de jornalismo ‘Bimbo’ e avançou com queixa para a ERC e, posteriormente, para a Provedoria de Justiça. O resultado foi esclarecedor. Certamente que, para não ser politicamente incorrecta e não ferir as ‘sensibilidades’ dos organizadores do congresso, a ERC deliberou que “a necessidade de inscrição prévia e o dispêndio de uma verba correlativa como condição de acesso ao Congresso [dos Jornalistas] não consubstancia um tratamento discriminatório relativamente a jornalistas que apenas pretendem assegurar a cobertura editorial desse evento”.

    Pedro Coelho, jornalista, liderou a organização do V Congresso dos Jornalistas. O evento foi patrocinado por mais de uma dúzia de entidades, incluindo empresas e bancos, e era cobrada entrada a jornalistas interessados em cobrirem o congresso. (Foto. D.R.)

    Já a Provedoria de Justiça, após promover uma “reunião técnica com o Departamento Jurídico da ERC” deliberou num outro sentido. “Em resultado do diálogo assim estabelecido, e para futuro, concluiu-se existir margem para a concretização de um sistema de credenciação de jornalistas neste tipo de eventos — diferenciado do que sejam os direitos de ali apresentar comunicações, intervir nos debates e votar”, refere a missiva com o parecer enviada ao PÁGINA UM, no final de Agosto passado, assinada pelo provedor-adjunto Ravi Afonso Pereira . “Neste sentido, reforçou-se junto da ERC a importância de ser desencadeada essa reflexão, que envolva também a participação dos diferentes agentes e parceiros institucionais”, rematou.

    Ou seja: o próximo Congresso dos Jornalistas terá de acomodar a entrada de jornalistas em trabalho, para cobrir o evento, sem lhes cobrar absolutamente nada. Como deve ser e como devia ter sido sempre, como é óbvio para quem defende e ama o Jornalismo.

    Mas não só. Recorde-se que o V Congresso dos Jornalistas aceitou receber financiamento de 15 — quinze — empresas. Isto não se inventa.

    Que o Sindicato tenha alinhado com aquelas práticas é um sinal de fraqueza e desorientação. Que Pedro Coelho tenha considerado que era normal cobrar a jornalistas para fazerem o seu trabalho, é um sinal dos tempos também. Tempos em que jornalistas se confundem com ‘estrelas mediáticas’, ocupando (demasiado) tempo de antena nas suas reportagens e nas TVs. E organizam congressos a cobrar aos colegas para o cobrirem jornalisticamente.

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    Foto: D.R.

    Desde que o PÁGINA UM nasceu que alguns dos jornalistas ‘Bimbo’ portugueses desprezam o jornal, as suas investigações e os seus jornalistas, eu incluída. (E ainda bem!) Espalham desinformação sobre o jornal e sobre os jornalistas do PÁGINA UM em conversas nos grupos de jornalistas nas redes sociais e no Whatsapp (dos quais nunca quis nem nunca quererei fazer parte). Também almoçam e convivem com algumas das personalidades e governantes alvo de investigações do PÁGINA UM. E não escondem a sua simpatia por alguns eles. São estes jornalistas ‘Bimbo’ que são ávidos a fazer corta e cola de notícias da Lusa (mesmo as enviesadas ou com erros), mas boicotam claramente, de forma evidente, as notícias e investigações do PÁGINA UM. (Melhor para o jornal, que, graças a isso, até tem ganho ainda mais leitores, pois não conseguem ler a maioria das nossas notícias nos meios tradicionais).     

    Entre a regulação cheia de conservantes, jornalistas com o ego inchado e cheio de espessantes, e órgãos de comunicação social carregados de aromatizantes artificiais (como as aberrantes parcerias comerciais), onde fica o futuro Jornalismo em Portugal? Fica nas mãos dos leitores, do público. Só eles podem fazer a diferença. Só eles podem pressionar para a mudança. Podem exigir qualidade na regulação e na cobertura noticiosa. E só eles podem apoiar financeiramente e possibilitar que haja quem faça Jornalismo ‘à antiga’, seja no digital, no papel, na rádio, na TV.

    Não nos enganemos. Haverá sempre quem prefira ‘Bimbo’. É mais fácil de engolir, mais leve, mais molinho. É preciso comer muito para ficar ‘cheio’. A aposta é na ‘quantidade’. O Jornalismo ‘à antiga’, feito no forno, sacia e preenche. Mas é mais ‘duro’, nem sempre é fácil de engolir. Até há quem se engasgue com ele. Mas sem ele a Democracia fica em perigo. Sem ele, a Liberdade fica em perigo, incluindo a liberdade de nos expressarmos e de pensarmos diferente. E se partidos políticos e Governos preferem alimentar e financiar o jornalismo com aromatizantes artificiais e conservantes, é compreensível. Será excelente para eles. Cabe aos leitores apoiar ‘o outro’ Jornalismo. Mesmo que, por vezes, seja mesmo duro de roer.

    Elisabete Tavares é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • O ‘dia da vergonha’ para a imprensa

    O ‘dia da vergonha’ para a imprensa


    Os norte-americanos deram um murro na mesa e elegeram Donald Trump para a Casa Branca. Será o 47º Presidente dos Estados Unidos. Mas a vitória de Trump não representa apenas a derrota de Kamala Harris, a candidata do Partido Democrata. Representa também a derrota da imprensa tradicional que, mais uma vez, nestas eleições, decidiu meter a ética jornalística debaixo do tapete. Na cobertura que fez da campanha de Trump nestas eleições, a generalidade da imprensa mainstream, incluindo a portuguesa, destilou ódio e desinformação em vez de fornecer ao público factos e rigor jornalístico.

    Essa cobertura enviesada criou uma opinião pública mal informada e com o ‘cérebro lavado’ de imagens de um Trump ‘fascista’ contra uma Harris ‘heroína’.

    Durante a campanha para a Casa Branca, a maioria dos jornalistas de grandes órgãos de comunicação social endeusou Harris, escolhendo as melhores fotografias, as poses mais favoráveis, as frases que ficavam mais ‘no ouvido’. E enterrou o passado de Harris, as frases comprometedoras, as gaffes, as gigantescas falhas.

    graffiti, trump, melbourne

    Em geral, os media, enterraram todos os ‘defeitos de Harris e exacerbaram os de Trump. Fingiram que Harris não tem sido número dois na administração Biden, sendo cúmplice das suas políticas, nomeadamente o envolvimento e apoio do país a conflitos armados e guerras. Fingiram que Harris não era a pró-censura e contra a liberdade de imprensa e de expressão. Fingiram que Harris era a democrata, a ‘boa’, e pintaram Trump como o ‘fascista’, o ‘mau’. E falharam. A imprensa escolheu um lado, violando o Jornalismo. E perdeu. Massivamente.

    O dia de hoje não foi apenas de vitória para Trump e para os republicanos. Foi um dia de despertar para muitos na imprensa, nomeadamente em Portugal. Falharam nas previsões. Falharam nas expectativas. Falharam, sobretudo, com o Jornalismo e com o público, os leitores, ouvintes e telespectadores. Mas ganharam no ódio, que é visível em algumas reacções ao resultado eleitoral na Internet.

    Ao mar de jornalistas e comentadores a destilar ódio e mentiras nos media, juntaram-se jornalistas e comentadores influencers a espumar raiva nas redes sociais. Dois exemplos, em Portugal, são casos como o de Mafalda Anjos e de Luís Ribeiro. A primeira foi directora da Visão até ao final do ano passado e actualmente é comentadora da CNN; o segundo continua a ser jornalista desta revista da Trust in News, desde 1999, e ainda comenta na SIC. Ambos lançam insultos recorrentes em publicações na rede X e alimentam assim uma rede de seguidores e ‘haters’ que sustentam a sua base de audiência e de ‘engagement’ naquela rede social (e isso pode trazer receita). Promovem o discurso de ódio constantemente e alimentam-se disso. São os vampiros desta era digital em que as redes sociais se tornaram um espelho do pior que pode haver nos seres humanos.

    Curiosamente, Mafalda e Luís são dois nomes associados a um grupo de media à beira da insolvência, a Trust in News. Não será coincidência. Ambos reflectem o pior que pode haver em ‘jornalistas’: proferem discurso de ódio contra os seus ‘alvos’; promovem uma cultura de polarização. Usam a sua posição como jornalistas e a sua carteira profissional para levar a cabo campanhas de raiva aproveitando para ganhar audiência com a polarização de seguidores e ‘haters‘.

    Estes dois influencers/jornalistas são exemplos do tipo de individualidades que vampirizam o ecossistema digital e que se alimentam do ódio e de um público polarizado, em parte, devido à actuação da imprensa  tradicional, que ao invés de informar, muitas vezes aposta na propaganda e na polarização.

    Estes influencers do ódio vivem das emoções das massas, manipulando-as; usam e abusam das mais básicas técnicas de bullying e assédio contra os seus ‘alvos’.  Muitas vezes, lendo algumas publicações, parecem ter sido escritas por adolescentes inseguros, com borbulhas e muito ódio aos pais, procurando desesperadamente a validação dos seus pares para se sentirem integrados e aceites num qualquer grupo.

    man in black suit jacket

    Curiosamente, a faixa etária que mais votou em Trump foi a dos adultos já mesmo adultos – entre os 45 e os 64 anos. E Trump conquistou também o voto popular. Na realidade, é o tipo de malta que não tem pachorra para tretas e merdas nem paciência para influencers digitais inseguros a espumar raiva e a debitar insultos.  

    Quando há adultos ‘na sala’, a opinião destes influencers/jornalistas vale menos que zero. Isto é válido para Portugal, com exemplos como o destes influencers/jornalistas, como nos Estados Unidos . E, na verdade, as notícias enviesadas e com discurso de ódio contra Trump até ajudaram à derrota de Harris.

    Com estas eleições, surge a visão de um mundo ocidental em que o Jornalismo se liberta desta imprensa tóxica que tem asfixiado o público e a verdade. Não admira que Jeff Bezos, dono da Amazon e do Washington Post, tenha apoiado a decisão do seu jornal de não recomendar o voto em nenhum dos candidatos à Casa Branca. O magnata assumiu, ele próprio, o declínio da credibilidade da imprensa mainstream. De resto, a perda de credibilidade tem crescido em paralelo com as campanhas de desinformação a que todos assistimos nos media, em temas como a pandemia, Ucrânia, inflação, Gaza, etc, etc..

    Estas eleições são um sinal de que a era destes vampiros/influencers do ódio tem os seus dias contados e que a sua popularidade está agora restrita a um nicho ‘dark’ e depressivo do ecossistema digital que vive da raiva e dos insultos. Uma minoria raivosa a espumar e a atirar pedras entre si.  

    Com estas eleições, pelo menos nos Estados Unidos, floresce a visão de uma Internet em que há liberdade de imprensa e de expressão, em que é aceite diversidade de opiniões. Enquanto isso, no resto do mundo ocidental paira a nuvem da censura e do fim da liberdade de imprensa e de expressão, designadamente na Europa e em países como o Brasil.

    Não duvido que estas eleições norte-americanas são também a pedra que marca agora a sepultura onde jaz a credibilidade da imprensa tradicional.

    Trump tem muitos defeitos. Bezos também. Mas ambos sabem quando um ‘produto’ está morto. E o motor da imprensa é a sua credibilidade. Sem ela, não há ‘produto’. A morte em definitivo do motor, da credibilidade da imprensa mainstream, dá esperança de que haja um futuro para o Jornalismo. Um futuro em que uma nova imprensa, com um novo motor, com credibilidade, se apresenta ao público para cumprir a sua missão de informar com rigor e seriedade. Porque esta imprensa tóxica, que tem alimentado mentiras e a polarização, defendido a censura digital e apoiado a indústria de guerra, se morrer, traz outra esperança: a de que há um futuro para a Democracia no mundo ocidental. E para a Paz.


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  • A importância do combate à desinformação oficial: um exemplo

    A importância do combate à desinformação oficial: um exemplo


    Věra Jourová, vice-presidente da Comissão Europeia (CE) para ‘os Valores e Transparência’, certamente que não esperava ser desmentida em público tão prontamente. Mas foi isso mesmo que aconteceu esta semana, quando a responsável da CE decidiu publicar um “esclarecimento”.

    Em causa está uma nova regulação polémica que iria ser votada na passada quinta-feira, dia 20 de Junho, em sede do Conselho Europeu, e que foi anunciada como tendo como objectivo o combate à partilha de conteúdos relacionados com abusos sexuais de menores. Mas críticos da regulação, conhecida como ‘Chat Control 2.0’, apontam que se trata de um ‘cavalo de Tróia’ que vai acabar com as mensagens encriptadas e eliminar a privacidade das comunicações digitais de todos os europeus, como noticiou o PÁGINA UM.

    Věra Jourová, vice-presidente da Comissão Europeia para ‘os Valores e a Transparência’. (Foto: D.R.)

    A proposta de lei surge numa altura em que na Comissão Europeia floresce um ideia que ameaça provocar um retrocesso civilizacional ao nível dos direitos humanos e civis. Trata-se de uma ideia que também tem vindo a ser semeada pela própria vice-presidente da CE: a ideia de que a ‘segurança’ é tão importante quanto o direito à privacidade. Ninguém decente questiona a importância de se combater e travar a partilha de conteúdos com abusos de menores, um crime hediondo. A questão é quando se admite que a solução é eliminar o direito à privacidade a todos os cidadãos. [Sobre este tema escreverei um outro texto em breve.]

    A celeuma que a proposta de nova regulação gerou foi tanta que acabou por ser retirada da agenda de trabalhos do Coreper, onde iria ser votada, e não tem ainda data para nova deliberação.

    No seu “esclarecimento”, publicado na rede social X, Věra Jourová tentava desacreditar os muitos críticos da proposta, entre os quais se contam os líderes de empresas de mensagens como Whatsapp e Signal e também políticos e académicos.

    “Deixem-me esclarecer uma coisa sobre o nosso projeto de lei para detectar abuso sexual infantil online #CSAM“. A nossa proposta não é quebrar a encriptação. A nossa proposta preserva a privacidade e quaisquer medidas tomadas devem estar em conformidade com as leis de privacidade da UE”, escreveu Jourová.

    Imediatamente, a vice-presidente da Comissão Europeia foi desmentida através de uma nota de contexto, ou ‘nota de comunidade’, que foi adicionada ao seu comentário. As notas de contexto são uma ferramenta da rede X que permite que haja uma rápida contextualização (ou desmentido) por parte da comunidade de utilizadores. “A proposta de vigiar todas as comunicações digitais de todos os europeus não preserva a privacidade. É condenada por académicos, reguladores de protecção de privacidade e peritos jurídicos internos do Conselho da União Europeia pela sua grosseira violação de privacidade”, diz a nota que é complementada com ligações para diversas fontes.

    Mas a nota de contexto foi actualizada mais tarde e a vice-presidente da CE passou a ser desmentida … por si própria. “A senhora Jourová disse que a proposta de lei quebra a encriptação. Ela disse isso hoje”, lê-se na nota de contexto mais recente, que é fundamentada num vídeo com declarações da própria responsável da CE.

    A publicação que partilhou o vídeo transcreve as declarações de Jourová: “mesmo as mensagens encriptadas podem ser quebradas”. [Pode ver o vídeo original na íntegra AQUI]. A publicação acrescenta ainda: “a vice-presidente de Transparência da UE mina as declarações da UE de que #ChatControl não quebra a encriptação na Cimeira de Proteção de Dados da UE“, um evento que decorreu no dia 20.

    Mas Jourová foi também desmentida pela presidente da Signal Foundation, entre outros, que se mostraram desconcertados com o “esclarecimento” da vice-presidente da CE.

    A presidente da Signal Foundation republicou a publicação de Jourová desmentido a responsável da CE com o comentário: “respeitosamente, a sua proposta quebra a encriptação”. Adicionou que teria “prazer em gastar o tempo que precisar a rever com o máximo de detalhes que se sentir confortável sobre como exatamente isso quebra a encriptação e por que isso é tão perigoso”.

    Aliás, a Signal já tinha alertado que se esta legislação for aprovada, a empresa deixará de operar no espaço europeu.

    Esta situação serve para reflectir sobre o que se passa nos dias de hoje, em que as fontes governamentais ou oficiais de entidades públicas, organizações internacionais e autoridades diversas, raramente são escrutinadas pelos maiores órgãos de comunicação social. O que colocam nos seus comunicados de imprensa ‘é Lei’ para os media. O que dizem nos seus discursos ‘é inquestionável’ para os media. E quem questionar ou é da extrema-direita ou é classificado como pertencendo a um grupo específico ‘nefasto’ qualquer. Quem questionar é alguém que faz “desinformação”, na óptica dos media dos dias de hoje.

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    Os media hoje fazem, em geral, pouco ou nenhum escrutínio de comunicações e anúncios de entidades como a Comissão Europeia ou a Organização Mundial de Saúde, por exemplo, cujos comunicados são recebidos nas redacções como ‘a Verdade’ única e absoluta. (Foto: Freddy Kearney)

    Ou seja, há uns anos, ainda se podia contar com os media, em geral, para contradizer e apanhar políticos e autoridades a mentir. Hoje, com raras excepções, já não é assim. Governos, Comissão Europeia, autoridades diversas, sabem que a maioria dos principais meios de comunicação social não vai contrariar absolutamente nada do que disserem. São raras as ocasiões, nos últimos anos, em que os media mainstream fizeram escrutínio real de comunicados, de políticas e de anúncios de entidades como a Comissão Europeia, a Casa Branca, ou outra, incluindo a ‘suprema’ Organização Mundial da Saúde ou a Direcção-geral de Saúde, que estão colocadas pelos media num pedestal, como se de divindades supremas se tratassem. O mesmo sucede com multinacionais e empresas de certas indústrias, como a farmacêutica. Já viu algum grande jornal a verificar as afirmações da Pfizer, por exemplo?

    Claro que para este lodo tem contribuído a situação financeira deficitária de grandes grupos de comunicação social. [ Veja-se o caso português]. Cada vez, dependem mais das chamadas parcerias comerciais com entidades públicas e privadas. Além da falta de transparência (também por culpa dos reguladores), a situação não augura uma melhoria. Pelo contrário: paira no ar o perigo de grupos de comunicação social ou títulos virem a ser alvo de ‘resgates’ ou de financiamento público no futuro.

    Por outro lado, os meios de comunicação social independentes, com jornalistas experientes mas com menos recursos humanos e financeiros – como o PÁGINA UM – fazem escrutínio, mas centram-se em alguns temas. Não conseguem ‘ir a todos’.

    A acrescentar aos media dóceis e domesticados junta-se uma indústria de supostos ‘verificadores de factos’, os quais têm demonstrado que nem sempre são imparciais e em muitos temas alinham com o comunicado oficial, o press release, o discurso do político ou autoridade, em resumo, alinham com a propaganda. Com algumas excepções, não fazem verdadeiro escrutínio. Alinham com os dogmas do momento, tal como os media.

    Aliás, ‘verificadores de factos’ usariam a frase de Jourová publicada na rede X para poder classificar como falsa qualquer notícia que mencionasse críticas à proposta de lei colocada na mesa pela CE!

    selective focus photography of people sitting on chairs while writing on notebooks

    Existem muitas tácticas para conseguir criar uma cortina de fumo sobre a verdade e ajudar os verificadores de factos a perseguir … os factos e a classificá-los como falsos.

    Aconteceu, por exemplo, com toda a campanha elaborada para censurar a tese de que a covid-19 teve origem num laboratório. E-mails que foram tornados públicos, recentemente, são relevadores sobre como um artigo foi publicado numa publicação científica para desacreditar a tese de que a covid-19 poderá ter surgido de um laboratório. Os e-mails sugerem que o ‘guru’ da gestão da pandemia nos Estados Unidos, Anthony Fauci, teve conhecimento e esteve ligado à criação desse artigo. A organização liderada por Fauci tinha interesse no tema: tinha financiado pesquisa controversa no laboratório em Wuhan, na China. Fauci negou o seu envolvimento, apesar do e-mail de um seu assessor que o implica no caso. Mas, certo é que, com o artigo publicado e a activa colaboração dos media e dos chamados ‘fact-checkers‘, o ‘problema’ estava resolvido. A tese de que a pandemia teve origem num laboratório foi censurada nas redes sociais e plataformas na Internet e ridicularizada nos media. O mesmo tem sucedido com muitos outros temas.

    É assim que tem funcionado a rede que protege os ‘dogmas oficiais’ enquanto espezinha os factos e impede o apuramento da verdade. Quando não se consegue manter o ‘dogma’, tem-se recorrido ao plano B: politizar os temas, forjar facções, tribos, e acusar os críticos de serem ‘conservadores’ ou mesmo da ‘extrema-direita’ (chegando a recorrer à difamação e ao insulto).

    Por isso, é tão refrescante ver uma vice-presidente da Comissão Europeia ser desmentida publicamente de forma tão pronta. Não quer dizer que defenda as notas de contexto do X como sendo infalíveis. Estão longe de ser perfeitas. Mas são uma ferramenta plural e em que toda a comunidade pode intervir, apesar de já estar a haver uma batalha para as controlar. É que, como se sabe, mais do que nunca, dominar a mensagem que chega ao público é o verdadeiro poder. Por isso, tem havido tanta censura e tanta pressão para impedir que informação rigorosa e verdadeira chegue ao público em diversas matérias cruciais para políticos e para grandes multinacionais.

    Se ferramentas como as notas de comunidade servirem para trazer maior transparência e contrariar o lodo de propaganda que chega hoje ao público em massa através dos media, é positivo.

    Preferia, naturalmente, que fossem os media e os jornalistas a fazer o seu trabalho de escrutinar comunicados oficiais e discursos e de questionarem as versões de Ursula von der Leyen, de Jourová, de Anthony Fauci, de Tedros Adhanom, director-geral da OMS. Estamos muito longe desse escrutínio ser feito pelos principais media.

    Mas, para já, enquanto as redacções dos maiores órgãos de comunicação social alinharem com os ‘dogmas oficiais’, percorrendo o caminho para a sua autodestruição, a desinformação proveniente de fontes oficiais vai continuar a florescer e a prosperar. E é uma das principais ameaças à democracia e ao modo de vida dos europeus. Precisa ser combatida. Por todos. Se tiver de ser através de notas de contexto em redes sociais, assim seja.

    Elisabete Tavares é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Método fácil de roubar votos aos partidos ‘fascistas’ em 5 passos

    Método fácil de roubar votos aos partidos ‘fascistas’ em 5 passos


    Pela Europa fora, fala-se na “ascensão do populismo” e do “aumento de votos na direita” e na “extrema-direita”. As perspectivas apontam para que, nestas eleições europeias, se incline para a direita a balança dos deputados eleitos.

    Da Avenida da Liberdade, no dia 25 de Abril, passando pela comunicação social, pela opinião de comentadores/influencers pagos e publicações nas redes sociais, somam-se os apelos ao “combate ao populismo e à extrema-direita”. Em resumo, “aos fascistas”.

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    (Foto: Tetiana Shyshkina)

    Esta visão simplista, infantil e a preto e branco só não espanta porque todos temos observado a enorme bolha em que confortavelmente têm vivido os que apontam o dedo ao “perigo” do “fascismo” como a grande batalha dos nossos tempos, na Europa.

    Jornalistas, comentadores, influencers diversos (incluindo antigos políticos a lucrar com grandes empresas e lobbies), acotovelam-se a ver quem grita mais alto “fora os fascistas!” depois de anos a apoiar políticas anti-democráticas e perigosas, que promoveram a opacidade e a censura e criaram crises em várias frentes.

    Claro que não lhes dá jeito nenhum contar a verdade e defender soluções para os problemas que levam a um certo sentido de voto. Dá-lhes muito jeito apontar o dedo a um novo “inimigo” contra o qual “todos se têm de unir”. Faz lembrar algo?

    Este estratagema antigo e conhecido pode resultar com alguma franja da população (normalmente, sem acesso a informação além das TVs e dos mass media). Mas falha em conseguir já convencer a grande maioria dos cidadãos.

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    (Foto: Slim Emcee)

    Os problemas que afectam hoje muitas famílias e empresas na Europa são sérios. As crises que se acumulam são sérias. O futuro não parece auspicioso e faltam soluções credíveis. Da subida do custo de vida, à habitação, passando pela insegurança, os rendimentos, segurança, impostos e emprego, têm faltado respostas convincentes aos mais vulneráveis e aos jovens.

    Todas estas crises alimentam-se de medidas e políticas que foram tomadas sucessivamente ao longo dos anos por governos que não tiveram como absoluta prioridade o bem-estar das populações e a saúde da economia.

    Uma chatice. Não se pode culpar os “populistas” e a “extrema-direita”, os “fascistas”, pelas medidas lamentavelmente adoptadas na última década, incluindo o abandono a que foram votados muitos imigrantes, que vivem sem condições e vulneráveis a redes de criminosos.

    Mas existe uma solução. Em cinco passos, é possível combater os partidos “populistas” e a “extrema-direita”. Apenas é necessário que todos os partidos que têm governado, nomeadamente com o apoio da suposta esquerda e de centristas, adoptem as seguintes bandeiras:

    • 1 – Pacifismo e “não à guerra”. Ninguém quer ver os maridos, filhos e netos em risco de ir para a guerra. NINGUÉM. Além disso, as guerras criam deslocados e podem abalar os alicerces das economias, atirar milhões para o desemprego e fazer, em simultâneo, disparar o custo de alguns bens. Assim, para atrair votos, é crucial que os partidos de esquerda e centro defendam a diplomação, a negociação e a … PAZ.
    • 2 – Defesa dos direitos humanos, das mulheres, das crianças e da soberania sobre o próprio corpo. Este ponto é fundamental. Para retirar votos aos partidos “populistas” e de “extrema-direita” é crucial que os restantes partidos políticos defendam os direitos humanos. Isto implica mudar algumas das linhas dos seus programas eleitorais que defendem políticas internacionais limitativas aos direitos humanos e civis, nomeadamente na área da Saúde. Defender os direitos humanos é também defender os imigrantes, promover a inclusão e a diversidade. É combater a insegurança e as redes de tráfego humano que assolam a Europa. É também combater o ódio, nomeadamente contra as mulheres, que enfrentam hoje também a discriminação no desporto e outras competições por via da concorrência desleal e injusta por parte de atletas nascidos homem.
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    Têm sido aprovadas na União Europeia, nos anos recentes, políticas que condicionam a liberdade de imprensa e promovem limitações à liberdade de expressão. Ao mesmo tempo, tem estado a ser construída e financiada uma vasta indústria de censura no mundo ocidental que envolve a eliminação de informação verdadeira e a perseguição e difamação de jornalistas, académicos, políticos e cientistas. (Foto: Mick Haupt)

    • 3 – Defesa da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão. Não confundir com a defesa dos mass media, ou media mainstream, que estão muito alinhados com partidos que têm governado na Europa e que têm apoiado políticas que limitam a liberdade de imprensa e de expressão. Para conquistar votos ao “populismo” e à extrema-direita” é importante defender o verdadeiro Jornalismo – o oposto da propaganda – a liberdade de imprensa e o acesso a informação. Isto implica, por exemplo, condenar e rejeitar algumas leis e políticas adoptadas na União Europeia e países do Ocidente, incluindo especificamente a Irlanda e o Canadá. E é crucial exigir a liberdade de Julian Assange, jornalista detido vergonhosamente no Reino Unido e em risco de ser extraditado para os Estados Unidos. O seu “crime” inclui ter publicado provas de crimes de guerra por parte de Estados, incluindo o assassinato de jornalistas. Do mesmo modo, por exemplo, deve acentuar-se a pressão sobre a Rússia para libertar o jornalista norte-americano Evan Gershkovich ou o russo Roman Ivanov. Ou apurar as verdadeiras causa da morte do jornalista Gonzalo Lira numa prisão da Ucrânia. É também crucial compreender que tem vindo a ser criada uma indústria de censura que elimina informação verdadeira e persegue jornalistas, académicos, cientistas, políticos, activistas, médicos que divulguem factos verdadeiros “não autorizados”. Esta indústria é vasta. Envolve governos, universidades, organizações não governamentais financiadas para o efeito, empresas de comunicação social e sites de suposta “verificação de factos”. Há documentos que apontam ainda o envolvimento de agências de informação governamentais em práticas de censura de informação verdadeira e na realização de campanhas de desinformação. É importante defender o debate, o contraditório e a reflexão crítica.
    • 4 – Defesa do ambiente e de uma sociedade verdadeiramente sustentável. Este é outro ponto fundamental. Para roubar votos ao “populismo” é preciso voltar a apostar em políticas de defesa do ambiente e da saúde e bem-estar das populações, com foco na protecção de paisagens naturais e combate aos grandes poluidores. Defender o ambiente é, também, apontar baterias a grandes indústrias poluidoras, fiscalizar e adoptar novas políticas que penalizam essas indústrias. É também desincentivar a sociedade de consumo desenfreado e a produção de bens de curto tempo de vida. É combater o abate de árvores e destruição de habitats. É defender as melhores práticas na agricultura, o bem-estar animal, eliminar de vez a autorização do uso de produtos como o glifosato, proteger bancos de sementes dos interesses de multinacionais e afastar o uso de organismos geneticamente modificados.
    • 5 – Defesa da Democracia. Este é um dos pontos mais relevantes. O nível de democracia tem vindo a cair nos países ocidentais, incluindo Portugal. Há planos para mutilar a Constituição da República Portuguesa. Há um histórico recente preocupante de políticas a serem implementadas sem serem seguidos os devidos procedimentos legais, não só em Portugal mas em outros países. Falta transparência em negócios com dinheiros públicos. Falta combate verdadeiro a corrupção e conflitos de interesses. Na União Europeia, há problemas com opacidade e o envolvimento de lobbies e influência de indústrias. O crescente poder e influência sobre políticas públicas por parte de organizações internacionais não eleitas é uma séria ameaça às democracias ocidentais.
    a group of people holding hands on top of a tree
    (Foto: Shane Rounce)

    A receita para eliminar o “populismo” parece simples, mas não é. Muitos dos partidos de esquerda e centro apoiaram as políticas que têm diminuído o nível de democracia em países como Portugal e que têm ameaçado o respeito pelos direitos humanos, liberdade de expressão e liberdades fundamentais. Apoiaram políticas que afectaram gravemente a economia, o emprego e os rendimentos disponíveis no final do mês e geraram insegurança e instabilidade.

    Recuperar a confiança do eleitorado vai exigir mais do que novos programas eleitorais e frases bonitas.

    Porque, ao contrário do que acusam alguns partidos de esquerda e do centro, não são os partidos “populistas”, de “direita” e de “extrema-direita” que se apropriaram de temas como a defesa dos direitos humanos. Foram os partidos antigos, que têm governado, os partidos de esquerda e de centro que abandonaram temas cruciais como a defesa da Paz, dos Direitos Humanos, da Democracia, da Liberdade e do Jornalismo.

    A crise dos valores europeus é real. Apontar o dedo, criar um inimigo a abater, não é a solução. Criar novas guerras, novas crises, novas emergências não é a solução. A solução é mudar e restaurar a confiança perdida. Mesmo que isso implique reconhecer que se causou dano e que se errou. Reconhecer o erro pode ser o início da reconciliação e o princípio de uma nova era na Europa, em que partidos procurarão defender os interesses e bem-estar dos europeus e os seus valores universais de democracia, paz e respeito pelos direitos humanos e individuais.

    white red and green map

    Temo que partidos à esquerda e centristas não compreendam que o que têm defendido nos útimos anos tem sido, muitas vezes, políticas fascistas, totalitárias. Censura. Cultura de cancelamento e de difamação e perseguição de jornalistas, académicos, cientistas e políticos. Protecção da especulação e das grandes multinacionais. Protecção da opacidade e da corrupção. Em Portugal e na União Europeia.

    Apontar o dedo a um inimigo pode ser fácil. Mas, para muitos europeus, já não vai funcionar. O problema não está nos europeus nem no seu sentido de voto. Está, antes, naqueles que os traíram e desiludiram.

    Por isso, quando vir alguém que aprovou as políticas nos últimos anos a gritar “fora com o fascista!”, recomende-lhe que tenha vergonha na cara. E que arranje um espelho.

    Elisabete Tavares é jornalista


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  • O Povo Unido já foi vencido (e não sabe)

    O Povo Unido já foi vencido (e não sabe)


    Canta-se ‘Grândola, Vila Morena’ a descer a Avenida. Cravos vermelhos na mão, ao peito, ou no cabelo. Caminha-se emocionado, lado a lado com outros portugueses, respirando a memória daquele dia 25 de Abril, faz 50 anos (a minha idade).

    Como a Revolução, também eu nasci em Abril de 1974. Cresci a ouvir as histórias de censura, repressão e medo, muito medo. De política, não se podia falar. Na minha família, havia essa noção e esse conselho era passado às novas gerações. O medo pode ser poderoso. Já não se vivia em ditadura mas a memória dele permanecia (e ele vivia).

    Ouvindo os gritos e vivas à democracia na Avenida, vejo os rostos dos que, de cravo ao peito, desconhecem que nos jornais, nas rádios e nas TVs já não se pode falar de muitos temas importantes para ‘o povo’. Abril é hoje uma sombra do que foi. E o povo canta, sem saber que a nova era de censura e repressão chegou e prospera, cresce, alimenta-se, flui. O povo canta, mas não sabe.

    O povo não sabe que só sai na imprensa o que é ‘autorizado’. O mantra da ditadura de ‘não se fala de política’ foi substituído por ‘não se fala de políticas de Saúde’, ‘não se fala da censura’, ‘não se fala que há um jornalista preso há 5 anos no Reino Unido’. E, sobretudo, ‘não se fala das novas leis de censura e repressão’.

    Ouço na Avenida os cânticos da Revolução, incluindo ‘O povo é quem mais ordena’. Mas o povo não tem hoje um direito fundamental: o do acesso a informação. Porque os media, a imprensa, não dão informação fora da considerada válida pelo regime. Pior. Os media, hoje, são parte do regime. Estão soldados e inseparáveis.

    E que regime é esse? É um regime cuja função é, exclusivamente, defender e proteger interesses financeiros e comerciais. É um regime apropriado à era do consumo fácil, do compra e deita fora, do troca de carro todos os anos.

    O povo não sabe e canta. Caminha de cravo na mão, feliz por estarmos todos a celebrar Abril. Mas celebrar Abril estando às escuras quanto à realidade actual, que inclui a censura e a repressão, não é uma celebração, é uma condenação. Celebrar Abril na ignorância das notícias que não são autorizadas a sair é condenar a Revolução.

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    Esta semana, foi debatido na Assembleia da República um tema de enorme relevância para o futuro do país e dos portugueses. Em outros tempos, seria tema de telejornais em horário nobre. seria tema de primeira página. Seria tema a destacar pelas agências noticiosas e pelas rádios. Mas tente-se procurar notícias sobre esse debate. Deixo esse desafio. O tema que foi debatido foi tão somente o plano da Organização Mundial de Saúde (OMS) de preparação do mundo para futuras pandemias e crises de saúde pública. Que tenha reparado, o PÁGINA UM foi o único órgão de comunicação social a acompanhar o debate.

    O povo não sabe que houve mudanças profundas no plano nos últimos dois meses. Porquê? Porque tiveram de cair propostas que estavam na mesa, incluindo a eliminação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais do artigo 3º do Regulamento Sanitário Internacional. Mas esta era apenas uma das medidas totalitárias e extremistas que estavam na mesa. Outras tiveram de ser ‘riscadas’ do plano. Mas outras medidas polémicas continuam na mesa de negociação. O povo não sabe e este plano da OMS pode ser já adoptado por Portugal no final de Maio.

    E porquê a censura? Porque é um tema sobre políticas de Saúde. O leitor pergunta: porque há censura de temas de Saúde? Porque é uma área que envolve muito, muito dinheiro dos cofres estatais e que é fácil de controlar pela informação que é passada ao ‘povo’. Se o povo só souber o que as TVs passam, o povo é fácil de dominar e aprovará tudo o que lhe disserem que ‘é para o seu bem’. O povo obedecerá e tudo o resto será ‘desinformação’.

    A área de Saúde envolve algo crucial para controlar a população: o medo. O medo de se ficar doente, de morrer, de perder familiares e amigos para vírus e doenças.

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    Mas não é apenas a área de saúde que é alvo de censura por parte dos media. Também a Ciência em geral. Os melhores estudos científicos em diversas áreas são omitidos ao ‘povo’ pela imprensa. Os cientistas e especialistas mais conceituados nunca são entrevistados e até são difamados pela imprensa.

    A censura chega aos jornalistas. Muitas ‘cachas’, temas que seriam manchete, abertura de telejornal, são metidos na gaveta, abafados, escondidos. Jornalistas incómodos , que querem fazer o seu trabalho, são metidos na prateleira.

    Mas o povo canta na Avenida. Os jornais publicam cravos na capa. As TVs passam as imagens da festa de Abril com tom emocionado dos pivots.

    Recordar Abril é fácil (e bom). Honrar Abril é que é cada vez mais difícil na nova era de censura e perseguição.

    Numa entrevista recente ao PÁGINA UM, Stella Assange, mulher do jornalista Julian Assange, disse que o seu marido tem sido “um canário na mina de carvão”. Julian está detido numa prisão de alta segurança no Reino Unido há cinco anos e arrisca a extradição para os Estados Unidos. Biden quer julgá-lo por… ter publicado informação confidencial, incluindo denunciando crimes de guerra cometidos por Estados, incluindo a morte de jornalistas.

    Pouco ou nada se fala de Assange nos media portugueses. Se estivesse preso na Rússia seria notícia todas as semanas.

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    (Foto: Samuel Regan-Asante)

    As ditaduras estão aqui, à nossa porta e a porta já foi aberta. O totalitarismo foi convidado a entrar. O povo unido ‘come e cala’ e ainda canta enquanto come, porque nem sabe o que está a comer.

    Muita legislação tem sido aprovada em países ocidentais com vista a condicionar fortemente a liberdade dos jornalistas e da imprensa e para censurar a liberdade de expressão. Da União Europeia, ao Canadá, Brasil, Austrália, Irlanda, está a ser construído um edifício legislativo de suporte à nova era totalitária. E o povo não sabe porque a imprensa se recusa a noticiar este facto. Este edifício legislativo é um dos pilares do novo regime ocidental anti-democrático, anti-liberdade, anti-jornalismo.

    Este novo regime alimenta os abusos comerciais cometidos por multinacionais, alimenta as políticas globalistas que querem anular culturas e comércio local, alimentam o capitalismo selvagem. Ou seja, este novo regime ocidental alimenta (e alimenta-se de) tudo aquilo que os chamados partidos da esquerda dizem combater.

    E o cravo é agora usurpado, como outros símbolos da liberdade e da democracia, e é usado para promover este novo regime de ‘falsa democracia’ e ‘falsa liberdade’… e do falso jornalismo dos mass media do regime.

    Mas o povo canta, descendo a Avenida. E a imprensa distribui imagens de cravos enquanto anda de braço dado com os opressores e censores.

    Naquela história do elefante que viveu preso toda a vida, o animal, depois de solto, continuou a andar apenas em redor do poste que o prendia. Não sabia que tinha sido libertado. Aqui, em Portugal, no mundo ocidental, o povo tem vindo a ser preso numa redoma de ferro mas sempre com música da revolução e com cravos vermelhos. Está cada vez mais confinado a uma redoma de censura e condicionamento e não sabe.

    O povo pensa que é livre porque canta ‘Grândola, Vila Morena’ e desce a Avenida. O povo pensa que vive em democracia porque vota. O povo pensa que é livre porque pessoas do mesmo sexo se podem casar. Porque o povo pode ir a festivais de música com bandas do estrangeiro. Tudo isto é bom e uma alegria. Mas não chega.

    Na redoma de ferro invisível, sem acesso a informação de forma livre, o povo canta. Dá graças a todas as migalhas de liberdade que o novo regime permite que existam.

    Da imprensa, aos grandes motores de busca na Internet (como o Google), passando por grandes redes sociais ou pela Wikipedia, é patente a ausência de alguma informação verdadeira, factual e crucial que o ‘povo’ devia saber. Pior. Há deturpação de informação e difamação de ‘opositores’ ao regime. A gigantesca indústria de censura que tem vindo a ser montada pelo novo regime ocidental está aí em força. E o povo não sabe.

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    Avenida da Liberdade (Foto: Alice Kotlyarenko)

    Os que lutam contra esta prisão que está quase a ser concluída, fazem uma luta desigual. Mas lutam. Do jornalismo, passando por empresários, por plataformas na Internet, passando por activistas da sociedade civil e mesmo políticos de diversos backgrounds e ideologias, a luta continua. E o povo não sabe.

    Como aconteceu com o caso do plano pandémico da OMS, a imprensa convenceu o povo que o tema é… da ‘extrema-direita’. Como é que o debate sobre o que está nas propostas para a criação de um plano de preparação para pandemias é da ‘extrema-direita’? Quem acredita nisto? Caramba!. Este tema, como outros, não tem cor partidária nem ideologia. Não tem género, nem sexo, nem etnia. O tema do plano pandémico da OMS diz respeito a todos nós, humanos a viver nos países que o irão subscrever e adoptar. Por isso, é bom que saibamos o que está a ser feito para nós e por nós (supostamente).

    Censurar o debate deste tema deveria fazer soar os alarmes. É mais um ‘canário na mina de carvão’. Será que é porque se está a querer criar uma indústria de pandemias para vender produtos, testes, aparelhos, medicação, apps de rastreio? Para impor a venda destes produtos que serão, na maioria, pagos com dinheiros públicos e para encher os bolsos de multinacionais e organizações? Ou o que está a ser feito está a ser bem feito, a pensar efectivamente na saúde pública? Só saberemos se pudermos ter acesso a informação. E isso é o que falta, hoje, sobre este tema e muitos outros.

    Por isso, quando hoje passarem nas TVs as imagens a preto e branco a recordar Abril de 1974, vale a pena pensar na tal redoma de ferro invisível que está a ser construída. Vale a pena pensar que é fácil hoje passar nas TVs imagens de há há meio século e não se consegue ver nas TVs imagens de acontecimentos que estão a acontecer na actualidade. O mesmo se aplica aos jornais e às rádios.

    (Foto: D.R./Arquivos RTP)

    Recordar é bom. Mas não se significar viver num passado de recordações e canções enquanto se ignora que não se é livre. Livre para saber, para se informar, para tomar decisões e apoiar políticas de forma consentida. Sem acesso a informação, o povo é convencido que há temas de que não se fala. Convence-se o povo que temas de relevo como o da Saúde, Liberdade de Expressão, são temas com cor política. Não são. É o novo ‘não se fala de política’ como havia na ditadura do Estado Novo.

    Também canto ‘Grândola, Vila Morena’. Mas canto triste e ao mesmo tempo com esperança. Esperança de que o povo desperte uma madrugada, ao som de uma música na rádio, e desperte, saia do transe em que caiu. E que esse despertar seja o início do fim desta nova ditadura sem rosto, sem nome, mas que nos ameaça manter todos presos. Presos e calados mas com cravos na mão e com autorização para, todos os anos, celebrarmos Abril na Avenida.

    Elisabete Tavares é jornalista


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  • Carta aberta aos nascidos nos anos 70 e 80

    Carta aberta aos nascidos nos anos 70 e 80


    Num vídeo, que se tornou viral, um rapaz mostra-se a bater com o ombro numa porta e imita as reacções ao acidente conforme as diferentes gerações. No caso dos nascidos nos anos 70, depois de irem contra a porta, prosseguem indiferentes. Os nascidos na década de 80 entram em confronto verbal com porta. Os nascidos nos anos 90 levam a mão ao ombro com dor ligeira e reviram os olhos. Os nascidos depois dos 2000 fazem um drama, caem no chão e aproveitam para tirar uma selfie com muitos # de vitimização. Certamente que alguns fariam hoje um vídeo curto sobre o ‘acidente’ para o TikTok.

    Mas este tipo de vídeos e memes, apesar de poderem ser engraçados, estão longe de representar a triste realidade: grande parte da corajosa malta nascida nos desafiantes anos 70 e 80 transformou-se, rendeu-se e traiu a sua geração (e as suas promessas).

    Estas gerações que assistiram ao nascimento e infância da democracia em Portugal, no pós-25 de Abril, que assistiram à queda do Muro de Berlim e ao fim da Guerra Fria, estão, na sua maioria, em silêncio perante o regresso da cultura de censura e repressão. E estão em silêncio, na sua maioria, perante o regresso do poder dos senhores que promovem (e lucram) com as guerras.

    Uns ter-se-ão esquecido quem são devido ao conforto do carro na garagem do condomínio, aos centros comerciais gigantescos, à era do consumo, do smartphone e da Netflix. Outros sentem-se derrotados por décadas de baixos salários, empregos precários e por não verem a luz ao fundo do túnel. E estes também esqueceram quem são.

    Outros, estarão doentes, cansados, desanimados. Mas todos estão rendidos e renegaram, sem saber, às suas promessas de juventude.

    Mas, quer estejam aburguesados, doentes, ou desanimados, assisto, triste, a muitos da minha geração parados, impávidos perante o assalto à democracia e à liberdade que estamos a sofrer na Europa. Em vez de lutarem contra os fortes ataques à democracia em Portugal e na Europa, entretêm-se a publicar quase só fotos de gatinhos, a pôr likes em posts de celebridades e influencers e a encher os seus bolsos pagos pela publicidade encapotada. Em vez de lutarem pela defesa da liberdade de expressão e liberdade de imprensa, apoiam aqueles mass media que estão em perseguição dos que estão a defender a liberdade de expressão, a democracia e a lutar contra a censura.  

    white cassette tape close-up photography

    Muitos da minha geração pensam mesmo – imagine-se – que em Portugal se vai mesmo celebrar os 50 anos de Abril. E acreditam que os comentadores que nas TV falam sobre as cinco décadas da Revolução dos Cravos são mesmo, na sua maioria, defensores da democracia. Muitos da minha geração ignoram o que se está a passar. Ignoram que muitos dos comentadores são pró-censura e pró-leis tiranas. E pró-guerra e pró-condicionamento das liberdades civis e dos direitos humanos, ‘pelo bem de todos’.

    Não entendo. Custa compreender.

    Quando me perguntam, por exemplo, porque tantos jornalistas têm estado em silêncio e pactuado com a censura e a cultura de tirania pró-ditadura (reflectida em leis e políticas de governos ocidentais), respondo: “porque são jornalistas espertos”. São espertos porque defendem o seu ganha-pão, o seu sustento. Sabem que estamos a viver numa era em que regressaram as tendências pró-ditadura – agora disfarçadas sob capas de combate à desinformação e luta contra a ‘extrema-direita’.   

    Já nem falo das estrelas de cinema que tanto me desiludiram nos últimos anos, ao defenderem a censura, nomeadamente nos Estados Unidos, ou a violação da soberania sobre o próprio corpo. Já nem falo das estrelas do rock e da pop que deram concertos apenas a audiências segregadas, apoiando uma cultura ignóbil de discriminação entre seres humanos.

    Falo aqui das pessoas comuns, as que, como eu, frequentaram os bailes ao ar livre nos anos 90, em Lisboa. As que iam ao cinema sempre que podiam. As que sabem de cor os diálogos de ‘The Breakfast Club’ ou do ‘Assalto ao Arranha Céus’. As que ouviram vezes sem conta ‘Get up, Stand up’, de Bob Marley. É para elas que escrevo este texto. Onde estão? O que vos aconteceu?

    Na Europa, a antiga ministra da Defesa da Alemanha, a Sra. Von der Leyen, arrasta o nosso Continente para uma guerra sem fim. O anúncio de uma ‘Economia de Guerra’ na União Europeia não despertou a minha geração para a acção?

    Onde estão os pacifistas da minha geração? Onde estão os pacifistas em geral, os que sabem que as guerras são monstros para alimentar lucros de multinacionais e os bolsos dos políticos (e dos seus filhos) que as promovem?

    Onde estão os pacifistas portugueses? Onde estão os pacifistas europeus? Onde estão os pacifistas do Ocidente? Onde estão os pacifistas do Mundo? Estarão enfiados em shoppings a comprar o último iPhone ou a viajar pela América do Sul? Estarão entretidos a lavar o seu novo carro eléctrico ou a fazer like no seu influencer preferido? Estarão a assistir todo o fim-de-semana aos inúmeros jogos das diferentes Ligas? Estarão distraídos a ver (de novo) ‘aquela série’ da Netflix? Ou estão quebrados por doenças e a sentir-se vítimas de uma vida ‘que os tem maltratado’?

    Onde estão os corajosos, lutadores e destemidos ‘jovens’ da geração de 70 e 80? Onde estão os jovens inspirados a fazer um bypass ao status quo depois de ver o ‘Clube dos Poetas Mortos’? Onde estão os apaixonados e utópicos ‘jovens’ que têm ainda a cassete VHS com o filme (que viram no cinema) sobre ‘Cyrano de Bergerac’?

    E os jovens que gravavam as cassetes com as músicas das rádios pirata? Onde estão?

    Não estranham que, ao fim de tantos anos, não se consiga acabar com os sem-abrigo, a fome e a pobreza, mas que haja sempre milhares de milhões para armas, bancos, ‘a economia’ e as guerras?

    bokeh photography of man wearing shirt

    Não estranham que tenham sido aprovadas, nos últimos tempos, leis na Europa que condicionam a liberdade de imprensa e de expressão? E não estranham que haja em Portugal movimentos de grandes partidos no Parlamento para mutilar de forma impensável a nossa Constituição? Não estranham que esteja a ser desmembrado o conceito de direitos humanos nas alterações ao Regulamento Sanitário Internacional da Organização Mundial da Saúde que estão a ser negociadas por países, incluindo Portugal?

    Não estranham que políticos supostamente de esquerda sejam a favor da censura e da repressão e estejam a perseguir ‘opositores’? (É ler este artigo sobre a reacção de Musk à repressão em curso no Brasil).

    Não estranham que haja censura em 2024 e que tudo o que seja ‘contra o regime’ é ‘desinformação’ e ‘extrema-direita’ (na pandemia eram negacionistas e anti-vacinas’)? Não estranham que muitos dos mass media apoiem a censura e sejam hoje máquinas de propaganda?

    Malta: a torre Nakatomi está em chamas e a nossa geração anda a pôr likes em selfies?

    Nós vimos John McClane descalço, ferido, sozinho, a dar cabo dos assassinos gananciosos e com ar sofisticado! E vimos centenas de filmes com heróis a defender a democracia, a liberdade, a lutar contra os maus!

    (Foto: D.R.)

    Alugámos dezenas de cassetes de vídeo de filmes em que se lutava contra corruptos e a ganância. Vimos ‘Erin Brockovich! Vimos ‘Alien’ e a pobre da Sigourney Weaver a matar ‘bichos viscosos e feios’ atrás de ‘bichos viscosos e feios’.  

    Vimos Mulder e Dana nos ‘X- Files’. No entanto, não estranhamos que nos dias de hoje cada vez mais se perseguem pessoas que fazem alguns alertas sobre as novas leis, chamando-os de ‘teóricos da conspiração’?  Vimos ‘Matrix’ com o Neo. (E, se calhar, continuamos à espera desse ‘The One’ que nos virá salvar.)

    Ouvimos Nirvana, U2, Queen, Metallica, Pink Floyd (e mais todos aqueles que não admitimos que ouvimos, como Def Leppard e Europe). Ouvimos música com sintetizadores. E também músicas com letras sobre liberdade, amor e paz.

    Como é que aceitamos que se difamem e cancelem pessoas, acusando-as de ser da extrema-direita (ou outro nome pejorativo qualquer) porque defendem… a paz, a liberdade e a democracia? É isso que está a acontecer, hoje.

    Nós somos a geração do Ferris Bueller! Vamos deixar que os que têm tiques de ‘bufos’, os censores e a repressão vençam? Que a nova tecno-ditadura se instale? Que o jornalismo seja substituído pela propaganda de mass media amigos do poder (que também lucram com políticas anti-democráticas e a com a tecno-censura)?

    (Foto: D.R.)

    Nós somos a geração de ‘The Breakfast Club’. Vamos deixar que as próximas gerações vivam sem liberdade de expressão e sob repressão constantes? Vamos permitir que a guerra avance e Von der Leyen, os donos da indústria de armamento, as grandes multinacionais e magnatas pró-censura das Big Techs vençam? Vamos deixar que os mass media pró-guerra e pró-ditadura vençam?

    Vamos permitir que todos os que gritam ‘paz’, ‘liberdade’ e ‘democracia’ sejam perseguidos e difamados com acusações que se tornaram cliché, de tão comuns?

    Vamos poder ser quem queremos ser, vamos poder viver em liberdade? Vamos poder expressar a nossa verdade? Vamos poder fugir aos ‘carimbos’, à segregação (por género, etnia, nome de família, conta bancária, ….) e procurar viver numa sociedade que se baseia em valores e princípios mais elevados?

    Lembram-se da carta que Brian Johnson escreveu naquele Sábado de detenção n’ ‘O Clube’, num famoso dia 24 de Março? Começa com “Dear Mr. Vernon” e termina assim: “You see us as you want to see us: in the simplest terms, in the most convenient definitions. But what we found out is that each one of us is a brain, and an athlete, and a basket case, a princess, and a criminal. Does that answer your question? Sincerely yours, The Breakfast Club.”

    Não interessa como (nos) vos vêem. Sabemos quem somos. E nós somos a geração de 70 e 80. E não sabemos apenas ‘quem’ somos. O mais importante é que sabemos o que podemos fazer. Juntos.

    carnation, flowers, red

    O que quero acreditar é que, apesar do conforto e do aburguesamento, apesar da doença ou da pobreza, ou dos shoppings, da Netflix e do carro-na-garagem, ainda há ‘jovens’ genuínos dos anos 70 e 80, por aí.

    Não falo só da malta que andava com joelhos e os cotovelos feridos de jogar na rua e no asfalto. Não falo só da malta que não se detém perante o embate em portas. Falo da malta que tem a liberdade no sangue, a democracia nos genes e a rebeldia nas células. Falo da malta que tem a poesia da música na alma e no coração. Da malta que se inspirou em Gandhi, que leu Pessoa, que leu Espanca.

    Acredito que muita dessa malta que tem estado adormecida, embalada com as selfies, o futebol, as férias no paraíso (a crédito, às vezes), o conforto do carro na garagem, ainda têm um pouco de rock em si e se lembram quem são.

    Acredito que muita dessa malta que pode estar doente, sem dinheiro, triste, ainda tem muita garra e coragem para ‘dar e vender’.

    people, friends, together

    São os da geração que viu Sarah Connor e John McClane. São vocês, aí. E estão a tempo de ser os heróis das gerações futuras, se lutarem contra os novos censores, os senhores (e senhoras) da guerra e a cultura pró-ditadura.

    Podem até fazê-lo com selfies e com gatinhos. Ao som de rock ou de pop. Ao estilo de Ferris Bueller ou de Mulder. Mas façam-no. Porque não acredito que “quando se cresce, o nosso coração morre”, como disse Allyson. Pelo menos, espero que não.

    Elisabete Tavares é jornalista


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  • Jornalistas como defensores da democracia: o grande embuste

    Jornalistas como defensores da democracia: o grande embuste


    Vimos, na passada quinta-feira, uma classe em greve. Muitos jornalistas pararam. Muitas notícias não foram publicadas ou emitidas nas TVs e rádios. Muitos eventos não tiveram cobertura da imprensa.

    A greve dos jornalistas surgiu num momento particularmente triste para a imprensa em Portugal. O Diário de Notícias (DN) está num ‘buraco’, tanto financeiro como de credibilidade.

    Já escrevi várias vezes sobre a minha ligação afectiva ao DN, um jornal que entrou no meu coração quando, na infância, fiz uma visita de estudo à redacção do jornal e vi como era impresso. Guardo comigo a placa com o meu nome que trouxe de lá.

    Quando assinei notícias e entrevistas no DN, não era eu quem assinava. Era a miúda que se apaixonou pelo jornal naquela visita de estudo.

    (Foto: D.R.)

    Isso não me impede de ver como o jornal foi destruído ao longo dos anos, sobretudo nos anos mais recentes. As péssimas decisões de (má) gestão e a explosão da Internet e das redes sociais não explicam tudo. Também directores do jornal e jornalistas se sentaram ‘à mesa’ com o poder político e económico, com quem tinha poder, esquecendo o que era o DN e esquecendo o que é ser jornalista.

    Isto aconteceu também em outros meios de comunicação social. Tem sido mais visível, nos últimos anos, a grande quebra na qualidade da informação difundida pela imprensa. A precariedade, os baixos salários (para muitos, não para todos) e a praga do churnalism não explicam tudo. Também tem sido mais visível o enviesamento, a falta de rigor, a colagem ao poder político, económico e financeiro. Mas já existiam antes, talvez não fossem tão óbvios. Hoje, o enviesamento, está em níveis estratosféricos, ao ponto de muitos jornalistas nem perceberem que deixaram, há muito, de se comportar como jornalistas e são apenas meros papagaios.

    Em geral, os jornalistas e as direcções dos jornais acompanham o ambiente de cultura de cancelamento, censura e condicionamento da liberdade de imprensa e de expressão que é promovida, hoje, pelas grandes tecnológicas como a Meta (dona do Facebook) e a Google (dona do YouTube). Foi evidente na pandemia. Tem sido evidente no tema da guerra na Ucrânia. Tem sido evidente no conflito em Gaza.

    Jornalistas e directores podem ter ganho amigos poderosos com isso. Podem achar que assim são bem vistos e aceites pela generalidade dos pares. Mas os leitores vão percebendo que isso não é compatível com o Jornalismo. Daí ter também surgido o termo ‘jornalixo’ – que abomino.

    Muitos jornalistas portugueses vivem numa bolha. Pensam que são ‘especiais’ por serem jornalistas e pensam que são donos da verdade e que são ‘o farol da democracia’. Nada podia estar mais longe da verdade. A falta de humildade, de isenção, de pensamento crítico e rigor de muitos jornalistas dos grandes grupos de comunicação social são asfixiantes. Não se respira verdadeiro Jornalismo nas redacções dos grandes grupos de media portugueses, hoje, em geral (com raras excepções).

    Por outro lado, os jornalistas que querem fazer bom jornalismo não conseguem. Têm sido inúmeros os relatos que me chegam de jornalistas que não têm tempo para investigar e são pressionados a fazer notícias ao segundo. Outros não têm sido autorizados a fazer determinadas investigações, reportagens, entrevistas e notícias. Outros, já nem se ‘atrevem’ a propor alguns temas. Preferem salvar os seus postos de trabalho (para já).

    Nos media, como no mundo académico, está instalado um ambiente pútrido e podre de caça à opinião ‘divergente’ e de bullying e difamação em relação ao ‘dissidente’. Os factos, a verdade e a democracia pouco são para ali chamados. Quem diverge das ideologias e visões da moda é classificado como sendo militante de ‘extrema-direita’, ‘radical’. Dependendo do tema, o bullying e a difamação envolvem os mais diversos insultos e nomes pejorativos.

    É um ambiente de perseguição mas também de discriminação. Basta lembrar a discriminação e o discurso de ódio promovido nas TVs, jornais, revistas e redes sociais por alguns jornalistas e directores de órgãos de comunicação social durante a pandemia.

    Alguns desses jornalistas e directores são os mesmos que afirmam ser “totalmente” contra qualquer tipo de “discriminação”, contra “todo” o “discurso de ódio” e que dizem defender a “soberania sobre o próprio corpo”. Isto não se inventa. Isto é o populismo em acção.

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    (Foto: D.R.)

    O mesmo ambiente de falta de rigor informativo, falta de isenção, enviesamento e perseguição é visível, hoje, na cobertura das eleições legislativas.  Além da falta de pluralismo, em geral, com partidos de ‘primeira’ e partidos de ‘segunda’. (Daí o PÁGINA UM ter levado a cabo uma iniciativa única na imprensa, a rubrica HORA POLÍTICA, para dar voz aos líderes dos 24 partidos existentes em Portugal.)

    Não votei num partido do espectro da direita. Mas farei tudo para que os portugueses e os europeus possam votar no partido que bem entenderem. Democracia é também isso. E é igualmente respeitar a decisão de quem vota.

    E, como jornalista, não posso – não devo – fazer uma cobertura diferente dos partidos consoante sejam de esquerda ou extrema-esquerda, de centro, de direita ou extrema-direita, ou partidos que assentam no princípio de serem formados por cidadãos independentes.  

    Democracia não é só quando ganha o “meu” partido. Mas, nestas eleições legislativas, ficou claro que, para alguns – incluindo jornalistas –, mudou o conceito de ‘democracia’.

    Desde logo, com a reacção ao queimar de um cartaz de um dos partidos – do Chega –, um acto que foi bem visto, em geral, na imprensa. Tivesse acontecido com um partido que se diz de esquerda ou de extrema-esquerda e caia o Carmo e a Trindade. Depois, com a forma claramente enviesada, deturpada e indigna como a maioria da comunicação social trata o Chega e André Ventura.

    (Foto: D.R.)

    A forma como a maior parte dos jornalistas e da imprensa trata o Chega e Ventura não é mau para Ventura nem para o partido. É mau para o Jornalismo e para a imprensa. E para os jornalistas.

    Aliás, com a má imagem que muitos portugueses têm dos jornalistas, quanto pior a imprensa tratar Ventura e o Chega, mais votos terão.

    Agora, é comum ver-se na imprensa notícias e artigos e entrevistas que difundem ideias sobre os perigos do populismo na Europa e da ascensão da extrema-direita (mas, para os media, quase tudo hoje que não é de esquerda é ‘extrema-direita’). Mas são a imprensa e os partidos no poder que têm sido decisivos para o crescimento dos votos em partidos de direita, populistas e de extrema-direita.

    É difícil encontrar notícias, entrevistas e artigos de opinião sobre um outro facto muito concreto e perigoso: a grande ameaça para a Europa, a democracia e a liberdade tem sido protagonizada pelos políticos que têm liderado a região nos últimos anos.

    Os relatórios que mostram um enorme recuo no nível de democracia nos países do Ocidente são claros. Os alertas de jornalistas, de activistas dos direitos humanos, de políticos e de reputados académicos e cientistas acerca da crescente censura e do condicionamento da liberdade de imprensa e de expressão são claros.

    white and black typewriter on green grass

    Não têm sido ‘partidos populistas’ ou a ‘extrema-direita’ que têm aprovado leis e regulação que constituem uma ameaça à liberdade de imprensa, à liberdade de expressão, aos direitos humanos e aos direitos civis. Tem sido a Comissão Europeia, o Parlamento Europeu e governos que têm tido o apoio de partidos que se dizem de ‘esquerda’, como é o caso de Portugal.

    O mesmo se passa em países como o Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia, Austrália e Brasil. Nestes países, a liberdade de expressão, os direitos humanos e civis estão sob séria ameaça. Por isso, na Europa como em outras regiões, a população ‘abandona’ partidos que, se afirmando de ‘esquerda’, estão cada vez mais com tiques totalitários e de tirania (e de perseguição dos jornalistas isentos e não comprometidos com o poder).

    Não são partidos ‘populistas’ ou de ‘extrema-direita’ que estão a promover e que pretendem subscrever na íntegra – sem negociar – as alterações perigosas e desumanas ao Regulamento Sanitário Internacional. São partidos como o PS e o PSD. É a Comissão Europeia.

    Não são partidos ‘populistas’ e de ‘extrema-direita’ que apoiam e aprovam gigantescos desvios – de milhares de milhões de euros – de dinheiros públicos para entregar às poderosas indústrias de venda de armas para a compra de armamento e equipamento militar, para criar uma “economia de guerra”. (Aliás, pergunto-me onde andam os pacifistas da ‘esquerda’ em Portugal e outras países na Europa).   

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    (Foto: D.R.)

    Mas os jornalistas portugueses ignoram tudo isto. Se assistirmos aos noticiários, se lermos revistas, jornais e sites dos media, a ameaça é o Chega, os partidos populistas e a extrema-direita.

    Nenhuma notícia ou opinião (tirando uma ou outra excepção) sobre como as forças, os interesses e os políticos que têm estado no poder em Portugal e a nível comunitário têm colocado em risco a liberdade de imprensa, a democracia e os direitos humanos e civis. (E a paz e a defesa do meio ambiente, a meu ver.)  

    Isto só acontece porque os media estão capturados por interesses políticos e económicos. E porque há jornalistas que esqueceram o que é ser jornalista. Apropriaram-se da ‘verdade’, mas difundem notícias enviesadas e carregadas de ideologia. Pensam ser um ‘farol da democracia’ e fazem um trabalho sem o mínimo pensamento crítico, rigor e busca pela isenção.

    O Jornalismo é, para mim, uma das profissões mais belas. É uma Arte. E é fundamental para manter os poderosos sob escrutínio. Para o Jornalismo viver é preciso que haja jornalistas, profissionais com vontade de cumprir escrupulosamente os princípios que regem a profissão, incluindo o rigor, a isenção, a independência. Ter pensamento crítico, literacia em diversas áreas e cultura geral ajudam. Mas, se os jornalistas seguirem as regras de base no Jornalismo, também farão um trabalho competente.

    Mas, por enquanto, muitos jornalistas portugueses preferem continuar a viver na bolha. A bolha em que preferem ignorar que os media são coniventes com os poderes políticos e económicos. A bolha em que os jornalistas se sentem especiais, deixaram de ser humildes, e vivem agarrados às suas ideologias, crenças e preconceitos, agarrados à moda dos slogans do wokismo e dos slogans dos spin-doctors pagos pelos grandes partidos e pelas indústrias e lobbies. Os mesmos que, depois, pagam as parcerias comerciais com os grandes grupos do sector da comunicação social, como a Global Media, que é (ainda) a dona do DN.

    (Foto: D.R.)

    Enquanto a esmagadora maioria dos jornalistas, e quase todos os directores dos principais órgãos de comunicação social, viverem na bolha, a democracia continuará em risco e o Jornalismo também. Porque ser jornalista é a melhor profissão do mundo, mas também acarreta uma enorme responsabilidade: a de se ser independente, rigoroso e isento. De fazer escrutínio dos poderes. E de ser livre de amarras feitas em almoços e jantares com políticos, banqueiros, comentadores comprometidos, ‘almirantes-aspirantes-a-Presidente-da-República’ e lobistas de toda a espécie.

    Os jornalistas podem continuar a querer viver na sua bolha. Mas enquanto não fizerem greve aos fretes, às ideologias, às conferências pagas, aos podcasts patrocinados (encomendados) e aos almoços e jantares com poderosos, a democracia e o Jornalismo continuarão em risco.

    Pode já não se conseguir salvar o DN. Mesmo que venha a ser alvo de perdão de dívidas e de uma mega injecção de dinheiros dos contribuintes (o que não defendo), dificilmente voltará a ser o mesmo de outrora. Mas pode ainda salvar-se o Jornalismo e a profissão de jornalista. Assim, os leitores exijam, os reguladores actuem e os jornalistas queiram.   


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  • Um médico-empresário e um regulador dos media entram num bar

    Um médico-empresário e um regulador dos media entram num bar

    O que acontece quando um médico-empresário que factura milhares de euros anualmente com serviços prestados a farmacêuticas – nomeadamente através da sua empresa Terra & Froes -, se une a um regulador dos media, cuja liderança é de nomeação política?

    O resultado só pode ser a censura e a tentativa de intimidar e desacreditar jornalistas de investigação que escrevem notícias com base em dados e fontes oficiais e artigos científicos de qualidade, as quais não são ‘aprovadas’ pelos ‘patrões’ nem pelos ‘clientes’ de lobbies poderosos.

    O Editorial de Pedro Almeida Vieira, jornalista e do director do PÁGINA UM, dá os detalhes e anuncia o inevitável. “A contínua perseguição infame da ERC contra as investigações do PÁGINA UM não continuará: uma queixa judicial por injúrias e difamação seguirá em breve contra os cinco membros do seu Conselho Regulador da ERC. E, claro, contra o Doutor Filipe Froes.”

    Esta não é a primeira vez que a ERC adopta deliberações ou promove iniciativas lesivas para o bom nome do PÁGINA UM, numa lógica de dois pesos e duas medidas, sendo algo que começa a ser recorrente.

    Por coincidência, as acções da ERC para condicionar e intimidar o PÁGINA UM têm envolvido investigações jornalísticas na área da Saúde. Foi o que aconteceu com a investigação do PÁGINA UM aos financiamentos da Sociedade Portuguesa de Pneumologia ou com a investigação que envolve o actual Chefe do Estado-Maior da Armada, almirante Gouveia e Melo. Ou a investigação às compras públicas efectuadas pelo Hospital de Braga, pejadas de irregularidades e opacidade.

    Ou ainda a investigação às irregularidades existentes em torno do fundo da campanha ‘Todos por quem cuida’ da Ordem dos Médicos. Neste caso, em concreto, recentemente, o Tribunal Administrativo deu razão ao PÁGINA UM e intimou a Ordem dos Médicos a divulgar informação que estava a esconder.

    Mas não só. O tribunal deu também razão ao PÁGINA UM e intimou a Ordem dos Médicos a divulgar pareceres de relevo que o antigo bastonário, Miguel Guimarães manteve secretos, escondidos dos portugueses.

    Perante estes casos em concreto, enquanto a Justiça apoia a transparência e o Jornalismo e as boas práticas, a ERC faz exactamente o oposto: dá guarida e apoia a opacidade, o secretismo, as más práticas e a censura de jornalistas.

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    Percebe-se porque, hoje, em Portugal, tantos jornalistas praticam a autocensura, sobretudo no que toca a temas ‘tabu’ para grandes indústrias e partidos no poder. Pode ser em torno das vacinas contra a covid-19 ou outro tema que mexa com temas considerados ‘intocáveis’.

    No Jornalismo, quando há temas intocáveis, é porque: ou não se vive em democracia; ou não existe liberdade de imprensa; existe censura; existe autoritarismo.

    Não é novidade o poder político e económico pressionar e intimidar a imprensa. É uma táctica já ‘velha’. Uma denúncia surge aqui, alguém adopta uma deliberação ali, um outro faz um comunicado acolá. Os media e jornalistas promíscuos, comprometidos ou vendidos, fazem o resto: espalham a campanha para desacreditar. Com as redes sociais, fica ainda mais fácil condicionar quem faz jornalismo sério, de investigação. E há sempre aquele recurso de se difamar o jornalista, espalhando desinformação sobre ele.

    O que é estranho, é ainda haver quem pense que se pode passar incólume com este tipo de más práticas.

    Ir fiscalizar os directores de órgãos de comunicação social, em Portugal, que executam publicamente contratos comerciais, é algo que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social não faz.

    Acabar com as notícias e entrevistas pagas nos media ou com a cascata de podcasts patrocinados, feitos por jornalistas, que nascem que nem cogumelos nos media em Portugal, é algo que a ERC também não quer fazer.

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    Em alguns casos, a ERC só actuou na sequência de investigações do PÁGINA UM a más práticas, a práticas ilegais, na imprensa.

    Já censurar jornalismo de investigação, que se baseia em fontes oficiais, credíveis, fidedignas, isso a ERC já está disposta a fazer.

    Não é a primeira vez que o Conselho Regulador da ERC adopta deliberações que são autênticos avisos a todos os jornalistas que queiram prosseguir com investigação, sobretudo em torno de determinadas indústrias e temas.

    Infelizmente, enquanto a liderança da ERC for nomeada por partidos – os maiores partidos, que vão rodando entre si o poder – duvido que alguma coisa vá mudar nesse tipo de censura.

    Atenção: a ERC tem bons (mas poucos) técnicos ao seu serviço. O regulador faz, em determinados casos, uma fiscalização eficaz. Demora muito tempo? Demora.

    Ainda estamos à espera, por exemplo, que a ERC se pronuncie sobre as queixas que chegaram ao regulador em meados de 2023 devido a uma escandalosa reportagem feita pela TVI, passada em horário nobre, em que foi promovido um negócio obscuro e uma entidade não autorizada a prestar serviços de investimento ou intermediação financeira em Portugal. O caso foi grave, ao ponto do Banco de Portugal ter feito um alerta sobre a entidade mencionada na reportagem.

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    Mas, quando o assunto é jornalismo de investigação, bem fundamentado, sobre temas ‘tabu’ ou assuntos que sejam vistos como uma ameaça a poderosos, o caso muda de figura. Pelo menos, é isso que temos observado em deliberações que envolvem o PÁGINA UM.

    Não será por acaso. O PÁGINA UM, em particular o jornalista e director do jornal, Pedro Almeida Vieira, tem investigado interesses mais do que instalados no país e que envolvem fortes lobbies. E os lobbies não perdoam e pagam – e persuadem – para que as pedras no seu sapato sejam descartadas.

    Não é por acaso. O PÁGINA UM é o órgão de comunicação social que mais tem recorrido à CADA para obter acesso a informação que devia ser pública. Também é o meio de comunicação social que mais tem recorrido à Justiça para conseguir que haja transparência e acesso a informação pública que está a ser escondida.

    Também foi o PÁGINA UM que criou um Boletim diário de escrutínio às compras públicas, destacando os negócios obscuros ou opacos que são feitos com o dinheiro dos contribuintes.

    E tem sido o PÁGINA UM a trazer alguma moralização à imprensa, sector onde se normalizou o sentar à mesa com o poder político e económico. Ao ponto de haver jornalistas que pensam que investigar temas importantes mas incómodos – como o dos efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 – é uma heresia, um pecado capital.

    O PÁGINA UM faz Jornalismo. Não há espaço para temas tabu no Jornalismo. Por isso, há muito que é visto por alguns lobbies – e por jornalistas que sentam à mesa com o poder – como um ‘alvo a desacreditar’, ou seja, um ‘alvo a abater’. Que a ERC se preste a ser usada para essa tentativa de desacreditar é lamentável.

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    Para os ´’Froes’, a ERC e todos os que têm sido alvo de investigações do PÁGINA UM, esta deliberação do regulador dos media é motivo de celebração. Para os jornalistas, para o Jornalismo, para a liberdade de imprensa, para a transparência e para a democracia, esta deliberação da ERC é um capítulo negro.

    Há quem esteja a enfiar a cabeça na areia e a preferir não ver a ‘Idade das Trevas’ em que a liberdade de imprensa e a investigação jornalística estão a mergulhar em Portugal, mas também em outros países do mundo ocidental, com a crescente pressão persecutória dos profissionais que são independentes do grande poder económico e político.

    Mas há quem esteja a ver. Claramente. E o público, os leitores, também.

    Elisabete Tavares é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Vamos ‘salvar’ grupos de media ou vamos sustentar vícios e luxos?

    Vamos ‘salvar’ grupos de media ou vamos sustentar vícios e luxos?


    De um lado temos o Jornalismo e a Democracia. Do outro temos os grandes grupos de media, as suas parcerias comerciais e a constante propaganda política.

    Hoje, fala-se muito em ‘ajudar’ os media e em usar dinheiro dos contribuintes para ‘apoiar’ o Jornalismo. E confunde-se Jornalismo com os actuais grandes grupos de media, como Global Media Group, Trust in News e Impresa.

    Mas, desengane-se quem pense que financiar grupos de media é o mesmo que ‘salvar’ o Jornalismo e a Democracia.

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    Desengane-se quem pense que os grandes grupos de media são sempre sinónimo de Jornalismo, liberdade de expressão, de informação livre, plural e independente. (Basta constatar o facto de que teve de ser um órgão de comunicação social independente – o PÁGINA UM – a colocar acções em tribunal para obrigar entidades públicas e o próprio Governo a divulgarem informação que têm vindo ilegalmente a esconder dos portugueses).

    A realidade nua e crua é que, em geral, nos grandes grupos de media as parcerias comerciais multiplicam-se e crescem, enquanto jornalistas são despedidos e as reportagens são cada vez mais uma ‘coisa’ rara. Não há dinheiro para investigar e viajar em reportagem, mas há para bons salários para directores e administradores, carros topo de gama, cartões de crédito, almoços gourmet, avenças para comentadores amigos e para jornalistas que não incomodam o poder.

    Muitos bons jornalistas – dos que incomodam – são colocados na prateleira ou ‘dispensados’. (Sei de alguns que, estando em funções, têm sido impedidos de publicar ‘cachas’ por serem temas que não agradam aos ‘patrocinadores’). Estagiários baratos ou grátis que não fazem perguntas e executam na perfeição a cópia de comunicados de imprensa são ‘promovidos’.

    Pouco jornalismo se faz, hoje, nas redacções cheias de jornalistas ocupados a fazer ‘corta e cola’ de ‘takes‘ da agência Lusa ou de comunicados do Governo ou de empresas. O churnalism é uma realidade que envenena as redacções. As parcerias comerciais são a erva daninha semeada com a ajuda de directores que é, hoje, impossível de arrancar.

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    A realidade nua e crua é que os grupos de media vivem para os seus ‘clientes’, que são as empresas, bancos e entidades públicas que lhes pagam para fazer conferências, summits, tertúlias, talks, entrevistas e podcasts. Promovem-se líderes empresariais, marcas, produtos, campanhas, tendências…

    Mas vemos jornalistas a dizer que a crise nos media é um problema do ‘modelo de negócio’ e a culpa é da Internet e das redes sociais. Além disso, dizem que a culpa também é … dos leitores. Como se os jornalistas e os vícios dos grandes grupos de media não tivessem nada a ver com a crise no sector.

    A antiga directora do Público, Bárbara Reis, afirmou que “a elite portuguesa, incluindo médicos, professores e pessoas com boas reformas, desvaloriza a informação livre e independente”, referindo-se aos grupos de media. Ora, esta afirmação espelha bem a ‘bolha’ em que vive a maioria dos jornalistas que trabalham para os grandes grupos.

    Aquilo que os “médicos, professores e pessoas com boas reformas” desvalorizam é a mistura de notícias com conteúdos pagos, a mistura de entrevistas com parcerias comerciais e os suplementos patrocinados até ao tutano para vender peixe alheio. Aquilo que desvalorizam é noticiários que dedicam os primeiros 30 minutos a políticos. Ou a promoção descarada de empresas e partidos. Ou o ‘bajular’ em directo de certas personalidades.

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    A classe perdeu a noção da realidade, ao ponto de achar normal um congresso de jornalistas com mais de uma dúzia de patrocinadores, e em que jornalistas se ‘babam’ frente ao Presidente da República, num espectáculo desprestigiante e triste.

    O pudor desapareceu por completo. A classe dá-se conta da gigantesca promiscuidade com o poder político e económico?

    Há muito que os maiores grupos de media se divorciaram do público. Mas vivem naquela relação tóxica de ter pedido o divórcio, mas de quererem manter o público por perto. Não entendem por que motivo o público está a seguir em frente. Não entendem que o público se sente traído e partiu, sem olhar para trás.

    “Não compro jornais há anos”. “Ver telejornais, para quê? É só políticos e propaganda”. As frases de desgosto e lamento sobre o estado dos media em Portugal multiplicam-se pelos fóruns e comentários na Internet e nas ruas. Falando com jovens, a realidade é similar: “Ver notícias? LOL”, é uma das respostas que recebo quando pergunto a um universitário se lê jornais.

    Não tenho visto muitos jornalistas publicamente a colocar a mão na consciência e a admitir que nas suas redacções se faz cada vez mais do que ‘não é jornalismo’ do que o que ‘é jornalismo’.

    Aquilo que tenho visto é a hipocrisia atroz e patológica de se culpar apenas a Internet, as redes sociais e os problemas financeiros dos grupos de media pela grave crise que atinge o sector.

    O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, no V Congresso dos Jornalistas. O evento, que foi patrocinado e ‘apoiado’ por mais de uma dúzia de entidades públicas e privadas, incluindo empresas e bancos, exigia o pagamento de entrada a jornalistas interessados apenas em cobrir o congresso,
    o qual teve ainda o ‘Alto Patrocínio’ da Presidência da República.
    (Foto divulgada pelo Congresso dos Jornalistas; D.R.)

    A verdade é que jornalistas têm ficado em silêncio sobre o que se passa nas redacções. Já perdi a conta de jornalistas que me dizem que apoiam o trabalho do PÁGINA UM e que tudo vai mal nos grupos de media, incluindo a propaganda que fazem. Mas, depois, esses jornalistas fazem algo para acabar com isso? Confrontam a direcção? Enfrentam os CEOs? Recusam executar parcerias comerciais (quando delas se apercebem)?

    A verdade é que o terrível corporativismo da classe ameaça ajudar a acabar com ela. Jornalistas infractores, que mantêm actividades incompatíveis com a profissão, seguem como se tudo fosse normal. Jornalistas a executar contratos comerciais – sobretudo directores – prosseguem como se fosse tudo normal. Nas barbas da Comissão da Carteira Profissional do Jornalista, da Entidade Reguladora para a Comunicação Social e do Sindicato dos Jornalistas.

    Em Portugal, esta é uma prática tóxica – todos se calam para não ‘parecer mal’. E assim, se ‘lixa’ toda uma classe e a credibilidade do sector.

    Agora, os media e os jornalistas pedem dinheiro ao Estado e ajudas.

    A surgirem ajudas dos contribuintes – seja através de um Carlos Moedas ou de um Ministério governamental – servirão para pagar baixos salários de estagiários e alguns jornalistas destacados para fazerem ‘copy-paste’ de ‘takes’ da Lusa e comunicados do Governo.

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    As ‘ajudas’ servirão também para pagar carros topo de gama de administradores e directores, além das senhas de gasolina, despesas extra diversas, almoços, cartões de crédito, prémios anuais e os seus razoáveis salários.

    As ‘ajudas’ servirão para pagar avenças de comentadores pagos a peso de ouro ‘porque sim’ – do amigo, ao amigo do político ‘amigo’ – enquanto o estagiário é ‘esfolado’.

    As ‘ajudas’ servirão para financiar ‘vícios’ e formas de estar nos media que têm prejudicado a Democracia, o Jornalismo e beneficiado o poder político e económico (e ajudado alguns jornalistas, directores e administradores a construir piscinas na casa de campo).

    As ‘ajudas’ servirão para manter tudo como está, quando os leitores pedem mudança urgente nos media. As ‘ajudas’ servirão para tapar o buraco criado por negócios opacos e negociatas que correram mal.

    Há jornalistas que sabem disto, que dizem isto à porta fechada. Está na altura de os jornalistas se deixarem de atirar culpas e olharem para o que se passa nas redacções e nos seus grupos.

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    Não é só na Global Media que há contas e negócios a escrutinar. E na Trust in News? E na Impresa? E os milhões devidos ao Estado, à Autoridade Tributária, à Segurança Social? Aos bancos?

    Este cenário beneficia muito quem andar a ‘dar apoios’ ao Jornalismo. Sobretudo porque os apoios ajudam a que se faça ‘jornalismo’ apenas em algumas áreas que se quer. Esse condicionamento será a morte do Jornalismo.

    Já hoje é visível a tendência de se fazer ‘jornalismo de investigação’ apenas em certos temas para os quais ‘se pode ir buscar dinheiro e bolsas’. Aliás, toda a indústria do chamado ‘fact-checking’ não passa disso mesmo, uma oportunidade para ‘ir buscar uns milhares ou milhões’. Depois, tem é de se escrever o que se sabe que se espera que seja escrito… ou seja, a ‘verdade’ é só a que sai de Governos, comunicados ‘oficiais’ e pouco mais… Como se isto tivesse qualquer semelhança com Jornalismo, cujo ADN consiste precisamente em questionar… as autoridades e os comunicados oficiais.

    Agora, querem que se dê ‘apoios’?

    Esta tese das ‘ajudas’ públicas aos grandes grupos de media, além de usar um argumento falso – ‘salvar o Jornalismo e a Democracia’ – só vai servir para alimentar o ‘monstro’ em que se tornou a interferência comercial e política no sector. Falso argumento porque existe muita imprensa para lá dos grandes grupos, incluindo imprensa regional e projectos de jornalismo independente, como o PÁGINA UM.

    Esta tese de se vir a ‘ajudar’ os grandes grupos de media, faz-me lembrar o filme ‘O Exterminador Implacável’. A tese é de que se nada se fizer, ‘O Exterminador Implacável’ chegará para eliminar o ‘Jornalismo’. Acontece que no filme de culto protagonizado por Linda Hamilton e Arnold Schwarzenegger é precisamente na tentativa de se travar o aparecimento do ‘exterminador’ que se acaba por activar a fatídica Skynet e libertar o poder da inteligência artificial, que lança uma guerra contra a Humanidade.

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    Na tentativa de se ‘salvar’ o ‘Jornalismo, ‘ajudando grandes grupos de media, arrisca-se a que seja activada uma outra ‘Skynet’, com os grupos de media, ainda mais dependentes de ajudas financeiras externas – públicas e privadas –, ainda mais vulneráveis e condicionados, unidos numa cruzada contra os ‘dissidentes’ que questionem o poder político e económico.

    A ‘máquina’ dos media, financiada pela ‘máquina’ política e económica, seria aperfeiçoada para ‘eliminar’ todos o que ‘desobedecessem’ ao poder instalado e verdades ‘oficiais’, e a liberdade de imprensa e de expressão seriam apenas uma lembrança – tal como a Democracia .

    Ajudar os grandes grupos de media, como eles são hoje – com toda a promiscuidade e dependência comercial de entidades públicas e privadas – é impedir a sua urgente limpeza, mudança e transformação.

    Dificilmente, mantendo a actual promiscuidade com o poder político e económico e os actuais ‘vícios’ e salários e avenças de luxo, os grupos irão mudar. Pelo contrário, vão saber que, se quiserem sobreviver, têm de se ‘rebaixar’ mais.

    Sem se fazer esta ‘limpeza’, não há ajudas que valham para os ‘salvar’. Mas, se calhar, é isso que se quer. Num mundo em que os media são controlados por políticos e grandes grupos económicos, tudo é mais fácil.

    Num admirável mundo novo dos grupos de media financiados por ‘ajudas’, uma nova era nasceria em que a censura e o pensamento único seriam, em definitivo, a norma.

    Tal como no filme ‘O Exterminador Implacável’, arriscamos caminhar a passos largos para esse mundo em que mais ‘jornalistas’ se ajoelham perante o poder, fazem vénias a entidades públicas e privadas – sejam de saúde, tecnológicas, financeiras ou militares -, beijam a mão do Presidente da República e agradecem as ‘ajudas’. As ‘ajudas’ que os ajudam a não mudar.

    Elisabete Tavares é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.