Num mundo em revolução, com o advento da inteligência artificial e a evolução da Internet, é absurdo — e negligente — pensar-se que é viável manter a lógica de os meios de comunicação social terem estruturas rígidas, com custos enormes, acumulando passivos insanos e até dívidas ao Estado.
O Jornalismo tem sido a principal vítima desta ilusão. E, claro, os jornalistas.
Tantos jornalistas bons que conheço que já abandonaram a profissão porque o sector os… abandonou.
Foto: D.R.
Neste mundo em mudança, ousar criar meios de comunicação social com um modelo de negócios inovador é algo disruptivo e enfrenta resistência. Foi também o que sucedeu com a economia blockchain. Mas é absolutamente necessário.
A ideia de empregos fixos, bem pagos, com benefícios. A ideia de directores pagos a peso de ouro, com carro novo e despesas extra. A ideia de departamentos comerciais que entram pelas redacções e “arrastam” directores e jornalistas para podcasts, conferências, talks, parcerias … A ideia de meios de comunicação social que fazem tudo, vão a todas. Tudo isto está… obsoleto.
Pensar em meios de comunicação social com uma filosofia colaborativa, que envolve os investidores/empresários, os jornalistas, e leitores. Pensar em meios de comunicação social modernos, ajustados a este mundo em revolução, em que a informação deixou de ser centralizada e passou a ser descentralizada. Isto, sim, faz sentido.
O verdadeiro “power to the people” está aí, mas traz riscos. O Jornalismo é, não só, viável neste novo ecossistema, como é essencial. Pode ser uma peça-chave nesta revolução global. Mas só se largar os vícios e os grilhões que o prendem. Só se aceitar passar por uma revolução. E isso envolve quebrar barreiras culturais e de mentalidade sobre o mercado de trabalho e estruturas de funcionamento das empresas no sector dos media. E recentrar no essencial: levar informação de valor aos leitores, telespectadores ou ouvintes.
À escala de Portugal, é isso que o PÁGINA UM tem vindo a fazer. A testar um modelo colaborativo em que os leitores também são participantes activos. Há aqui uma responsabilização de todos os chamados “stakeholders“. Incluindo os jornalistas e outros profissionais.
Há quem diga que isto é utopia. Mas isto é já a realidade. Só alguns ainda não perceberam que a revolução chegou e o modo antigo de funcionar já está obsoleto.
E, convenhamos, não era positivo. Nem para a gestão carreira/família dos profissionais, nem para o Jornalismo. Nem para o Estado, que é credor de empresas de media. Nem para os jornalistas com salários em atraso ou que foram parar ao desemprego.
O futuro disruptivo traz riscos, mas também oportunidades para, no sector dos media, haver maior eficiência, maior justiça nas remunerações dos vários profissionais e mais tempo, mais alegria, tanto na forma de viver a vida, como a carreira. E mais alegria e propósito na forma de gerir negócios.
Propósito é a palavra. Surfar o mundo em revolução com propósito. No caso do Jornalismo isso é crucial. Pois chegou o tempo de realmente respirar e valorizar o Jornalismo, a sua autenticidade e absoluta necessidade de independência de poderes políticos e económicos.
Só assim o Jornalismo vai, não apenas sobreviver à revolução, mas prosperar e contribuir para a construção de um mundo totalmente novo, que pode ter na cooperação e na solidariedade dois pilares fundamentais.
Adenda:
Publicado ontem no Diário de Notícias, este artigo do Filipe Alves contém afirmações falsas graves e passíveis de levarem a vários processos judiciais contra o seu autor e as publicações que o divulgaram.
Como o Filipe Alves sabe e finge não saber, o jornal PÁGINA UM tem um modelo de negócios assente num modelo colaborativo e solidário, com os custos indexados às receitas.
Os jornalistas e outros profissionais que decidiram colaborar com o jornal já trabalhavam por conta própria antes de decidirem apoiar o jornal.
O modelo de negócios está condicionado às receitas. Se houver mais receitas, é possível ter mais colaboradores e trabalhos jornalísticos ou de cultura, como crónicas, e opinião, entrevistas, etc.
O PÁGINA UM é um jornal de acesso livre para que mesmo quem não tem meios possa aceder aos artigos.
O jornal adoptou o conceito willingness to pay, no qual os leitores podem subscrever o jornal voluntariamente, ou contribuir com donativos cujas regras estão fixadas desde o dia 1 de vida do jornal.
A maravilhosa redacção física do jornal, com um custo fixo da ordem dos 1000 euros mensais, permite aos colaboradores ter um espaço onde é possível fazer entrevistas e podcasts e, no futuro, ter novos colaboradores ali a trabalhar, quando as receitas o permitirem.
O jornal tem como pilares: não contrair dívida; não ter apoios do Estado ou instituições e grupos económicos; não ter prejuízo.
Assim, obviamente que a sua estrutura tem de ser flexível e assente na parceria, cooperação e colaboração. Quem colabora com o PÁGINA UM fá-lo porque sabe quão importante o jornal é para o Jornalismo em Portugal. E como a sua existência é, não só, importante como crucial.
O Filipe Alves sabe tudo isto. Ainda assim, publica mentiras e insiste em fazer acusações difamatórias e graves.
Entendo que para Filipe Alves, haver jornais com uma estrutura flexível, com os custos ajustados às receitas e o foco na qualidade jornalística, seja algo estranho.
Mas os tempos exigem inovação e um regresso da qualidade e isenção total no Jornalismo. E as coisas ainda vão mudar muito mais daqui em diante com o avanço tecnológico e a IA.
Concluo, lamentando que o Diário de Notícias esteja a ser instrumentalizado para publicar notícias falsas e artigos com desinformação evidente.
Mas isso também mostra quais são as prioridades do seu director e os motivos da crónica crise do jornal.
Para se vingar de uma notícia verdadeira sobre as contas da empresa que o emprega, avançou com um ataque vingativo com falsas acusações. É agora evidente que Filipe Alves não está a defender o melhor interesse do Diário de Notícias. Nem da imprensa.
Mafalda Anjos publicou, no dia 8 de Agosto, na revista Visão um artigo com o título “Ainda estamos aqui, apesar de vivermos tempos que nos lembram a Alemanha de 1930”. No artigo, a jornalista e ex-directora da Visão elabora sobre a ameaça de fecho que paira sobre a revista, devido à insolvência da empresa a que pertence, a Trust in News.
No artigo, aproveita para lavar as mãos e branquear o seu efectivo contributo para a crise da empresa de media e o risco de fecho da revista. E atribui as culpas da crise à extrema-direita e ao regresso de “vibes” que fazem lembrar a ascensão dos nazis ao poder na Alemanha dos anos 30.
Por um lado, é surpreendente. Afinal, Mafalda Anjos recorda-se desse episódio negro na História que levou à Segunda Guerra Mundial — e ao Holocausto. Ninguém diria que a jornalista se lembrava que tinha existido esse período na História.
E é surpreendente por um simples motivo: Mafalda Anjos foi um dos activistas em Portugal que mais incentivou nos media a segregação da população, a perseguição e o incentivo ao ódio de uma parte dos portugueses. Foi há pouco tempo. E vale a pena recordar. Mafalda foi um dos rostos da intolerância e perseguição ao “diferente”.
Como directora da Visão protagonizou um dos mais tristes e lamentáveis eventos na História da imprensa em Portugal: a sistemática perseguição e difamação de uma parte da população portuguesa. Não por causa da sua cor de pele ou etnia. Não por causa da sua religião. Não por causa do seu género ou sexualidade. Mas apenas por isto: optaram por não tomar as novas vacinas contra a covid-19. Muitos tinham já imunidade natural (um tema que foi alvo de censura). Outros tomaram a opção por prevenção, dados os escassos dados sobre os eventuais efeitos a longo prazo das vacinas. Outros por não estarem nos grupos de risco. Outros por considerarem que os riscos da toma da vacina superavam os seus eventuais benefícios. Se Mafalda Anjos tivesse feito jornalismo, na altura, em vez de seguir a propaganda, saberia isto.
No seu artigo publicado este mês diz o seguinte:
“Há líderes populistas e carismáticos de direita radical que sabem tirar partido do ressentimento, oferecendo respostas simplistas para problemas complexos, tal como na Alemanha dos anos 30”.
Foi o que se passou na pandemia. Líderes políticos, usando o medo e o ressentimento, usando a propaganda, tiraram partido da crise de saúde pública para, servindo interesses económicos, abrir caminho ao reforço de poderes e supressão de direitos diversos, incluindo a liberdade de imprensa e de expressão.
“Atribuem-se culpas coletivas e escolhem-se bodes expiatórios para apontar o dedo, tal como na Alemanha dos anos 30.”
Foi que aconteceu na pandemia e Mafalda ajudou à perseguição.
“Temos novas tecnologias disruptivas que catapultam a propaganda, tal como na Alemanha dos anos 30.”
Tal como na pandemia. Mas, Mafalda, é mais do que isso. Com estas tecnologias impõe-se a censura, impõem-se uma narrativa. Difama-se insulta-se. Como fez Mafalda na pandemia.
Os confinamentos aplicados em Portugal e outros países na pandemia deixaram um rasto de destruição na economia e na saúde física e mental. A medida foi contestada e questionada com base em evidências e estudos científicos. Quem o fez foi chamado de “negacionista”.
“E tenta-se descredibilizar os média tradicionais que denunciam as mentiras, os engodos e os perigos destes, tal como na Alemanha dos anos 30.”
Aqui Mafalda está errada. Porque houve uma evolução. Não foi preciso destruir os media tradicionais. Ao aliarem-se a propaganda, autodestruíram-se. Aliás, continuam a autodestruir-se ao publicar artigos como o de Mafalda, este mês, na Visão.
Porque Mafalda Anjos, e outros jornalistas em Portugal, meteram o Jornalismo debaixo do tapete na pandemia e em torno de outros temas — das polémicas em torno da ideologia do género, à guerra na Ucrânia, etc. Fecharam-no, numa masmorra, a sete chaves. Condenaram o Jornalismo à obscuridade. Em vez de investigarem os vários temas da pandemia, aliaram-se aos governantes para impor narrativas. Para impor censura aos “desalinhados”. Para perseguir, denegrir, difamar, segregar os que questionavam medidas ou optavam por não tomar as vacinas ou usar as máscaras faciais.
Sim, Mafalda, houve jornalistas a ser censurados na pandemia. Houve órgãos de comunicação social a serem alvo de censura. Ainda hoje há censura.
Foi um período negro na História de Portugal. Não apenas pela pandemia, mas pela censura, a segregação. Nasci em Abril de 1974. Assisti em choque a comentários de pessoas como Mafalda Anjos. A textos publicados na revista Visão, no Público, no Diário de Notícias, no Expresso, … Os apelos e apoios às políticas de segregação, sem qualquer base científica, mas com uma gigantesca base desumana.
Foi um período de retrocesso nos mais basilares valores europeus, do respeito pela Democracia, pelo Estado de Direito, pelos direitos humanos e direitos civis. O ‘my body my choice’ deixou de ser defendido por pessoas como Mafalda. Foi trocado pela mais pura e odiosa segregação populacional.
Lembro-me de ver algumas publicações de Mafalda na rede X e de ter percebido, finalmente, como é que famílias de bem na Alemanha de 1930 alinharam com os nazis na perseguição a judeus. Era algo que eu nunca tinha percebido bem. Como é que “boas” pessoas se transformam em monstros, ficando possuídas pelo mais puro mal.
Sempre considerei a Mafalda uma “boa” pessoa. Nada me dizia o contrário. Até assistir ao seu comportamento na pandemia. Como jornalista e directora de um órgão de comunicação social o seu desempenho desde 2020 foi desastroso. Trocou o jornalismo, a isenção, a investigação pela ideologia, a propaganda, a censura, a perseguição e a segregação. Usou termos para denegrir e difamar, como ‘chalupa’, ‘negacionista’, ‘anti-vacinas’. Outros foram atrás e chamar nomes e insultar passou a ser normal na pandemia.
Durante a pandemia, percebi, finalmente, como “boas” pessoas na Alemanha de 1930 se tornaram apoiantes de Hitler e da ideologia e políticas nazis. Como caíram na propaganda nazi. Como se tornaram “agentes” nazis que perseguiam e denunciavam. Mafalda trocou a caneta de jornalista pela farda de “agente de saúde pública” do batalhão da propaganda da ditadura sanitária insana e anti-científica e anti-humana que se instalou nos anos da pandemia.
Mafalda deveria ter feito o que fez Pedro Almeida Vieira. Em 2020, viajou pela Europa e testemunhou ao vivo como estava a ser gerida a pandemia, inclusive na Suécia, um dos países com a maior taxa de sucesso na gestão da pandemia. Na Suécia, não houve máscaras, em geral. Não houve perseguição pública de parte da população. Não houve medo e terror imposto por jornalistas, ao contrário do que aconteceu em Portugal.
Mafalda devia ter promovido a investigação jornalística, não a disseminação de propaganda. Devia ter investigado os números fornecidos pela Direcção-Geral de Saúde. Ou a censura e desinformação que circulavam sobre a origem da pandemia e a eficácia real do uso de máscaras. Ou o “perigo” que representavam as crianças para os avós…
O estudo revela um retrato bem diferente do proclamado durante a pandemia: 2,5 milhões de vidas salvas em três anos, quase todas em idosos, expondo o exagero e a fragilidade da narrativa oficial. E deixa em aberto a hipótese de que a vacinação de menores de 30 anos pode ter causado um impacte líquido negativo.
Ou seja, o estudo dá razão ao Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos e aos pareceres que foram escondidos dos portugueses. Os pareceres que Mafalda e a Visão nunca noticiaram por seguirem a propaganda da época.
Anders Tegnell, reputado epidemiologista sueco, liderou a resposta da Suécia à pandemia de covid-19 com um grande sucesso. O país, ao contrário de outros, como Portugal, praticamente não regista excesso de mortalidade. A Suécia recusou aplicar, em geral, confinamentos e o uso generalizado de máscara facial. / Foto: D.R.
Na altura, perseguiram-se pais que tinham dúvidas. Segregaram-se crianças e jovens. Aterrorizou-se a população.
Tantas notícias teria Mafalda conseguido se tivesse investigado temas da pandemia. Mas não o fez.
A pergunta é: se Mafalda vivesse na Alemanha de 1930, iria apoiar a segregação de judeus se lhe dissessem que eram uma “ameaça” à saúde pública?
Como o leitor deve ter reparado, possivelmente, não coloquei neste artigo qualquer link para nenhum dos artigos segregacionistas e de incentivo ao ódio que Mafalda publicou na Visão. Nem nenhum link para qualquer uma das suas publicações cheias de ódio publicadas nas redes sociais e que atraíram – e fortaleceram – uma multidão de gente raivosa em busca de vítimas que servissem de bode expiatório para tudo o que a pandemia trouxe, incluindo crise económica e desemprego. Não quero promover o seu ódio.
E há algo que é certo: Mafalda contribuiu para a insolvência da Trust in News, sim. Não só porque era directora da Visão e publisher, como tinha acesso, se quisesse, às demonstrações financeiras da empresa de Luís Delgado. Podia ter actuado. Por outro lado, ajudou a arrastar a Visão para a lama do descrédito público, ao alinhar com propagandas e narrativas únicas, ou seja, ao recusar investigar a fundo todos os temas, sem excepção. O leitor não é burro.
Passado uns escassos cinco meses, abandonou o barco, quando o PÁGINA UM tinha tornado público que o seu barco se estava a afundar. Tentou salvar a pele e sair com uma indemnização superior a 50 mil euros. Hoje é uma das credoras da TIN. Mafalda foi directora da Visão e directora editorial (publisher) da TIN durante anos.
Agora, tenta lavar a sua imagem e as suas mãos. E a revista Visão ainda lhe dá a honra de publicar lá um artigo. Inacreditável.
Mafalda não sabe pedir desculpa. Nem à Visão, a qual arrastou para guerras ideológicas e para máquinas de propaganda. Nem aos leitores que se foram afastando. Nem sabe pedir desculpa aos que perseguiu e contra os quais incentivou o ódio e a segregação.
Mafalda ainda pode continuar a ser “boa” pessoa e ter apenas ter caído temporariamente na propaganda sistémica e coordenada que se instalou na pandemia. Pode ter sido fraca. Pode ter ficado possuída pelo mal — o mal que odeia, que segrega, que censura. Mas nunca pediu desculpa. E penso que ninguém espera que o venha a fazer. Pelo contrário. Como outros, vai branquear a sua imagem e o seu papel. Vai procurar que se esqueça o que escreveu e o ódio que promoveu.
Uma coisa é certa: Mafalda agora fala da Alemanha de 1930. Agora, Mafalda lembra-se. Recorda-se que houve períodos na História em que pessoas foram perseguidas por vizinhos, por amigos. Houve censura. Houve medo. Houve denúncias. Talvez, assim, numa futura crise, Mafalda não volte a fazer parte dos que perseguem, odeiam e segregam. Quem sabe.
Lamento profundamente o que se passa com a Visão e as restantes publicações da TIN. Os postos de trabalho ameaçados. Os salários em atraso. Por isso, assistir à publicação de textos como o de Mafalda Anjos na Visão gera estupefacção. Porque a Europa vive, de facto, sob a ameaça de uma burocrática censura digital que se instala, com ajuda de leis novas que reprimem a liberdade de imprensa, mesmo que sejam “vendidas” embrulhadas em boas intenções. Há ameaças à democracia no Ocidente. Mas Mafalda continua a não conseguir ver a floresta da qual Portugal faz parte e de como o que se passa no país é ditado por políticas decididas no exterior, com a cumplicidade de políticos e partidos nacionais.
Vivem-se tempos similares aos da Alemanha de 1930? Sim. Mas não é de hoje. Já se escreve sobre isso há anos, inclusive aqui no PÁGINA UM. Por isso, é bom que agora Mafalda se lembre, finalmente, da Alemanha dos anos 30. Mas também tem “muita lata” em vir falar disso agora. Mafalda tem ajudado e contribuído para que este clima de opressão se instale e prospere. Fez parte dele até, a dado momento. E enquanto não pedir desculpa pelo que fez aos portugueses, à Visão e ao Jornalismo, escusa de vir queixar-se. Soa a lágrimas de crocodilo – daqueles que, como bons predadores, já tem a barriga cheia de uma vítima qualquer.
Tirana. Capital da Albânia. Passeando na rua, à noite, bancas de frutas tapadas com lonas permanecem à porta de alguns minimercados e mercearias, sem supervisão. Em alguns cafés, móveis das esplanadas ficam na rua toda a noite, sem correntes nem cadeados.
Existe criminalidade em Tirana? Sim, como em todas as principais cidades. Mas alguns cenários em Tirana são já impensáveis em Lisboa, onde a real insegurança testemunhada diariamente pelos residentes e turistas contrasta com a quase invisibilidade do patrulhamento policial.
Na madrugada desta terça-feira, a zona da Graça viveu mais uma noite de assaltos. Este bar na Travessa do Monte teve ‘sorte’. A janela estava fechada no trinco e os ladrões não conseguiram entrar. Mas os prejuízos pelos vidros partidos e cadeados estragados acumulam-se. Na Rua da Graça, a ‘casa dos crepes’ não teve a mesma sorte e foi mesmo assaltada. / Foto: D.R.
Um exemplo. Na segunda-feira, o PÁGINA UM publicou a sua segunda reportagem sobre os ‘males’ que afligem a capital. Esta reportagem debruçou-se nos casos dos assaltos a casas no centro de Lisboa, perto da Graça, durante a noite, com as famílias a dormir.
Na madrugada de terça-feira, a zona da Graça acordou e deparou-se com nova ronda de assaltos. A ‘casa dos crepes’, como é conhecida, viu a porta ser arrombada. Os ladrões conseguiram entrar. A manhã de anteontem foi de limpezas e com o proprietário a fazer contas aos estragos.
Ali perto, na Travessa do Monte, um bar ficou com um vidro partido. Os ladrões não conseguiram entrar porque a janela estava fechada no ‘trinco’. Foi o que valeu. Os agentes da polícia estiveram no local a recolher provas. Mas ninguém tem esperanças de que os ladrões venham a ser apanhados e que tenham de pagar os estragos que deixaram para trás em mais uma noite de roubos na zona.
Na Rua da Graça, os donos de lojas e cafés na zona já perderam a conta ao número de assaltos ocorridos na zona durante a noite. Além disso, há prejuízos causados por roubos feitos durante o dia. / Foto: PÁGINA UM
“Pensámos que estava melhor, mas não. Os assaltos voltaram”, disse um dos proprietários de um dos estabelecimentos na Rua da Graça. Nem os quiosques de jornais escapam aos roubos. Um deles foi assaltado duas vezes só este ano. Na primeira vez, os ladrões foram bem sucedidos e conseguiram entrar e concretizar o assalto. Da segunda vez, deixaram o cadeado danificado. Para o dono do quiosque, foi mais um prejuízo, a juntar aos anteriores.
Na movimentada farmácia, no Largo da Graça, junto ao quartel dos bombeiros, foi necessário contratar um segurança privado que agora previne roubos diurnos. Mas, mesmo assim, as funcionárias encontram alarmes no chão frequentemente. Um sinal de que alguns dos produtos expostos nas prateleiras já tinham ‘voado’.
A esta onda de roubos durante o dia não será alheio o facto, de nas redondezas, se ter normalizado a instalação de tendas de sem-abrigo e toxicodependentes. O caso da degradação do Jardim da Cerca da Graça é testemunha disso.
Tirana, Albânia. / Foto: PÁGINA UM
Mas não são apenas os assaltos a casas, estabelecimentos comerciais e pessoas que sinalizam a tendência decadente da capital. Os montes de lixo espalhados por cada esquina e junto a ecopontos multiplicam-se pela cidade. A impunidade instalou-se. Além de lixo doméstico e de lojas e restaurantes, vêem-se sofás, móveis velhos, electrodomésticos, colchões, … Em algumas ruas, há vários ‘montes’ de lixos visíveis. E há a somar os sacos de obras e empreitadas na construção de empreendimentos de luxo e casas para vender a turistas a peso de ouro.
Testemunhei situações em que funcionários da autarquia passaram para retirar lixos e entulhos a seguir ao almoço e, ao final da tarde, já lá estava mais lixo e entulho nos mesmos locais.
Mas o maior problema é o tráfico de droga que prospera no centro de Lisboa. Se há tantos toxicodependentes é que por que há droga. Se há tantos consumidores, é porque há vendedores, traficantes. Não é preciso ser polícia para ver o consumo e o tráfico. É feito em plena luz do dia em alguns locais.
Foto: PÁGINA UM
Veja-se a tão falada Rua do Benformoso. Não se vê nenhum imigrante hindustânico entre os que estão sentados na escada do costume com cara de poucos amigos. A confusão e os distúrbios ali são diários. Não há vez que lá passe que não assista a confusão. Mas depois vemos o aproveitamento que existe para se atacar imigrantes hindustânicos.
Tomar um café no Martim Moniz é uma dor de alma. Dá pena até pelos turistas que se acotovelam na longa fila para o eléctrico 28, sob o sol tórrido de Julho. Em 20 minutos, assisti a várias altercações violentas envolvendo pessoas claramente dependentes (drogas, álcool). Os funcionários dos cafés e lojas da zona mereciam uma medalha. Nem imagino o que passam ali, todos os dias.
Foto: PÁGINA UM
Jovens lisboetas apontam aquela zona como zona de passagem proibida à noite. E mesmo durante o dia, há ali ruas em que não entram, porque os assaltos são certos.
Caminhando pela baixa lisboeta, o que ouço é o mesmo: muitos assaltos, muitos roubos. Muitos toxicodependentes. (E crimes violentos. Veja-se o crime hediondo noticiado ontem, sobre o corpo decapitado de um homem que foi encontrado perto do Rossio.)
Isto são apenas exemplos. Chegam-nos testemunhos ao PÁGINA UM de lisboetas que vivem em diferentes pontos da cidade que relatam os mesmos problemas: assaltos; lixo e sujidade; toxicodependentes a viver nas ruas.
No Jardim da Cerca da Graça são visíveis seringas em várias zonas do espaço. / Foto: PÁGINA UM
Não é possível pensar que a Câmara Municipal de Lisboa (CML) e as juntas de freguesia conseguem resolver, por si só, sem apoio de outras entidades, os graves problemas que afligem a capital.
É urgente um plano para salvar a cidade da crescente degradação. Não pode ser um plano que envolva apenas a autarquia e as juntas de freguesia. Há que envolver as autoridades policiais e outras entidades. Combater o tráfico de droga com mão-pesada. Multar de forma agressiva os que forem apanhados a entupir as ruas de lixo e monos.
Não é possível que Portugal aceite ter esta Lisboa como cartão de visita para os turistas. E muito menos é aceitável que o país aceite ter esta Lisboa, neste estado decadente, para os seus residentes, imigrantes incluídos.
Carlos Moedas enfrenta uma cidade com problemas complexos e que incluem evidentes focos de tráfico de droga e criminalidade generalizada. Mas o presidente da Câmara Municipal de Lisboa não vai certamente conseguir resolver este tipo de problemas sozinho. / Foto: D.R.
Olhando para o estado de algumas zonas da cidade, faz-me lembrar a Lisboa dos anos 80 e 90. E não falo das saudosas salas de cinemas e das maravilhosas piscinas públicas, que tantas alegrias traziam no Verão. Falo dos assaltos nas ruas, falo do Intendente da droga e da prostituição, de zonas como o Casal Ventoso, os bairros de barracas e casas pré-fabricadas. Em alguns aspectos, assistimos hoje a uma espécie de ‘déjà vu‘.
Ver Lisboa assim causa tristeza. Afinal, o que aconteceu à cidade? Como chegou aqui? O mais fácil será atirar culpas para Carlos Moedas, mas é injusto e redutor. O mesmo vale para os vários presidentes das juntas. Porque quem coloca os monos e os lixos tem responsabilidade. Quem falha no controlo e na prevenção do tráfico de droga e da criminalidade tem responsabilidade. Quem aprovou políticas irresponsáveis que deixaram entrar imigrantes com perigosos e cadastro. Quem aprovou políticas desumanas que atiraram mais portugueses para a pobreza ou para o sobre-endividamento tem responsabilidades. Ou quem criou políticas desastrosas que aumentaram ainda mais a desigualdade.
E todos nós temos responsabilidade pela cidade em que vivemos. Fazemos parte dela. Esperar que “os outros” resolvam tudo é um absurdo. Despejar os desgostos nas redes sociais pode ser bom, mas só é útil se envolver algum tipo de envolvimento cívico concreto para a resolução dos problemas.
Os lisboetas não podem estar à espera que a autarquia e as juntas de freguesia resolvam todos os problemas que afligem a cidade. O lixo e ‘monos’ que entopem as esquinas de muitas ruas da capital não aparecem lá sozinhos. / Foto: D.R.
O que temo é que Lisboa seja, neste momento, apenas um reflexo do país. Um sintoma de uma doença mais vasta que se alimenta, em parte, de políticas irresponsáveis, da falta de escrutínio e fiscalização mas também do conformismo e da falta de cultura cívica de muitos portugueses.
Em 2025, Lisboa tem tiques de uma cidade dividida. De um lado os hotéis de luxo, os restaurantes ‘gourmet‘, os condomínios novos com vista e piscina. Do outro, o lixo, a insegurança, o tráfico de droga, as tendas dos sem-abrigo nos jardins. Uma cidade de primeiro mundo em que a desigualdade dispara a olhos vistos.
Esta Lisboa desigual, insegura, decadente e suja normalizou-se. E, sinceramente, não penso que isso seja normal. Pois Lisboa não precisa ser como Tirana e passar a ter as bancas de fruta na rua durante a noite, ou ter os móveis das esplanadas sem correntes e cadeados. Mas isso não seria o ideal? Actualmente, a realidade é bem diferente. Se uma rua da capital não acordar com uma montra partida, já é bom. E isto não é normal.
Rita Matias e Catarina Furtado trocaram galhardetes por causa de barracas. A apresentadora e a deputada do partido Chega acusaram-se mutuamente de serem ignorantes. Matias aproveitou para criticar o facto de Furtado receber cerca de 15 mil euros de vencimento mensal na RTP.
É este o país que temos. Uma deputada a lançar insultos. Uma apresentadora a lançar insultos. Ainda por cima, duas caras bonitas. O caso torna-se facilmente um dos assuntos da semana nas redes sociais e na imprensa. O povo vai entretido. A apresentadora promove mais um pouco a sua imagem — o que é excelente para angariar mais contratos de publicidade. A deputada ganha mais audiência e caça mais uns votos, até porque é candidata à Câmara de Sintra nas eleições autárquicas.
Foto: D.R.
Mas as barracas continuam por aí. E não há só barracas em Loures. E há quem nem sequer uma barraca tenha para viver. Há quem viva numa tenda. Num quintal. Num quarto pequeno com bolor, a dormir à vez em beliches. Na rua.
Atenção: Catarina Furtado é muito talentosa e merece bem o seu vencimento milionário. Mas não o deveria estar a receber num canal público, mas num canal privado.
Catarina Furtado. / Foto: D.R.
Mas o caso do salário de Catarina Furtado é apenas um dos símbolos da mentalidade que temos tido em Portugal, em que o despesismo e as despesas públicas extravagantes se tornaram normais, a par da corrupção, do tráfico de influências e do compadrio.
São roubos que são feitos aos contribuintes. Todos os dias. Todos os meses. Todos os anos. Ano após ano.
Em 2025, Portugal é um país com barracas, encurralado pelo despesismo, pela corrupção e pelo conformismo.
Para o Chega, ganhar em algumas autarquias vai ser uma prova de fogo. O nível de despesismo e excentricidades em alguns municípios representam muitos 15 mil euros multiplicados e distribuídos por almoços, jantares, esculturas, festas ‘grátis’, carros, prendas, brindes, viagens e acções de ‘team building‘ para ‘líderes’ da autarquia.
Foto: D.R.
Vamos ver como se comporta o Chega em municípios que venha a liderar, e se Rita Matias vai condenar o eventual despesismo de novos autarcas do seu partido.
Mas, saindo do universo das autarquias, passamos para um outro nível de gastos públicos e aí é aos milhões e milhões, com a TAP a ser a cereja no topo de um bolo que inclui bancos, empresas públicas falidas, fármacos que acabam no lixo, obras públicas que derrapam para o bolso de alguém… Um bolo que tem ajudado a construir muitas vivendas e a comprar apartamentos no estrangeiro.
Mas o país vai andando. O povo, conformado. Porque a culpa “é dos governantes”. Eles que “resolvam”.
Foto: D.R.
E, assim, continuamos com barracas. Com pobreza. Fome. Com escolas geladas no Inverno, sem condições. Com esquadras a meter água da chuva. Com polícias mal pagos. Com professores exaustos e desanimados. Sem acesso a saúde condigna. Os partos a terem de ser feitos em ambulâncias, na auto-estrada.
Estes são alguns dos motivos que levam o PÁGINA UM a ter como uma das suas prioridades fazer notícias sobre os gastos públicos. Porque sempre que fazemos notícias sobre contratos públicos milionários por ajuste directo, ou simplesmente com fins mirabolantes, conseguimos vislumbrar um pouco o que se passa com o ‘nosso’ dinheiro. Para onde vai. Como se esvai. Para o bolso de quem vai.
Mas, apesar de ser o ‘nosso’ dinheiro, a maioria dos portugueses está-se ‘nas tintas’. Alguns, se calhar, têm é pena que não tenham amigos numa câmara municipal ou numa junta de freguesia para lhe fazer um pequenino ajuste directo ocasionalmente.
Foto: D.R.
Em geral, os portugueses continuam a não querer saber. Mas, na hora de votar, alguns decidiram mudar o seu voto para o Chega, nas últimas eleições. Porque ‘querem mudança’.
Pois, muitos leitores não vão gostar, mas tenho cá a ideia de que a verdadeira mudança só virá de cada cidadão, de cada munícipe. Virá de cada um se interessar pelo país, pelo seu município, pela sua freguesia. Pelos seus vizinhos, imigrantes incluídos. Votar não é suficiente, seja em que partido for.
A mudança virá do envolvimento directo de cada um. De questionar os seus governantes locais sobre o que andam a fazer quando assinam tantos ajustes directos. Virá do associativismo. Do cooperativismo. Porque votar não chega.
A mudança pode até passar por se começar a questionar a RTP do porquê de suportar, a peso de ouro, uma única apresentadora de TV. Mas não chega. Não chega, mesmo.
Sede da RTP, em Lisboa. / Foto: D.R.
Porque tirar Catarina Furtado da estação pública iria trazer poupanças. Quem sabe, até daria para contratar jornalistas e fazer notícias e reportagens que fossem verdadeiro serviço público — e não os pés de microfone que frequentemente vemos na RTP. Mas não iria criar casas em Loures.
Repare-se que Catarina Furtado não furtou nada aos contribuintes. O seu único ‘crime’ foi ter tido a sorte de alguém na RTP achar que Portugal é um país com petróleo e que, portanto, tinha ordem para esbanjar à vontade os dinheiros públicos numa estrela de TV.
Rita Matias tem razão em condenar um salário principesco na RTP, num país com barracas. Catarina Furtado tem razão em sentir empatia pelas famílias sem casa, em Loures. Andarem a insultar-se uma à outra na praça pública apenas dá lenha para a fogueira que alimenta o voto no Chega. Não traz casas a quem não tem.
Foto: D.R.
Mas se este ‘conflito’ entre Rita Matias e Catarina Furtado trouxer casas a alguém que delas precise, então proponho que se erga uma estátua a ambas com a seguinte inscrição: “Duas grandes activistas pelo fim da ignorância”. Poderia até ser uma ‘obra’ a trazer ‘vida’ a uma qualquer rotunda ou jardim em Loures. Mas sem ter dinheiros públicos à mistura, nem envolver encomendas a escultores amigos do presidente da câmara.
Podia fazer-se antes uma ‘vaquinha’ na Internet para as estátuas. Ou talvez para as casas das pessoas das barracas em Loures. Porque os dinheiros das autarquias e das juntas, os dinheiros do Orçamento do Estado, chegam para estátuas, festas ‘grátis’, luxos, extravagâncias, TAPs e bancos. E salários de apresentadoras ‘estrela’. Os dinheiros públicos não chegam para tirar gente de barracas. Para casas, já não há.
Em vésperas de entrarmos neste milénio, surgiu um filme que se tornou um fenómeno de culto. O protagonista queria saber o que era “a Matrix”. Para isso, teve de escolher entre tomar um comprimido vermelho ou um comprimido azul. Se tomasse o azul, voltaria para casa para viver a sua vida normal e acreditar no que quisesse. Se tomasse o vermelho, iria conhecer a verdade, que nada mais era do que a realidade.
Nesta cena icónica, Morpheus, interpretado pelo brilhante actor Laurence Fishburne, revela a Neo (Keanu Reeves) que a Matrix não pode ser explicada, tem de ser vista em pessoa. Mas adianta-lhe uma informação: a verdade é que ele é um escravo, nascido numa prisão. Tal como todos os humanos.
A narrativa de “The Matrix” está assente na ideia de que a nossa mente está programada e que vivemos uma simulação. Para mim, uma das cenas mais interessantes do filme dos (então) irmãos Wachowski (que agora são irmãs), é quando Morpheus e Neo entram num programa para se enfrentarem num treino de luta, pela primeira vez. Morpheus, procurando ensinar Neo a “sair da sua mente”, pergunta-lhe: “pensas que é ar o que estás a respirar?”
Por esta altura, o leitor estará a questionar porque comecei este texto com cenas do filme “The Matrix” e o que é isso tem a ver com o título. Na realidade, a meu ver, tem tudo a ver. Passo a explicar o motivo: sair da Matrix ou da ‘roda do ratinho’ ou da roda de Samsara – que é definida pelo carma – implica, primeiro, ter consciência do que é a realidade e ter consciência sobre “o que” somos. Sem isso, sobra a alternativa de uma vida de escravidão e escuridão, na qual seremos fantoches à mercê de programas – narrativas.
Uma das mais chocantes narrativas (ou programa) a que assisti ao vivo, que infectou como um vírus uma boa parte da opinião pública, dizia isto: os “não-vacinados vão todos morrer e vão matar-nos a todos”. Vi jornalistas, governantes, comentadores e actores de Hollywood a espalhar esta mentira. A exigir segregação. Os ‘não-vacinados’ foram segregados, odiados, perseguidos, excluídos. Desumanizados nos media, diariamente, por comentadores e jornalistas alheios a conceitos estabelecidos como a imunidade natural e ao princípio de ouro em Medicina, do consentimento informado. Tudo com base num programa malicioso que se tornou viral e que usava o medo como porta de entrada para se instalar.
Já tinha acontecido antes na História. Mentiras (programas maliciosos) que se espalham e acabam no ódio. Na perseguição. Na segregação. Na exclusão. Na desumanização. Na chacina. No genocídio.
Hoje, a mesma narrativa-padrão está a espalhar-se que nem fagulha em mato seco. As vítimas não são mulheres “bruxas”, nem hereges, judeus, ou negros. Também não são não-vacinados. Os novos alvos deste programa malicioso viral são: “os imigrantes”. Mas não são uns imigrantes quaisquer. A narrativa não abrange imigrantes franceses, norte-americanos ou finlandeses. Também não apanha imigrantes da maior parte dos países da América Latina. Os chineses também estão a salvo (para já).
Nesta nova onda de maliciosa desumanização, os alvos são os “hindustânicos”. Em Portugal, acrescenta-se ainda os “brasileiros”. Em vários países europeus, este vírus de programação inclui ainda como alvos os imigrantes do Norte de África. São estes os novos “não-vacinados que nos vão matar a todos”, após o upgrade que houve do mesmo programa malicioso que circulou na pandemia.
O mais curioso é que, hoje, fervorosos defensores do fascismo-sanitário se unem a “não-vacinados” para “eliminar” este novo “inimigo”. A sério. “Ovelhas” e “chalupas” unidos numa só voz, gritando: “deportação, já!”. A segregação como forma de separar os “puros” dos “impuros” foi substituída pela nova “solução”: a deportação.
Na actual narrativa, todos os hindustânicos são perigosos pedófilos-violadores-terroristas. (Uma mesquita mais, e é o fim do mundo). Todos os brasileiros são líderes de gangs bárbaros tatuados, armados até aos dentes. Todos os marroquinos e argelinos são máquinas do mal em estado bruto que vieram para nos destruir.
O rebanho está unido e finca o pé. Tal como na pandemia, os verdadeiros fascistas esfregam as mãos de contentes, gratos por estas novas ovelhas que lhes entraram pela quinta adentro. O fascismo continua vivo! Já não é o sanitário, é um ainda melhor.
Com a nova narrativa de polarização (agora opondo “europeus de gema” vs “imigrantes maus”) os conflitos ganham força, saltam para as ruas e já metem pedras, bastões e facas. Vai ser preciso “controlar a imigração” e investir em “segurança”. Finalmente, vai-se conseguir fazer o que na pandemia não se conseguiu: colocar um “QR code” no braço de cada europeu. Um chip. Para sempre. Mas, atenção, que é para “lidar com os imigrantes”. É para “o bem comum”. E, assim, tudo será digital por uma questão de “segurança”. Até o dinheiro.
O que me espanta é que os “super inteligentes” “não-vacinados”, que conseguiram “não cair” na “maior operação de propaganda e manipulação de sempre”, acabaram por cair, que nem uns patinhos (ou ovelhas) nesta nova “maior operação de manipulação de sempre”.
Dir-me-ão que são situações diferentes. Que não têm nada a ver. Mas esse é o “código” principal deste milenar programa malicioso que ataca humanos com mente não liberta. Passa a ideia subliminar de que “agora é que o perigo é real”. Aquele “inimigo” é mesmo muito mau. O rebanho fica entretido com um inimigo comum a abater. Um novo bode expiatório foi encontrado. E é perfeito.
Na pandemia, a narrativa era de que se não houvesse 100% de vacinados, morríamos todos. E que a covid só ia embora quando todos tomassem a nova vacina “segura e totalmente eficaz” e sem defeitos nenhuns. Agora, a narrativa é de que a culpa da falta de empregos decentes, de habitação, dos baixos salários, da insegurança, e do crime é dos imigrantes. Se não fossem eles, a Europa era um paraíso. Se não fossem os não-vacinados, não havia covid. Se não houvesse aqui hindustânicos e brasileiros, as mulheres estavam seguras e nunca eram discriminadas, assediadas, violadas, espancadas e mortas. O problema são as mesquitas e as igrejas evangélicas.
Significa isto que não houve erros nas políticas de imigração? Significa isto que não há que rever as políticas nas fronteiras? Significa isto que não é preciso levar a cabo reais medidas de integração? Significa que não existem problemas? Claro que não. Mas a “culpa” não é dos “imigrantes”. É de anos de políticas extremistas nas fronteiras, que permitiram a entrada de migrantes sem filtro. É de políticas de imigração que não tiveram em conta que o sonho do multiculturalismo só se torna real se houver programas de integração realistas perante a necessidade de terem de coexistir culturas e religiões muito diferentes entre si. É de pactos que esconderam crimes e problemas envolvendo migrantes, o que criou maior desconfiança na população.
Mas, em última análise, estamos todos (população em geral) no barco, porque elegemos os governantes e muitos até apoiam a abertura total das portas à imigração, sem cautelas. Agora, há que agir para: tirar migrantes de redes de tráfico que os exploram; reunir comunidades em torno da integração possível de tão grande diversidade de culturas; acautelar que crimes são fortemente punidos, sejam cometidos por estrangeiros ou europeus.
A verdade é que o grande problema da Europa não são os imigrantes. Longe disso. São as políticas de bancos centrais que alimentaram uma economia virtual e transformaram a habitação num “activo” especulativo de luxo. O problema é o custo de vida que disparou com confinamentos e guerras eternas, alimentadas por ambiciosos e gananciosos políticos. São os milhares de milhões de euros que estão a começar a ser desviados dos bolsos das famílias europeias (incluindo com criação de nova dívida) para serem transferidos para a gigantesca e muito lucrativa indústria do armamento. O problema são os europeus e os imigrantes a viver nas ruas. São as famílias a viver em quartos. São a uberização do mercado de trabalho e a normalização da precariedade. São a corrupção e os interesses que roubam todos: os europeus e os imigrantes. São os desincentivos à natalidade. É o défice democrático crescente. Poderia continuar.
A imigração desregulada criou problemas que os governos da Europa precisam rapidamente corrigir com mão firme. Mas culpar os imigrantes pelo estado a que chegou a Europa é, no mínimo, ingénuo.
Só que o programa malicioso já está instalado. As “ovelhas” já escolheram o seu lado. O rebanho está unido e segue junto na mesma direcção. Tudo está tranquilo para os pastores. Os media — frequentemente desavindos com a realidade e os factos — falham o alvo e preferem o disco-riscado que os faz repetir a lenga-lenga: é “extrema-direita” para aqui e “radicais” para ali. Simplesmente triste, observar a escravidão a que a comunicação social está votada.
O que se passa hoje, faz-me lembrar um outro filme de culto protagonizado por Keanu Reeves: “O advogado do diabo”. Neste filme de 1997, o diabo (Al Pacino) consegue seduzir o novato e brilhante advogado (Reeves) usando o grande ego e a vontade de vencer do jovem em ascensão de carreira. O advogado consegue libertar-se do diabo depois de quase perder a alma. Mas o diabo nunca desiste. Volta à carga. No final, seduz de novo o advogado, aparecendo desta vez como um jornalista que quer entrevistar e, assim, “tornar famoso” o jovem vaidoso. Ego, vaidade, ganância.
Hoje, como na pandemia, usa-se o medo como isco. E o medo é ainda melhor “isco” do que a vaidade ou a ganância.
E, assim, se não se está atento às armadilhas, se vai caindo nas ciladas. Pois a verdadeira luta não é por dinheiro, por fama, por poder. É mais do que isso. É pelas almas. Pela Humanidade. Pelo melhor que há em nós, humanos. Pela nossa Luz. Para nos mantermos escravos de uma roda que não para de girar.
Já o escrevi antes e repito: as caças às bruxas são sempre de origem demoníaca. Seja de não-vacinados ou de imigrantes.
No filme “The Matrix”, Morpheus faz uma outra revelação a Neo sobre a realidade. “Tens de perceber: a maioria destas pessoas não está pronta para ser desligada [da Matrix]. E muitas delas estão tão habituadas, tão desesperadamente dependentes do sistema, que lutarão para o proteger”. Até que, por fim, sejam libertadas da sua escravidão e percebam, de uma vez, que é sempre o mesmo “inimigo” que enfrentamos há milénios. Na pandemia e hoje.
É possível que cristãos, agnósticos, judeus, hindus e muçulmanos vivam juntos em paz? É. Se assim quisermos. Se encontrarmos objectivos comuns e colocarmos de lado as diferenças. É possível respeitarmos e aprendermos com outras culturas? Claro que sim.
Vivemos na era do advento da Inteligência Artificial, que já está a dominar vastas áreas. Quanto mais depressa compreendermos onde é que temos de colocar o nosso foco, melhor. Permitirmos que nos distraiam, abre a porta à instalação de políticas “para o nosso bem” e quando delas nos quisermos libertar, aí sim, já poderá ser tarde.
E assim vai rodando a roda do ratinho. E assim, da segregação de não-vacinados à deportação de imigrantes se vai perdendo “a alma” mais um pouco. Se vai vivendo escravo sem saber. Está na altura de desinstalar esse programa. Porque juntos, europeus e “novos europeus” — imigrantes —, somos fortes. Juntos, nós humanos, somos fortes.
Era uma tarde soalheira de Domingo. A Avenida das Forças Armadas estava vazia. Não havia o habitual frenesim de estudantes a subir e a descer a rua. A cantina universitária também estava fechada. Desci do autocarro e aterrei num dos momentos que mais me marcou na adolescência. Um grupo de rapazes e raparigas skinheads estava a chegar à paragem de autocarro no preciso momento em que eu estava já sozinha naquela avenida deserta.
Quando eu era adolescente, e também na infância, parecia ser de origem asiática, com os olhos amendoados e o tom de pele claro no Inverno. No Verão, ficava morena e ainda acentuava mais o ar ‘exótico’. Era muitas vezes chamada de ‘chinesa’ na escola. Confundiam-me frequentemente como uma ‘uma rapariga oriunda de Macau’.
Voltando à paragem de autocarro e aos skinheads. O motorista já tinha arrancado com o autocarro avenida acima. Olhei e estava aquele grupo infeliz no meu caminho. Percebi que já me tinham na mira. Senti um frio na barriga. Não havia ninguém à volta. Não havia edifícios de habitação ali. Ninguém à janela. O que havia, estava fechado. Passavam poucos carros e a ‘abrir’.
O grupo acelerou na minha direcção. Tinham encontrado uma ‘presa’, pensaram.
Senti como se fossem cães a vir morder-me. Como fui atacada por um cão em pequena, tinha algum medo de cães mais ferozes. Pensei no que aprendi sobre como agir perante cães: ‘fica quieta, anda muito devagar; não olhes nos olhos’.
O grupo rodeou-me. Largou alguns insultos. Tentei continuar a andar, muito devagar. Fingi que não ouvia nada. Sobretudo, procurei não mostrar medo. Mas por dentro estava apavorada. Temia que tivessem alguma arma. Que me fossem magoar. O momento durou uns minutos e pareceu-me serem horas.
Lembro-me que me agarrei à alça da mala que levava pendurada ao ombro e que quase não respirava. Lembrei-me dos cães. Continuei a caminhar muito devagar, enquanto o grupo me cercava. Eventualmente, eles seguiram o seu caminho. Eu segui o meu.
Passei a trazer uma navalha comigo na altura, confesso (mas não o recomendo hoje). Não que a fosse usar. Mas queria sentir-me segura de algum modo.
Quando ouço hoje falar em neonazis recordo sempre aquele episódio. Por um lado, penso que se está a banalizar a palavra ‘neonazi’. E considero perigoso estar a misturar esse termo com outros. Banaliza. Normaliza. Preocupa-me que, ao se banalizar o termo, se esqueça o que ele significa e de onde vem. Por outro lado, não me surpreende que exista um aumento de extremistas. Aliás, era previsível que tal iria acontecer.
Será sempre incompreensível para mim haver humanos que consideram outros humanos inferiores. Não falo apenas em termos de aspecto físico, como a cor da pele, a textura do cabelo. Não falo apenas da origem, da língua, da cultura. Falo de todos. Do outro ‘diferente’. Do humano que tem um problema na fala, um condicionamento cognitivo. Uma reduzida mobilidade. Um corpo ‘diferente’. O neurodivergente. O que é sensível aos ambientes, aos sons, às multidões. Aos ruídos. À pressão no trabalho ou na escola. O ‘gordo’, o ‘magro’.
Sou do tempo em que chamar ‘baleia’ a uma menina mais redondinha era normal, sobretudo na escola. Sou do tempo das alcunhas que se punham aos ‘diferentes’: ‘chamuça’; ‘banana’; ‘xinoca’; ‘mongoloide’.
Já em adulta, era normal ouvir nas redacções expressões como ‘larilas’, ‘gaja’, ‘monhé’, ‘chamuça’, ‘preto’. Não havia igualdade de oportunidades para todos (não há, ainda). Não éramos todos iguais aos olhos de alguns.
Também nunca compreendi como há humanos que se julgam superiores a outros humanos, apenas porque nasceram em famílias mais abastadas e com muitos apelidos. As castas sempre estiveram bem vivas em Portugal. Só me apercebi disso já adulta, no meio profissional.
Mas, das muitas entrevistas que fiz, as que mais me custaram foram aquelas em que tinha à minha frente alguém racista, xenófobo, sexista. Os outros, os que se acham de uma ‘casta superior’, são almas que se encontram perdidas, iludidas. Já os racistas e sexistas, estão perdidos mas provocam-me arrepios. Como os cães ferozes.
Nos últimos anos, durante a pandemia de covid-19, vivi um verdadeiro choque em matéria de ódio e segregação. Foi profundamente desolador assistir à vaga de intolerância dirigida a cientistas de renome internacional que defendiam uma abordagem mais moderada e científica da gestão da crise de saúde.
Assistimos não apenas à censura de vozes dissidentes, mas também à estigmatização brutal de quem, por convicção ou prudência, optou por não tomar as novas vacinas. Os media aplaudiram políticas de segregação e deram palco a figuras que incitavam ao ódio e à perseguição. O discurso de ódio tornou-se normal nos media.
Fiquei abalada com a facilidade com que o discurso de ódio se infiltrou e ganhou legitimidade, designadamente entre figuras públicas, governantes, políticos, jornalistas e celebridades. Percebi como foi possível nos anos 30 do século passado que os nazis tenham conseguido convencer famílias alemãs comuns a aderir à sua ideologia. Percebi, na pandemia, como pessoas comuns se podiam transformar, de um dia para o outro, em predadores e carrascos e disseminar ódio por outros humanos.
Estocolmo, Suécia, 2020. Enquanto em Portugal se disseminava nos media todo o tipo de discurso de ódio contra os que questionavam as medidas covid impostas pelo Governo, na Suécia o país manteve-se a funcionar perto da normalidade, com ajustes ponderados, respeitando as liberdades fundamentais e sem impor o uso de máscara em geral. / Foto: PAV
Em países como os Estados Unidos, a Austrália ou a Nova Zelândia, a loucura chegou a um nível distópico de perseguições, violência, opressão e bullying institucional. As medidas segregacionistas, os atropelos a direitos fundamentais tornaram-se o novo normal. Os insultos. Os atropelos à Constituição em Portugal. Os atropelos ao consentimento informado na Medicina.
E assim se normalizou uma era de obscurantismo e impunidade. Assim se normalizou o extremismo e o discurso de ódio e o bullying em larga escala. Assim se normalizou o ódio. E este ódio evidente nos media durante a pandemia nasceu da mesma forma como sempre nasceu o ódio: por ignorância e por medo. Onde há medo e ignorância, está o terreno tratado para semear o ódio.
Ver hoje o regresso do termo ‘neonazis’ aos jornais causa-me um arrepio. Mas não posso dizer que me surpreende. Foram feitos vários avisos de que o extremismo iria aumentar nestes anos. Porquê? É simples. O extremismo gera extremismo. Quando se começaram a adoptar políticas radicais e extremistas em países europeus, incluindo Portugal, era óbvio o que iria suceder.
As políticas radicais, muitas das quais sem base científica, que foram impostas na pandemia, deixaram, além disso, um rasto de danos económicos, sociais, psicológicos, emocionais gigantescos. Mas não foram as únicas medidas que serviram de adubo para criar zanga e revolta. Para ajudar a fazer nascer extremistas.
As políticas radicais referentes à imigração que têm sido impostas no Ocidente atiraram migrantes para redes de tráfico de humano e condenaram milhares a viver em condições indignas. Também não acautelaram devidamente questões como a da integração cultural. Por outro lado, a tentativa de se querer ‘proteger’ migrantes, escondendo do público a nacionalidade de suspeitos em crimes hediondos, alimenta a desconfiança e o extremismo. Pior: tentar diminuir alguns crimes aberrantes, como aconteceu no Reino Unido com os gangues de pedófilos e predadores de meninas britânicas vulneráveis, tem o efeito contrário: alimenta a xenofobia. São políticas que alimentam a divisão e a polarização.
Depois, há as políticas que têm promovido a anulação dos direitos das mulheres, designadamente o direito a estarem seguras e a terem privacidade em espaços baseados no sexo. Tem sido promovida uma nova forma de misoginia, em que os direitos de algumas pessoas se sobrepõem aos direitos de meninas e mulheres. E, mais uma vez, esta é uma nova forma de … polarizar e dividir a população. Inclusão nunca devia servir para dividir.
Mesmo políticas como as que incentivam à eutanásia em países como o Canadá, ou a descriminalização da interrupção de gravidez até ao nascimento no Reino Unido — são medidas radicais e que levantam profundas questões éticas. Onde está o bom senso nestas políticas? Estas políticas não alimentam extremistas? E não dividem a população?
Ontem, extremistas criaram extremistas. Hoje, continuam a alimentá-los.
Os media têm sido parte do problema, não da solução. Têm aprovado e promovido muitas das políticas radicais e extremistas que governos têm vindo a adoptar, designadamente na Europa e nos Estados Unidos. Os media têm sido avessos ao contraditório e ao pensamento dos moderados.
Os que optam pelo caminho do meio, pelo bom senso, não são bem-vindos aos media. Os que procuram manter o discurso numa base factual, racional, empírica, não são bem-vindos. Os que procuram a paz, o diálogo, a diplomacia, a razão, a compaixão, a compreensão, não são bem-vindos.
São bem-vindos os populistas. Os radicais. Os opostos. Os extremos. Isso vende. Vende jornais, vende cliques. Atrai audiência. São bem-vindos os que promovem ódio. Os radicalizados. Os que defendem políticas e governantes que perderam todo o bom senso. Porque os media dependem, muitas vezes, de financiamentos de governos e entidades públicas, além de dependerem de parcerias comerciais de empresas de indústrias poderosas que lucram com algumas das políticas em curso.
E governos lucram com o aumento do extremismo. O extremismo e o medo lançam as bases para se criar o terreno ideal para o Estado policial em permanência. Reforçam as ideologias de vigilância, controlo, opressão e de aniquilação de direitos humanos e civis e das liberdades fundamentais. É a ‘desculpa’ ideal para reforçar poderes de políticos e mudar leis fundamentais, eliminando direitos como a liberdade de imprensa e de expressão ou o direito à greve.
Nunca as democracias ocidentais estiveram tão ameaçadas como hoje. Pelas forças (incluindo na Europa) que pretendem arrastar os países para guerras. Pelos grupos extremistas. Pelos governos e políticas extremistas. Uns alimentam os outros. E vice-versa.
O problema criado por estes extremismos – o institucional, de governos, que viola liberdades e as leis dos países, e o de grupos ‘civis’ – vai ter uma ‘solução’. Cria-se o problema para oferecer uma solução. Essa ‘solução’ vai parecer ser a que nos vai ‘salvar’ dos neonazis. Da extrema-direita. Da extrema-esquerda. Dos terroristas. Vai incluir aquilo que já se chama nos media de ‘limites’ à liberdade de expressão. Vai incluir um aumento da vigilância. Um reforço dos gastos em defesa e armamento. A eliminação de leis fundamentais. Do espalhar o medo. Tudo para o ‘bem de todos’. O ‘bem comum’.
Vivemos numa era de grande mudança. Mas também temos meios que não existiam em outros tempos. E temos uma capacidade de mobilizar e fazer passar a palavra como nunca houve antes. Apenas desejo que os moderados, os ponderados, os do caminho do meio, criem uma onda avassaladora que derrube os extremismos e o caminho que nos conduz ao fim das democracias. Porque só há um futuro que desejo para os mais novos. E não inclui cercos em paragens de autocarro por bandos de almas perdidas. Nem inclui jornais e TVs que incentivam e promovem o ódio contra grupos de humanos. Nem inclui políticas e governos que esqueceram a História e as conquistas do pós-Segunda Guerra Mundial, como direitos humanos.
Tenho receio de neonazis? Tenho. Ainda hoje. Tenho receio de governos totalitários e que enterram as liberdades fundamentais e direitos conquistados? Mais do que nunca.
A verdadeira solução para combater os extremismos passa pela promoção de políticas de verdadeira inclusão, de tolerância, mas também políticas de combate à pobreza e de promoção de melhores condições de vida da população, migrantes incluídos. Passa pelo combate ao radicalismo de governos em matérias que têm dividido e polarizado a sociedade. Para por políticas ‘back to basics‘, o regresso ao fundamental, ao prioritário: pão; emprego; tecto; educação; solidariedade.
O futuro que sonho pertence aos moderados, aos ponderados, aos pacifistas, aos racionais, aos que defendem o bom senso. São eles que podem por ‘um pé na porta’ e travar o avanço do extremismo, mas também o avanço do Estado policial e de uma nova forma de totalitarismo e censura. Porque a solução para travar o neonazismo, o extremismo e o terrorismo não está no reforço de poderes de políticos que anseiam por estados de emergência permanentes e um dispendioso arsenal de armas.
A solução do combate ao extremismo está no encontro entre a razão, o bom senso e a ética. E isso tem de estar reflectido nas políticas de governos.
A solução do combate ao extremismo está no sabermos que somos iguais, nós humanos. Com sexos diferentes. Com culturas e origens diferentes. Com tons de pele diversos. E temos de ambicionar chegar a um terreno comum para alcançar um mesmo propósito: avançar e progredir, vivendo em paz e em harmonia. Entre nós. E neste planeta em que, sendo nós a espécie dominante nesta era, somos apenas uma das muitas que aqui têm o seu lar. Pelo menos, enquanto não nos aventurarmos galáxia fora e ‘emigrarmos’ para novos planetas, transportando o melhor que temos para dar: a nossa humanidade.
A forma como os leitores apreendem os conteúdos de um jornal pode ser analisado e avaliado pelas reacções nas caixas de comentários ou nas redes sociais. Não tendo o PÁGINA UM, por razões editoriais, uma caixa de comentários (que exigiria ‘moderação’, algo impraticável para os nossos meios), resta-nos as reacções nas redes sociais. E, na semana passada, sucedeu algo curioso com dois textos no PÁGINA UM: uma notícia e uma crónica satírica.
Ora, no Facebook, surgiram soldados da tropa dos bons costumes e, de repente, senti que estávamos no Portugal da década de 60.
Percebi que há quem pense que não podemos escrever sobre Nininho Vaz Maia, mesmo que seja para noticiar que o artista continua popular entre autarcas e é muito requisitado, após a polémica.
E percebi também que há quem defenda que não podemos fazer humor tendo como alvo ‘famílias de bem’.
Se escrevermos textos satíricos sobre ‘famílias de bem’, lançam-nos uma fatwa aristocrática, banindo toda a redacção do PÁGINA UM, e descendentes, de poderem integrar confrarias, lojas do avental ou ser sócios do Sporting (valem-nos as cooperativas).
Pelas notícias sobre a popularidade de Nininho nas autarquias, arriscamos uma valente praga e eterna condenação.
Caramba! Se quiséssemos fazer fretes, lamber botas ou fazer ‘jornalismo positivo’ para viver confortavelmente com financiamento autárquico ou europeu, então o PÁGINA UM não teria sido criado.
Foto: D.R.
Por outro lado, não existem ‘vacas sagradas’, nem para o jornalismo nem para a sátira. Por muitas fatwas e ofendidos que surjam, isso faz parte da arte do Jornalismo. E da arte do Humor.
No dia em que nos cancelarmos, como jornalistas ou humoristas, escritores, para acalmar ofendidos, é o dia em que o melhor é arrumar as botas.
Os barris de cervejas já rodam no asfalto, tilintando de vez em quando nos carris do 28.
A parada de WCs, que já estão estacionados junto ao parque estacionamento clandestino, já denunciam que vai haver festim.
No cabeleireiro, a talentosa ‘patroa’ já mandou o seu estimado cãozinho de férias com a filha, por uns dias, porque vai estar a trabalhar nos Santos. E a estatueta de Santo António que protege num mini altar o estabelecimento, guarda as preces de esperança (procura-se marido para uma das cabeleireiras e força e sucesso para as restantes…)
O palco está montado no largo, em frente ao coreto, pronto para receber artistas de variedades e DJs com reportório popular.
As fitas, as fitas, os manjericos em papel, ….
As lojas que estavam em obras, estão em contagem decrescente para abrir a tempo da festa. Este ano, a grande novidade é o novo supermercado Continente que anunciou a inauguração para dia 12. (Saberá ao que vem?)
A marca da Sonae veio ocupar o espaço que estava arrendado a uma das lojas mais procuradas pela comunidade que vive e trabalha na Graça: ‘O chinês’.
O chinês não era um chinês qualquer. Era uma espécie de mala do Sport Billy em que tudo, mas tudo se podia encontrar. Fosse o produto ainda produzido por uma velhinha marca portuguesa, até acessórios de costura e tricôt, aos brinquedos de plástico da moda, aos panos da loiça a forra para camas de coelhos e porquinhos da Índia. E, claro, manjericos de papel. E fitas. Muitas fitas.
Vai ser difícil ao Continente bater a popularidade d’ ‘O chinês’, até porque há populares que culpam a marca pela perda que a comunidade da Graça perdeu, quando ‘O chinês’ fechou.
Talvez se oferecer sardinhas ou cervejas nos Santos, a coisa fique esquecida. Pelo menos até ao dia de Santo António.
Para mim, viver na Graça, traz por esta altura duas tarefas: estacionar o carro num lugar onde ficará parado durante uma semana; colocar avisos à entrada das hortas para evitar as habituais invasões de festivaleiros em busca de casa de banho.
Este ano, vou experimentar dois avisos novos, na esperança de que mesmo malta alcoolizada tema pela vida e fique longe do nosso portão.
Depois, é desfrutar da proximidade das festas e da música, embora já os miúdos não achem piada nenhuma a ir dar um pé de dança até ao largo, ao som de música dos anos 80 (com sorte). Já nem querem ir às farturas ou comprar um balão que depois fica lá em casa, a dançar pelo tecto até Agosto.
‘Sobram’ os amigos com paciência para virem até à confusão, para conversar ao pé de colunas de som estridentes, e com o aroma a sardinha e bifanas a perfumar o ar quente das noites que se avizinham.
As obras que alguém decidiu iniciar recentemente na rua do Forno do Tijolo prometem transformar a Damasceno num caos. O melhor é vir prevenido e deixar o carro longe.
No meio da azáfama local, é ir regando a horta. Observar os pimentos a crescer. Os pepinos. O tomate. A passarada ao fim do dia. As abelhas de manhã. E ter um saco de lixo à mão para recolher os copos, latas e garrafas que festivaleiros irão certamente ‘semear’ na horta por estes dias.
‘Os Santos’ trazem alegria e animam as ruas da Graça, por esta altura. Aqui, não há fogueiras para saltar (como as que saltei em criança). Também há poucas mesas compridas postas por vizinhos que se juntam em comunhão. Há, sobretudo, negócio. Dança, música. Alegria. Lixo. Mares de gente guiados por fitas coloridas que serpenteiam ruas, largos, praças, becos e miradouros. E há álcool (muito).
Depois, não tarda nada, teremos, de novo, o sossego. Teremos a Graça só para nós (e alguns turistas). Para o ano há mais.
O colapso das Bolsas mundiais nos últimos dias ficará na História, junto a outros como o da crise financeira de 2008 e o pânico causado pelas medidas da pandemia de covid-19. Começou no dia 2 de Abril, com a imposição de novas tarifas aduaneiras pelos Estados Unidos, o receio de uma guerra comercial e de uma recessão económica.
Os jornais e TVs dedicam espaço e tempo a este tema com a fome de um tubarão que sente o ‘cheiro’ o sangue a pairar na água. Nas redes sociais somam-se os gráficos e publicações que tentam adivinhar o que vem a seguir, conquistando ‘likes‘ e partilhas.
Afinal, é uma hecatombe digna de ter o seu próprio nome: ‘crise das tarifas’ ou ‘Trump crash‘, talvez. É só observar os gráficos (disponíveis no final deste texto) e percebe-se que a onda de vendas que atinge sobretudo activos de alto risco, como as acções, é forte e muito real. Isto apesar de, no médio e longo prazo, os principais índices bolsistas acumularem ganhos gigantescos.
Os ‘pobres’ dos grandes fundos e bancos de investimento vendem activos de maior risco, desfazem posições e, ‘coitados’, somam mais-valias chorudas. Os que vivem da aposta na queda de títulos, enriquecem e celebram com os lucros obscenos. Os ‘desgraçados’ detentores de Bitcoin choram o tombo da rainha das criptomoedas, que ‘apenas’ valorizou 1000% nos últimos cinco anos.
Começa a falar-se na eventual descida de taxas de juro pela Reserva Federal nos Estados Unidos e põe-se alguma água na fervura. A ver se o ‘sell-off‘ acalma. É provável que surjam acordos nas tarifas, incluindo com a União Europeia. E que se evite a guerra comercial.
Olho com pasmo para as notícias e análises sobre este ‘crash‘. Olho com o mesmo pasmo para o ‘choque’ que muitos dizem ter sentido após assistirem a uma série televisiva que está na moda, sobre um adolescente assassino.
Vivemos na era em que partes do nosso mundo se tornaram num grande jogo desumanizado. A vida de muitos adolescentes e jovens apenas espelha esse fenómeno. (Veja-se o caso da violação de uma menor em Loures, por três jovens ‘influencers’ que publicaram vídeos do crime na Internet e ninguém os denunciou, apesar de terem milhares de visualizações).
Afinal, vivemos num mundo em que a pornografia está disseminada e é aceite como normal, mesmo a que brutaliza e subjuga, reforçando o conceito da mulher-objecto. Vivemos num mundo em que o jogo online é publicitado em larga escala, viciando milhões. O lucro vale tudo.
O que isto tem a ver com o actual ‘crash‘ dos mercados?
Quer se queira quer não, este colapso é uma profunda correcção num sistema inflaccionado artificialmente e depois de anos de máximos históricos em grandes índices bolsistas. Máximos alcançados graças a políticas que criaram uma economia artificial e sem substância, assente em dinheiro impresso por bancos centrais. E assente num mundo de zeros e uns. Em que os bens alimentares e a dívida de países inteiros são meros ‘activos’ num jogo a ser jogado por grandes ‘players‘ (e, cada vez mais, por máquinas, computadores, em busca de lucro).
Vivemos num mundo em que é aceite que homens e mulheres, adultos, que grandes grupos e fundos financeiros apostem e lucrem com a queda de activos, incluindo acções de empresas em bolsa. Vivemos num mundo em que é considerado normal haver nos mercados de capitais produtos derivados, derivados de derivados. Tudo autorizado e regulado por governos, supervisores e reguladores.
Vivemos num mundo em que a habitação é sobretudo um ‘activo’ para trazer lucro a carteiras de grandes fundos de investimento. Vivemos num mundo em que governos, incluindo em Portugal, criaram políticas que transformam casas onde deviam viver famílias em objectos valiosos a ser jogados em ‘jogos de imobiliário’. Tudo legal.
Vivemos num mundo em que se normalizou a ideia de que tudo isto é normal. Que é legal. E pelo meio criam-se ‘selos’ como o de ‘sustentável’ e ‘ético’ que são publicitados no LinkedIn e usados pelos fundos e bancos para vender produtos de investimento a aforradores e especuladores.
A economia e os mercados de capitais formam hoje uma tapeçaria que inclui reguladores e governos, que legalizam as práticas e impõem esta forma de vida obscena e desumana. E inclui investidores que se prestam a trocar a alma por dinheiro, mesmo sem saberem em que estão a colocar as suas poupanças.
Onde colocamos o nosso dinheiro, a nossa atenção, o nosso amor, diz muito de cada um de nós e dos nossos valores e prioridades.
Dir-me-ão que esta é uma visão puritana e utópica do mundo, da Economia e das finanças. Mas que sentido faz um mundo, em que a Economia e as finanças são desumanas e cujo principal objectivo é o lucro puro, a ganância? Um mundo em que a notícia é o ‘crash‘ após anos de recordes e lucros sucessivos e não a ausência de políticas para regrar o que já não serve a Humanidade.
O que é, para mim, mais curioso, por estes dias de ‘crash‘ das Bolsas, é ver liberais, libertários, pessoas de esquerda e de direita, todos muito irritados com as quedas nos mercados. Uns porque aproveitam para partilhar o ódio por Trump e outros porque perdem dinheiro, incluindo nas criptomoedas (perdem, se venderem; até venderem não perdem nem ganham nada, na realidade).
Por estes dias, penso no empresário que decidiu, um dia, há muito tempo, abrir o capital da sua empresa a investidores porque precisava de capital para investir. Penso nesses investidores que decidiram tornar-se accionistas de uma empresa a passar a ser um bocadinho donos de um negócio que poderia criar mais postos de trabalho e trazer sustento às famílias dos trabalhadores.
E compreendo porque empresários retiraram as suas empresas de Bolsa.
As notícias hoje serão sobre o colapso dos mercados nos últimos dias. E sobre a culpa de Trump e das tarifas que impõe a importações, à sua política proteccionista. Os posts nas redes sociais serão sobre o ódio a Trump e a culpa de Trump.
Não haverá notícias sobre a ganância. Nem sobre como os índices bolsistas conseguiram chegar aos níveis a que estão. Nem como pouco de humano já têm muitas das práticas financeiras e de investimento consideradas legais em muitos países ocidentais.
Não haverá nas notícias nada sobre como vivemos na era dos vampiros modernos. Vivem e prosperam, não na sombra, mas debaixo das luzes da ribalta, respaldados por leis, governantes e reguladores que um dia trabalharão nos seus bancos e holdings como ‘chairman‘ ou apenas como ‘consultores’.
De crise financeira, em crise financeira. De ‘crash‘ em ‘crash‘. De série em série na Netflix. Assim a Humanidade vai caminhando. Com os pés a pisar o tapete manchado de fome e do sangue das vítimas da desumanização do Mundo, de guerras e da pobreza.
As tarifas de Trump, este ‘crash‘ bolsista, são apenas os sintomas da doença que atinge o mundo. E a cura todos sabemos qual é. E está em cada um de nós, que também somos consumidores, investidores, eleitores, pais.
Pode começar por se perceber que este ‘crash‘ não foi o primeiro e não será o último. E que as notícias do dia, fugazes, que cobrem os assuntos pela rama, pelo seu mediatismo, escondem a origem do mal. Dos males do mundo. E enquanto se fingir que não se vê a crescente desumanização do mundo — seja nos mercados, nas finanças, na Economia, na política que persegue o migrante, na indústria da pornografia, no vício do jogo — a cura não chegará.
Porque não vivemos num mundo virtual. Nem somos feitos de bits e bytes e pixels. De zeros e uns. Não somos um número. Um código de barras. Um avatar. As empresas também não. Nem as casas onde moram pessoas. Por muito que se normalize isso, há um mundo real onde vivemos e existimos.
Que este mundo seja dominado por agentes e políticas assentes na ganância, no lucro, na vaidade e no sofrimento de muitos é algo que não podemos continuar a permitir. Que os preços dos alimentos e das casas seja influenciado por especuladores, é algo que não podemos permitir. Porque pode ter-se normalizado isso. Mas não é normal. É desumano. E inaceitável.
Elisabete Tavares é jornalista
Gráficos com a evolução dos principais índices bolsistas norte-americanos, europeu e português:
Nos últimos cinco dias, o Dow Jones, o Nasdaq 100 e o europeu Stoxx 600 desceram mais de 10% e o português PSI-20 recuou quase 10%. Apesar do actual colapso, os principais índices bolsistas acumulam fortes ganhos no médio e no longo prazo. / Fonte: Google/Morningstar
Gráfico com a cotação do ouro (em libras/onça):
Fonte: Gold.co.uk
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Sou jornalista há 27 anos e já vi muito nas redacções, nas minhas tarefas de edição. Mas não vi tudo. Vi estagiários a fazer batota, fazendo ‘corta e cola’ da Wikipedia. Vi jornalistas a copiar notícias de colegas sem os citar (tem acontecido muito com os media a copiar notícias do PÁGINA UM). E assisto hoje ao advento do recurso a ferramentas como o ChatGPT para a elaboração de textos, incluindo textos jornalísticos.
O problema do uso de modelos de linguagem baseados em inteligência artificial é que não são fiáveis. Cometem erros, dão informação falsa e inventam. Inventam muito.
Lembrei-me deste tipo de ferramentas quando li o texto da queixa que um pivot de TV fez junto dos reguladores da comunicação social, por entender (mal) que tinha de ter sido ouvido no âmbito de uma notícia do PÁGINA UM sobre jornalistas em situação de manifesta e pública incompatibilidade com a carteira profissional.
Mas se o conteúdo das queixas do jornalista nos deixou perplexos, a reacção dos reguladores perante a forma como estava escrita a queixa e, depois, a deliberação da ERC, ainda nos deixaram mais estupefactos.
Mas, afinal, o que tinha a queixa para causar espanto? Passo a explicar. Em causa está uma reclamação do jornalista André Carvalho Ramos (CP 6177), pivot da CNN/TVI. O nome do jornalista foi mencionado numa notícia que referia três dezenas de jornalistas em situação (pública e às claras) de incompatibilidade. Publicada em Outubro passado, a notícia tem como título: “Faroeste na imprensa: Comissão já tirou carteira a jornalistas por incompatibilidades; mas não toca no ‘peixe graúdo”.
O nome de André Carvalho Ramos é mencionado por ser um dos dois jornalistas que constava da lista de formadores do Curso de Especialização em Media Training do GCIMedia Group e da Universidade Europeia. Esta formação não confere ao jornalista a categoria de docente universitário. É uma formação coordenada por um grupo de comunicação e relações públicas e uma universidade, destinado a formar, designadamente, executivos e gestores.
Anúncio do GCIMedia Group a promover o seu curso na rede social LinkedIn. Desde Outubro, quando o PÁGINA UM publicou a notícia que menciona o nome do pivot da CNN/TVI, André Carvalho Ramos, até este mês de Fevereiro, o jornalista continuou a fazer parte da lista de formadores deste curso. Só hoje, consultada a página do curso, se verifica que o nome do pivot já não consta da mesma. Mas mantém-se o nome da jornalista Patrícia Matos.
Os líderes da GCI coordenam e participam como formadores no curso, como é o caso de Pedro Costa, filho do ex-primeiro-ministro António Costa. O membro da comissão política nacional do PS é o actual director-geral da GCI, onde lidera “em particular a área de comunicação institucional”. André Gerson, CEO da GCI é um dos dois coordenadores do curso e Bruno Baptista, presidente do grupo de comunicação, é outro dos formadores.
O curso da Universidade Europeia/Grupo GCIMedia em questão promete “reforçar competências essenciais ao desenvolvimento profissional no mercado da comunicação”, e dando a possibilidade aos participantes de poderem “progredir nas carreiras de comunicação, relações-públicas ou similar”. Entre as saídas profissionais consta ainda “integrar empresas de comunicação, agências de relações-públicas, departamentos de comunicação externa e outros em que o media training pode ser uma mais-valia”.
Apesar de ser queixado junto dos reguladores por causa da notícia do PÁGINA UM, desde Outubro até esta semana, o nome do pivot manteve-se na lista de formadores deste curso e já estava no anúncio do programa a ter início em Outubro de 2025. Só ontem, consultada a página do curso, se verificou que o nome do jornalista já não consta da mesma. (Mantém-se, contudo, o nome da jornalista Patrícia Matos (CP 5341), da Medialivre (Now) e ex-pivot da TVI.)
No caso da queixa feita junto da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), o mais estranho é como é que a queixa foi sequer aceite pelo regulador, pelo menos naqueles termos. Quando recebi o pedido de esclarecimentos da CCPJ, inicialmente pensei que era uma partida. Só podia ser. É que o texto da queixa mencionava normas e disposições legais completamente trocados ou mal citados. Parecia até ser obra do ChatGPT, que de vez em quando inventa leis e acórdãos judiciais.
Portanto, a minha resposta à CCPJ foi, na prática, um alerta para o regulador de que aqueles artigos que eram mencionados não diziam o que André Carvalho Ramos (ou o ChatGPT) referia que diziam.
Pensei: “anda uma jornalista há 27 anos a trabalhar nesta profissão, para ter de responder a isto”.
Na sua queixa, o pivot acusou-me de violar dois artigos do Estatuto do Jornalista (EJ) e uma norma do Código Deontológico (CD). Em causa, disse, estaria o artigo 14.º, n.º 1 do EJ, que, segundo André Carvalho Ramos impõe “ouvir as partes com interesses atendíveis nos casos que a notícia respeite diretamente”.
Só que não é isso que diz este artigo. O que o número 1 do artigo 14.º impõe na alínea e), concretamente, é que o jornalista tem o dever de “procurar a diversificação das suas fontes de informação e ouvir as partes com interesses atendíveis nos casos de que se ocupem“.
Ora, a norma não obriga o jornalista, na elaboração da notícia, a ter de ouvir individualmente todas as pessoas que são referidas na notícia em apreço. Neste caso, não tinha de ouvir o pivot porque se tratava de um facto público: o seu nome constava da lista de formadores do curso de media training. Era um facto. Público. O curso foi vendido e promovido na Internet e nas redes sociais com o nome e a fotografia do jornalista. E, entre a data em que a notícia foi publicada, a 16 de Outubro, e esta semana, o nome do pivot constou da lista de formadores do curso. Além disso, na elaboração da notícia, apesar de tudo, tive o cuidado de consultar e confirmar junto de diversas fontes, designadamente institucionais, sobre se o pivot estava numa situação de incompatibilidade ao constar da lista.
O segundo artigo do EJ invocado por André Carvalho Ramos é o número 1 do artigo 17.º, que segundo o pivot refere que o jornalista deve “assegurar o respeito pela presunção de inocência dos arguidos até à sua condenação final, bem como pela dignidade das pessoas mencionadas nas suas notícias”.
Mas, o número 1 do artigo em questão, o qual é relativo a “correspondentes estrangeiros” versa assim: “É condição do exercício de funções de correspondente de órgão de comunicação social estrangeiro em Portugal a habilitação com cartão de identificação, emitido ou reconhecido pela CCPJ, que titule a sua actividade e garanta o seu acesso às fontes de informação“.
Eventualmente, o pivot queria invocar a alínea c) do número 2 do artigo 14.º que indica que o jornalista deve “abster-se de formular acusações sem provas e respeitar a presunção de inocência“. Mas, talvez, se quisesse referir ao número 8 do CD que refere que “o jornalista deve salvaguardar a presunção de inocência dos arguidos até a sentença transitar em julgado“.
Contudo, a presunção de inocência não se aplica neste caso, por ser apenas aplicável em juízo. Aliás, a aplicação generalizada desta disposição significaria que um jornalista jamais poderia denunciar coisíssima nenhuma, a não ser claro, decisões judiciais que tivessem transitado em julgado.
Por fim, André Carvalho Ramos invocou o número 8 do CD que, segundo o pivot, refere que o jornalista deve “procurar a verdade e, com rigor e isenção, relatar os factos com exatidão e interpretá-los de forma honesta”.
Como vimos acima, não é isso que diz o número 8 do CD… Mas o número 1 do CD refere que “o jornalista deve relatar os factos com rigor e exatidão e interpretá-los com honestidade“.
Mas na notícia em causa, foram relatados “factos com rigor e exatidão” e foram interpretados “com honestidade”. O pivot tem carteira profissional válida; é pivot da CNN/TVI, e o seu nome constava da lista de formadores do Curso de Especialização de Media Training do GCIMedia Group/Universidade Europeia; o curso não confere o estatuto de docente universitário; ser formador num curso deste tipo constitui uma incompatibilidade.
Na sua queixa, o pivot refere ainda, genericamente, que a notícia contém “alegações infundadas” e “informações distorcidas”, mas não as identifica. E, até hoje, não pediu ao PÁGINA UM qualquer correcção de “alegações infundadas” e “informações distorcidas” concretas. E o seu nome permaneceu todos estes meses na lista de formadores do dito curso de media training.
O pivot também considerou ser “conteúdo ofensivo e difamatório” a referência ao “peixe graúdo” que é feita na notícia. Sobre o uso desta expressão, penso que é claro na notícia que se refere a jornalistas de órgãos de comunicação social nacionais (portanto, conhecidos do grande público), ao contrário de jornalistas de meios de comunicação social locais, regionais ou de nicho. Esta, até o ChatGPT consegue entender…
A tudo isto, acresce que o pivot parece desconhecer que, de acordo com o artigo 2.º do Estatuto Disciplinar dos Jornalistas, a CCPJ apenas tem legitimidade para proceder à averiguação de infracções disciplinares que, “por acção ou omissão, violarem dolosa ou negligentemente algum dos deveres mencionados no n.º 2 do artigo 14.º do EJ”.
Em resumo: responder a esta queixa tornou-se um exercício de ‘desatar nós’ e corrigir erros. Como quando estamos a interagir com o ChatGPT e ele ‘mete os pés pelas mãos’ e temos de insistir para que nos forneça a informação correcta.
[Uma nota para confessar que, na minha resposta à CCPJ, por lapso, ao escrever apressadamente, troquei o número 8 com 9 do CD, mas juro que não usei o ChatGPT para escrever a resposta. Entretanto, já rectifiquei.]
Só depois de “editar” a queixa que o pivot fez, pude começar a responder às alegações.
A queixa que André Carvalho Ramos fez junto da ERC só não é tão mirabolante porque este regulador, ao contrário da CCPJ, teve o discernimento e o bom senso de “convidar o queixoso”, através de dois ofícios em datas diferentes, a “suprir as deficiências do requerimento inicial e também para concretizar o conteúdo da queixa”. Ainda assim, também contém erros na citação de normas e disposições.
Assim, na sua queixa à ERC, o pivot foi mais concreto e referiu ao regulador que “à data da publicação do artigo”, André Carvalho Ramos “já não fazia parte deste curso”. (Contudo, não apresenta provas). Ora, a notícia do PÁGINA UM é de 16 de Outubro de 2024 e o tal curso estava agendado para Novembro. Porém, apesar disso, e estando já a decorrer o mês de Fevereiro de 2025, certo é que o nome de André Carvalho Ramos continuava associado ao curso.
Por outro lado, o pivot referiu à ERC que não é formador, mas docente porque pensa que o curso do qual não faz parte (segundo ele) lhe confere o título de docente universitário, o que é uma falsa conclusão.
ERC
Como nos garantiram duas fontes abalizadas, para alguém ser formalmente reconhecido como professor universitário, deve cumprir os requisitos do Estatuto da Carreira Docente Universitária (ECDU) no ensino superior público ou os regulamentos internos das universidades privadas.
Isto implica um vínculo formal com a instituição universitária; qualificações académicas adequadas; e exercício de docência em cursos que fazem parte do sistema oficial de ensino superior (licenciaturas, mestrados, doutoramentos, pós-graduações reconhecidas com ECTS). Se o curso não atribui ECTS, não está enquadrado no sistema do ensino superior.
Assim, as pessoas que leccionam tal curso, não se qualificam, por lei, como “professores universitários”. Ora, como se observa no plano de estudos do dito curso, não são atribuídas quaisquer unidades de ECTS, pelo que não estamos perante um curso que atribua o estatuto de professor a quem o lecciona, sendo que se está perante evidentes casos de formadores de media training.
Atropelando a legislação – e a lógica – a ERC acolheu a queixa e a versão de André Carvalho Ramos. De facto, para a ERC se o jornalista tivesse sido ouvido pelo PÁGINA UM, a notícia teria sido diferente, no que toca ao caso dele. Só que não. Não teria mudado uma vírgula. Por dois motivos óbvios. Primeiro, porque a notícia foi publicada em Outubro e o curso iria começar em Novembro e o nome dele ainda constava da lista de formadores, que é pública. Se ele não iria ser formador, o nome não devia constar na lista de formadores do curso.
Segundo, porque o nome de André Carvalho Ramos continuava, em Fevereiro de 2025, a figurar na lista de formadores do curso para a sua próxima edição. Mas, para a ERC, a lógica e os factos não são para aqui chamados.
Acresce – e este dado é o mais relevante – , que a lei não obriga nenhum jornalista a ouvir André Carvalho Ramos, sobretudo quando se está perante a observação de factos que são públicos (anúncios publicitários ao curso nas redes sociais e página na Internet a promover o curso). Mas, para a ERC, a lei também não é para aqui chamada.
Aquilo que está subjacente a essa norma é a necessidade de o jornalista auscultar as partes com interesses atendíveis; e assim se fez, citando mesmo a CCPJ, já sem referir a própria ERC que, sobre esta matéria, tem já tomado diversas posições, a solicitações diversas do PÁGINA UM.
Note-se, ainda, que foi o PÁGINA UM que pediu à ERC que enviasse a sua resposta/defesa para a CCPJ (o que a ERC fez a 23 de Dezembro de 2024), por eventualmente poder conter matéria da competência daquela entidade.
Em jeito de conclusão, não sei o que será pior:
– Um pivot da TV pensar que dar cursos de media training não é uma incompatibilidade;
– Um pivot da TV fazer uma queixa com erros em que troca normas e disposições legais ou os cita mal;
– A CCPJ aceitar a queixa como está escrita;
– A CCPJ pedir à jornalista que escreveu a notícia uma resposta à queixa apresentada naqueles termos, de um jornalista cujo nome consta de um curso de media training;
– A ERC aceitar a queixa do pivot de TV;
– A ERC deliberar que, sendo público que o pivot está na lista de formadores no curso de media training (agora para a edição de 2025), tinha de ser ouvido e que tal mudaria completamente a notícia.
Penso que, apesar de tudo, no meio disto tudo, escrever o texto da queixa à CCPJ e à ERC com troca de artigos e citações erradas é um mal menor.
Pela positiva, sobra o facto de que a ERC até reconhece, na sua deliberação, que “a matéria noticiada pelo PÁGINA UM se reveste de interesse público e jornalístico”. Pena é que, neste caso, não tenha defendido esse interesse público e jornalístico.
Mas é assim. Uns jornalistas constam de listas de formadores de cursos de media training coordenados por grupos de comunicação e relações públicas. Outros investigam e publicam notícias de “interesse público e jornalístico”. Quem é que a CCPJ e a ERC defendem? (Aliás, até perseguem os jornalistas do PÁGINA UM, como tem ficado evidente em diversas iniciativas destes reguladores, sendo a mais recente, a tentativa da CCPJ de não revalidar a minha carteira profissional).
Se calhar, mesmo com as leis trocadas e mal citadas, não seríamos pior servidos se tivéssemos a regulação da comunicação social a ser feita pelo ChatGPT. Pelo menos, assim, sempre haveria uma justificação mais aceitável para os erros regulatórios e os atropelos das leis. E do Jornalismo e dos jornalistas.
Elisabete Tavares é jornalista
N.D. Ontem, o jornalista teve o cuidado de apagar os rastos da sua ligação à formação em media training em 2024, fazendo também desaparecer a referência a ser um formador na edição a começar em Outubro de 2025. No LinkedIn também apagou a publicação onde assumia que integrava a formação em media training em resposta a uma publicação do CEO da GCI, agência de comunicação liderada por Pedro Costa, filho de António Costa. Nesta sanha ‘apaguista’, bloqueou o acesso do director do PÁGINA UM ao seu perfil. Porém, ao contrário do ‘What happens in Vegas, stays in Vegas’, uma vez na Internet, fica registado na Internet – e o PÁGINA UM registou tudo no Archive.
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