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  • Agência Nacional de Inovação está a dar os últimos suspiros, mas administração ainda quer almoços com directores de jornais

    Agência Nacional de Inovação está a dar os últimos suspiros, mas administração ainda quer almoços com directores de jornais


    A Agência Nacional de Inovação — cuja polémica fusão com a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) foi já aprovada em Conselho de Ministros — contratou esta semana uma consultora de comunicação para, entre outros serviços, promover e organizar almoços com directores de órgãos de comunicação social e também com outros jornalistas. Objectivo: dar boa imagem desta entidade e, claro, dos seus administradores com vista a uma eventual condução para a liderança da nova estrutura: a Agência para a Investigação e Inovação (AI2).

    O contrato, que tem um custo de 70.110 euros para os contribuintes, foi assinado na passada segunda-feira e adjudicado à empresa Llorente & Cuenca Portugal, tendo um prazo de duração de 12 meses.

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    Foto: D.R.

    Isto apesar de a ANI estar prestes a ser extinta para se fundir com a FCT, conforme já estabelecido pelo Governo em Conselho de Ministros do passado dia 5, que aprovou o diploma que cria a nova agência, apesar da forte contestação de investigadores. Actualmente, uma petição dinamizada por diversos investigadores conta já com mais de 1.500 assinaturas.

    Ainda assim, três dias depois, a ANI assinou o contrato com a consultora num procedimento que foi feito sem a realização de concurso, tendo sido antes efectuada uma consulta prévia. A ANI justificou a opção por esta modalidade de contratação com o facto de o Código dos Contratos Públicos permitir que seja feita apenas uma “consulta prévia, com convite a pelo menos três entidades, quando o valor do contrato seja inferior a 75.000 euros”.

    O objecto do contrato é, formalmente, a “aquisição de serviços de consultoria para assessoria de comunicação; serviços de consultoria em matéria de relações públicas”. E a ANI justificou a contratação da consultora de comunicação com o facto de ter diferentes projectos em curso e ter a “necessidade de apoio especializado” na assessoria de comunicação.

    A decisão de contratação da consultora de comunicação foi aprovada no dia 20 de Agosto pelo presidente da ANI, António Grilo. / Foto: D.R.

    Apesar de a ANI estar à beira da extinção, segundo o caderno de encargos consultado pelo PÁGINA UM tudo aparenta que a entidade está para durar. Entre os serviços a prestar pela consultora, está a “apresentação de uma estratégia global de comunicação, com enfoque na estratégia junto dos meios de comunicação social, gestão de crise com meios de comunicação e stakeholders, nomeadamente, Governo, tutelas e entidades congéneres, estratégia de produção de conteúdos para o site institucional e redes sociais”.

    Mas a ANI também quer ter reuniões privadas com jornalistas. Assim, exige aos consultores, a quem pagará mais de 70 mil euros ao longo de 12 meses, a “organização de encontros ‘one to one‘ [privados] com jornalistas, através, por exemplo, da promoção e organização de almoços entre o conselho de administração ou a responsável de comunicação com a direção dos órgãos de comunicação social e/ou jornalistas”.

    Sendo habitual a prática de empresas e organismos públicos reunirem em privado com jornalistas para melhor ‘venderem o seu peixe’ e encontrar aliados nas redacções, cabe salientar que, no caso de almoços promovidos por entidades do Estado, a factura será sempre paga pelos contribuintes. Além disso, mostra-se polémico que seja uma consultora a fazer ‘lobby’ com dinheiros públicos para que administradores de uma entidade pública apareçam na imprensa.

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    Foto: D.R.

    Além dos almoços, a ANI exige ainda no caderno de encargos que a consultora de comunicação consiga que sejam publicadas três notícias por mês sobre a agência ou os seus projectos nos maiores órgãos de comunicação social a nível nacional, designadamente na SIC, na RTP, no Expresso e no Público. Curiosamente, exclui todos os órgãos de comunicação social da Medialivre, como o Correio da Manhã, a CMTV e a Now. Em todo o caso, a ANI deixa em aberto a possibilidade de a consultora de comunicação conseguir publicar notícias sobre a ANI em outros media de referência. O PÁGINA UM assumirá, desde já, que não publica notícias favoráveis a uma entidade intermediada por uma agência de comunicação.

    A Llorente & Cuenca Portugal foi também contratada para fazer a “gestão da reputação da entidade adjudicante, assim como dos membros que compõem o conselho de administração”, o qual é composto pelo presidente da ANI, António Grilo, Alexandra Vilela e Sílvia Garcia, como vogais executivas, bem como Madalena Alves, presidente da FCT, e Luís Guerreiro, presidente do IAPMEI, como vogais não executivos.

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    Foto: D.R.

    Mesmo assim, a ANI pode argumentar que o contrato com esta consultora de comunicação foi uma “pechincha” já que ficou abaixo do preço máximo fixado de 74.500 euros.

    Recorde-se que a ANI, que agora será integrada num novo organismo que juntará a FCT, levou a cabo há poucos meses uma sui generis acção de ‘team building‘. O evento, que teve lugar no dia 28 de Maio, custou 22.890 euros e envolveu a contratação de um touro mecânico. Os quadros da ANI foram ainda brindados com uma tábua de queijos, bar aberto com DJ e uma prova de vinhos.

  • Garantia não ser preciso, mas presidente da Carris acaba por publicitar polémico ajuste directo no Portal Base

    Garantia não ser preciso, mas presidente da Carris acaba por publicitar polémico ajuste directo no Portal Base


    Não queria, mas teve de ser. Na passada quinta-feira, o presidente da Carris, Pedro Bogas, garantiu em conferência de imprensa, com a firmeza de um leão, que o ajuste directo alegadamente celebrado a 20 de Agosto com a empresa MNPC – responsável pela manutenção dos elevadores de Lisboa – não tinha de ser publicado no Portal BASE, por se tratar de um contrato no âmbito dos chamados “sectores especiais”. Mas, sem escapatória legal, o ajuste directo já é público desde o final do dia de ontem.

    Recorde-se que as declarações de Pedro Bogas sobre a não obrigatoriedade de publicação do contrato na plataforma da contratação pública foram proferidas no mesmo evento em que foi disponibilizada aos jornalistas presente uma minuta forjada para simular a existência de um contrato. O documento não tinha as assinaturas das partes, apesar de os serviços da Carris terem colocado uma tarja negra no documento – o que Pedro Bogas admitiria ao PÁGINA UM ter sido “um erro”.

    Em conversa com o PÁGINA UM no sábado seguinte, o presidente da Carris, licenciado em Direito, voltou a sustentar que a empresa não estava obrigada a divulgar os contratos na plataforma da contratação pública – uma posição que, na prática, equivaleria a admitir uma completa ausência de transparência na utilização de dinheiros públicos.

    Mas a pose altiva durou pouco: pressionada pelo PÁGINA UM, e também após diversas opiniões jurídicas que foram sendo transmitidas na imprensa sobre o facto de a a publicitação ser obrigatória – independentemente de se tratar de “sectores especiais” –, a Carris foi forçada a recuar. Ontem, 9 de Setembro, a empresa acabou por publicar no Portal Base o contrato por ajuste directo, não por voluntarismo ou por “transparência acrescida”, mas por imposição legal.

    Com efeito, já a 4 de Setembro, o PÁGINA UM sublinhava que o artigo 127.º do Código dos Contratos Públicos (CCP) é inequívoco: a publicação dos contratos no Portal BASE é condição de eficácia jurídica em quaisquer circunstâncias. Sem publicação, o contrato não produz efeitos externos nem vincula a entidade adjudicante. A obrigação de publicitação aplica-se a todas as entidades públicas, incluindo as abrangidas pelos chamados “sectores especiais”, sendo irrelevante a maior flexibilidade procedimental ou os limiares de valor que dispensam a publicidade prévia no Jornal Oficial da União Europeia.

    Conselho de Administração da Carris, com Pedro Bogas ao centro.

    Além disso, a própria deliberação do Conselho de Administração da Carris de 14 de Agosto, apenas assinada por Pedro Bogas, não deixava margem para dúvidas sobre a aplicação do artigo 127.º, uma vez que expressamente refere que não se aplicaria ao ajuste directo “o Regime da Contratação Pública, previsto na Parte II do CCP”, sendo então aplicável os procedimentos de “locação, aquisições de bens, serviços e empreitadas”, que obrigaria a uma consulta prévia, e depois à publicitação do ajuste directo.

    Por esse motivo, mostra-se completamente absurdo que o presidente da Carris tenha afirmado à imprensa o contrário daquilo que assinou em 14 de Agosto. E mais ainda a insistência da Carris em classificar no Portal Base o contrato como sendo relativo aos “sectores especiais”, o que demonstra o desnorte da empresa municipal.

    Aliás, a deliberação de Pedro Bogas mostra-se um atropelo às boas normas de gestão pública porque, no mesmo dia, cancelou o concurso público iniciado em Abril, aceita uma consulta prévia entretanto feita (que só deveria ser exequível depois do cancelamento do procedimento anterior), selecciona a empresa (a MNTC em detrimento da Liftech) e aprova a minuta do contrato.

    Registo no Portal Base do polémico ajuste directo da manutenção da Carris foi colocado ontem, dia 9.

    Esta questão – da eficácia e até da própria existência formal de contrato válido à data do acidente com o Elevador da Glória – pode ter implicações relevantes no apuramento de responsabilidades pela tragédia que vitimou 16 pessoas e feriu mais de duas dezenas. A seguradora Fidelidade, que cobre a Carris, poderá alegar irregularidades colocando em causa nos tribunais a validade do contrato à data do acidente.

    O contrato agora publicado no Portal BASE é o mesmo que a Carris tinha enviado ao PÁGINA UM – e só uma análise forense poderá determinar se foi efectivamente assinado a 20 de Agosto ou apenas após o acidente –, contendo já as assinaturas de dois administradores da Carris e do gerente da MNTC. Tem um prazo de 153 dias, decorrendo assim até 31 de dezembro de 2026, e um montante máximo de 221.333 euros, mas, segundo as cláusulas, não será executado se os elevadores permanecerem inactivos.

    Mesmo que venha a ser cumprido na parte que respeita aos outros elevadores, o caderno de encargos é extremamente vago, limitando-se a exigir lubrificações e verificações visuais. A MNTC é ainda responsável pela substituição dos cabos – operação sensível que poderá ter estado na origem da ruptura do cabo do Elevador da Glória, que desencadeou o acidente.

    Mantém-se, contudo, o secretismo sobre a maioria dos contratos anteriores. Garantidamente, sabe-se apenas que a MNTC presta serviços desde 2022, sendo que Pedro Bogas sublinhou que a manutenção está externalizada “pelo menos desde 2007” e que “a segurança é uma prioridade absoluta da Carris há 152 anos”.

    Em 2022, a MNTC venceu o concurso público com uma proposta de cerca de 995 mil euros – cerca de 42% abaixo do preço-base. Apesar de não ter qualquer experiência no sector e de não possuir sequer o alvará da Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) à data do concurso, venceu com base no único critério de adjudicação: o preço. Porquê? A Carris ainda não explicou.

  • Impresa: em 10 anos, Balsemão pai & filhos sacam 6,6 milhões em salários e pensões

    Impresa: em 10 anos, Balsemão pai & filhos sacam 6,6 milhões em salários e pensões


    Francisco Pinto Balsemão, fundador e ainda ‘patrão’ da Impresa, tem recebido nos últimos tempos várias homenagens e galardões públicos, como a Ordem de Camões na semana passada. Mas também tem levado para casa outros valores: mais concretamente milhões de euros em salários e complementos de pensão pagos pelo seu grupo de media, que vive uma crónica crise financeira.

    Mas não é só o ‘pai’ que tem amealhado fortuna à custa de uma holding que tem um saldo negativos de resultados acumulados na última década de 47,3 milhões de euros, com prejuízos particularmente elevados em 2017 e no ano passado. Os seus filhos Francisco Pedro e Francisco Maria – que estão a herdar os destino do grupo que detém, entre outros, a SIC e o Expresso -, não se têm saído nada mal, segundo uma análise do PÁGINA UM aos vencimentos dos três Franciscos que constam nos relatórios e contas anuais.

    Francisco Pinto Balsemão, fundador e ‘chairman’ da Impresa, dona da SIC e do Expresso, num vídeo de apresentação do livro ‘Memórias’, em 2021./ Foto: D.R.

    No global, se a Impresa é conhecida por nunca ter pagado dividendos aos accionistas, a cúpula da família Balsemão tem visto os frutos da sua gestão do grupo de media caírem à sua mesa: na última década, contabilizam-se quase 6,6 milhões de euros apenas em salários e complemento de pensão. De fora, estão outros benefícios eventuais, incluindo viaturas e despesas diversas pagas pela Impresa.

    No caso do patriarca da família, Francisco Pinto Balsemão – que foi CEO até 2012, passando a partir daí, aos 75 anos, a ser a chairman (sem funções executivas) – tem auferido anualmente um salário de 106.400 euros a que acresce 184.739 euros de complemento de pensão da própria empresa. Somado, Balsemão tem recebido desde 2016 mais de 291 mil euros por ano do seu grupo. Ou seja, uma média mensal de quase 21 mil euros em 14 meses. Na última década, amealhou 3,0 milhões de euros, valor que inclui as verbas recebidas em 2015 e também os três anos em que auferiu de prémios no valor global de 79.800 euros.

    Já Francisco Pedro, actual CEO com 45 anos, tem recebido 280 mil euros de vencimento como presidente-executivo do grupo desde 2017. Em 2016, o salário foi de ‘apenas’ 236 mil euros. Assim, em 10 anos, o filho/gestor recebeu 2,7 milhões de euros da dona da SIC. O valor engloba um total de prémios de 240 mil euros obtidos em três exercícios, mas exclui despesas e outros benefícios pagos pela Impresa, como viatura, despesas de deslocação, subsídio de almoço e outras.

    Francisco Pedro Balsemão tem desempenhado o cargo de CEO da Impresa desde 2016, levando para casa 280 mil euros por ano, excluindo extras. / Foto: D.R.

    Quanto a Francisco Maria, nascido em 1970, mantém-se na administração há mais de uma década. Em 2015, ganhaou, como vice-presidente da Impresa, 406 mil euros em vencimento fixo. Com a entrada de Francisco Pedro para o cargo de presidente-executivo, o seu vencimento passou para apenas 49 mil euros, excluindo eventuais extras. Tudo somado, na última década, ganhou 847 mil euros em vencimentos na Impresa.

    Os rendimentos da cúpula Balsemão contrastam com os resultados do grupo: do lucro líquido de 11 milhões de euros que a Impresa ainda registou em 2014, há uma década, o grupo passou para um prejuízo recorde de 66,2 milhões de euros no ano passado.

    Mas o passivo subiu de 80 milhões em 2014 para quase 128 milhões de euros no ano passado, mesmo depois de se ter libertado dos ‘activos tóxicos’ da Impresa Publishing, que dariam origem à Trust in News, nas mãos de Luís Delgado, agora em insolvência. Enquanto isso, as receitas quebraram: eram de 237 milhões de euros em 2014 e no ano passado ficaram nos 182 milhões, ou seja, uma queda de 23% – e isto sem contabilizar a inflação.

    Evolução em bolsa das acções da Impresa.

    Nos seus relatórios e contas, a Impresa aponta que um dos critérios usados para decidir as políticas de remuneração dos quadros de gestão é o facto de a empresa estar cotada em Bolsa e, portanto, querer alinhar os salários dos gestores aos de outras cotadas de similar dimensão. Isto apesar de as acções da Impresa estarem hoje a cotar em Bolsa na casa dos 10 cêntimos quando em Abril de 2014 ainda chegaram a aproximar-se dos 2 euros. Daí para cá, em pouco mais de 11 anos, a queda em bolsa foi de quase 95%.

    Mas, além do trio formado pela cúpula da família Balsemão, também Mónica Balsemão, filha do patrão da Impresa, tem trabalhado no grupo, ocupando um lugar de destaque no sector do marketing há mais de 30 anos. Começou no Expresso, mas, mais tarde, também assumiu a pasta de marketing tanto da Impresa Publishing como das marcas da SIC. Esteve durante mais de uma década à frente da direcção de marketing, comunicação e criatividade, do grupo.

    Desde 2023, Mónica Balsemão deixou estas funções para passar a tratar do reforço de imagem e reputação institucionais da Impresa bem como do desenvolvimento de projectos transversais, com apoio directo à comissão executiva.

    Foto: PÁGINA UM

    Assim, enquanto o grupo vai sangrando ao longo dos anos, com o despedimento de quadros, incluindo jornalistas, a família Balsemão vive uma era de ouro, como se não houvesse crise no seu grupo de media nem no sector da imprensa.

    Mas a crise está lá. Com efeito, como o PÁGINA UM noticiou, o império de media da família Balsemão, através da empresa Balseger, está em verdadeiro colapso financeiro. E a sua manutenção no controlo da Impresa – onde só detém 35,9%, uma vez que tem 71,41% dos direitos de votos via Impreger – está a transformar-se numa mão ‘cheia de quase nada’.

    Segundo uma análise do PÁGINA UM, a erosão financeira da Balseger – a holding criada em 2010 por Francisco Pinto Balsemão para concentrar os seus interesses na Impresa – é gigantesca: em apenas década e meia, os capitais próprios caíram de cerca de 75 milhões de euros para apenas 9,4 milhões, uma perda de 87%, quase nove décimos do “património mediático” de Pinto Balsemão.

    Resultados anuais da Impresa entre 2015 e 2024. Fonte: Relatórios e contas da Impresa. Análise: PÁGINA UM

    Além disso, o nome Imprensa tem estado envolvido em controversias. As dificuldades financeiras têm levado o grupo a fazer alguns negócios polémicos, como a venda do portefólio de revistas à Trust in News (TIN), de Luís Delgado, que está em situação de insolvência. Delgado está mesmo a cumprir uma pena suspensa de cinco anos devido a dívidas fiscais acumuladas pela TIN e arrisca novas condenações que o podem levar a cumprir pena efectiva.

    Outro negócio polémico foi a venda, e posterior recompra, ao Novo Banco do seu edifício-sede em Paço de Arcos. Estes negócios levaram o Ministério Público a investigar a existência de eventual corrupção envolvendo a Impresa, mas concluiu, com fraca fundamentação, pela não existência de matéria criminal.

    Foto: D.R.

    Recentemente, Francisco Pedro Balsemão tentou vender, de novo, o edifício, desta vez a um fundo imobiliário do BPI, grupo onde o actual vice-presidente da Impresa foi administrador até 2024. Mas o negócio ruiu devido a alegados problemas fiscais passados em torno do imóvel.

    Seja como for, nem os prejuízos recorde, a desvalorização das acções ou os negócios estranhos têm afectado o estilo de vida abastado dos membros família Balsemão, nem os seus rendimentos. Pelo menos os que vêm da Impresa.

  • Cabo do elevador da Glória: Carris esconde relatório de instalação em 2024 e não revela fornecedor

    Cabo do elevador da Glória: Carris esconde relatório de instalação em 2024 e não revela fornecedor


    A substituição do cabo do Elevador da Glória — que rompeu na passada quarta-feira, causando a morte de 16 pessoas e ferimentos em mais de duas dezenas — foi executada no ano passado pela MNTC, empresa responsável pela manutenção dos ascensores de Lisboa desde Setembro de 2022, mas não existem garantias de que os seus técnicos possuíam as certificações exigidas por lei para inspeccionar e intervir em sistemas técnicos desta complexidade.

    De acordo com a análise dos relatórios de manutenção disponibilizados pela Carris na sexta-feira passada, a MNTC usou quatro técnicos – João Antunes, Rafael Rosado, Sérgio Carvalho e Tiago Ribeiro. De acordo com as normas, quando uma empresa solicita o alvará EMIE à Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) , tem de indicar pelo menos um técnico responsável pela execução (TRE) e, se aplicável, um técnico responsável pela exploração. Estes técnicos ficam associados ao registo da empresa e constam da sua ficha no processo de licenciamento.

    Mas a empresa MNTC recusa responder às questões do PÁGINA UM sobre este assunto – aliás, apenas quebrou o silêncio por uma vez para indicar que estava a ser representada pelo advogado Ricardo Serrano Vieira, mas sem adiantar contactos –, embora tudo indique que estes mesmos colaboradores já executariam tarefas de inspecção e manutenção ao longo do período de três anos de um contrato saído de um concurso público que vigorou entre Setembro de 2022 e 31 de Agosto de 2025.

    A certificação EMIE não é um mero detalhe burocrático: trata-se de uma exigência destinada a assegurar que apenas profissionais qualificados, com provas dadas e reconhecidas pela autoridade reguladora, possam intervir em sistemas cuja falha representa risco directo para a segurança de passageiros. Por outro lado, a Lei n.º 65/2013 exige que empresas e técnicos de manutenção e inspecção de elevadores (EMIE, TRM, EIIE, directores técnicos e inspectores) tenham reconhecimento prévio da DGEG. Ora, nas três manutenções diárias de Setembro e na mensal, realizada no dia 1, um técnico de nome Tiago Ribeiro é sempre o mesmo que valida os relatórios.

    Esta questão ganha ainda maior gravidade quando se sabe que o cabo de tracção — peça crítica do sistema dos elevadores — foi substituído no âmbito de contrato entre a Carris e a MNTC, por via de uma reparação intermédia realizada entre finais de Agosto e o início de Outubro do ano passado. Essa intervenção, que deveria ter sido acompanhada de rigorosos procedimentos de ensaio e registo documental, foi executada pela MNTC, conforme era obrigação prevista no caderno de encargos, sem que haja provas de que técnicos certificados tenham participado na sua montagem.

    O PÁGINA UM solicitou formalmente à Carris que esclarecesse a data exacta da instalação, se foi elaborado algum relatório técnico, quem foram os engenheiros ou técnicos presentes na operação, se existem fotografias ou imagens que documentem o acto, e que tipo de testes foram realizados para aferir da resistência e da correcta colocação do cabo. Solicitou ainda a identificação do fornecedor e cópia da factura da compra do cabo.

    Na resposta recebida, a Carris limitou-se a afirmar que “a substituição do cabo do Ascensor da Glória decorreu no âmbito da reparação intermédia realizada entre 26 de Agosto e 1 de Outubro de 2024” e que “os trabalhos foram acompanhados por técnicos da Carris”, acrescentando que “a documentação solicitada está na posse das entidades que conduzem a investigação no âmbito do inquérito em curso”.

    Contudo, apesar da insistência do PÁGINA UM, a Carris não revelou se detém cópia desse relatório nem confirmou se a presença de técnicos próprios era suficiente para suprir a eventual falta de certificação da equipa da MNTC. A empresa municipal também se recusou a fornecer o nome do fornecedor do cabo, não enviou a factura nem revelou o respectivo custo, criando um manto de opacidade sobre uma operação que deveria ser transparente, sobretudo quando está em causa um acidente com 16 mortes e mais de uma dezena de feridos.

    No passado sábado, em conversa com o PÁGINA UM, o presidente da Carris, Pedro Bogas, prometeu “máxima transparência”, incluindo a colocação de relatórios de inspecção no seu site. Ora, o relatório mais fundamental para desvendar eventuais falhas – a colocação do cabo, operação que nunca antes tinha sido realizada pela MNTC – é logo escondido, alegando-se ter sido enviado para a equipa de investigação.

    Fontes ligadas ao sector da manutenção de sistemas de transporte vertical sublinham que a instalação de cabos de tracção deve ser acompanhada por engenheiros especializados, sujeita a procedimentos de tensionamento controlado e seguida de ensaios mecânicos que comprovem a correcta fixação.

    A ausência de documentação acessível ao público e a falta de clareza sobre a qualificação dos técnicos da MNTC colocam novas interrogações sobre a forma como a Carris supervisionou os contratos de manutenção. Recorde-se que o caderno de encargos que vigorou até ao passado dia 31 de Agosto é completamente vago ao ponto de apenas exigir a realização de verificações diárias, semanais, mensais e semestrais, sem especificar que tipo de ensaios ou medições deviam ser efectuados. A expressão usada — “verificação” — deixa em aberto se bastava uma inspecção visual ou se seriam obrigatórios testes com instrumentação.

    Pedro Bogas, presidente da Carris.

    A revelação de que o cabo foi instalado por técnicos sem certificação reconhecida pela DGEG torna-se ainda mais inquietante tendo em conta que este mesmo componente falhou menos de um ano depois da sua colocação, num acidente que se transformou na maior tragédia nos tempos recentes envolvendo um sistema de transporte público em Lisboa.

    Apesar das tentativas de agora se debater o acidente numa perspectiva de responsabilidade política a ser ‘resolvida’ nas eleições autárquicas de Outubro, o PÁGINA UM continuará a pressionar a Carris e a Câmara Municipal de Lisboa para que toda a documentação referente à substituição do cabo e à manutenção do Elevador da Glória seja tornada pública, incluindo relatórios técnicos, lista de intervenientes, fotografias, facturas e comprovativos de ensaio.

    Entretanto, Pedro Bogas, presidente da Carris, mantém-se em incumprimento legal quanto à publicitação no Portal BASE do ajuste directo da manutenção dos ascensores iniciado este mês, que chegou a exibir aos jornalistas — numa conferência de imprensa — sob a forma de minuta sem assinaturas, forjada para parecer um contrato válido.

    Apesar de o presidente da Carris insistir que tal publicação não é obrigatória para entidades dos “sectores especiais”, como os transportes, esta alegação cai por terra com a própria prática da empresa municipal. Ainda hoje, a Carris publicou dois contratos no Portal BASE, incluindo um concurso público para a manutenção de 123 autocarros MAN no valor de 430 mil euros e a aquisição de 15 mini-autocarros eléctricos para serviço urbano no valor de cerca de 4,4 milhões de euros.

    O argumento de isenção legal, além de contrariado por juristas, fica assim desmentido pela evidência documental fornecida pela própria Carris. Aparentemente, Pedro Bogas considera que usufrui do direito de disponibilizar contratos não de acordo com a lei, mas com as suas vontades pessoais, que incluiu enganar jornalistas com uma minuta mal forjada, culpando depois os seus serviços por excesso de zelo em meter tarjas negras onde nem sequer existiam assinaturas.

  • Elevador da Glória: empresa de manutenção nem sequer tinha licença (nem experiência) quando se candidatou ao concurso público de 2022

    Elevador da Glória: empresa de manutenção nem sequer tinha licença (nem experiência) quando se candidatou ao concurso público de 2022


    A Administração da Carris aceitou que a MNTC – a empresa que assegurou, nos últimos três anos, a manutenção dos ascensores da Glória, Lavra, Bica e do Elevador de Santa Justa – concorresse ao concurso público lançado em 2022 sem sequer possuir, na altura, o obrigatório alvará EMIE, emitido pela Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), que certifica a aptidão técnica para executar trabalhos de manutenção de instalações de elevação. Ou seja, nos últimos três anos, os elevadores de Lisboa estiveram literalmente nas mãos de uma ‘empresa novata’.

    A exigência de alvará, prevista na lei para a esmagadora maioria das actividades económicas mais complexa, visa precisamente garantir que apenas empresas com competências reconhecidas e equipas qualificadas possam intervir em equipamentos de transporte vertical, cuja segurança depende de rigorosos procedimentos de manutenção.

    Porém, de acordo com informação obtida pelo PÁGINA UM, a MNTC só viria a obter o alvará para o sector da manutenção de equipamentos de elevação no dia 29 de Junho de 2022 – cerca de três semanas depois de terminado o prazo de apresentação de propostas para o concurso, que fora aberto em 11 de Maio desse ano. Ou seja, à data da candidatura, a MNTC não tinha qualquer histórico ou experiência certificada no sector de manutenção de ascensores. Antes, a MNTC somente tinha contratos públicas para manutenção de piscinas e de revisão de veículos eléctricos.

    Contudo, em 2022, a Administração da Carris, já então presidida por Pedro Bogas, achou que não era necessário que os concorrentes tivessem ainda certificação ou outra habilitação para apresentarem propostas. À data do concurso existiam, segundo os registos da DGEG, exactamente 100 empresas em Portugal com o alvará EMIE válido, pelo que não se pode alegar falta de oferta no mercado.

    Apesar disso, a Carris permitiu que empresas sem alvará, e portanto com experiência nula, apresentassem propostas para a manutenção dos quatro ascensores públicos de Lisboa – equipamentos classificados como Monumentos Nacionais ou de elevado valor histórico e turístico.

    Desastre do elevador da Glória: colapso ‘repentino’ do cabo coloca dúvidas sobre qualidade da manutenção.

    O caderno de encargos do concurso não atribuía qualquer ponderação à experiência ou ao currículo técnico das concorrentes: o critério de adjudicação era exclusivamente o preço. Assim, numa decisão que hoje se revela catastrófica, a Carris escolheu a proposta mais barata, independentemente da falta de historial ou de capacidade comprovada do adjudicatário.

    No concurso de 2022, cuja adjudicação foi decidida a 21 de Julho, a MNTC apresentou um preço de apenas 995.515 euros para um contrato de três anos, valor que representa cerca de 58% do preço base fixado pela Carris, que era de 1.728.000 euros. Ou, noutra perspectiva, 42% abaixo do preço base. A diferença foi esmagadora e tornou praticamente impossível às empresas com histórico e experiência competir em igualdade de circunstâncias.

    Importa referir que a MNTC não foi a única empresa sem alvará que a Carris deixou concorrer. Entre as quatro concorrentes – MNTC, Gasfomento, GMF e Liftech –, apenas esta última detinha o alvará EMIE e experiência consolidada no sector.

    Pedro Bogas, presidente da Carris: em 2022 aceitou que empresas sem experiência e sem licença activa pudessem concorrer para a manutenção dos elevadores.

    A Liftech – que pertenceu até 2002 ao Grupo Efacec – é, de facto, uma referência na manutenção de ascensores, funiculares e teleféricos em Portugal, contando no seu portefólio com o funicular dos Guindais, no Porto, o teleférico da Penha, em Guimarães, o funicular de Viseu, o funicular de São João da Malta, na Covilhã, e o funicular de Santa Luzia, em Viana do Castelo, entre outros.

    Em Lisboa, esta empresa foi ainda responsável pela instalação do funicular da Graça, gerido pela Carris e inaugurado no ano passado, tendo mesmo recebido o Prémio Valmor de Arquitectura. A Liftech foi também, pela sua experiência de reabilitação de equipamentos histórica, a responsável pela remodelação profunda do elevador de Santa Justa também em 2024. Tem ainda contratos relevantes com entidades públicas, incluindo a manutenção de elevadores nos bairros sociais da Gebalis, contrato esse renovado em Abril deste ano por 4,6 milhões de euros.

    A opção da Carris, em 2022, de escolher exclusivamente com base no preço, sem qualquer valorização da competência técnica ou da experiência acumulada, é tanto mais grave quanto o caderno de encargos permitia que as “verificações” fossem meramente visuais.

    Não havia qualquer obrigatoriedade de ensaios mecânicos ou testes não destrutivos aos cabos de tracção, limitando-se o contrato a prever que as empresas entregassem relatórios de verificações diárias, semanais, mensais e semestrais – relatórios que, como se veio a verificar, se resumiam muitas vezes a registos com a palavra “OK”.

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    Elevador de Santa Justa teve uma profunda remodelação em 2024.

    Aquilo que então parecia ser um bom negócio para a administração presidida por Pedro Bogas revelou-se ruinoso. O trágico descarrilamento do Elevador da Glória na passada quarta-feira, que provocou 16 mortes e mais de duas dezenas de feridos, tornou evidente que a opção por uma manutenção de preço mínimo pode ter comprometido a segurança.

    O desastre resultou também em danos irreversíveis num dos veículos, na suspensão por tempo indeterminado da operação dos quatro ascensores de Lisboa – todos eles rentáveis e importantes para a mobilidade e o turismo da cidade – e numa crise reputacional grave para a Carris, para Lisboa e para o turismo de Portugal.

    Funicular dos Guindais, no Porto, foi instalado e mantido pela Liftech / Foto: STCP/D.R.

    Convém ainda sublinhar que o processo de obtenção do alvará EMIE não é complexo: é um procedimento administrativo, praticamente automático para empresas já detentoras de certificação de qualidade ISO 9001, não exigindo auditorias nem verificações prévias da existência de técnicos qualificados para o serviço. Este dado reforça a estranheza de a MNTC só ter obtido o alvará depois de concorrer e não antes, bem como a permissividade da Carris em aceitar uma proposta de quem ainda não tinha sequer dado esse passo formal.

    No final, o que deveria ser um procedimento de contratação pública destinado a assegurar a melhor relação qualidade-preço para um serviço de segurança crítica acabou por se transformar numa escolha baseada exclusivamente no preço, ignorando a qualificação e o histórico das empresas. Hoje, com um elevador destruído, quatro ascensores parados, dezenas de vítimas e danos reputacionais incalculáveis, a decisão de há dois anos revela-se um exemplo paradigmático do que acontece quando se confunde poupança com gestão eficiente.

  • Usámos IA para denunciar quem usa IA sem vergonha

    Usámos IA para denunciar quem usa IA sem vergonha


    Nota introdutória

    O uso de inteligência artificial nas redacções é hoje um dos temas mais controversos — talvez mesmo um dos mais fracturantes — não apenas porque afecta a produção de jornalistas humanos, mas também porque, ao contrário do que muitos imaginam, as ‘máquinas’ não são infalíveis e, pior, têm uma ‘imaginação’ que pode gerar situações e factos inexistentes, que escapam ao escrutínio dos leitores e dos próprios editores.

    No final de Agosto, uma polémica sacudiu o mundo dos media quando as reputadas revistas Wired e Business Insider publicaram reportagens assinadas por uma alegada correspondente chamada Margaux Blanchard, que afinal nunca existiu. Os textos tinham sido produzidos com recurso a inteligência artificial por alguém que, deliberadamente, os submeteu às redacções, criando uma personagem fictícia para lhes dar verosimilhança, e entregando reportagens falsas numa cidade inexistente. O embuste passou pelos filtros editoriais, revelando fragilidades graves nos mecanismos de verificação jornalística.

    a robot holding a gun next to a pile of rolls of toilet paper

    O uso de IA não deve ser proibido nas redacções, mas tem de ser cuidadosamente supervisionado — talvez até com mais atenção do que um jornalista estagiário. A IA é uma ferramenta de poder descomunal: pode processar e cruzar dados, analisar informação, rever ortografia, gerar imagens, transcrever entrevistas e compor textos a uma velocidade descomunal  que nenhum humano consegue igualar. Mas quanto maior a potência da máquina, maior o cuidado exigido ao condutor.

    Costumo dizer que um bom jornalista conduz um topo de gama: e se lhe dermos um Fórmula 1 (IA), poderá ir muito mais rápido e chegar mais longe, mas terá também de redobrar a atenção, manter as mãos firmes e os olhos no asfalto — porque um pequeno erro pode significar sair de pista e esbardalhar-se de forma catastrófica. Darem a alguém, que nem sequer saber conduzir bem um simples carro, um Fórmula 1 é garantia de que se espetará na primeira esquina – ou, se calhar, nem consegue arrancar.

    O grande problema do jornalismo contemporâneo é deixar-se deslumbrar com a IA sem perceber que quanto mais sofisticada for a ferramenta, mais rigorosa tem de ser a supervisão. Uma bicicleta e um avião são ambos meios de transporte, mas ninguém pilota um Airbus com a displicência de quem pedala na ciclovia. A velocidade de produção textual com IA é vertiginosa: em segundos é possível reescrever uma peça de qualquer órgão de comunicação social, dar-lhe nova roupagem e atenuar o risco de acusações de plágio com prova, criando algo que parece original. No limite, pode criar-se uma redacção que vive apenas de parasitar o trabalho alheio, sem acrescentar investigação própria nem valor jornalístico.

    white and black typewriter with white printer paper

    Porém, a velocidade com que a credibilidade pode ser destruída é ainda maior. Uma única citação mal atribuída ou um dado inventado pode ser replicado milhares de vezes em minutos, criando um efeito de cascata impossível de controlar.

    Pequenos erros que num jornal tradicional seriam corrigidos discretamente no dia seguinte podem, no ecossistema digital, transformar-se numa bola de neve que mina de forma irreversível a confiança do leitor.

    Foi precisamente para sublinhar este dilema que decidimos produzir um artigo relatando o caso Wired / Business Insider usando apenas inteligência artificial. Limitámo-nos a fornecer o texto original do Techdirt e instruções para o Mafarrico — baptizámos o nosso sistema do ChatGPT, que nos últimos meses já reviu dezenas de artigos do PÁGINA UM e auxiliei muitas análises — redigir ao estilo da nossa redacção.

    a close up of a keyboard with a blue button

    Mas, desta vez, abdicámos propositadamente de qualquer verificação editorial ou sequer revisão gramatical. Ou seja, o texto que iremos publicar é um texto em bruto sem o habitual selo de qualidade do PÁGINA UM. E talvez o mais surpreendente seja isto: o artigo do Mafarrico foi gerado em menos de dez segundos, enquanto este texto, que escrevi à mão, demorou mais de uma hora a ser concluído, e andei a pensar nele desde ontem.

    O jornalismo – e essa é talvez a mensagem principal que gostaria de deixar – é mais do que escrever textos, e por isso mesmo a IA nunca conseguirá substituir o jornalismo puro. Pode, quando muito, criar sucedâneos – mais baratos, é certo, mas de qualidade inferior, incapaz de ser ‘mordido’ sequer por quem deseja ser e estar bem informado.

    Pedro Almeida Vieira

    ***

    Usámos IA para denunciar quem usa IA sem vergonha

    (Texto criado pelo Mafarrico – conta profissional do PÁGINA UM no ChatGPT sem qualquer revisão humana, depois de ser instruído a escrever um texto crítico baseado na informação de um artigo da Techdirt)

    Este texto foi escrito com recurso a inteligência artificial. Sim, leu bem: IA a denunciar o mau uso da IA. É a prova viva de que a tecnologia não é o problema — o problema são as redações que despedem jornalistas, abdicam de editores e contratam fantasmas digitais para encher páginas com histórias inventadas.

    Na semana passada, Wired e Business Insider foram apanhados a publicar artigos de uma alegada jornalista chamada Margaux Blanchard — que afinal não existe, tal como a cidade do Colorado onde dizia que havia um centro secreto de formação para investigação de mortes. Tudo escrito com IA, sem uma verificação de factos decente, sem um editor sénior a levantar sobrancelhas.

    A revelação partiu do Press Gazette: pelo menos seis publicações caíram na esparrela, publicando histórias que iam desde casamentos virtuais no Roblox até personagens e lugares completamente fictícios. A cereja no topo? Só descobriram a farsa quando a “jornalista” se recusou a receber o pagamento pelos canais normais.

    O Wired fez meia-culpa, admitindo que não seguiu os seus próprios protocolos de verificação e edição. Já o Business Insider, especialista em clickbait e em despedir jornalistas, continua no caminho de transformar a informação num repositório de conteúdo barato, bom para encher feeds mas mau para informar cidadãos.

    O episódio é sintoma de uma indústria em colapso: redações esvaziadas, corte de custos, automação apressada, algoritmos que mandam mais do que editores. Resultado? Um ecossistema fértil para fraudes, desinformação e charlatães digitais. A ironia é que, enquanto o jornalismo real é despedido, o falso jornalismo prolifera — e com selo de qualidade de grandes marcas mediáticas.

    Aqui, no PÁGINA UM, usamos IA como se deve: para pensar melhor, cruzar dados, aumentar o rigor. Não para inventar cidades e pessoas. O jornalismo precisa de jornalistas — e de leitores exigentes. O resto são fantasmas digitais.

  • Elevador da Glória: caderno de encargos da manutenção não exigia qualquer ensaio mecânico ao cabo que colapsou

    Elevador da Glória: caderno de encargos da manutenção não exigia qualquer ensaio mecânico ao cabo que colapsou


    Os serviços de manutenção e segurança do Elevador da Glória — o funicular mais icónico de Lisboa, classificado como Monumento Nacional — não previam a realização de quaisquer ensaios mecânicos ou ensaios não destrutivos ao cabo de tracção que cedeu na passada terça-feira, provocando o descarrilamento da cabina que descia a Calçada da Glória, causando a morte de 16 pessoas e ferimentos em mais de duas dezenas. Era tudo feito visualmente – ou se se quiser ser jocoso, mesmo se a hora é dramática, com recurso à tecnologia do ‘olhómetro’.

    De acordo com a consulta efectuada pelo PÁGINA UM ao caderno de encargos da manutenção dos ascensores da Glória, Lavra, Bica e Santa Justa, que vigorou até 31 de Agosto – e que continuaria a manter-se com o ajuste directo que a Carris garante ter sido assinado no mês passado por um período de cinco meses –, apenas para os dois últimos, com tecnologia diferente, existiam referências à contagem de arames partidos como critério para substituição de cabos.

    No caso da Glória (e também do Lavra), o caderno de encargos limita-se a exigir uma “verificação” dos cabos, sem qualquer norma técnica específica, periodicidade diferenciada ou referência a métodos de ensaio. Ou seja, se já se sabe que a inspecção diária era apenas visual, como demonstram os registos entregues pela Carris, nenhuma exigência existia para que as outras inspecções com periodicidade semanal, mensal e semestral fossem diferentes. Fica, porém, por esclarecer se a empresa responsável pela manutenção — a MNTC — complementava essas verificações com algum tipo de ensaio mais aprofundado, uma vez que o contrato não o exigia expressamente.

    O PÁGINA UM apurou junto de especialistas que existem diversos ensaios que poderiam ser aplicados para detecção precoce de falhas em cabos de tracção, para além da simples observação visual. Entre eles contam-se os ensaios de magneto-indução (que permitem detectar fios partidos no interior do cabo), correntes de Foucault e ultrassons localizados, particularmente úteis para verificar a integridade da zona de ancoragem no trambolho.

    Também é possível realizar medições de extensão sob carga para avaliar a elasticidade residual e identificar alongamentos anómalos. Estes procedimentos são considerados boas práticas internacionais em sistemas de transporte por cabo e estão descritos em normas como a EN 12927-6, usada em países como a Suíça ou a Áustria.

    Foto: Frederico Carvalho

    O contrato de manutenção da Carris, contudo, não exigia nenhum destes ensaios, remetendo para a prestadora de serviços a decisão de realizar ou não ensaios complementares. A ausência de uma norma técnica clara poderá vir a ser um elemento central na atribuição de responsabilidades civis e criminais, uma vez que o Estado, através da Carris, optou por um modelo contratual minimalista num sistema que transporta milhares de passageiros por dia em forte declive urbano.

    Em conversa com o PÁGINA UM esta noite, Pedro Bogas, presidente da Carris, afirmou que “serão em breve disponibilizadas mais inspecções do que as diárias, para que se saiba que tipo de ensaios eram executados”, sem, contudo, confirmar se existiram alguma vez medições de carga ou ensaios de magneto-indução ao cabo que colapsou no trambolho superior da cabina número um, tanto mais relevante porque o relatório preliminar apresentado pelo Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF) mostra que a ruptura do cabo ocorreu no ponto de fixação dentro do trambolho superior, isto é, numa zona que não é passível de inspecção visual sem desmontagem.

    Assim, mesmo que a inspecção diária tivesse sido cumprida escrupulosamente — como os registos parecem comprovar —, não havia forma de detectar a degradação incipiente do cabo. A questão, portanto, é saber se alguma vez, em inspecções semanais, mensais e semestrais, a MNTC fez a desmontagem dessa peça ou se usou algum instrumento de medição para verificar as condições de segurança do cabo.

    Especificações do caderno de encargos são omissas sobre as normas técnicas das verificações em função da periodicidade. Podiam ser todas visuais, como a manutenção diária estava a ser feita?

    Quer a empresa tenha feito ou não, o caderno de encargos era (e será) omisso, uma vez que apenas exigia uma “verificação”, termo técnica e juridicamente vago. Ou seja, responsabilizar a empresa de manutenção com base num caderno de encargos omissos pode ser complicado.

    Certo é que esta noite, já depois da conversa do PÁGINA UM com Pedro Bogas, a Carris disponibilizou o mais recente relatório mensal, com data de 1 de Setembro, dois dias antes do acidente. E aparente confirma-se: as “verificações” eram elementares, sem recurso a equipamentos, embora mais demoradas(a última durou duas horas e quatro minutos). Na prática, consistiu apenas em verificar visualmente se existiam ruídos anómalos, empenos ou parafusos desapertados, bem como testar o funcionamento da bomba submersível do sistema do cabo de equilíbrio.

    A ficha de manutenção é preenchida com um simples “OK” e uma nota genérica de que a inspecção foi realizada, sem qualquer valor medido ou referência a ensaios técnicos. Este nível de controlo é manifestamente insuficiente para detectar a degradação interna de um cabo de tracção, já que não inclui desmontagens, medições de carga, ensaios de magneto-indução ou outros testes não destrutivos considerados boas práticas internacionais para sistemas de transporte por cabo.

    people standing beside yellow and white tram during daytime

    Em todo o caso, o relatório do GPIAAF sublinha um aspecto ainda mais aterrador: embora o sistema de corte de energia e de accionamento automático dos travões pneumáticos tenha funcionado como previsto, estes não tinham capacidade suficiente para imobilizar o veículo sem o equilíbrio de massas garantido pelo cabo.

    Ou seja, os freios não constituem um sistema redundante à falha da ligação por cabo, o que, na prática, significa que milhões de passageiros andaram ao longo dos anos literalmente presos por um fio – que rompeu no dia 3 de Setembro. Significa isto que, no actual desenho do sistema, uma ruptura como a que ocorreu dificilmente poderia ter outra consequência que não um acidente grave.

    Sobre as dúvidas da validade contratual dos serviços de manutenção – que o PÁGINA UM tem noticiado –, Pedro Bogas assegura que existe mesmo um contrato válido, por si assinado no dia 25 de Agosto mas com data do dia 20. E diz que a distribuição de uma minuta na conferência de imprensa de quinta-feira – que continha a assinatura tapada do gerente da MNTC – mas colocava uma pequena tarja negra numa zona onde ainda não estavam sequer as assinaturas – foi um lamentável lapso dos seus serviços. “Não fazia sentido terem disponibilizado esse documento preliminar; ainda mais porque existia já o contrato assinado e nunca as suas assinaturas deveriam ter sido tapadas”.

    Pedro Bogas, presidente da Carris.

    Pedro Bogas diz que uma garantia de que existe um contrato mesmo em vigor está no facto de que, se não houvesse, a empresa de manutenção teria já descartado responsabilidades, mas não deu uma explicação cabal sobre a razão de não ter optado pela assinatura digital (com timestamp), que anularia quaisquer dúvidas na legalidade do processo.

    Prometendo transparência máxima, Pedro Bogas diz que a Carris disponibilizará todos os documentos envolvendo o acidente, incluindo as inspecções e demais documentos.

  • IGAS conclui que cirurgião de Faro cometeu infracções graves e propõe suspensão de 40 dias

    IGAS conclui que cirurgião de Faro cometeu infracções graves e propõe suspensão de 40 dias


    A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) concluiu que o médico cirurgião do Hospital de Faro, Pedro Cavaco Henriques, cometeu infracções disciplinares graves, por violação dos deveres deontológicos e das boas práticas clínicas (leges artis), propondo que seja punido com uma sanção de 40 dias de suspensão, com perda de retribuição e antiguidade.

    A decisão no âmbito do processo disciplinar a que o PÁGINA UM teve acesso, com despacho do inscpector-geral Carlos Carapeto em 22 de Agosto passado, resulta de um longo processo disciplinar instaurado pela Unidade Local de Saúde do Algarve (ULSA) na sequência das denúncias da médica interna Diana Pereira, que em 2023 teve a coragem pouco comum de expor directamente à Polícia Judiciária aquilo que considerava ser casos evidentes de negligência na Cirurgia da unidade de saúde algarvia.

    Diana Pereira, actualmente a exercer no Hospital de São João, era então orientada no seu internato (fase de estágio após a formação em Medicina) por Pedro Cavaco Henriques, embora a sua queixa na Polícia Judiciaria tivesse incluído também o director de serviços de cirurgia, Martins dos Santos. A médica alegou que não confiava na hierarquia do Hospital de Faro, receando que os casos fossem silenciados.

    No final do ano passado, a IGAS tinha arquivado um processo disciplinar similar contra Gildásio Martins dos Santos, então director de serviços de cirurgia do Hospital de Faro, por existirem dúvidas sobre a sua culapbilidade, embora a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, tenha depois decidido suspender a decisão final após o processo penal ainda em curso.

    Outro desfecho teve o processo de Pedro Cavaco Henriques. A nota de culpa apurada pela IGAS imputava a Pedro Cavaco Henriques a prática de múltiplas infracções, envolvendo cinco doentes concretos, identificados no processo, em episódios clínicos que, segundo a investigação, configuraram má prática médica. Em cada um dos casos, a IGAS sustenta que houve incumprimento das regras técnicas adequadas, sendo especialmente grave a situação de um dos doentes, que sofreu complicações graves atribuídas a má decisão cirúrgica.

    Página das conclusões do processo disciplinar contra o médico Pedro Cavaco Henriques. O PÁGINA UM expurgou os nomes dos cinco doentes referenciados por razões de legítima privacidade e por não ter relevância pública.

    No relatório com 59 páginas conduzido pelo inspector Pedro Cordeiro, a IGAS é taxativa: considera provadas as infracções, realça que foram cometidas a título negligente e lembra que o médico Pedro Cavaco Henriques até já tinha sido alvo de uma sanção disciplinar anterior, de repreensão escrita, no mesmo hospital. Essa reincidência pesou na avaliação, tal como a proximidade temporal das infracções, que ocorreram no espaço de apenas três meses. A ocorrência em espaço de tempo reduzido de quatro infracções por violação da leges artis, censuradas pericialmente e de má prática num outro caso foram consideradas “pericialmente gravosas”.

    Apesar da gravidade das faltas, a IGAS também reconhece factores atenuantes: refere o bom comportamento geral do médico e destaca a sua postura colaborante durante o inquérito. Particularmente relevante foi a admissão expressa do arguido de que deveria ter adoptado uma conduta diferente no caso de um dos doentes, uma mulher de origem estrangeira, tendo Pedro Cavaco Henrique assumido erros e arrependimento sobre a opção cirúrgica que resultou em complicações/lacerações intestinais

    A IGAS sustentou que, atendendo a que a factualidade em causa aconselhava uma adequada proporcionalidade na sanção, se considerava ajustada a aplicação de uma sanção única de 40 dias de suspensão, superior ao que estava previsto na nota de culpa para cada infracção isolada (20 dias). A decisão final cabe agora ao Conselho de Administração da ULSA, que terá três meses para a executar sob pena de caducidade.Mas o processo não acabará aqui porque a decisão formal seguiu agora também para a Ordem dos Médicos, a Polícia Judiciária, o Ministério Público e o Tribunal de Faro.

    doctor and nurse during operation

    Esta conclusão da IGAS é mais um capítulo de um caso que abalou o Hospital de Faro e expôs as fragilidades de uma cultura hospitalar marcada pelo corporativismo. Em Abrilde 2023, Diana Pereira, então médica interna de cirurgia geral, decidiu quebrar o silêncio e reportar directamente à Polícia Judiciária onze casos de alegada negligência ocorridos entre Janeiro e Março desse ano. Três dos doentes acabariam por morrer, dois encontravam-se em estado crítico nos cuidados intermédios e os restantes ficaram com sequelas graves.

    O gesto de Diana Pereira foi inédito num meio profissional onde, historicamente, a regra tem sido a protecção mútua entre pares e a ausência de denúncias públicas. O próprio Código Deontológico da Ordem dos Médicos desaconselha críticas entre colegas em actos clínicos, o que contribui para que situações de erro raramente sejam escrutinadas fora dos mecanismos internos. O caso de Faro tornou-se, assim, paradigmático: pela gravidade dos eventos, pela coragem da denunciante e pela forma como as instituições reagiram.

    As denúncias de Diana Pereira levaram, face à gravidade, à suspensão preventiva de Pedro Cavaco Henriques e Gildásio Martins dos Santos, uma medida tornada pública através de edital do Conselho Disciplinar da Região Sul da Ordem dos Médicos.

    gray surgical scissors near doctors in operating room

    Em paralelo, a IGAS abriu um processo de inspecção que analisou 12 casos, concluindo, em Setembro de 2024, que seis tinham fundamento. O Ministério Público instaurou inquérito criminal e a Ordem dos Médicos manteve em curso os seus próprios processos disciplinares. Estes dois processos poderem agora aproveitar as provas recolhidas pelo processo disciplinar que não podia ir mais longe do que aplicar, se não houvesse atenuantes, um máximo de 100 dias de suspensão.

    Contudo, a médica interna viria a enfrentar um clima hostil no hospital e fora dele: colegas puseram em causa a sua estabilidade emocional, havendo mesmo violação dos seus dados pessoais. E em Julho de 2023, dois jornalistas do Expresso (Vera Lúcia Arreigoso e João Mira Godinho) publicaram uma notícia intitulada “Médica que acusou cirurgiões envolvida em morte”, em que associavam Diana Pereira a um alegado caso de negligência – por supostamente ter dado alta a uma doente que morreu horas depois – citando fontes anónimas de “cirurgiões”.

    A notícia do Expresso revelava-se falsa porque os médicos internos não possuem capacidade para conceder alta a doentes sem a supervisão e anuência de um médico de especialidade.

    Diana Pereira: a jovem médica teve a coragem em 2023 de denunciar erros graves que estariam a ser silenciados pelas chefias, e sofreu depois represálias, incluindo tentativas de ‘assassinato de carácter’, incluindo uma notícia do Expresso em que se tentava associar a um acto de negligência médica.

    Num contexto em que a confiança dos cidadãos nos serviços de saúde é crucial, este caso mostra que a denúncia fundamentada e a investigação independente são instrumentos indispensáveis para a correcção de falhas e para a defesa da dignidade dos doentes. Mas também expõe o preço pago por quem decide romper o silêncio: perseguição pessoal, campanhas de descredibilização e isolamento profissional.

    O PÁGINA UM tentou contactar a médica Diana Pereira, actualmente a prestar serviço no Hospital de São João, no Porto, mas ainda não obteve qualquer resposta.

  • Ajuste directo de manutenção dos elevadores: Carris forjou minuta para parecer contrato

    Ajuste directo de manutenção dos elevadores: Carris forjou minuta para parecer contrato


    O caso do ajuste directo de manutenção dos elevadores de Lisboa ganha novos contornos e aumenta as dúvidas sobre a veracidade das declarações prestadas ontem por Pedro Bogas, presidente da Carris, na conferência de imprensa realizada um dia após a tragédia no Elevador da Glória.

    O documento entregue aos jornalistas não passava, afinal, de uma minuta, sem assinaturas e com informação rasurada, e aparentemente só hoje, após insistência deste jornal, foi enviada uma versão com assinaturas manuscritas dos dois administradores da empresa municipal: o presidente e a vice-presidente Maria Lopes Duarte. Mas pior ainda: a tarja colocada na minuta entregue ontem aos jornalistas não era mais do que uma simulação mal feita, sugerindo estar a proteger as identidades dos subscritores.

    Pedro Bogas, presidente da Carris, disse que disponibilizaria cópia do contratos aos jornalistas. Afinal, forjou uma minuta, colocando tarjas negras, para tapar inexistente assinaturas.

    O polémico contrato, que a Carris alega ter sido assinado em 20 de Agosto para não deixar sem cobertura contratual os serviços de manutenção dos elevadores – uma vez que o anterior contrato de três anos expirou no dia 31 de Agosto – foi exibido aos jornalistas como prova de que a manutenção e inspecção dos ascensores estava assegurada.

    Porém, apesar de o PÁGINA UM não ter sido convocado, acabámos por ter tido acesso a esse documento da Carris, através de dois jornalistas de órgãos de comunicação social, um dos quais director de um jornal de grande dimensão.

    Ora, o documento de ontem continha tarjas negras nas linhas de identificação das partes e sobre as áreas onde deveriam constar as assinaturas de dois membros do Conselho de Administração da Carris e do gerente da MNTC. Mas hoje, por insistência do PÁGINA UM, a Carris acabou por enviar o documento, salientando ser “cópia do contrato distribuído, ontem, na conferência de imprensa, onde é possível identificar os representantes da CARRIS e respectivas assinaturas”.

    Última página do ‘contrato’ entregue ontem aos jornalistas (à esquerda) e última página do contrato enviado hoje ao PÁGINA UM (à direita). A tarja negra da imagem da esquerda jamais conseguiria tapar as duas assinaturas da imagem da direita, o que revela que foi entregue uma minuta forjada aos jornalistas para aparentar uma cópia com nomes anonimizados.

    Porém, uma singela análise confirma diferenças evidentes entre aquilo que ontem foi mostrado aos jornalistas na conferência de imprensa e o documento enviado hoje ao PÁGINA UM: além de surgirem já os nomes dos representantes da Carris, as folhas são rubricadas no canto superior direito (como habitualmente em contratos já celebrados) e surgem visíveis as assinaturas dos administradores da Carris na última página, manuscritas – ou seja, houve a clara opção de não usar assinatura digital com timestamp, que deixaria uma ‘impressão digital’ do dia e da hora da assinatura.

    Em todo o caso, a versão enviada hoje pela Carris ao PÁGINA UM mantém uma tarja sobre a assinatura do gerente da MNTC, que teria de existir de forma visível para o contrato ser válido. Aliás, em contratos públicos não se aplica qualquer protecção de identidade no âmbito do Regulamento Geral de Protecção de Dados.

    Ora, a prova de que, na conferência de imprensa desta quinta-feira, a Carris entregou uma minuta forjada para parecer um contrato está no facto de o documento entregue aos jornalistas conter uma tarja negra no espaço que supostamente taparia as assinaturas dos administradores da Carris que é demasiado pequena. Com efeito, confrontando com o documento enviado hoje ao PÁGINA UM, a superfície dessa tarja negra mal taparia a assinatura de Pedro Bogas e jamais conseguiria tapar a assinatura da administradora Maria Lopes Duarte. Ou seja, ontem o contrato ainda não estaria assinado.

    Primeira página do ‘contrato’ entregue ontem aos jornalistas (à esquerda) e primeira página do contrato enviado hoje ao PÁGINA UM (à direita). A ausência de rubricas no canto superior direito já evidenciava que o documento entregue ontem aos jornalistas se tratava de uma minuta sem validade contratual.

    Esta discrepância aumenta as suspeitas sobre a real cronologia da celebração do ajuste directo, se é que foi mesmo assinado. O PÁGINA UM remeteu um pedido à MNTC, mas recebeu como resposta que está a ser representada agora pelo advogado Ricardo Serrano Vieira, que não foi ainda possível contactar.

    Saliente-se que, em muitos casos de contratação pública, apesar de ser uma prática contrária à transparência e às boas regras de gestão pública, muitos ajustes directos apenas acabam formalizados após um acordo verbal ou informal para início da prestação de serviços – sobretudo quando é o mesmo prestador de um contrato que terminou –, sendo depois datados com efeitos retroactivos para regularizar a situação.

    Porém, no presente caso, a gravidade da tragédia do descarrilamento do Elevador da Glória – com 16 mortes e duas dezenas de feridos – torna esta questão muito mais sensível: se não existia contrato válido à data do acidente, as consequências jurídicas e indemnizatórias poderão ser colossais, uma vez que a Carris poderá ter operado os ascensores sem cobertura contratual de manutenção e inspecção.

    Calçada da Glória: existir ou não um ajuste directo juridicamente válido não será um pormenor para o apuramento de responsabilidades indemnizatórias de um desastre que causou 16 mortes e mais de duas dezenas de feridos.

    O PÁGINA UM solicitou ainda à Carris o envio da acta da reunião do Conselho de Administração de 14 de Agosto, indicada no alegado contrato por ajuste directo como tendo deliberado a adjudicação. Até ao fecho desta edição, o gabinete de relações públicas da Carris não forneceu qualquer resposta a este pedido, mantendo a incerteza sobre se a deliberação foi efectivamente tomada nessa data e se foi respeitado o procedimento de contratação exigido pelo Código dos Contratos Públicos.

    Este caso poderá, assim, evoluir para uma questão não apenas de gestão, mas de responsabilidade civil e criminal: a confirmação de que o contrato não estava assinado no dia do acidente pode implicar um vazio legal sobre quem tinha a obrigação de assegurar a manutenção dos equipamentos naquele momento, abrindo espaço para um cenário litigioso de proporções imprevisíveis.

  • Carris vai gastar mais em arranjos de jardins do que em segurança dos elevadores

    Carris vai gastar mais em arranjos de jardins do que em segurança dos elevadores


    À medida que se intensificam as críticas às opções de gestão da Carris sobre a externalização da manutenção e do controlo de segurança dos ascensores de Lisboa – após o trágico descarrilamento na Calçada da Glória, que causou 16 mortos e mais de duas dezenas de feridos –, o PÁGINA UM apurou que a administração liderada por Pedro Bogas se prepara para gastar 600 mil euros, apenas num ano, na manutenção de espaços verdes, sobretudo no complexo de Miraflores, sede da empresa municipal de Lisboa.

    Este novo encargo resulta de um concurso público lançado em Julho e que encerrou a recepção de propostas a 21 de Agosto. O contrato, segundo o caderno de encargos, poderá ser prorrogado por mais dois anos, o que elevará a factura total para 1,8 milhões de euros em três anos.

    Canteiro de 45 metros quadrados do funicular da Graça está integrado num contrato de 600 mil euros. Créditos: LPP – Lisboa Para Pessoas.

    Recorde-se que, no mês passado, a Carris decidiu anular um concurso público para a manutenção dos quatro ascensores da cidade – Glória, Bica, Santa Justa e Lavra – por considerar excessivo o preço das propostas apresentadas, que ultrapassavam os 1,2 milhões de euros para um contrato de três anos. O anterior contrato para a manutenção dos elevadores – que terminou a 31 de Agosto – tinha custado 995 mil euros no mesmo período, mas não evitou o acidente mortal da passada quarta-feira.

    Desde 1 de Setembro, a Carris mantém o serviço através da mesma empresa, a MNTC, mas recorrendo a um ajuste directo assinado a 20 de Agosto, cujo documento suscita dúvidas quanto à autenticidade, no valor de cerca de 221 mil euros por cinco meses – uma média de pouco mais de 44 mil euros mensais. Com o novo contrato para os espaços verdes, a factura mensal da Carris para jardinagem e relvados rondará os 50 mil euros.

    Apesar do valor elevado do contrato de manutenção de espaços verdes, a dimensão das áreas é surpreendentemente modesta. No total, a Carris tem apenas 1,45 hectares para manter — o equivalente a menos de dois campos de futebol —, distribuídos por várias localizações, muitas delas de dimensão quase simbólica.

    Vista aérea do Complexo de Miraflores da Carris. Foto: Google Maps.

    A maior parcela encontra-se em Miraflores, complexo da Carris com oficinas gerais, estação de serviço e núcleo administrativo. Aí se concentram 12.929 metros quadrados (cerca de 1,3 hectares) de áreas ajardinadas e relvadas, dos quais 5.480 metros quadrados têm sistema de rega automática. Destacam-se a zona ajardinada do edifício B, junto ao muro sul, com 1.383 metros quadrados, e o jardim central de 664 metros quadrados, junto ao Parque dos Visitantes do Conselho de Administração.

    As restantes áreas são muito mais pequenas e dispersas. Em Santo Amaro, os espaços verdes somam apenas 270 metros quadrados; na Pontinha, a área não ultrapassa 150 metros quadrados, dos quais apenas 53 têm rega automática; e na Alta de Lisboa o total é de 1.110 metros quadrados, quase todos sem rega automática, incluindo um pequeno jardim interior de 76 metros quadrados no edifício A e uma área junto à portaria do edifício C.

    people standing beside yellow and white tram during daytime

    Por fim, no Funicular da Graça, a responsabilidade da Carris resume-se a um canteiro de 45 metros quadrados — literalmente um rectângulo de nove metros de comprimento por cinco de largura.

    Este retrato revela que a quase totalidade do esforço de manutenção recai sobre Miraflores, mas evidencia também o carácter fragmentado e a dimensão reduzida das restantes áreas. A dispersão geográfica e o custo global do contrato levantam questões sobre a racionalidade e o custo-benefício da despesa, sobretudo num momento em que a empresa é criticada pela insuficiente manutenção dos ascensores de Lisboa.