Etiqueta: Política

  • Governo quer que todos os documentos feitos e trocados entre os seus membros sejam secretos

    Governo quer que todos os documentos feitos e trocados entre os seus membros sejam secretos

    O secretismo da actividade do actual Governo, que festejará no próximo ano, o cinquentenário da Democracia, está a intensificar-se. Numa contra-alegação de um processo de intimação do PÁGINA UM, através do seu FUNDO JURÍDICO, intentado no Tribunal Central Administrativo Sul, a Presidência do Conselho de Ministros defende que todos os documentos elaborados pelos seus serviços e a troca de documentação entre membros do Governo, e também com o Presidente da República, devem ser considerados documentos de natureza política. Desse modo, pretendem que fiquem excluídos das obrigações da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos.


    O Centro de Competências Jurídicas do Estado – um “gabinete jurídico de luxo” da Presidência do Conselho de Ministros – considera que “os ofícios, cartas e outros documentos trocados e elaborados no seio do Governo ou entre o Primeiro-Ministro e o Presidente da República e os respetivos Gabinete e Casa Civil não são passíveis de acesso ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos”.

    Esta interpretação – que pode significar dificuldades acrescidas de acesso a documentos governamentais – consta das contra-alegações do Governo apresentadas no Tribunal Central Administrativo Sul no decurso de uma intimação do PÁGINA UM para aceder ao inquérito preenchido por Gonçalo Rodrigues. O PÁGINA UM foi o único órgão de comunicação social que estranhou que um inquérito apresentado como um sinal de “transparência do Governo” sobre os seus membros, após um conjunto de escândalos, fosse classificado como “secreto”.

    Este professor do Instituto Superior de Agronomia foi a primeira (e até agora única) pessoa a ser abrangida por uma Resolução de Conselho de Ministros de Janeiro deste ano, que passou a exigir a entrega de resposta a um conjunto de 36 quesitos. Sem essa entrega, a pessoa convidada não poderá ser aceite como membro de Governo, mas o diploma legal – que vincula um particular, que tem assim de cumprir uma norma – considera que a informação é classificada como “Nacional Secreto”, invocando legislação que se aplica a casos de segurança de Estado ou de aliados.

    Ironicamente, o inquérito que o Governo não quer ceder ao PÁGINA UM resulta de uma Resolução do Conselho de Ministros que, logo no preâmbulo, relembra que “o Programa do XXIII Governo Constitucional realça a importância de assegurar a transparência e o controlo da integridade do sistema democrático“. E acrescenta, a seguir que “tal aconselha que o escrutínio a que aqueles titulares devem ser sujeitos para integrarem o Governo, no âmbito do processo de avaliação política que precede a respetiva nomeação, seja reforçado.” Só que o reforço é falacioso. Não só o Governo esconde os inquéritos como garante a sua destruição se o governante foi destituído ou se não tomar posse.

    Trecho da contra-alegação do Governo em defesa do obscurantismo. Tribunal Central Administrativo Sul determinará se esta tese, em vésperas do 50º aniversário da democracia, vence.

    Em sede de primeira instância, o Governo conseguiu que uma juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa considerasse que os documentos associados, mesmo se indirectamente, à constituição do Governo eram apenas documentos políticos, e não documentos administrativos contendo decisões políticas, concluindo que assim o Governo não teria de ceder o acesso ao documento por este não estar abrangido pela Lei do Acesso aos Documentos Administrativos. O PÁGINA UM contestou essa interpretação por considerar que um acto político, que é conceito muito abrangente, assume também um acto administrativo se efectivado em documento físico ou suporte análogo em cumprimento de uma norma legislativa.

    Mas agora, em sede de recurso, o Governo aparenta querer ir ainda mais longe – e até porventura criar jurisprudência –, ao defender que todos os documentos elaborados no seio do Governo, incluindo correspondência entre ministros, secretários de Estado e até Presidente da República fiquem no segredo dos deuses. No limite, o acesso a qualquer relatório técnico, contendo matérias politicamente sensíveis, poderia passar a ser negado pelo Governo invocando que se trataria de um documento político.

    Recorde-se que a lei considera que um documento administrativo é “qualquer conteúdo, ou parte desse conteúdo, que esteja na posse ou seja detida em nome dos órgãos e entidades” públicas, incluindo Governo, “seja o suporte de informação sob forma escrita, visual, sonora, eletrónica ou outra forma material”, não fazendo referência ao tipo de decisão ou matérias que contenha.

    Existe apenas um artigo que exclui determinados documentos da esfera públicas, em concreto “as notas pessoais, esboços, apontamentos, comunicações eletrónicas pessoais e outros registos de natureza semelhante, qualquer que seja o seu suporte” – daí que, por exemplo, as famosas notas de Frederico Pinheiro não são documentos administrativos, pelo que o acesso público pode ser vedado –, “os documentos cuja elaboração não releve da atividade administrativa, designadamente aqueles referentes à reunião do Conselho de Ministros e ou à reunião de Secretários de Estado, bem como à sua preparação” e ainda “os documentos produzidos no âmbito das relações diplomáticas do Estado português.”

    Não parece ser esse o caso de um inquérito preenchido por Gonçalo Rodrigues, ainda mais sabendo-se que, no momento em que o actual secretário de Estado o entregou, era ainda um simples cidadão sem cargo político, e que estava apenas a cumprir o estatuído num diploma legal, criado por… uma decisão política em prol da transparência.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de 19 processos de intimação intentados desde Abril do ano passado, além de outras diligências, o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.

  • Polígrafo faltou ao rigor e isenção por classificar PCP, Bloco de Esquerda e MAS como extrema-esquerda

    Polígrafo faltou ao rigor e isenção por classificar PCP, Bloco de Esquerda e MAS como extrema-esquerda

    Por causa do seu protagonismo na contestação às políticas de Educação, a imprensa tem escrutinado o passado do líder do STOP, André Pestana, colocando-o como de “extrema-esquerda” e com alusões nada abonatórios. Ainda na passada semana, a ex-eurodeputada socialista Ana Gomes afirmou que “André do STOP está ao nível do outro André da extrema-direita”. Para pôr tudo em pratos limpos, o Polígrafo meteu-se na querela, compondo um fact checking. Saiu “chamuscado” na tarefa: a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) concluiu que, afinal, a análise não foi nem rigorosa nem isenta nem fundamentada. Em artigos académicos, estes partidos são classificados, na verdade, como esquerda radical, no sentido de ruptura política, sem qualquer conotação depreciativa.


    A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) concluiu que o verificador de factos Polígrafo “não cumprir as exigências de rigor informativo” numa análise feita em 6 de Fevereiro deste ano ao passado político de André Pestana, o líder do Sindicato de Todos os Profissionais da Educação (STOP). No artigo, assinado pelo jornalista Carlos Gonçalo Morais, o mote em questão centrava-se sobretudo no alegado ponto de diferenciação deste sindicato face aos restantes: a sua independência face a um directório político partidário, algo que acabava por nem sequer ser abordado.

    No mesmo dia, no programa SIC Polígrafo, apresentado por Bernardo Ferrão, director-adjunto de informação do canal televisão do Grupo Impresa, foi emitida uma peça similar, que considerava como “Verdadeiro” que “o professor que coordena o STOP tem passado na extrema-esquerda”. Em concreto, concluía-se que “o currículo de André Pestana é vasto em experiência politico-partidária, especificamente ligada a movimentos de extrema-esquerda”.

    André Pestana, líder do STOP.

    Note-se, contudo, que em órgãos de comunicação generalistas, a tentativa de colagem do STOP a movimentos denominados de extrema-esquerda foi frequente na imprensa generalista, como se pode observar em notícias do Diário de Notícias, da Sábado e do Observador. Aliás, neste último periódico, mostra-se evidente o sentido depreciativo do uso do termo, quando a jornalista Ana Kotowicz cita “um dirigente sindical [que não identifica, pelo que pode ser inventado] que tem acompanhado o STOP nas reuniões com o ministro da Educação, onde considera que as suas atitudes são sempre muito extremadas”.

    Nessa notícia do Observador é colocada na boca desse ignoto sindicalista, sem nome nem filiação, a seguinte afirmação: “Além da extrema-direita do André Ventura ficávamos com a extrema esquerda do André Pestana”, sobre uma possível candidatura à autarquia de Lisboa.

    Até nos sectores ideologicamente mais à esquerda do Governo, o protagonismo de André Pestana e do seu STOP na contestação dos professores tem sido cada vez mais criticado, sobretudo por estar fora da esfera de influência política dos sindicatos tradicionais. E não se perde oportunidade para o atacar. Ainda na passada semana, a ex-eurodeputada socialista Ana Gomes afirmou categoricamente que “André do STOP está ao nível do outro André da extrema-direita”, aludindo ao caso dos cartazes contra o primeiro-ministro António Costa, mesmo se o seu autor é professor afiliado na FENPROF.

    Porém, na deliberação hoje divulgada no seu site – que apenas é incidente no Polígrafo, em reacção a uma queixa não identificada –, a ERC considera que, apesar de se comprovar que André Pestana foi (mas já não é) militante da Juventude Comunista (JCP), Bloco de Esquerda (BE) e Movimento Alternativa Socialista (MAS), a análise do Polígrafo “não cuida de fundamentar a razão pela qual tais partidos pertencem a um espectro ideológico-partidário de extrema-esquerda”, mais grave por se estar perante um fact checking.

    Polígrafo (e SIC Polígrafo) fizeram fact checking sobre passado de André Pestana, e não tiveram dúvidas em classificar Partido Comunista, Bloco de Esquerda e Movimento Alternativa Socialista como partidos de extrema esquerda. Sem rigor nem fundamentação, concluiu ERC.

    Mesmo dizendo que não cabe a si catalogar os partidos referidos num espectro político, o regulador dos media conclui que “a notícia do Polígrafo aqui visada não logrou comprovar o que sustenta a classificação daqueles partidos políticos [JCP, BE e MAS] como sendo de extrema-esquerda, inexistindo factos no texto que sustentem tal conclusão”, lê-se na deliberação, acrescentando ainda que “ao invés, a total ausência de fundamentação padece não só de rigor informativo, como também parece resultar de uma avaliação subjetiva de quem escreve a notícia e, portanto, não cuidando de demarcar os factos da opinião”.

    O jornal dirigido por Fernando Esteves – que, curiosamente, proíbe os seus colaboradores de serem militantes de partidos e assume não possuir “uma agenda político-ideológica” – ainda argumentou que aquela denominação “não é uma originalidade do Polígrafo”, acrescentando que “há várias esquerdas e que nem sempre é fácil categorizá-las com rigor quase científico”, e defendendo ainda que “não é esse o papel dos jornais”.

    A ERC, contudo, não concordou com essa argumentação, criticando mesmo o Polígrafo por este fact-checker – que tem um poder quase ilimitado no Facebook para tachar publicações como fake news, com repercussões gravosas para os seus autores – promover a simplificação. “A simplificação no discurso, embora atendível em certa medida, não pode fazer perigar o rigor jornalístico, muito menos em trabalhos jornalísticos que se apresentam como verificadores de factos, que, enquanto tal, criam a expetativa de um cumprimento acrescido do dever de rigor”, salienta-se na deliberação do regulador.

    Incómodo com acções do STOP, fora das estruturas sindicais tradicionais, associadas à CGTP e à UGT, são evidente, mesmo no espectro político de esquerda. A ex-eurodeputada socialista Ana Gomes, na sua coluna de opinião na SIC, já “colou” André Pestana a André Ventura, líder do Chega.

    Refira-se que, como facilmente se pode encontrar em trabalhos académicos – que devem ser usados como fonte na verificação de factos –, os partidos de esquerda em Portugal como o PCP, BE e o MAS são classificados como “esquerda radical”, no sentido de ruptura, e não de violência.

    Por exemplo, num artigo científico publicado em 2016 por José Santana Pereira, investigador do Instituto de Ciências Sociais, sobre a esquerda radical no período pós-2009, considera-se a existência de três grupos de partidos de esquerda radical: um formado por PCP e BE, já com décadas de presença no parlamento nacional e europeu; outro formado pelos “novos partidos, criados após a crise das dívidas soberanas (MAS e Livre)”; e um terceiro por “micropartidos de esquerda radical, com décadas de existência e incapacidade reiterada de obter representação”, exemplificando com o maoista PCTP-MRPP, mesmo usando slogans mais virulentos. O uso por académicos de termos como “extrema-esquerda” quase sempre se aplicam em ambientes políticos de violência ou de atitudes não-democráticas.

    Esta é a quarta vez que a ERC considera que o mais conhecido verificador de factos português, o Polígrafo, falha no rigor das suas análises. Nesta deliberação, hoje publicada, o regulador destaca a gravidade da actuação do Polígrafo “por se tratar de conduta reincidente”, remetendo para a deliberação ERC/2021/362 e a deliberação ERC/2021/151.

    Contudo, além destes dois casos, a ERC também já este ano relembrou ao Polígrafo – e, neste caso, também à sua parceira SIC, com quem tem um programa televisivo (Polígrafo SIC) –, “o dever de informar com rigor e isenção”, uma obrigação “ainda mais premente nos conteúdos jornalísticos que têm como missão a verificação dos factos (fact check)”, após queixas dos secretários de Estado da Natureza e Florestas e das Pescas.

    Mas além destes casos, há três anos, por causa da emissão de imagens chocantes sem aviso prévio no Polígrafo SIC, a ERC aplicou mesmo uma multa de 30.000 euros à Impresa. A parte irónica desta coima está no facto de a emissão dessas imagens, ao longo de um minuto e 20 segundos de corpos a boiar, ter servido para corrigir um erro de fact checking: ao contrário do que SIC e Polígrafo tinham dito em programa anterior, aquelas imagens não eram da passagem por Moçambique do furacão Idai em Março de 2019, mas sim de uma outra tragédia ocorrida no Paquistão em 2017.

  • Supremo Tribunal Administrativo dá terceira “nega” ao Ministério da Saúde: PÁGINA UM tem direito de acesso a base de dados sobre internamentos hospitalares

    Supremo Tribunal Administrativo dá terceira “nega” ao Ministério da Saúde: PÁGINA UM tem direito de acesso a base de dados sobre internamentos hospitalares

    Não há uma sem duas, e não houve duas sem três: depois de sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa e de um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, três juízes conselheiros do Supremo Tribunal Administrativo só precisaram de três páginas para recusar as pretensões da Administração Central do Sistema de Saúde para que fosse negado o acesso ao PÁGINA UM de uma das mais importantes bases de dados de saúde do país, que permite avaliar, de uma forma independente, o desempenho do Serviço Nacional de Saúde e identificar anomalias graves nos hospitais. A luta judicial dura há mais de um ano, entre um “David” e um “Golias” que não se importou, durante o processo, em usar mentiras e argumentos falaciosos. A ACSS começou por alegar a impossibilidade de anonimização de dados, mas quando foi demonstrada a mentira, adiantou que, afinal, o pedido era “manifestamente abusivo” porque demoraria muito tempo a retirar dados nominativos dos registos, apesar de estarmos no século XXI e de um sistema informático fazer essa operação enquanto o diabo esfrega um olho. Esta acção do PÁGINA UM (que só em taxas de justiça já ultrapassou mais de 1.000 euros) foi financiada pelos seus leitores através do FUNDO JURÍDICO. A defesa da ACSS, a cargo da sociedade BAS (que costuma cobrar 60 euros por hora), foi financiada através do Orçamento do Estado.


    Derrota no Tribunal Administrativo de Lisboa. Derrota no Tribunal Central Administrativo Sul. E, mesmo alegando ser “manifestamente abusivo” o pedido de acesso por parte do PÁGINA UM à base de dados anonimizados dos internamentos – que permitirá uma avaliação verdadeiramente independente do desempenho do Serviço Nacional de Saúde ao longo dos últimos anos –, a Administração Central do Sistema de Saúde recebeu terceira derrota, desta vez do Supremo Tribunal Administrativo.

    O Ministério da Saúde, através das entidades tuteladas por Manuel Pizarro, vai ter mesmo de disponibilizar o acesso ao PÁGINA UM da base de dados dos Grupos de Diagnósticos Homogéneos. O acórdão, com data de 1 de Junho, assinada por três conselheiros, com José Veloso como relator, é muito claro e taxativo na análise ao “recurso de revista” apresentado pela ACSS. Em apenas três páginas, os conselheiros do Supremo Tribunal Administrativo decidem “não admitir a revista” das decisões dos outros tribunais.

    Supremo Tribunal Administrativo: em três páginas “concede” terceira derrota ao obscurantismo do Ministério da Saúde.

    “Constatamos desde logo a ‘unanimidade de decisão dos tribunais de instância’, o que não sendo só por si garantia de acerto não deixa de constituir um relevante sinal de bom direito”, salientam os conselheiros do Supremo, acrescentando que “também se constata que tais ‘decisões’ – mormente a consubstanciada no acórdão recorrido – embora abordem matéria de algum melindre, face à dimensão e à relevância dos direitos com que contende, não se mostra, no caso, de tratamento particularmente complexo, e foi apreciada e decidida pelos tribunais de instância de forma suficientemente consistente, e aparentemente correcta, não se vislumbrando nelas a ocorrência de erros manifestos que imponham a revista em nome da clara necessidade de melhor aplicação do direito”.

    Além de tudo isto, seguindo o texto do acórdão exarado pelo conselheiro José Veloso, as alegações da ACSS não imputam qualquer “erro de julgamento de direito”, mas sobretudo “a dificuldade de execução da intimação, mormente no que respeita à concretização dos dados pessoais que devem ser expurgados, facilitando, e esclarecendo, a fase executiva que lhe compete”.

    Mas essa alegada dificuldade – uma completa falácia porque a anonimização de dados, num sistema informático do século XXI, é um procedimento que exige ordens muito simples e seguras –, acrescenta o acórdão do Supremo, concordando com o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, “não deverá ser desvirtuado o reconhecimento do direito na fase declarativa mediante a antecipação das dificuldades da fase executiva.”

    Em suma, a ACSS – que já defendia, em desespero, que o pedido do PÁGINA UM (um órgão de comunicação social, cujo acesso à informação constitui um direito consignado na Constituição da República) deveria ser recusado por ser “manifestamente abusivo” – terá 10 dias para fornecer finalmente o acesso e cópia digital da BD-GDH

    A importância da informação contida nesta base de dados é enorme, podendo revelar mesmo informação com consequências políticas significativas, quer durante a pandemia, quer antes, quer depois.

    Esta base de dados (BD-GDH), gerida sem influência governamental, integra todos os doentes internados nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde, identificando o diagnóstico principal (aquele que, após o estudo do doente, revelou ser o responsável pela sua admissão no hospital), os diagnósticos secundários (todos os restantes diagnósticos associados à condição clínica do doente, podendo gerar a existência de complicações ou de comorbilidades), os procedimentos realizados, destino após a alta (transferido, saído contra parecer médico, falecido) e, no caso de recém-nascidos, o peso à nascença.

    Embora também constem dados de identificação (nome, idade e sexo), o sistema informático possibilita o expurgo dessa informação – neste caso, como se tratam de milhões de registos, basta substituir o nome do doente por um código – a base de dados é perfeitamente anonimizável.

    Em todo o processo judicial, iniciado a 21 de Julho do ano passado, a ACSS – ainda presidida por Victor Herdeiro, um amigo próximo da ex-ministra Marta Temido –, esteve sempre em discussão se a base de dados continha ou não informação nominativa, como defendia o Ministério da Saúde, que é aliás argumento recorrente da estratégia de obscurantismo do Governo em matérias sensíveis politicamente.

    Victor Herdeiro, presidente da Administração Central do Sistema de Saúde (quarto a contar da esquerda, ao lado da ex-ministra da Saúde): há quase um ano a tudo fazer para esconder uma base de dados politicamente sensível. O Supremo Tribunal Administrativo é a terceira instituição judicial a dar razão ao PÁGINA UM sobre o direito de acesso a informação anonimizável.

    No entanto, no caso da BD-GDH, a falácia dos dados nominativos facilmente caiu por terra e nem os diversos magistrados que tiveram o processo de intimação em mãos – desde a primeira juíza do Tribunal Administrativo até aos três conselheiros do Supremo Tribunal Administrativo, passando pelos três conselheiros do Tribunal Central Administrativo Sul – foram insensíveis às alegações capciosas dos advogados da ACSS, pertencentes à sociedade BAS, que chegaram a afirmar ser tecnicamente impossível a anonimização.

    Porém, a mentira tinha a perna curta. A anonimização da BD-GDH é um procedimento corriqueiro e bem conhecido da ACSS, tanto assim que esse expediente administrativo costuma estar expressamente delegado num dos vice-presidentes para conceder acessos a investigadores. Por exemplo, no presente conselho directivo da ACSS, Victor Herdeiro delegou na sua vice-presidente Sandra Brás a competência “para autorizar o fornecimento de dados anonimizados provenientes da Base de Dados Nacional de Grupos de Diagnósticos Homogéneos (BD-GDH)”, através da Deliberação 835/2021 publicado em Diário da República em 9 de Agosto de 2021.

    Na verdade, o receio do Ministério da Saúde passa pela possibilidade de se fazer uma análise independente a uma das bases de dados fundamentais de avaliação do desempenho do Serviço Nacional de Saúde, que permitirá detectar situações anómalas nos hospitais, escondidas aos cidadãos e até aos próprios doentes e familiares.

    a woman laying in a hospital bed with an iv in her hand
    PÁGINA UM quer saber o que se passa nos hospitais públicos. O Ministério da Saúde não quer que o PÁGINA UM tenha acesso a uma base de dados que revela o que se passa nos hospitais públicos.

    Por exemplo, através da BD-GDH conseguir-se-á avaliar, por indicadores de internamento, a evolução de doenças e outras afecções, como enfartes ou tumores, ou mesmo a ocorrência de acidentes ou outras falhas médicas em unidades de saúde, uma vez que se mostra possível comparações cronológicas e por hospital. Conseguir-se-á também, por exemplo, esclarecer afinal se a incidência de internamentos durante a pandemia por covid-19 ou com covid-19, e mesmo a sua prevalência como infecção nosocomial (ou seja, “apanhada” durante um internamento por outra causa). Por isso, esta base de dados é politicamente sensível, mas de fundamental acesso para uma sociedade de princípios democráticos.

    Aliás, no ano passado, antes de o PÁGINA UM ter solicitado acesso à BD-GDH, a informação tratada e acessível no Portal da Transparência do SNS permitira a revelação de um conjunto de situações escamoteadas pelo Ministério da Saúde durante a pandemia. Com efeito, usando a então base de dados da Morbilidade e Mortalidade – uma simplificação da BD-GDH –, o PÁGINA UM revelara que, até Janeiro de 2022, houvera menos 51 mil hospitalizações de crianças durante a pandemia por todas as doenças; apurara que a variante Ómicron tinha indicadores de letalidade inferiores aos da gripe; identificara problemas graves (com aumento de taxas de letalidade mesmo em alas não-covid); determinara que a taxa de mortalidade da covid-19 foi evoluindo ao longo da pandemia e em função dos hospitais, sendo 30% superior à das doenças respiratórias; desmistificara a alegada elevada pressão durante a pandemia, até porque houve menos 280 mil doentes por outras causas não-covid; e também identificara estranhas descidas na mortalidade por cancros e outras doenças, bem como colocara dúvidas sobre a mortalidade por covid-19 nos hospitais.

    brown and white cat on brown wooden shelf

    No decurso dessa investigação, Victor Herdeiro terá ordenado a suspensão da divulgação daquela base de dados, para a “análise interna”, restaurando passado algumas semanas, mas completamente mutilada. Apenas a repôs depois do PÁGINA UM ter decidido, face às evidentes manipulações, solicitar formalmente o acesso à BD-GDH, a base de dados primitiva, que também serve para determinar os financiamentos a receber pelos hospitais públicos.

    Contudo, a prioridade do PÁGINA UM passou a ser o acesso à BD-GDH por ser uma base de dados com  elementos em bruto, e que a serem manipulados politicamente já configuram actos criminosos, uma vez que a informação ali constante tem relevância financeira, uma vez que parte do financiamento dos hospitais públicos provêm desses registos.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de 18 processos em curso, o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.

  • Ministro Duarte Cordeiro com entrevista na TSF paga por agência de energia que controla

    Ministro Duarte Cordeiro com entrevista na TSF paga por agência de energia que controla

    A ADENE, uma agência de energia controlada por entidades tuteladas pelo Ministério do Ambiente, pagou à TSF a emissão de 12 podcasts em ajuste directo por 19.995 euros. O contrato foi assinado por Nélson Lage, antigo adjunto de João Galamba na Secretaria de Estado da Energia, e por Bruno Veloso, ex-deputado socialista. O primeiro convidado foi o próprio ministro Duarte Cordeiro, que esta terça-feira teve um “direito de antena” de 35 minutos na TSF para promover o seu trabalho. A entrevista foi conduzida por Paulo Tavares, que apesar de ser apresentado pela ADENE (e por si próprio) como jornalista, não tem carteira válida por ser proprietário de uma empresa de consultoria política e assessoria de imprensa. Este é mais um lamentável episódio das promiscuidades e atropelos legais e deontológicos na imprensa mainstream, sob a cúmplice apatia da ERC, CCPJ e Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.


    “Obrigado por ter aceitado o nosso convite” – foi assim que o entrevistador Paulo Tavares, presumido jornalista, agradeceu ao ministro do Ambiente e da Acção Climática, Duarte Cordeiro, a concessão de uma entrevista à TSF, emitida esta terça-feira, integrada num conjunto de podcasts desta rádio da Global Media, e apresentada como uma parceria com a ADENE.

    Tudo fake. De facto, a entrevista, ou melhor, uma conversa descontraída com palco para exposição das políticas ministeriais, não foi conduzida por um jornalista acreditado. Não houve também propriamente um convite, porque a “parceira” do podcast da TSF, a ADENE é indirectamente tutelada por Duarte Cordeiro. E chamar “parceria” é abusivo, porquanto a relação entre a TSF e a ADENE é similar à aquisição de um serviço de relações públicas: a ADENE apenas deu dinheiro para, em contrapartida, ser-lhe feitos e emitidos os podcasts que desejava.    

    Verdadeiro, assim, apenas uma conversa de promoção das políticas do Ministério do Ambiente e da Acção Climática, mesmo se, aos ouvidos dos ouvintes, possa ter parecido que se tratou de uma entrevista com liberdade editorial – um pleonasmo, porque entrevista pressupõe a existência de liberdade editorial.

    Mas comecemos por saber quem é a ADENE, suposta parceira da TSF.

    Embora seja uma associação – que integra como sócios, por exemplo, a Galp e a EDP –, esta agência de energia é um dos braços da política energética do Governo, tendo como sócios principais a Direcção-Geral de Energia e Geologia (25,1% de participação), o Laboratório Nacional de Energia e Geologia (24,71%), a Agência Portuguesa do Ambiente (11,67%) – todas tuteladas pelo Ministério de Duarte Cordeiro – e as suas contas estão integradas no perímetro do Orçamento do Estado. Ou seja, apenas por entidades por si tuteladas, Duarte Cordeiro “controla” mais de 60%. Acrescentando a participação da Direcção-Geral das Actividades Económicas (11,67%) tem o Governo um controlo acima de 70%.

    photo of truss towers

    A ADENE é também responsável pela gestão do Sistema de Certificação Energética dos Edifícios (SCE) e ainda a entidade gestora operacional do Sistema de Gestão dos Consumos Intensivos de Energia. Além disso, “exerce a atividade de Operador Logístico de Mudança de Comercializador no âmbito do Sistema Elétrico Nacional e do Sistema Nacional de Gás”. Esta entidade assegura ainda o apoio operacional à execução do Programa de Eficiência de Recursos na Administração Pública (ECO.AP) para o período até 2030, em articulação com as entidades coordenadoras – a Direcção-Geral de Energia e Geologia e a Agência Portuguesa do Ambiente – organismos tutelados por Duarte Cordeiro.

    A ADENE assegura ainda a gestão da Academia ADENE, que “promove formação especializada na certificação energética de edifícios e reforço de competências nos domínios da eficiência energética, das energias renováveis, da eficiência hídrica e da mobilidade eficiente”.

    Mas, na verdade, aquilo que poderá ter parecido, aos ouvintes, um conteúdo editorial independente, até porque a ADENE refere ser apresentado por um jornalista, é afinal mais um programa de conteúdos pagos.

    Nélson Lage, presidente da ADENE, foi adjunto de João Galamba, quando o actual ministro das Infraestruturas era secretário de Estado da Energia. Transitou para a agência de energia, nomeado pela tutela, em Agosto de 2020.

    Com efeito, em 18 de Abril, o actual presidente da ADENE, Nelson Lage – licenciado em Ciências Políticas e antigo adjunto de João Galamba, na secretaria de Estado da Energia – e o seu vice Bruno Veloso – ex-deputado socialista – assinaram um contrato com Marco Galinha, administrador da Global Media, no valor de 19.995 euros para a “aquisição de serviços associados ao desenvolvimento, produção e dinamização do ‘Podcast ADENE, Toda a Energia”. Acrescente-se que o valor de 19.995 euros não é um acaso: a partir de 20.000 euros os contratos deste género não podem ser feitos por ajuste directo.

    Apesar do caderno de encargos não constar, como deveria, no Portal Base, em comunicado ontem divulgado a ADENE refere que serão transmitidas “12 emissões, cada uma com cerca de 15 minutos”, sob o comando do “jornalista Paulo Tavares”. Ou seja, 1.666 euros pagos por cada episódio.

    Nesse comunicado era logo transmitido que o ministro Duarte Cordeiro seria o primeiro participante, no qual se abordaria “o significado da Política Energética, as suas diversas dimensões e a importância para o desenvolvimento do país”, acrescentando-se ainda que “ser[ia] explicado como os cidadãos podem contribuir para o sucesso e implementação da política energética.​” O episódio foi, efectivamente já emitido ontem, tendo o ministro um bónus: a conversa ocupou um espaço de antena de 35 minutos e 34 segundos.

    Duarte Cordeiro é “reincidente” ao beneficiar de cobertura mediática favorável em eventos que, afinal, envolvem prestação de serviços.

    Além do pagamento de quase 20 mil euros por podcasts financiados por uma entidade associada ao Ministério do Ambiente, a entrevista – e depreende-se que a totalidade dos outros episódios – foi assumida por alguém que, na verdade, já não é jornalista, embora publicamente usurpe essas funções.

    Com efeito, apesar da ADENE identificar Paulo Tavares como jornalista – e o próprio também o fazer na rede LinkedIN –, o entrevistador deste podcast não tem carteira profissional activa, tanto mais que exerce agora funções como consultor de comunicação, actividade incompatível de acordo com o Estatuto do Jornalista.

    Apesar disso, Paulo Tavares continua a manter-se ligado à comunicação social de uma forma ambígua (assumindo-se como jornalista), através da sua empresa unipessoal, a PTS (iniciais de Paulo Tavares Sardinha), constituída em Dezembro do ano passado para a “prestação de serviços de consultoria política e assessoria de imprensa, e de consultoria editorial”, bem como “produção, gestão e apresentação de eventos” e ainda “produção e realização de programas de rádio e televisão” e ainda “edição de revistas e outras publicações não periódicas”.

    Paulo Tavares conduziu “entrevista” ao ministro do Ambiente no podcast pago pela ADENE. Apesar de se apresentar como jornalista, não tem carteira válida por ser proprietário de empresa de comunicação, mas continua com ligações ambíguas com a Global Media.

    No ano passado, Paulo Tavares – que foi efectivamente jornalista na TSF entre 1993 e 2016 e, mais tarde, director-adjunto do Diário de Notícias, entre 2016 e 2018 – chegou a exercer uma função ambígua (e inexistente) num evento pago (MobiSummit) por uma empresa municipal de Cascais à Global Media: “curador editorial”, ou seja, responsável pela cobertura mediática pelos órgãos de comunicação social do grupo de Marco Galinha.

    Esta situação ilegal não teve qualquer intervenção conhecida da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.

    Ouvindo a “entrevista” a Duarte Cordeiro, ressalta logo, pelas questões, a abertura de caminho para que o ministro do Ambiente pudesse publicitar e promover, sem quaisquer perguntas incómodas, as políticas em curso.

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    Aliás, não é a primeira vez que Duarte Cordeiro beneficia de entrevistas ou notícias feitas no âmbito de alegadas parcerias de entidades associadas ao Ministério do Ambiente com órgãos de comunicação social, mas que são, na verdade, prestação de serviços envolvendo publicidade travestida de conteúdos noticiosos.

    Em Maio do ano passado, o PÁGINA UM relatou que o Instituto da Conservação da Natureza pagou 19.500 euros para a cobertura de um evento, tendo uma notícia escrita por um jornalista com carteira profissional sido colocada numa ambígua secção (Projetos Expresso), onde empresas públicas e privadas adquirem “serviços de jornalismo”.  

    Uma semana após o primeiro evento, o ministro teve direito a uma entrevista descontraída por três jornalistas do Expresso, onde até posou, sorridente, sentado na escadaria do edifício da Rua do Século.

    Também no MobiSummit, em Setembro do ano passado, Duarte Cordeiro esteve envolto em polémica por recusar prestar declarações a determinados órgãos de comunicação social alegando ter exclusivo com os media partner do evento, os três periódicos do grupo empresarial da Global Media: Diário de Notícias, Jornal de Notícias e Dinheiro Vivo.

    Entidade Reguladora para a Comunicação Social, Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas continuam a “fechar os olhos” a sistemáticas violações da Lei da Imprensa e do Estatuto do Jornalista.

    Também nestes casos não houve intervenção conhecida da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, apesar das evidentes violações da Lei da Imprensa e do Estatuto do Jornalista.

    O PÁGINA UM contactou o gabinete de Duarte Cordeiro questionando se o ministro do Ambiente “já concedeu outras entrevistas pagas a outros órgãos de comunicação social”, e se sim a quais, e também se considerava “esta prática aceitável, ou seja, financiar podcasts ou outros eventos através de entidades públicas tendo como contrapartida entrevistas ou artigos noticiosos favoráveis”. Não obteve ainda resposta.

  • Jornal Público montou um “pronto-a-vestir” para notícias de ambiente

    Jornal Público montou um “pronto-a-vestir” para notícias de ambiente

    Em Abril do ano passado, o Público anunciou uma forte aposta nos temas ambientais, destacando seis jornalistas, numa equipa de 10 pessoas, supervisionados por duas editoras de Ciência, e através de um modelo assente em parcerias ao estilo de mecenato. Assim nascia o Azul. Mas o único contrato que, entretanto, veio a público com um dos parceiros iniciais (Biopollis) é afinal uma prestação de serviços, envolvendo 90 mil euros em seis meses. Entretanto, na semana passada, o Público alargou os serviços do Azul: vai fabricar conteúdos editoriais para organismos estatais. A Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N) é o primeiro cliente e vai pagar 31 mil euros. E ainda trata o Público como “prestador de serviços”, exigindo prévia revisão dos podcasts a produzir.


    Azul – assim se chama o projecto editorial do Público apresentado, em Abril do ano passado, como um modelo de jornalismo independente dedicado em exclusivo ao Ambiente.

    Considerando “a crise climática como a grande causa política das novas gerações”, na verdade o Azul também mostra uma outra crise: a do jornalismo a transformar-se numa plataforma de conteúdos prêt-à-porter, onde se mercadejam “conteúdos comerciais” como informação, e onde até institutos públicos, como a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N), podem garantir, através de pagamentos, a execução de conteúdos controlados com prévia validação.

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    Desde a sua fundação, integrado na edição digital do Público, os responsáveis do Azul diziam, no respectivo estatuto editorial, ser um projecto de jornalismo de causas ambientais – com a biodiversidade, a sustentabilidade e a crise climática como bandeiras –, e que, estando aberto à sociedade civil, contava “com o apoio de parceiros comprometidos com agenda do ambiente para financiar a sua equipa e a sua operação”.

    Na linha da frente, como parceiros, foram então destacadas quatro entidades: a Fundação Calouste Gulbenkian, a Biopolis – um consórcio da Universidade do Porto, da Porto Business School e da Universidade francesa de Montpellier –, a Lipor – a empresa pública de tratamento de resíduos do Grande Porto, cuja central de incineração é um dos focos mais importantes de emissão de dioxinas em Portugal – e a Sociedade Ponto Verde – uma das empresas gestoras de resíduos de embalagem.

    Para garantir a execução do Azul, a direcção editorial do Público – então comandada por Manuel Carvalho – destacou, além de duas experientes jornalistas da área da Ciência, como editoras (Teresa Firmino e Andrea Cunha Freitas), uma equipa de 10 pessoas, das quais seis jornalistas, o que implicaria a impossibilidade de elaboração de conteúdos comerciais ou a subordinação a entidade externas.

    Porém, apesar de o Público ter garantido que o Azul seguiria “um modelo de cooperação e mecenato cada vez mais frequente em projectos jornalísticos na Europa e nos Estados Unidos”, e que “os parceiros e o jornal reconhecem que uma condição crítica para o sucesso” deste projecto editorial “passa[ria] pela transparência e pelo respeito integral das regras profissionais e deontológicas do jornalismo consagradas na lei”, a realidade mostra-se bem diferente.

    Com efeito, embora ainda sejam desconhecidos os protocolos com três dos alegados mecenas conhecidos do Azul – apesar de solicitados pelo PÁGINA UM à direcção editorial do Público –, sabe-se agora que a Biopolis fez afinal um contrato de prestação de serviços com a administração do jornal, pelo menos no período compreendido entre Março e Agosto deste ano.

    Assinado nos primeiros dias de Março passado, este contrato estabelece a entrega pela Biopolis de 90 mil euros, mais IVA, a troco da “aquisição de serviços de divulgação e promoção da cultura científica, através da promoção de conteúdos subordinados aos temas da biosfera, sustentabilidade e crise ambiental”.

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    A questão polémica nem estará tanto na imposição – como “obrigações gerais do Público”, de acordo com a cláusula 4º do contrato – de o jornal, perante o parceiro (uma entidade externa à linha editorial) ter de identificar temas e elaborar artigos noticiosos temáticos.

    Na verdade, o contrato transcende a Lei da Imprensa – o próprio Estatuto do Jornalista – porque considera, como obrigação, “a publicação de 26 (vinte e seis) artigos editoriais, nos termos e condições definidos no Anexo I ao Caderno de Encargos [que não consta no Portal Base nem foi disponibilizado pelo Público]”.

    O articulado desta obrigação é, aliás, muito sui generis, pois acrescenta que os 26 artigos obrigatórios, devem resultar “de uma escolha independente e sem qualquer condicionalismo ou ingerência por parte da Biopolis”, mas acrescenta a seguir que essa escolha tem de ser feita “entre os projectos científicos disponibilizados por esta [Biopolis], a fim de lhes ser dado o tratamento e enquadramento jornalístico necessário para posterior divulgação ao público” Ou seja, se a Biopolis indicar ao Público apenas 26 temas para artigos, o jornal assume que a sua escolha é completamente independente.

    Mesmo que um editor do Azul até considere que todos os temas propostos pela Biopolis não têm interesse jornalístico, e que seria mais interessante que os jornalistas dedicassem tempo e recursos a outros assuntos, o Público tem sempre a obrigação de pegar em 26 temas indicados pelo consórcio universitário.

    Saliente-se que um dos critérios das avaliações de projectos de investigação nas universidade é o impacte mediático e social. Portanto, a independência editorial do Azul logo aqui aparenta ser uma miragem.

    O contrato ainda acrescenta que os textos publicados no âmbito deste contrato terão como referência o serem “promovidos pela Biopolis”, mas também aqui se usa uma falácia: um pagamento sob a forma de contrato, estipulando um número pré-definido de artigos, jamais pode ser rotulado como conteúdo “promovido” ou “patrocinado”. E, se assim fosse, existem fortes dúvidas de legalidade sobre se poderá ser escrito e assinado por um jornalista, uma vez que lhe estar vedado por lei a possibilidade de contribuir para a execução de contratos comerciais.

    Além disso, o contrato da Biopolis estabelece o cumprimento de prazos – ou seja, se o consórcio universitário desejar que saia publicado determinado artigo em certo dia, tal terá de se verificar – e também a obrigação de o Público “prestar as informações e esclarecimentos solicitados pela Biopolis sempre que esta assim o requeira”. Em suma, fica assumida uma linha aberta entre um jornal e quem lhe paga serviços.

    Na semana passada, quando contactada pelo PÁGINA UM, a direcção editorial do Público – então ainda liderada por Manuel Carvalho – garantiu, apesar do exposto, a independência do Azul, acrescentando ainda que a Biopolis é uma rede de cientistas, e que “em causa não está uma empresa vocacionada para finalidades comerciais”. Em todo o caso, saliente-se que a Universidade de Montpellier está associada à Agência Nuclear de Energia – ligada à OCDE – e à Agência Internacional de Energia Atómica, numa altura em que está em crescendo o lobby que apresenta a energia nuclear como “energia limpa” numa perspectiva de descarbonização da Economia.

    Manuel Carvalho assegurou também que “nenhum dos outros contratos” com os outros parceiros “incluem qualquer tipo de obrigação”, embora o PÁGINA UM não tenha conseguido, até agora, ter acesso nem constem no site do Azul.

    David Pontes, director do Público desde 1 de Junho deste ano.

    Mas se este contrato com a Biopolis já é polémico, pior ainda é aquele assinado no passado dia 25 de Maio com a CCDR-N, e detectado na passada sexta-feira pelo PÁGINA UM no Portal Base. Além de ser uma “parceria” com um instituto público sob administração directa do Estado – tutelado pelo Ministério da Coesão Territorial em coordenação com o Ministério da Modernização do Estado –, as cláusulas constantes do caderno de encargos constituem, sem margem para eufemismos, um despudorado atropelo às elementares regras deontológicas e de independência jornalística.

    De facto, a troco de 31.000 euros pagos pela CCDR-N no prazo de 60 dias, o Público obriga-se, de acordo com o caderno de encargos, a “produzir uma série de conteúdos editoriais [leia-se, conteúdos jornalísticos e feitos por jornalistas] relativos à temática do crescimento azul do Programa Espaço Atlântico”, de os publicar “nos websites Azul e Publico.pt e no podcast Azul”, mas com uma condição especial: o Público tem de proceder à entrega prévia dos conteúdos para a “respectiva validação” pela CCDR-N.

    Aliás, na cláusula 5ª do caderno de encargos, a CCDR-N trata o Público como se fosse um mero departamento burocrático de comunicação, uma vez que exige, como “forma de prestação do serviço”, que “para o acompanhamento da execução do contrato, o Prestador de Serviços [o Público] fica obrigado a manter, sempre que solicitado, reuniões de coordenação com os representantes da Entidade Adjudicante [CCDR-N], das quais deve ser lavrada acta a assinar por todos os intervenientes da reunião”.

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    Isto para além de o Público ficar “também obrigado a apresentar” à CCDR-N, “sempre que solicitado, um relatório com a evolução de todas as operações objecto dos serviços e com o cumprimento de todas as obrigações emergentes do contrato”. E até há a nota de que todos os relatórios, registos, comunicações, actas e demais documentos “devem ser integralmente redigidos em português”.

    Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero – que integra o conselho consultivo do Azul, e que, no ano passado, tinha elogiado a independência do projecto do Público, afirmando ser este factor “um elemento a valorizar” – diz-se surpreendido com este tipo de contratos. “Levanta-me dúvidas ver a existência de contrapartidas”, afirma este professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, para quem “se mostra fundamental haver uma clarificação”.

    Por sua vez, Luís Simões, presidente do Sindicato dos Jornalistas, mostra-se estupefacto tanto com a tipologia dos contratos como com os termos usados. “A nossa prestação, como jornalistas, é para os nossos leitores, e não pode ser para entidades externas, através de prestação de serviços”, diz, acrescentando que “o mecenato é um instrumento fundamental no jornalismo, mas não pode é surgir depois sob a forma de contratos em que se exigem contrapartidas”. Para Luís Simões “há uma necessidade de reflexão sobre este tipo de contratos”.

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    O PÁGINA UM tentou, especificamente sobre o contrato do Público com a CCDR-N, ouvir David Pontes, o novo director do jornal do Grupo Sonae, desde o início do presente mês, mas não obteve resposta.

    Também se expôs à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) os contratos assinados pelo Público, no âmbito do projecto editorial Azul, para obtenção de um comentário, mas apenas foi acusada a “boa recepção da sua mensagem”, com a promessa de ser dado “seguimento coma brevidade possível.”

    Recorde-se que em Maio do ano passado, o PÁGINA UM compilou 56 contratos com sinais de promiscuidade e ilegalidades assinados entre grupos de media e entidades públicas mas não existe, até agora, conhecimento da conclusão de diligências.


    Esta notícia foi objecto de um direito de resposta publicado a 24 de Outubro de 2023 por determinação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, cujo texto pode ser lido aqui.


  • Carlos Moedas paga, através da Gebalis, conversa sobre Programa Especial de Realojamento

    Carlos Moedas paga, através da Gebalis, conversa sobre Programa Especial de Realojamento

    Por ajuste directo, a Gebalis pagou 19 mil euros por 12 episódios de um podcast da Rádio Observador. Nas conversas, cuja difusão começa está sexta-feira, Carlos Moedas é o primeiro convidado, e para ser ouvido pelo anfitrião Paulo Ferreira, antigo jornalista e actual comentador e colunista, a empresa municipal de Lisboa responsável pelos bairros sociais desembolsou 1.583 euros por cada episódio. A vereadora da Habitação, Filipa Roseta, e o próprio presidente da Gebalis também já garantiram um lugar para serem ouvidos. Apesar de ser uma evidente prestação de serviços, com contrato no Portal Base, o podcast é apresentado como uma parceria.


    Carlos Moedas será amanhã o primeiro convidado de um podcast comemorativo dos 30 anos do Programa Especial de Realojamento (PER), anunciou esta semana o Observador. O actual presidente da autarquia de Lisboa estreará as conversas conduzidas pelo radialista, comentador e ex-jornalista Paulo Ferreira, mas, por certo, não se abordará a transferência de 19.000 euros da empresa municipal Gebalis para o Observador como contrapartida pela realização de 12 podcasts temáticos, que contará ainda com a presença de antigos e actuais responsáveis políticos da edilidade.

    Com efeito, apesar de a Rádio Observador anunciar que o novo podcast é uma “parceria com a Gebalis”, na verdade trata-se de um simples contrato de prestação de serviços, similar à compra de uma refeição num restaurante: em troca de um prato de lagosta, o cliente paga 100 euros. Neste caso, a “lagosta” são os 12 episódios do podcast, e o pagamento não é de 100 euros, mas sim 19.000 euros. Por ajuste directo, assinado em 23 de março passado.

    Imagem de divulgação do podcast com foto da conversa entre Carlos Moedas e o comentador Paulo Ferreira. Cada episódio custou 1.583 euros à empresa municipal Gebalis.

    Nas cláusulas do contrato salienta-se que “o contrato tem por objecto a produção, promoção e difusão do podcast que contará as histórias e testemunhos de todos os que fazem parte do PER, desde moradores, representantes da Gebalis e figuras de relevo que potenciaram o PER, de acordo com o estipulado no caderno de encargos”.

    Porém, no Portal Base não consta o caderno de encargos – não cumprindo assim com as determinações legais –, embora a empresa municipal lisboeta responsável pela habitação social tenha indicado parte dos convidados dos 12 episódios do podcast.

    Além da conversa com Carlos Moedas, já gravada, pelos episódios do podcast – ao custo de 1.583 euros cada – passarão ainda a vereadora da Habitação, Filipa Roseta, o antigo presidente da autarquia alfacinha, João Soares, e o próprio presidente da Gebalis, Fernando Angleu Teixeira, o homem que pagou a conta e que fechará o ciclo de conversas pagas.

    Fernando Angleu Teixeira, presidente da Gebalis. Multiplica-se o recurso a supostas parcerias, que são apenas contratos de prestação de serviços que incluem entrevistas e cobertura noticiosa de eventos.

    O contrato entre o Observador e a Gebalis foi, porém, assinado por um vogal da empresa municipal. Por parte do Observador, assinaram, como administradores, Rui Ramos e José Manuel Fernandes. O antigo director do Público surge agora na ficha técnica do Observador como publisher – uma designação não reconhecida pela Lei da Imprensa – e apresenta-se ainda como jornalista, apesar de não ter a carteira profissional activa, daí não existir qualquer incompatibilidade por assinar contratos comerciais, ao contrário do que se confirmou recentemente com Domingos de Andrade.

    Em todo o caso, José Manuel Fernandes tem sido o rosto principal da campanha do Observador em prol do apoio ao jornalismo independente, tendo como mote a recusa deste jornal de receber, há três anos, ajuda directa do Estado, algo considerado pelo publisher, no sábado passado, como “um momento de reafirmação do nosso compromisso com os leitores, da nossa determinação de permanecermos um jornal independente, um momento que também evidenciou o inquebrantável apoio da nossa comunidade de leitores e assinantes”.

    Saliente-se que a produção de podcasts – que é uma plataforma ambígua de informação – pelo Observador, geralmente apresentados como “parcerias” (leia-se, contratos de prestação de serviços) já se revestiu de outras formas pouco ortodoxas de financiamento. Por exemplo, em 2021, a farmacêutica Gilead, além dos encargos de produção e difusão, até pagou a participação de dois médicos (Fernando Maltez e Teresa Castelo Branco) pelas conversas.

    José Manuel Fernandes, publisher do Observador, assume-se como jornalista, mas está sem carteira profissional activa. Só assim a sua participação na assinatura do contrato entre Observador e Gebalis não viola o Estatuto do Jornalista.

    Apesar dessa prestação de serviços, Fernando Maltez, presente como presidente de Doenças Infecciosas e Microbiologia Clínica, chegou a agradecer por duas vezes o “convite” – assim como se constata durante a emissão –, mesmo tendo recebido 1.230 euros da farmacêutica por 15 minutos de conversa.  

    Ainda quanto à produção e difusão do podcast sobre os 30 anos do PER, tal insere-se ainda num conjunto de outros eventos, cobertos pelo Observador, um dos quais foi a exposição patente no Palácio Pimenta sobre políticas de habitação em Lisboa desde a Monarquia à Democracia.

  • Fomos ver se o Benfica faz mesmo o PIB crescer… e acabámos afinal todos envergonhados (com o nosso regime)

    Fomos ver se o Benfica faz mesmo o PIB crescer… e acabámos afinal todos envergonhados (com o nosso regime)


    Portugal é um país de mitos, não fosse ter mais de oito séculos. Ainda mais que, por mares nunca dantes navegados, andou a tentar convencer meio-Mundo de que éramos fantásticos, e com essas mentiras, muitos convencemos, e até nos convencemos, a nós próprios, até que, de facto, de tempos em tempos, até fomos fantásticos.

    Por exemplo, o mito da saudade, estado de espíritos que os portugueses inculcaram ser apenas deles. Há o mito de D. Sebastião, desaparecido em combate em Alcácer-Quibir, mas que, Encoberto, surgiria por fim, numa madrugada de nevoeiros, para tornar Portugal no V Império, sucessor dos antigos impérios da Babilónia, da Pérsia, da Grécia e de Roma. Ou outro qualquer rei, enfim.  

    Há o mito que somos um país de brandos costumes, mas matámos e esquartejámos como os demais. E parece que ainda sucede o mesmo, agora, por vezes. Há ainda o mito de de sermos um país de vocação florestal, mas Portugal andou de charneca em charneca durante séculos, só viu crescer floresta desde o final da Monarquia até ao final dos anos 70 do século passado, e tem a partir daí se transformado de pira de lenha em pira de lenha…

    E depois, por fim, temos o mito de o Benfica, quando campeão de futebol, catapultar a nossa Economia, arremessar pelos ares o nosso Produto Interno Bruto (PIB).

    Bem sabe o PÁGINA UM que, antes de nós, outros almejaram escrutinar esse mito. Por exemplo, em 2019 o Expresso e o Jornal Económico abordaram o mito, e consideraram ser suficiente começar a análise desde o ano de 1994, a partir dos dados do Instituto Nacional de Estatística e do Pordata.

    Até podendo haver também o mito de que a imprensa mainstream chega onde os jornais independentes de pequena dimensão nem sonham, deixemos isto para outras núpcias. Foquemo-nos apenas num facto. Pode começar-se por uma série mais longa: mesmo mais longa do que a usada em 2014 pelo site Poupar Melhor – que fez a análise ao mito do Benfica vs. PIB, usando o Banco Mundial.

    Ora, pode e deve-se ir mais longe, porque, na verdade, existem dados mais antigos, pelo menos nos relatórios das séries longas do INE e do Banco de Portugal. Com mais tempo, talvez até fosse possível desencantar, dos calhamaços do INE, este indicador económico desde a época de 1934-1935, se considerássemos a prova equivalente à actual Primeira Liga.

    E, assim fizemos, “confrontámos” o desempenho do PIB do ano económico – em termos percentuais, calculado a nível per capita, para eliminar variações demográficas – com o vencedor do campeonato à última jornada em cada Primavera.

    Confessemos: talvez Expresso e o Jornal Económico não tenham desejado analisar uma série mais longa, entrando pelo Estado Novo adentro e atravessando os primeiros anos da Democracia por laivos de pudor: é que uma coisa é brincar ao mito das vitórias do Benfica servirem para a Economia celebrar, outra é envergonhar o nosso regime com o do Salazar ou do Marcelo Caetano.

    Na verdade, esqueçam quem foi campeão a partir de 1954 até ao fim do Estado Novo: aquilo que mais ressalta nesses 20 anos é o triste facto de nos tempos de Salazar e Marcelo, o Caetano, não ter ocorrido um miserável ano em recessão. Todos os anos tiveram crescimentos positivos. E bem positivos, hélas. Ao invés, em 50 anos de Democracia – e contando ser positivo aquele que está curso – já contamos com 11 anos em recessão: logo os três primeiros em Democracia (1974, 1975 e 1976), 1984, 1993, 2003, 2009, mais o triénio 2011-2013 e 2020.

    Para piorar – ou melhor, para envergonhar o nosso actual regime (a Democracia, que deveria dar uma “cabazada” ao raio da Ditadura), ou melhor dizendo, os políticos que todos os anos nos pespegam cravos na lapela sem assumirem que Liberdade deveria conjugar com desenvolvimento decente –, também fomos analisar, já agora, quais foram os anos do top 10 económicos.

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    Enfim, os quatro primeiros foram todos no Estado Novo: 1965 e 1972 (+9,9%, cada), 1962 (+9,4%), 1970 (+8,3%); e só depois surgem dois anos de Democracia: 1987 e 2022 (ambos com 6,8%, sendo que este sucedeu ao ano de pior recessão, o de 2021). Antes dos anos de 1988 (+6,5), 1990 (6,4%) e 1989 (+5,9%), ainda se intromete neste top 10 mais um ano de Ditadura: 1971 (+6,7%).

    Escusado se mostraria dizer, por já se ter dito não haver anos de recessão entre 1954 e 1973, que todos os anos de recessão foram em Democracia.

    Mas esqueçamos – quer dizer, não deveríamos esquecer; pelo contrário, sem qualquer espécie de saudosismo pelos tempos da Outra Senhora, deveríamos questionar mais os políticos sobre tão fraca performance em Liberdade – os regimes e foquemo-nos no essencial (enfim!) desta análise.

    Convém salientar que, como será do conhecimento quase geral, sobretudo o Benfica dominou o futebol na parte final do Estado Novo: nos 20 últimos anos (épocas futebolísticas), as águias – que venceram até duas Taças dos Campeões Europeus e perderam outras tantas finais – conquistaram 13 campeonatos nacionais, restando cinco para o Sporting e dois para o Porto.

    Crescimento anual (%) do PIB per capita desde 1954 (até 2022, assumindo-se que 2023 será positivo) com indicação do clube que venceu a época no ano. Vermelho: Benfica; Azul: Porto; Verde: Sporting: Negro: Boavista. Fonte: Liga Portuguesa de Futebol Profissional (vencedores dos campeonatos); INE e Banco de Portugal (dados do PIB).

    Em todo o caso, em termos relativos, o Sporting ”conseguiu” dois campeonatos em dois dos melhores anos de crescimento do PIB (1962, com 9,4%; e 8,3%, em 1970). Já o Benfica, teve um “desempenho” muito diversificado: tanto ganhou campeonatos em anos de extraordinário crescimento do PIB (1965 e 1972, ambos com 9,9%) como venceu, no período em análise, naquele que foi o ano de menor desempenho do Estado Novo (1963, com apenas +1,1%).

    Quanto ao Porto, no período do Estado Novo, as suas vitórias ocorreram num clima económico sem grande fulgor: em 1956, com o PIB a crescer 3,4%, e em 1959, com 2,9%.

    Como também se sabe, o Porto acabou a dominar o futebol português a partir de finais dos anos 70. Entre 1978 e 2013, o clube nortenho venceu 22 campeonatos em 36 possíveis, restando nove ao Benfica, quatro ao Sporting e um ao Boavista. Depois de 2013, o Benfica tem sobressaído novamente, com seis campeonatos em 10 possíveis.

    Obviamente que seria ridículo associar as vitórias do Porto ao fulgor económico do país, mas pode-se sempre dizer que o clube de Pinto da Costa – na verdade, o actual presidente dirige os seus destinos desde 1982 – acaba associado às crises.

    As estatísticas são o que são, e contra esses “factos”, enfim, só se podem apresentar – e relativizar, claro.

    De facto, se considerarmos o período da Democracia, o Porto venceu 18 campeonatos com o PIB a crescer nesse ano, e ergueu a taça sete vezes com o PIB a decrescer. Contas feitas, 72% das vitórias em ano de, digamos assim, vacas a engordar.

    Este desempenho confronta com desempenhos bem mais favoráveis – e coincidentemente semelhantes – do Benfica e do Sporting, pois ambos conquistaram 83% dos seus campeonatos em regime democrático com o PIB a subir. No caso do clube da Luz foram 15 campeonatos em “alta” económica (assumindo já o PIB positivo em 2023) e apenas três em anos de recessão, enquanto os sportinguistas apenas tiveram um dos seus cinco campeonatos em regime democrático em ano de descida do PIB. Já agora, no ano em que o Boavista foi campeão, em 2001, o PIB aumentou em 1,2% – pouco, mas positivo.

    Se considerarmos todo o período em análise (desde 1954), verifica-se que, qualquer que seja a causa, incluindo ser um acaso, o ano económico tem uma “probabilidade” de ser menos favorável quando o Porto é campeão. De facto, em 27 campeonatos conquistados neste período (70 anos), sete ocorreram em recessão, ou seja, 16%.

    Quanto ao Benfica, em 28 campeonatos apenas registou três com queda do PIB,o que representa praticamente 10%.

    Analisando um passado mais recente, observa-se também que os anos económicos melhorzinhos estão mais associados ao Benfica campeão: os últimos sete campeonatos vitoriosos do clube da Luz (2010, 2014, 2015, 2016, 2017, 2019 e 2023) coincidiram com anos de PIB positivo. Ao invés, nos últimos sete campeonatos do Porto (2009, 2011, 2012, 2013, 2018, 2020 e 2022), apenas dois (2018 e 2022) coincidiram com anos de PIB a crescer.

    Isto poderia significar que, então sim, o Benfica faz crescer mais o PIB do que o Porto. Se assim fosse – e se houvesse uma correlação sem ser espúria –, então melhor ainda seria o Sporting ser mais vezes campeão, porque em 11 campeonatos ganhos desde 1954, apenas em um ano houve recessão: por ironia, no primeiro ano da nossa Democracia, em 1974.


    N.D. Como salientado desde a fundação do PÁGINA UM, constando no Código de Transparência, assumo-me como adepto e sócio do Benfica, desde 2000. Nunca essa apetência clubística “cegou” a minha objectividade, e “pelo-me” pelo dia em que me apresentem provas concretas para poder escrever algo desfavorável (desde que verídico, obviamente) para o clube ou a administração da SAD. Pedro Almeida Vieira

  • Parque Escolar: contas aprovadas pela tutela a “toque de caixa”. Dívida subiu para 1.213 milhões de euros em 2021

    Parque Escolar: contas aprovadas pela tutela a “toque de caixa”. Dívida subiu para 1.213 milhões de euros em 2021

    Nos últimos quatro anos, a Parque Escolar – escolhida agora para dinamizar a habitação pública – não mostrava contas e nem se incomodava com críticas dos partidos da oposição nem com notícias da imprensa. O PÁGINA UM meteu um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa no passado dia 8. Esta semana, os Ministérios das Finanças e da Educação apressaram-se a aprovar os relatórios de 2019, 2020 e 2021. E prometem para breve o de 2022. Para já, ficou-se a saber que a dívida total ascende aos 1.213 milhões de euros, e há ainda um conjunto de anomalias contabilísticas detectadas pelo auditor.


    A Parque Escolar – a empresa estatal que, em breve, ficará com a função de construção pública, mudando mesmo de denominação – colocou esta tarde os relatórios e contas de 2019, 2020 e 2021 no seu site. Esta decisão vem no seguimento de uma intimação apresentada no mês passado pelo PÁGINA UM no Tribunal Administrativo de Lisboa.

    A administração desta empresa – que passará a denominar-se Construção Pública, tendo o diploma da sua reestruturação sido promulgado pelo Presidente da República na semana passada – remeteu também ao PÁGINA UM os ofícios enviados à tutela com as contas dos exercícios a partir de 2019, para aprovação, mas que estavam “engavetados”.

    De acordo com as datas desses ofícios, agora na posse do PÁGINA UM, o relatório de 2019 estava na posse da Secretaria de Estado do Tesouro e do Ministério da Educação desde Novembro de 2020, o relatório de 2020 desde Maio de 2021 e o relatório de 2021 desde Maio de 2022.

    No que diz respeito ao relatório e contas do ano passado, em ofício enviado esta tarde ao PÁGINA UM, a secretária-geral da Parque Escolar, Alexandra Viana Ribeiro, diz que “ainda não se encontra concluído, designadamente por aguardar o parecer do conselho fiscal (…) e a respetiva aprovação pelas tutelas”, prometendo o seu envio posteriormente.

    Este é, para já, o corolário de mais uma vitória do PÁGINA UM em prol da transparência da Administração Pública, uma vez que a Parque Escolar, que passará a assumir funções de promoção de habitação pública, tinha o ano de 2018 como o último com contas aprovadas e disponibilizadas.

    João Costa, ministro da Educação, em Maio do ano passado prometeu que divulgaria as contas de 2019, 2020 e 2021 da Parque Escolar “brevemente”. Só com a intimação do PÁGINA UM se apressou, com Fernando Medina, a aprová-las e divulgar no site da empresa pública.

    E, mesmo assim, este relatório de 2018, bem como os dos anos de 2016 e 2017, apenas foram publicados em Março do ano passado, o que suscitou então questões da Iniciativa Liberal junto do Ministério das Finanças, que tutela a empresa pública. Segundo informações avançadas na altura pelo Jornal de Negócios, a dívida da empresa em 2021 seria de 981,7 milhões de euros.

    Contudo, na verdade, e de acordo com análise rápida do PÁGINA UM, a dívida é bem superior. O passivo corrente – com previsão de pagamento em menos de 12 meses – era então de 151,7 milhões de euros, mas o passivo não corrente ascendia aos 1.061,4 milhões de euros. No total, o passivo total situava-se nos 1.214,1 milhões de euros, um pouco mais de 232 milhões do que o valor apontado pelo Jornal de Negócios.

    O aumento da dívida acaba por relativizar os resultados líquidos positivos, até porque os activos da Parque Escolar beneficiaram bastante pelo aumento de capital estatutário no valor de cerca de 342,5 milhões de euros por incorporação de 138 escolas e por conversão de um empréstimo da Direcção-Geral do Tesouro e Finanças, após dação em cumprimento do Palácio Valadares, no Largo do Carmo, em Lisboa.

    Um dos aspectos mais relevantes dos relatórios e contas, agora disponibilizados e que estará na base do atraso de anos na sua divulgação, prende-se com as reservas feitas pelo auditor das demonstrações financeiras, a cargo da Grant Thornton.

    Por exemplo, no relatório de 2019 – que somente agora vê a luz do dia, após a intervenção do PÁGINA UM –, o auditor critica a forma de cálculos das depreciações das propriedades de investimento (que incluem escolas), que além do mais, em diversas obras em curso, não tiveram ainda os terrenos transmitidos para a empresa pública, nem foram “objecto de avaliação por peritos independentes”.

    Também é considerado que os cerca de 37 milhões de euros de provisões – devidos a processos judiciais em curso – podem não ser suficientes.

    Requerimento do advogado da Parque Escolar onde elenca a cronologia da aprovação das contas pela tutela após a intimação do PÁGINA UM.

    Mais grave ainda é o alerta transmitido pelo auditor de que “na realização de diversos concursos públicos, verificou-se que houve concertação de preços entre as empresas fornecedoras de monoblocos, no que respeita ao preço de transporte, montagem, aluguer e desmontagem dos mesmos, durante as várias fases de realização das obras”.

    A Grant Thornton escreveu então que “esta situação originou gastos adicionais (…), cujo montante total não foi, ainda, possível de quantificar.”

    Outra situação irregular passa-se com o mobiliário escolar e sobretudo com o equipamento informático. O auditor salienta que “não foram objecto de inventariação física”, acrescentando que, desse modo, “não podemos concluir, na presente data, sobre a existência de todos os bens e, consequentemente, do respectivo valor registado no balanço”.

    Os alertas de desconformidades mantiveram-se no relatório de 2020 e 2021, praticamente nos mesmos moldes.

    Saliente-se que depois de se recusar tacitamente a disponibilizar os documentos solicitados, a Parque Escolar acabou por optar por satisfazer o pedido antes de ser obrigado por sentença judicial.

    Em requerimento hoje apresentado no Tribunal Administativo de Lisboa, o advogado da empresa pública diz que “nada disse [ao PÁGINA Um], apenas e só, porque alguns documentos solicitados (…) não estavam finalizados (…), porquanto faltava a aprovação dos relatórios e contas pela tutela para concluir os processos.”

    Na verdade, ao juiz do processo a Parque Escolar admite mesmo que o relatório e contas de 2019 foi apenas aprovado pela tutela na passada segunda-feira, enquanto os relativos a 2020 e 2021 acabaram sendo aprovados hoje, dia 25 de Maio.

    Apesar deste contra-relógio, a Parque Escolar deverá vir a ser condenada pelo tribunal ao pagamento das custas, uma vez que não respondeu favoravelmente antes da entrada da intimação do PÁGINA UM. O montante das custas gastas pelo PÁGINA UM serão aplicadas em similares processos de intimação por não divulgação de documentos públicos, através do seu FUNDO JURÍDICO.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de 18 processos em curso, o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.

  • Quem dá a cara pelo Reignite Freedom, o movimento contra o Clube de Bilderberg?

    Quem dá a cara pelo Reignite Freedom, o movimento contra o Clube de Bilderberg?

    As manifestações globais começam a viralizar, mas também são alvo de ataques na imprensa mainstream, que acusa os seus promotores de serem o “braço” popular de grupos de direita conservadora e mesmo de extrema-direita, congregando também anti-vacinas e teóricos da conspiração. Será assim? O PÁGINA UM apresenta os perfis dos 11 principais promotores do Reignite Freedom, um dos movimentos mais dinâmicos, e que organizou este sábado uma manifestação em Lisboa por causa da reunião do Clube de Bilderberg.


    “We are many, we are united, we are ready” [nós somos muitos, nós estamos unidos; nós estamos prontos] – este é o lema da manifestação de protesto do movimento Reignite Freedom que hoje se realiza em Lisboa, integrado num movimento mais alargado, o Global Walkout, nascido no ano passado protagonizado pela activista australiana Monica Smit.

    Não é um acaso o momento e local desta manifestação na capital portuguesa por parte daqueles que alertam para os perigos da globalização e da concentração de poder em elites políticas e financeiras, e que considerando mesmo que o The Great Reset, defendido em 2020 pelo World Economic Forum, tem propósitos malévolos.

    Hotel Pestana, em Lisboa, onde se reúne este fim-de-semana o Clube de Bildeberg.

    Nos próximos três dias, o Hotel Pestana Palace, em Lisboa, será o palco da reunião anual do Clube de Bilderberg, uma espécie de fórum (mais ou menos) secreto e agendas de similar calibre, e que constitui um alvo sempre apetecível dos movimentos anti-globalização.  

    Embora os objectivos formais do Reignite Freedom sejam apenas ideologicamente anti-globalização – no sentido de considerarem a sua missão como de “reacção global unificada e estratégica contra a agenda globalista, garantindo que mantém a liberdade individual e colectiva”, conforme consta no seu site –, a imprensa mainstream não tem sido favorável às manifestações antiglobalização.

    Na generalidade, surgem coladas às ideologias de extrema-direita, de negacionistas da pandemia e mesmo a teóricos da conspiração. E isto quando não simplesmente ignoradas, com a completa ausência de cobertura.

    Por isso, sobre o movimento Reignite Freedom, o PÁGINA UM decidiu traçar o perfil das 11 personalidades que constituem a sua “equipa de lançamento”, onde desponta como figura maior o advogado John F. Kennedy, durante anos um destacado e reconhecido activista ambiental, e agora candidato nas primárias do Partido Democrata às eleições norte-americanas, mas que caiu em desgraça na imprensa mainstream durante a pandemia.


    ROBERT F. KENNEDY JR

    Sobrinho do antigo presidente norte-americano John F. Kennedy, o agora candidato pelo Partido Democrata às presidenciais norte-americanas de 2024 tem um longo historial como activista ambiental, destacando-se como advogado do poderoso National Resources Defense Council, uma organização não-governamenal ecologista com cerca de 2,5 milhões de membros.

    Defensor da “liberdade de escolha médica”, Robert F. Kennedy fundou a Children’s Health Defense (CHD), uma organização sem fins-lucrativos que se destacou pela contestação ao uso de timesoral (contendo mercúrio) em vacinas por alegadamente estar associado a autismo, doença de Alzheimer e esclerose múltipla, entre outras doenças. Apesar de garantir a segurança dessa substância, as autoridades norte-americanas retiraram o seu uso na generalidade das vacinas. No entanto, estas posições justificaram-lhe o rótulo de anti-vacinas, sobretudo quando colocou questões sobre a segurança das vacinas contra a covid-19.

    Aliás, no passado dia 24 de Março, Kennedy, juntamente com a Children’s Health Defense, avançou com uma “acção legal colectiva” contra o presidente norte-americano Joe Biden, o virologista Anthony Fauci e outros responsáveis de topo da actual Administração, acusando-os de encetar uma “campanha concertada para que as três principais redes sociais nacionais censurassem discurso protegido constitucionalmente”.

    Candidato às primárias do Partido Democrata para as eleições para a Presidência dos Estados Unidos em 2024, Robert Kennedy Jr não tem tido a vida facilitada nas redes sociais: em Agosto do ano passado as suas contas de Instagram e de Facebook foram eliminadas por ter alegadas violações às regras “da política de desinformação” sobre a covid-19.

    Porém, mantém-se bastante activo no Twitter, rede onde conta mais de 1,3 milhões de seguidores.

    Quando o movimento organizador do protesto de sábado foi lançado, o sobrinho do antigo presidente norte-americano John F. Kennedy foi, desde logo, uma das principais figuras a dar a cara pelo projecto, e está prevista a leitura de uma sua mensagem.


    MONICA SMIT

    Líder do movimento “Reignite Freedom”, a activista australiana de 34 anos surge como o rosto mais activo e está presente na manifestação em Lisboa.

    Durante a pandemia de covid-19, perante as duras restrições impostas pelo Governo australiano, Smit fundou a Reignite Democracy Australia (RDA), uma organização que, segundo consta na página oficial, “visa a manutenção da liberdade individual e colectiva”. Entre as suas reivindicações, está a “abolição da censura” e da “tirania médica”.

    A cobertura mediática de Smit não lhe tem sido nada favorável: a propósito de um vídeo que a activista publicou esta semana nas redes sociais, no qual pedia donativos financeiros para a sua associação por estar alegadamente à beira da falência, foi ridicularizada por vários jornais, incluindo o britânico Daily Mail.

    Apelidada habitual e insistentemente como “anti-vacinas”, Monica Smit está já habituada a um tratamento hostil. No Verão de 2021 foi alvo de acusações criminais – que lhe seriam retiradas em Julho do ano passado – por ter promovido manifestações contra o confinamento, e chegou mesmo a ser detida durante 22 dias.

    A activista foi novamente acusada por incumprimento das ordens da autoridade de saúde de Melbourne em 2021, motivo que a levou novamente ao tribunal em Dezembro do ano passado. Smit contra-atacou, dizendo ser sua intenção processar as autoridades pela sua detenção.

    De acordo com a sua página de LinkedIn, e antes de ter fundado a sua organização, Smit trabalhava como jornalista independente, desde Fevereiro de 2018, tendo viajado durante esse período para os Estados Unidos, Canadá, Equador, Honduras e Guatemala.

    Sem qualquer indicação de formação académica nessa rede social, Monica Smit refere experiências profissionais anteriores no ramo imobiliário e de publicidade.


    ROBERT MALONE

    Conhecido virologista e imunologista norte-americano, devido ao seu papel pioneiro no desenvolvimento da tecnologia de mRNA, Robert Malone, agora com 63 anos, foi um dos nomes mais credíveis no mundo da Ciência a criticar a vacinação contra a covid-19.

    A sua posição crítica valeu-lhe, por um lado, o respeito pelos grupos que contestavam aquelas vacinas, mas por outro uma imprensa hostil que se apressou a desvalorizar as suas investigações e a desmentir a ideia, que o próprio proclamava, de ser ele o “inventor das vacinas de mRNA”.

    Em Portugal, jornais como a Visão, o Polígrafo e o Observador publicaram artigos que contradiziam as afirmações de Malone e negavam a suposição de que ele teria sido uma figura central na criação desta nova espécie de vacinas.

    Robert Malone

    Se houve ou não paternidade, certo é que os trabalhos de Robert Malone foram indesmentivelmente uma das primeiras peças do “puzzle” da tecnologia mRNA aplicada nas vacinas contra a covid-19 da Pfizer e da Moderna. Na década de 1990, em conjunto com outros colegas, publicou um artigo que demonstrava como a injecção de RNA nos músculos produzia proteínas.

    No entanto, como reportou o jornal New York Times no ano passado, Malone não foi o único, nem o principal autor do artigo científico. Na verdade, como o PÁGINA UM confirmou, o artigo em causa publicado na Science em 23 de Março de 1990, tem sete autores, sendo que Malone é o segundo, atrás de Jon A. Wolff, um geneticista falecido em Abril de 2020.

    Além disso, embora a descoberta tenha sido cabal para o desenvolvimento das actuais vacinas de mRNA mensageiro, foram ainda necessários “aprimoramentos” ao longo de vários anos, nos quais Robert Malone já não participou.

    Em todo o caso, durante a pandemia, as suas afirmações mais contundentes incidiram sobre os possíveis efeitos secundários da vacinação e à “toxicidade” da proteína spike, à relativização da gravidade da doença e à defesa do uso de ivermectina e hidroxicloroquina como formas de tratamento contra a covid-19.

    Robert Malone, em Lisboa, numa tertúlia em Setembro de 2021, dinamizada pela Cidadania XXI.

    No entanto, embora Malone tenha colaborado, ao longo da vida profissional, com a indústria farmacêutica, e estado até envolvido na pesquisa para a vacina do vírus Ébola e na terapêutica para o Zika, tem sido apelidado pela imprensa mainstream como anti-vacinas. Isto mesmo depois de Malone se ter vacinado em 2021, como assumiu num evento em Lisboa.

    À boleia da covid-19, Robert Malone – que sempre garantiu não pertencer a nenhum partido político – começou a dar entrevistas em canais conservadores, sendo a sua aparição mais polémica ocorrido no conhecido podcast The Joe Rogan Experience, em Dezembro de 2021, episódio que acabaria por ser censurado pelo Youtube.

    Tendo-se tornado num ‘activista’ assumido, soma mais de 300 mil seguidores na plataforma Substack, enquanto no Twitter está próximo de 1,1 milhões de seguidores.


    MIKE YEADON

    Em Março de 2021, a Reuters escreveu um artigo sobre Mike Yeadon intitulado “O ex-cientista da Pfizer que se tornou um herói anti-vacinas”. De facto, quando pesquisamos o seu nome no motor de busca do Google, a primeira página que aparece diz-nos que se trata de um “activista anti-vacinas britânico” e “farmacologista reformado”. Mas será mesmo assim?

    Quando Michael Yeadon se pronunciou publicamente contra as medidas de contenção da pandemia, as suas declarações – na altura extremamente controversas – circularam na internet, dizendo-se que seriam do “vice-presidente da Pfizer”. No entanto, apesar de Yeadon ter, efectivamente, trabalhado durante vários anos naquela farmacêutica alemã, o cargo que alguns internautas lhe atribuíram nunca foi seu. Este cientista foi, na realidade, vice-presidente do departamento de investigação de alergias e doenças respiratórias daquela empresa entre 2006 e 2011.

    Mike Yeadon

    Fora da Pfizer, Michael Yeadon co-fundou e foi presidente da Ziarco, uma empresa de biotecnologia entretanto adquirida em 2017 pela farmacêutica suíça Novartis, num contrato inicialmente fechado por 325 milhões de dólares (cerca de 300 milhões de euros), mas que previa pagamentos suplementares em função de objectivos. O negócio acabou por ser um fiasco para a farmacêutica suíça, com um prejuízo de 485 milhões de dólares assumido em 2020, porque o fármaco desenvolvido pela Ziarco para o tratamento de eczema nunca obteve autorização de comercialização.

    O prestígio de Yeadon foi também diminuindo, nos últimos três anos, por força da “classificação” pela imprensa mainstream de ser ele um “activista anti-vacinas”, após as suas críticas contra as medidas de combate à covid-19.

    Em Outubro de 2020, este cientista chegou a defender que a pandemia no Reino Unido “tinha terminado” e que “não haveria uma segunda vaga de infecções”, pelo que as vacinas seriam desnecessárias. Estas declarações chegaram a ser alvo de uma análise do jornal português Polígrafo em Fevereiro de 2021, que lhe atribuiu a classificação de “pimenta na língua”.

    Além de se pronunciar contra as máscaras e confinamentos, Yeadon pôs também em causa a segurança das vacinas contra a covid-19, alegando que poderiam provocar infertilidade nas mulheres.


    PETER McCULLOUGH

    Cardiologista norte-americano, aos 60 anos Peter McCullough tem um currículo extenso. Formado em 1984 em Ciência pela Universidade de Baylor, uma década depois completou um mestrado em Saúde Pública na Universidade do Michigan, onde estudou Epidemiologia.

    Entre 2010 e 2013, McCullough ocupou cargos executivos no hospital St. John Providence, no Estado do Michigan, e, posteriormente, na especialidade de Medicina Interna do Centro Médico da Universidade de Baylor, no Texas, onde permaneceu até Fevereiro de 2021.

    Depois, exerceu como cardiologista clínico na Heart Place, o maior grupo em prestação de cuidados cardiovasculares no norte do Texas. Desde Agosto passado, ocupa o cargo de director científico da The Wellness Company, sediada em Miami.

    Peter McCullough

    Tal como sucedeu com Robert Malone, devido às suas posições contrárias à gestão da pandemia, o cardiologista teve a sua conta do Twitter suspensa antes da compra por Elon Musk. Com a nova administração da rede social, a sua conta foi reactivada e McCullough tem já mais de 800 mil seguidores.

    McCullough, que tem no seu perfil uma imagem onde se lê “Corageous Discourse [Discurso Corajoso]” não se tem, de facto, coibido, seja em entrevistas, conferências ou nas redes sociais, de manifestar as suas opiniões controversas em relação à vacinação contra a covid-19.

    No início deste ano, esteve no programa (recentemente suspenso) de Tucker Carlson, no canal conservador Fox News, para falar do misterioso aumento de problemas do foro cardíaco entre jovens atletas. Foi, também entrevistado por Joe Rogan para o seu podcast, em Dezembro de 2021, e até pelo polémico Steve Bannon em Julho do ano passado.

    O médico já esteve em Portugal, onde participou no Congresso Internacional sobre Gestão de Pandemias que ocorreu em Fátima em Outubro passado.

    CHRISTINE ANDERSON

    Com 54 anos, a alemã Christine Anderson é eurodeputada desde 2 de Julho de 2019 pela “Alternativa para a Alemanha” (AfD, na sigla em alemão).

    Conotado com o “populismo de extrema-direita”, o partido, do qual Anderson faz parte desde a sua fundação, há 10 anos, segue a linha habitualmente associada a este espectro ideológico: tendencialmente nacionalista, crítico da União Europeia, e apologista de restrições mais apertadas à imigração.

    Em Dezembro de 2021, Anderson foi uma entre seis eurodeputados a sofrerem sanções do Parlamento Europeu (PE), por se ter recusado mostrar o certificado de vacinação contra a covid-19 para entrar na sede desta instituição. A penalização de Anderson não foi, contudo, das mais pesadas: apenas perdeu as regalias de parlamentar por dois dias.

    Christine Anderson

    Outro momento em que a conduta da eurodeputada destoou ocorreu em Novembro do ano passado, quando se recusou a denominar o regime de Vladimir Putin como “terrorista”. A resolução, considerada sobretudo um gesto simbólico, teve a aprovação da esmagadora maioria (um total 494), mas Anderson, ao lado de 57 outros eurodeputados, rejeitou atribuir aquela designação à Rússia, e votou contra. A eurodeputada e mais seis membros do seu partido foram os únicos políticos alemães a assumir esta posição.

    No seu país, Anderson é figura polémica, somando controvérsias e sendo acusada de ser simpatizante do PEGIDA – sigla para “Patriotic Europeans Against the Islamization of the West” –, um movimento político conhecido pela sua hostilidade ao islamismo e à forte rejeição de refugiados e imigrantes.

    Em Fevereiro deste ano, Christine Anderson chegou a ser, de forma indirecta, alvo de um comentário condenatório do primeiro-ministro canadiano Justin Trudeau, que considerou que o Partido Conservador do Canadá “devia explicações” depois de três dos seus membros terem aparecido ao lado da eurodeputada alemã numa fotografia, que se tornaria viral.


    JIMMY LEVY

    Cantor norte-americano, inicialmente de gospel, agora com 25 anos, Jimmy Levy já era um influencer antes da sua participação na 18ª edição do programa American Idol, estreado em Fevereiro de 2020, lhe conferir maior visibilidade.

    Depois da sua breve passagem pelo concurso televisivo, Jimmy Levy lançou duas músicas com uma forte mensagem de contestação, em parceria com o rapper Hi-Rez, intituladas “This is a War” e “Welcome to the Revolution”, esta última com uma evidente mensagem de alerta para a segurança das vacinas contra a covid-19. Juntas, as duas músicas somam mais de seis milhões de visualizações no Youtube.

    Contudo, o Instagram é a rede social onde Levy tem um maior número de seguidores, totalizando mais de um milhão.

    Jimmy Levy

    Nas suas plataformas digitais, o jovem artista partilha frequentemente opiniões de cariz político, tendo já criticado, em várias ocasiões, a vacinação contra a covid-19, bem como outras medidas “progressistas”, como a sexualização das crianças.

    Durante as eleições presidenciais do Brasil no início deste ano, Levy declarou-se um devoto apoiante de Jair Bolsonaro e condenou o tratamento que os manifestantes contra Lula da Silva receberam em Brasília. Na internet, circula uma fotografia sua com um chapéu em que se lê “Lula Ladrão seu lugar é na prisão”.

    O músico chegou a encontrar-se com Bolsonaro, junto do qual tem fotografias e vídeos que partilhou nas redes sociais. A sua voz activa em defesa do antigo presidente brasileiro colocou-o na mira de alguns órgãos de comunicação brasileiros.

    Judeu, diz ter sido salvo pela fé, depois de “múltiplas tentativas de suicídio” desde a sua adolescência. Nos últimos meses, começou a promover encontros de culto para “adorar Yeshua”, nos quais canta. Num recente episódio, chegou até a ser retido e expulso pela polícia.


    MORGAN C. JONAS

    No seio do movimento Global Walkout, o australiano Morgan C. Jonas, de 38 anos, é a personalidade mais próxima da líder Monica Smit. Na verdade, os dois activistas estão noivos.

    No seu site oficial, Jonas revela que a desconfiança sobre o poder político começou a brotar durante a campanha presidencial de Donald Trump, em 2016. Na altura, era dono de uma empresa de equipamentos para desportos de combate, e os discursos de Trump fizeram-no repensar o seu modelo de negócio, sustentado sobretudo em importações, outsourcing e produção no estrangeiro, algo que contribuiria para o progressivo enfraquecimento do sector industrial.

    Morgan C. Jonas

    Para si, esse foi o ponto de viragem. A partir daí, cresceu em Jonas a vontade de empreender uma mudança, expondo “políticos corruptos” e “as suas más acções”.

    Esse desejo culminou na organização de um comício em 2019, cujo alvo era Daniel Andrews – o primeiro-ministro do Estado australiano de Victoria, onde Jonas reside, na cidade de Melbourne. Na altura, o principal objectivo era denunciar os “perigosos” acordos comerciais com o Partido Comunista Chinês.

    Com a pandemia de covid-19, Morgan C. Jonas lançou o “MCJ Report”, um programa com conteúdos noticiosos da sua autoria, somando conflitos com as autoridades. Em Setembro do ano passado fundou o Freedom Party of Victoria, com resultados modestos nas eleições para a Assembleia legislativa (1,71%).


    ALEXANDER TSCHUGGUEL

    O austríaco Alexander Tschugguel, que completa 30 anos em Junho, é um dos mais jovens propulsores do Global Walkout, sendo conhecido por protagonizar actos de protesto impetuosos e suis generis.

    Por exemplo, em 2019, para combater o “paganismo”, liderou um grupo de manifestantes que roubou estátuas indígenas em madeira, de mulheres nuas e grávidas, expostas dentro da Igreja de Santa Maria em Traspontina, perto do Vaticano, e atirou-as ao Rio Tibre. E assumiu o acto no YouTube, na página do Instituto São Bonifácio, que se assume como “plataforma para apoiar a luta pela fé católica e defender essa fé quando e onde for necessário”.

    Alexander Tschugguel

    Descendente de uma família austríaca abrasonada da região de Bolzano, em Itália, Tschugguel é o arquétipo do conservador. Baptizado na doutrina protestante de Lutero, converteu-se ao catolicismo, aos 15 anos, regressando a uma tradição que tinha atravessado todos os seus antepassados, mas “quebrada” pelo seu bisavô.

    Um ano depois, juntou-se uma organização política de carácter católico e conservador originária do Brasil, a “Tradição, Família e Propriedade” e, desde então, tem sido um fervoroso defensor dos valores católicos e tradicionais: opõe-se ao aborto, ao casamento homossexual, à União Europeia, e é avesso às políticas climáticas.

    Em 2013, foi também um dos fundadores do partido conservador e eurocéptico Die Reformkonservativen, que cessou a actividade em 2016.

    Em 2019, Alexander Tschugguel organizou também um protesto que consistia em orar, junto à catedral de Santo Estêvão, em Viena, que estava naquele momento a ser palco de um evento anual de angariação de fundos para campanhas de sensibilização para o HIV.


    MICHAEL J. MATT

    Jornalista norte-americano, Michael J. Matt combate, nas suas próprias palavras, “lunáticos e hereges” desde 1996. Após o falecimento do seu pai, Walter Matt, em 2002, assumiu o seu lugar como editor do The Remnant, um jornal norte-americano católico tradicionalista fundado em 1967.

    Matt é, também, produtor da Remnant TV, uma plataforma que pretende ser “rival” do Youtube e onde apresenta o seu próprio programa.

    Extremamente crítico do pontificado do Papa Francisco, opõe-se às mudanças na Igreja Católica, sobretudo daquelas tomadas a partir do chamado Concílio Vaticano II, em 1962. Na versão digital do seu jornal, defende que “tem lutado contra esta revolução na Igreja há mais de quarenta anos, tal como tem lutado contra os erros que infectam o Estado moderno – o liberalismo, socialismo, comunismo, a Nova Ordem Mundial, uma cultura de juventude degenerada, a epidemia de abortos, eutanásia, educação sexual”.

    Michael J. Matt

    O legado do “jornalismo católico”, herdado por Michael J. Matt através da sua família, remonta a várias gerações atrás. Foi o seu pai que criou The Remnant, depois de uma contenda com o seu irmão (o tio de Michael J. Matt), Alphonse Matt, com quem conduzia, até então, o The Wanderer, o jornal católico mais antigo do país, fundado em 1867 no Estado do Minnesota.

    O The Remnant tem sido apelidado por alguns grupos – católicos ou de direitos civis, como o Southern Poverty Law Center, uma organização sem fins lucrativos  – como “radical” e “reaccionário”, e acusado de “antisemitismo”.

    No Twitter, Michael J. Matt tem mais de 32 mil seguidores, e o canal de Youtube do jornal conta com 262 mil subscritores.

    AMANDA FORBES

    Embora seja um dos principais rostos do Global Walkout, a canadiana Amanda Forbes é pouco conhecida publicamente. As causas que abraça dizem respeito sobretudo à “liberdade médica”, e à liberdade de escolha e consentimento informado nas políticas de vacinação.

    Amanda Forbes

    Integrou ainda a organização sem fins lucrativos Vaccine Choice Canada, fundada em 2014.

    Amanda Forbes é também presidente da Children’s Health Defense Canadá e co-fundadora da Freedom Organization, que promove conferências sobre saúde.

  • PÁGINA UM começou a denunciar promiscuidades entre Gaia e Global Media em 2021

    PÁGINA UM começou a denunciar promiscuidades entre Gaia e Global Media em 2021

    As investigações ao mundo dos negócios dos media mainstream por parte do PÁGINA UM, desde a sua criação, revelaram cedo as ligações entre a Gaiurb, o município de Gaia, a Global Media e Domingos de Andrade, o jornalista-administrador globetrotter da Global Media. O processo em curso instaurado pelo Ministério Público, no âmbito da Operação Babel, por favorecimento em abordagens noticiosas, arrisca mudar o panorama dos contratos promíscuos entre a imprensa e entidades públicas, até agora sem controlo do regulador dos media (ERC) e dos jornalistas (CCPJ).


    A promiscuidade entre a Global Media – detentora dos periódicos Jornal de Notícias e Diário de Notícias e da rádio TSF – e a autarquia de Vila Nova de Gaia, agora alvo de um processo intentado pelo Ministério Público, começou a ser denunciada pelo PÁGINA UM em Dezembro de 2021.

    De acordo com notícia de hoje da Lusa, um despacho do Departamento de Investigação e Ação Penal Regional do Porto (DIAPRP) revelou que o Ministério Público acusa o presidente da edilidade socialista, Eduardo Vítor Rodrigues, de ter determinado “a outorga pelo Conselho de Administração da Gaiurb, de modo arbitrário, sem qualquer requisição de despesa, manifestação de necessidades ou proposta de contratação de serviços e/ou fornecimentos de bens emanada pelos respetivos serviços, contratos públicos com o Grupo Global Media“.

    Eduardo Vítor Rodrigues, presidente da Câmara Municipal de Gaia.

    O objectivo: garantir a chamada “boa imprensa”, como se pode constatar na leitura do Jornal de Notícias que incidem sobre Gaia e o seu presidente. Aliás, Eduardo Vítor Rodrigues é um colunista regular daquele diário nortenho, tendo começado a publicar artigos de opinião desde Junho de 2020. Já escreveu 60 artigos.

    A atenção do PÁGINA UM sobre os interesses de Gaia na contratação em particular da Global Media – há também contratos com o Público e a Cofina, mas de muito menor dimensão – começou em 26 de Dezembro de 2021, numa investigação intitulada “Gaia paga mais de meio milhão de euros em contratos com grupos de media através de empresa com dívida astronómica”.

    Revelava-se então que a Gaiurb – com competência na gestão urbanística e habitacional de Gaia – realizara três contratos com empresas da Global Media (num total de 465.000 euros). Todos os contratos tinham sido realizados por ajuste directo, sem visto prévio do Tribunal de Contas, e contra o código de contratos públicos.

    Com a Global Media, a Gaiurb estabeleceu um primeiro contrato ainda em Dezembro de 2020 para o evento “Praça de Natal Jogos Santa Casa em Gaia”, que incluía a sua divulgação “junto da imprensa e outros meios de comunicação social”. O valor do contrato foi fixado em 195.000 euros.

    Director da TSF e com funções de topo na coordenação de jornalistas em mais outros quatro órgãos de comunicação social, Domingos de Andrade participa activamente na gestão empresarial de oito empresas do Grupo Global Media. A promiscuidade entre informação e negócios só lhe custou 1.000 euros num processo instaurado (mas escondido) pela CCPJ, mantendo-se como jornalista acreditado.

    No dia 3 de Dezembro de 2021, o contrato foi renovado, com o mesmo fim, e pelo mesmo valor. No ano de 2020 ainda se apontavam os motivos para o ajuste directo: “não existe alternativa ou substituto razoável” e “inexistência de concorrência”. No segundo contrato nada se refere.

    Estes dois contratos comerciais foram assinados por Domingos de Andrade, então simultaneamente administrador e director de conteúdos da Global Media e director da TSF, algo que o Estatuto do Jornalista considera incompatível. Este administrador e também director de diversas publicações da Global Media viria a ser alvo de um processo de contra-ordenação por parte da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) – por assinar contratos comerciais ao mesmo tempo que era director editorial e jornalista –, mas que redundou apenas numa multa de 1.000 euros.

    O PÁGINA UM tem tentado aceder ao processo instaurado contra Domingos de Andrade desde o ano passado, mas o Secretariado da CCPJ – constituído pelos jornalistas Licínia Girão e Jacinto Godinho – têm ostensivamente recusado, numa clara violação da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos.

    aerial view of bridge and city

    Um outro contrato do grupo Global Media com a Gaiurb foi concretizado em 29 de Março de 2021 com a TSF – através da sua empresa Rádio Notícias – por ajuste directo para a produção de 26 episódios semanais, emitidos aos microfones entre Abril e Outubro. Apresentado como sendo uma “parceria TSF/ Gaiurb”, o programa foi intitulado “Desafios do Urbanismo”, e envolveu um pagamento de 75.000 euros, tendo sido conduzido por um jornalista Miguel Midões, mas sem liberdade editorial.

    De facto, este contrato comercial – que possui, em nome da Global Media, a assinatura do jornalista Afonso Camões, o que constitui uma função incompatível nesta profissão – estipulava, na prática, uma subordinação editorial da TSF perante a Gaiurb.

    Por exemplo, o ponto 1 da cláusula 5ª determinava que “o prestador de serviços obriga-se a entregar à Gaiurb, EM [empresa municipal] os produtos, serviços e conteúdos informativos a aplicar na execução do contrato, de acordo com as características, especificações e requisitos previstos no anexo ao Caderno de Encargos, que dele fazem, parte integrante”.

    Mais recentemente, em Dezembro passado, houve novo contrato para a promoção das festas natalícias de Gaia, subindo o valor para 215.000 euros. Sempre por ajuste directo.

    Mas as relações promíscuas entre a Global Media e entidades públicas, sobretudo autarquias, não se circunscrevem a Vila Nova de Gaia.

    No ano passado, o PÁGINA UM detectou uma dezena e meia de contratos com entidades públicas assinados pela Global Media desde 2020. De entre estas estão, além da de Vila Nova de Gaia, as autarquias (ou empresas municipais) de Lisboa, Cascais, Valongo, Barreiro, Feira, Matosinhos, Aveiro, Viana do Castelo, Setúbal, Estarreja, Gondomar e Amarante, conforme o PÁGINA UM revelou em Maio do ano passado.

    Embora estes contratos tenham, quase sempre, como objecto a promoção de eventos, na verdade acabam por ser uma oportunidade de promover políticos, uma vez que são publicados textos ou programas onde não fica absolutamente nada claro que se está perante uma prestação de serviço.

    Em muitos casos detectados pelo PÁGINA UM, os jornalistas escrevem notícias condicionadas ao cumprimento dos cadernos de encargos, e até os directores editoriais da Global Media participam activamente nos eventos, sobretudo através da moderação de conferências que também estão estabelecidas nos contratos e onde os convidados são previamente indicados por quem paga. São os casos de Domingos do Amaral, como director da TSF, de Rosália Amorim, como directora do Diário de Notícias, de Joana Petiz, directora do Dinheiro Vivo, e de Inês Cardoso, directora do Jornal de Notícias.

    green plant on brown round coins

    Estas promiscuidades são já sobejamente conhecidas pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas e pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social, mas sem consequências. A intervenção do Ministério Público pode vir a mudar este modus operandi que mina a credibilidade do jornalismo – até por não ser um exclusivo da Global Media.

    Apesar das evidências, em comunicado divulgado hoje, a administração da Global Media garantiu que os seus profissionais “exercem as suas funções com total respeito pelas normas deontológicas do jornalismo, preservando a independência e a separação dos compromissos comerciais assumidos com entidades externas, honrando a importância das suas marcas já centenárias no panorama dos media em Portugal”.

    E ainda dizem que “dentro da Comissão Executiva da GMG [Global Media] são claras as separações de funções entre as áreas comercial, financeira e editorial”, o que não corresponde à verdade.

    De acordo com o Portal da Transparência da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), Domingos de Andrade é director tanto da TSF como da Rádio Jovem de Évora e da Rádio Caldas, tendo também uma crónica regular no Jornal de Notícias. Surge também nas fichas técnicas dos jornais O Jogo e Jornal de Notícias como director-geral editorial. Até Julho do ano passado ainda acumulava o cargo de director-editorial do Diário de Notícias.

    Rosália Amorim, directora do Diário de Notícias. Responsáveis editoriais da Global Media colaboram activamente na execução de contratos comerciais por vezes com cláusulas de subordinação e de confidencialidade.

    No entanto, apesar de deter estas responsabilidades jornalísticas de topo, que implicam a definição das linhas editoriais e a coordenação de equipas de jornalistas, Domingos Andrade ainda se ocupa, qual globetrotter dos media, em funções de gestão executiva, incluindo obviamente as áreas comerciais, sendo gerente de quatro empresas (Difusão de Ideias, Lda.; Pense Positivo, Lda.; Rádio Comercial dos Açores, Lda.; TSF – Rádio Jornal Lisboa, Lda.) e de vogal do Conselho de Administração em mais outras quatro empresas (TSF – Cooperativa Rádio Jornal do Algarve; Açormédia – Comunicação Multimédia e Edição de Publicações; Global Notícias – Media Group; e Rádio Notícias – Produções e Publicidade). Todas são do universo do Grupo Global Media.

    Mas o comunicado da Global Media, querendo ignorar estes factos públicos, ainda acrescenta que “os diretores das respetivas marcas (…) têm, como não poderia deixar de ser, total autonomia editorial e de gestão de recursos”.