Etiqueta: Pedro Almeida Vieira

  • Sei o que fizeste no Verão passado, Manuel Carvalho…

    Sei o que fizeste no Verão passado, Manuel Carvalho…


    No seu editorial do passado 4 de Abril no jornal Público, Manuel Carvalho zurze em “majores generais” e em “aprendizes de espiões” que promovem a desinformação.

    Omitiu ele que o Público foi já um promotor de desinformação na primeira fase da injustificável invasão da Rússia, quando anunciou, em 25 de Fevereiro, que 13 soldados ucranianos tinham sido massacrados na ilha das Serpentes, para surgir três dias depois com uma, enfim, “actualização” (sic): afinal os homens estavam vivos. O Polígrafo tratou de fazer a “limpeza“. Ou tentar fazer.

    O Público, esse, e Manuel Carvalho, esse, não pediram desculpas aos leitores. Por quem sois.

    Nem se lembrou ele serem essas atitudes desresponsabilizantes – que perpassam a legacy media –, que alimentam hoje a falta de confiança dos leitores na imprensa, nos jornalistas.

    Colocar dúvidas sobre os agentes do massacre de Bucha não se deve à desinformação que possa vir da propaganda russa – como em tempos houve propaganda norte-americana para justificar a invasão do Iraque – nem às análises mais ou menos enviesadas e erradas de “majores generais” alegadamente putinistas ou de “aprendizes de espiões” sem o corte de cabelo de Nuno Rogeiro.

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    A incredulidade deve-se à situação da imprensa, à qualidade da sua informação, porque quase todos os jornalistas deixaram de querer ser meros observadores ou árbitros, que são funções nobres e primordiais numa sociedade democrática, para se transformarem em diligentes arautos da verdade imediatista, em sacerdotes de uma doutrina maioritária.

    Na pressa, e sobre a pressão de serem os primeiros, muitos jornalistas optam por “publicar” agora primeiro e “confirmar” depois, subvertendo o princípio basilar do jornalismo. Na verdade, nem sequer confirmam depois, ou se o fazem e verificam que meteram os pés pelas mãos, saem de mansinho como sendeiros.

    Nunca a imprensa mainstream gosta de admitir ser o rei que vai nu, e até tem horror ao espelho. Não acredita sequer que não acreditam nela, e quando se lhe mostra o descrédito, apontam-no como mera maledicência de uma minoria sem expressão da realidade.

    Não é, por mais vezes e vozes que lhes diga o contrário.

    O descrédito de jornalistas como Manuel Carvalho é um descrédito que plasma sobretudo nos momentos em que, pomposamente, se entoam grandiloquentes princípios de ética jornalística.

    Note-se esta passagem do seu editorial de 4 de Abril, após a zurzidela nos “majores generais” e “aprendizes de espiões”, e onde defende até o seu direito a expressarem-se [presumo que com um letreiro a atestar serem “desinformadores, pela forma como ele os destrata]:

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    Se há um reduto inexpugnável para o jornalismo é o da liberdade de expressão. Um bem precioso, mas delicado, que é melhor ter a mais do que a menos. Uma leve amputação pode confortar a consciência no presente – mas implica um risco para o futuro.”

    Ui! Palavras como boomerangs!

    Vamos ser claros: sei o que fizeste no Verão passado, Manuel Carvalho…

    Ou, pelo menos, no dia 19 de Agosto de 2021.

    “Despublicaste” um artigo de opinião do médico Pedro Girão, e ainda escreveste, para opróbrio do dito, a seguinte nota editorial intitulada “Um erro e um pedido de desculpas”:

    Um erro de controlo editorial corrigido nesta quinta-feira às 17h42 permitiu que um artigo de opinião (‘Uma vacina longe de mais’) assinado pelo médico anestesiologista Pedro Girão estivesse disponível na nossa edição digital durante horas.

    A sua despublicação justifica-se não apenas pelo tom desprimoroso e supérfluo usado pelo autor em relação a várias personalidades da nossa vida pública, como pelo seu teor que, de forma ora mais velada, ora mais explícita, tende a instigar a ideia de que a vacina contra a covid-19 é ‘uma experiência terapêutica’ sem validade científica.

    Como é do conhecimento dos nossos leitores, o PÚBLICO é um jornal que cultiva e estimula a diferença de opiniões que alimenta as sociedades democráticas. Mas há padrões e valores que não podem ser cedidos em nome do pluralismo. Numa questão tão sensível como a da pandemia, recusamos em absoluto promover juízos que tendem a negar a importância ou o relativo consenso científico em torno das vacinas.

    Por isso errámos ao publicar o texto e por isso agimos com a celeridade possível para corrigir esse erro, despublicando o artigo em questão e pedindo desculpas aos nossos leitores pelo sucedido.

    Ora, hoje sabemos que Manuel Carvalho errou, mas não foi apenas por ter exercido um reles acto de censura, ainda mais eufemisticamente auto-classificado de “despublicação”.

    Manuel Carvalho cerceou uma opinião porque, entre outros considerações, recusava “em absoluto promover juízos que tendem a negar a importância ou o relativo consenso científico em torno das vacinas”, e Pedro Girão era uma das vozes que publicamente criticava o tema quente de então: a vacinação de adolescentes.

    Mas hoje sabemos sobretudo que o consenso em redor das vacinas em adolescentes nunca existiu mesmo no seio da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC), que integra 12 insuspeitos “peritos”.

    E sabemos não graças a perguntas de Manuel Carvalho ou dos jornalistas do Público – que sempre se mantiveram unha com carne da narrativa do Governo, do Presidente da República e da Direcção-Geral da Saúde – alvos das críticas do artigo “despublicado” de Pedro Girão –, mas das insistências e da luta do PÁGINA UM.

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    Sabemos hoje porque o PÁGINA UM perguntou pelos documentos à DGS, e não ficou satisfeito com o silêncio, e recorreu à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, e insistiu e insistiu, e ganhou para os “arrancar”. Não foi o Público nem Manuel Carvalho que fez isso.

    Sabemos hoje porque o PÁGINA UM foi o único órgão de comunicação social que fez perguntas incómodas à DGS e lhe pediu documentos para comprovar ou desmentir a narrativa. Não foi o Público nem Manuel Carvalho que fez isso.

    Sabemos hoje, graças ao PÁGINA UM, que em 8 Agosto do ano passado, 11 dias antes do acto de censura do Público a Pedro Girão, que cinco membros da CTVC não votaram favoravelmente o parecer que recomendava a vacinação dos adolescentes. Quatro dos 12 peritos votaram contra, e um decidiu não votar. Não foi o Público nem Manuel Carvalho que divulgou essa informação.

    Informação essa que deveria ser agora cruzada com o acto de censura de Manuel Carvalho em Agosto de 2021 e com esta frase do mesmo Manuel Carvalho em Abril de 2022: “uma leve amputação [leia-se, censura] pode confortar a consciência no presente, mas implica um risco para o futuro”.

    Nunca vai haver desculpas de Manuel Carvalho, porque não se pode esperar desculpas quando se andou meses e meses a fio alimentando e propalando o mito do consenso, o mito da certeza absoluta baseada na Ciência, o mito da existência de uma estúpida, tresloucada e marginal franja de “negacionistas assassinos” anti-vacinas, onde se metia todos aqueles que questionavam e incomodavam com perguntas e opiniões dissonantes.

    Aquilo que Manuel Carvalho e o Público fizeram, ao longo de toda a pandemia, não foi defenderem a liberdade de expressão e de opinião; foi sim o oposto. Chegaram ao cúmulo de se munirem de um lápis negro para “limpar” supostas heresias, quando, por engano, não se aperceberam do conteúdo.

    Isto não pode jamais ser esquecido, e deve ser agora sobrelevado mais ainda por causa do fingido editorial de Manuel Carvalho do passado 4 de Abril.

    Mas, para mim, pior do que aquilo que Manuel Carvalho fez no Verão passado, é aquilo que Manuel Carvalho fez no final do Inverno passado e na Primavera que se iniciou. E continuará a fazer.

    Já passaram 24 dias – não são 24 horas, são 24 dias – desde que o PÁGINA UM publicou integralmente – até para a concorrência ver, ler e usar – todos os pareceres da CTVC, incluindo aquele de 8 de Agosto de 2021 sobre o programa de vacinação dos adolescentes.

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    Nesse parecer mostra-se, prova-se, de forma indesmentível, que o consenso nunca existiu sobre a vacinação de adolescentes. Mostra-se, prova-se, que Pedro Girão tinha razão quando escreveu, por exemplo, que “a posição do Presidente da República nessa matéria [apoio incondicional à vacinação de adolescentes] é absolutamente escandalosa, parecendo baseada em conhecimentos débeis do assunto, em hipóteses duvidosas, em desvario emocional, ou em possíveis interesses.”

    Para Manuel Carvalho, isso pouco importa agora.

    O PÁGINA UM até chegou a aguardar três dias, depois de 14 de Março passado, antes de escrutinar o conteúdo daquele parecer dos adolescentes, e fazer a notícia sobre o assunto. Quis testar a legacy media; saber se a concorrência pegava no assunto.

    Confirmou-se. Ninguém quis. Pudera: arder-lhes-iam as mãos. Teriam de se vergar, e envergonharem-se pelos actos passados.

    Nem quando a própria DGS divulgou no seu site os ditos pareceres, que desmoronam toda a narrativa do alegado consenso, a imprensa mainstream se mexeu. Era o que faltava.

    Ah, mas talvez eu esteja a ser demasiado exigente com Manuel Carvalho. O Verão passado já passou.

    As suas incongruências e hipocrisias, não.

    Contudo, não se livra Manuel Carvalho de uma coisa: escrevendo ele agora, no ano da graça de 2022, que “se há um reduto inexpugnável para o jornalismo é o da liberdade de expressão”, então eu direi, ao abrigo da liberdade de expressão, que o jornalismo deveria expugnar-se de pessoas como ele.

    São pessoas como ele, Manuel Carvalho, que, infeliz e lamentavelmente, embora se espere não inexoravelmente, descredibilizaram a imprensa.

  • Nada há de mais humano do que a desumanidade

    Nada há de mais humano do que a desumanidade


    Não quero saber, por agora, se é ou não encenado. Se quem fez aquilo foram os russos ou os ucranianos para acicatar o Ocidente a diabolizar ainda mais alguém que é, era e será um diabo enquanto estiver no poder. Há fortes indícios de massacre. Deve ser investigado, de forma independente; não sei se para já. Não sei se se chegará alguma vez à verdade.

    A verdade é maleável, depende do poder, depende de quem sai vitorioso de uma contenda. Nem sempre coincide com a realidade. A verdade pode ser imposta. A mentira pode ser tornada verdade, por mais evidências que possam aparentemente existir. A História farta-se de nos dar desses ensinamentos.

    Mas importante, talvez sim, seja reflectirmos, desde já, noutro aspecto essencial: aquilo poderá ser real porque é possível? SIM.

    Sim, infelizmente é muito, muito possível que aquela situação em Bucha seja real, e que tenha sido causada pelos russos.

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    E mesmo que não seja, nada nega uma invasão, que tantas mortes já causou. E mesmo que sejam militares, essas vidas perdidas não são justificadas nem legitimadas por os corpos estarem vestidos com uma farda. Eram vidas.

    E ter acontecido mesmo um massacre de civis, será Bucha inédito, merece uma consternação em êxtase, o nosso estupor perante um horror inaudito, uma inqualificável desumanidade? NÃO.

    Lembro-me sempre, desde que escrevi essa frase, da passagem de um dos meus romances em que o narrador, por sinal o diabo, argumenta (cito de cor) que “nada há mais humano do que a desumanidade”.

    Bucha deveria chocar-nos não por ser inédito, não por ser uma surpresa, mas exactamente por ser expectável.

    Lembremo-nos, apenas para nos mantermos num cenário similar, de Grozny. Não foi assim há tanto tempo. Putin “esteve” lá.

    Mas lembremo-nos também que nenhuma guerra, nenhuma outra guerra mata ou matou com contos de fada.

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    Nenhuma das mais de 10 milhões de vidas perdidas em conflitos armados desde a barbárie da chamada II Guerra Mundial, muitos sem ser televisionados, foi através de doces canções de embalar.

    Nos últimos dois anos, antes da invasão da Ucrânia, a base de dados do Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED) contabilizou 73.199 mortes no Afeganistão em conflitos bélicos, 38.146 mortes no Iémen, 17.671 mortes Nigéria, 16.704 mortes no México, 14.083 mortes na Síria, 11.723 mortes no República Democrática do Congo, 11.365 mortes no Myanmar e 10.528 mortes no Brasil, que nem sequer está formalmente em guerra, mas onde a violência armada é endémica. Dois anos apenas, e mais conflitos se registaram.

    Os mesmo dirigentes políticos da Europa que agora correm a chamar nomes a Putin e a ameaçá-lo com o Tribunal Penal Internacional (TPI) andaram a banquetear-se à sua mesa e à dos seus oligarcas durante, pelo menos, duas dezenas de anos. E andaram a alimentar guerras e conflitos, nem que fosse através da indústria do armamento.

    Andaram em jogos perigosos com quem nunca foi de confiança.

    Por isso, não se surpreendam, pelo menos se honram a vossa inteligência, com as atrocidades na Ucrânia. Não são de agora nem são só de lá.

    Não esqueçam Bucha, não esqueçam Grozny, não esqueçam sobretudo como chegámos aqui.

    Porque se esquecerem, haverá sempre mais Buchas, com Putin e sem Putin. Com Zelenski e sem Zelenski.

    Haverá sim estas contínuas atrocidades, estas humanas desumanidades, se as democracias ocidentais mantiverem este estilo de virgens surpresas.

    E haverá os vossos horrores para amenizarem as vossas consciências. As nossas consciências. Pesadas. Sempre. Como se fôssemos todos culpados. E talvez sejamos, mas por inacção, antes dos conflitos. Por pouco pressionarmos os nossos dirigentes políticos. Preocupamo-nos só perante as monstruosidades, e pouco com aquilo que vai alimentando os monstros. E esses monstros são alimentados pela realpolitik.

  • Manifesto consciente e com Ciência contra os senhores inquisidores dos tempos modernos

    Manifesto consciente e com Ciência contra os senhores inquisidores dos tempos modernos


    Por quatro vezes, pelo menos, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) já se debruçou sobre a magna questão da legitimidade dos jornalistas em chamarem alguém, a pretexto da pandemia, de “negacionista”.

    Em 9 de Dezembro do ano passado, sobre um artigo da Visão, a ERC considerou que como uma peça jornalística “se reporta[va] a um conjunto de pessoas que ou negam a existência da pandemia de covid-19, ou a sua gravidade, ou a validade científica das respostas de combate à doença”, então mostrava-se “adequada e contextualizada a terminologia (‘negacionistas’)”.

    No mesmo dia, abordando mais duas outras peças, ambas do Observador (a primeira publicada em 12 de Setembro; a segunda em 21 do mesmo mês) , a ERC considerava também adequada a terminologia “negacionistas” usada para retratar uma manifestação contra a vacinação contra a covid-19 de crianças realizada em Setembro do ano passado. E acrescentavam os membros da ERC que “negacionistas” era já expressão “globalmente utilizada para descrever pessoas e grupos de pessoas que negam os conhecimentos científicos existentes, à data, sobre a covid-19”.

    Mais recentemente, em 23 de Fevereiro passado, a ERC reiterou a sua posição anterior, e, nessa medida, concordava até com a TVI que, em defesa do seu jornalista José Alberto Carvalho, alegou a existência de um insondável “princípio, estatisticamente correto, segundo o qual negacionistas (pessoas que negam a existência da covid-19 ou são críticos das restrições impostas para a resolução do problema de saúde pública por ela colocado) teriam tendencialmente taxas de vacinação e logo de imunização mais baixas do que a população em geral”.

    Os excelsos membros da ERC “comeram” de bom modo o tal “princípio, estatisticamente correcto” ditado pela TVI, tal como consideraram que qualquer pessoa que questione e critique uma determinada “linha maioritária” seja “negacionista”.

    Compreende-se, lendo os seus curricula:

    Sebastião Póvoas, o seu presidente, é licenciado em Direito e juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.

    Mário Mesquita, o seu vice-presidente, é licenciado em Comunicação Social e foi jornalista.

    Francisco Azevedo e Silva é licenciado em História da Arte e foi jornalista.

    Fátima Resende é licenciada em Direito.

    João Pedro Figueiredo é licenciado em Direito.

    Nenhum dos excelsos membros da ERC se vê obrigado, portanto, a ler artigos científicos sobre Epidemiologia ou Ciências Médicas.

    Até porque são eles sobretudo pessoas de Fé: acreditam na Direcção-Geral da Saúde, no Governo, no vice-almirante herói da Nação, na TVI, na demais imprensa amen, etc..

    Mas mesmo que lessem, seguiram os dogmas contra a pravidade e apostasia .

    Por exemplo, sem pestanejar mas sem evitar também um estremecimento de horror, determinariam que, perante um texto intitulado “The illusion of evidence based medicine”, os seus autores, um certo Jon Jureidini e tal Leemon McHenry, eram “negacionistas” impenitentes e relapsos.

    Benzer-se-iam se chegassem ao lead, com a seguinte frase: “A medicina baseada em evidências tem sido corrompida por interesses corporativos, regulamentação falhada e mercantilização da academia”.

    E exorcizariam os hereges perante o seguinte trecho: “Os reguladores recebem financiamento da indústria e usam ensaios financiados e realizados pela indústria para aprovar medicamentos, sem, na maioria dos casos, ver os dados brutos. Que confiança temos num sistema em que as empresas farmacêuticas podem ‘marcar o seu próprio trabalho de casa’ em vez de ter os seus produtos testados por especialistas independentes como parte de um sistema regulatório público?”

    E sentenciariam à mesma um anátema mesmo se lhes dissessem que o primeiro autor é um psiquiatra infantil da Faculdade de Medicina de Alberta e o segundo é um especialista em bioética e professor emérito de Filosofia da Universidade Estadual da Califórnia.

    E confirmariam a sentença mesmo que lhes argumentassem que esse artigo tinha sido publicado na conceituada revista científica BMJ.

    E também decretariam ser um “negacionista” quem questionasse a Direcção-Geral da Saúde para disponibilizar dados e relatórios, e que, após uma “luta” para obter alguns desses dados, revelasse que, afinal, andou-se a vacinar adolescentes quando cinco dos 12 membros da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC) não concordava com a medida. Como eu fiz.

    Também promulgariam ad perpetuam rei memoriam ser um “negacionista” quem questionasse a ética do senhor vice-almirante Gouveia e Melo e da Direcção-Geral da Saúde de quererem vacinar a torto e a direito os recuperados da covid-19, sabendo – porque sabiam – que este grupo não tinha sido incluído nos ensaios clínicos das vacinas, e que existiam já indicações sobre os riscos de efeitos adversos das ditas serem superiores nesses em comparação com aqueles que nunca antes tinham tido contacto anterior com o vírus. Como eu fiz.

    E também deliberariam in saecula saeculorum ser um “negacionista” quem questionasse a ética deontológica de certos jornalistas e o sentido ético dos membros da ERC. Como eu fiz.

    E por esses benquistos motivos, porque chamar “negacionista” a alguém incómodo é um expediente muito cómodo para evitar questionamentos, o jornalista José Alberto Carvalho não tem assim de provar coisíssima nenhuma.

    Nem tem ele e ela de mostrarem estudos a suportar aquelas afirmações. Um dogma surge da Fé.

    Nem a ERC exigirá, a si e à TVI, que seja provada a existência de um “princípio, estatisticamente correto, segundo o qual negacionistas (pessoas que negam a existência da covid-19 ou são críticos das restrições impostas para a resolução do problema de saúde pública por ela colocado) teriam tendencialmente taxas de vacinação e logo de imunização mais baixas do que a população em geral”. Um dogma não necessita de comprovação nem comprovativo.

    Resultado do teste serológico de IgG em 24 de Março de 2022 com referência ao valor obtido em 20 de Dezembro de 2021 para um “recuperado” em Junho de 2021 e não-vacinado nem com teste positivo nos últimos 10 meses.

    Não têm eles, nem ninguém, nem muito menos a Direcção-Geral da Saúde, nem o vice-almirante, nem quem o premiou, nem os excelsos membros da ERC terão que dar explicações sobre as razões pelas quais eu e muitos outros recuperados da covid-19 – mais precisamente, agora, um terço da população – temos de nos vacinar se quisermos ser, ou continuar a ser, cidadãos de pleno direito no século XXI, uma vez que só assim, com injecções cujos efeitos não são conhecidos (aguarda-se que o Infarmed cumpra o parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos), receberemos uma espécie de “carta de alforria” como obedientes súbditos dos paladinos de um bem comum e das nossas vontades.  

    E se eu, recuperado há nove meses, argumentar que a Ciência me indicou, através de um teste serológico em Dezembro de 2021, que os meus níveis de IgG no sangue eram de 427,00 BAU/ml, e que três meses mais tarde (terceira semana de Março) o valor era de 438,00 BAU/ml (não me tendo vacinado nem sentido quaisquer sintomas de nova infecção nesse interim), e que, portanto, não vislumbro necessidade de vacinação, então têm eles todos o “direito” de me chamarem “negacionista”. E de me prescreverem castigo compatível.

    E podem ter, sim, esse poder.

    Não devem é chamar a isto uma democracia.

  • Da justiça do Burkina Faso e do Conselho Superior da Magistratura de Portugal

    Da justiça do Burkina Faso e do Conselho Superior da Magistratura de Portugal


    Não sei por que razão – talvez seja muito pela sonoridade do nome –, sempre que sou confrontado com algo chocante do ponto de vista do funcionamento de uma sociedade, surge-me de imediato o Burkina Faso na cabeça. Não me aparece tanto Ouagadougou, a sua capital, porque nunca consegui decorar este nome, e pronunciá-lo exige esforço suplementar.

    Enfim, e surgiu-me esta manhã novamente o Burkina Faso na mente, e não por acaso: foi no exacto momento em que li um e-mail para mim enviado pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM) com um “despacho” da juíza secretária, de seu nome Ana Cristina Dias Chambel Matias.

    Versava a magna questiúncula sobre se um cidadão de uma república constitucionalmente democrática – leia-se, Portugal – tem o direito de aceder a documentos administrativos na posse daquela entidade que superintende os juízes.

    brown wooden boat on brown sand during daytime

    Neste caso, documentos relacionados com a Operação Marquês, o qual já merecera um parecer favorável da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos. Pensava que era um e-mail para me informar que podia ir consultar finalmente os documentos.

    Não era. Era para me informar de que, apesar do parecer da CADA, o CSM não os quer ceder. Que eu vá, diz-me o CSM, “intentar respetiva acção especial no Tribunal Administrativo, cujos juízes são avaliados pelo próprio CSM…

    Deu-me, entretanto, um vaipe e resolvi que deveria ser mais justo com o Burkina Faso, e corri a consultar o Índice do World Justice Project do Estado de Direito.

    E penitencio-me agora pela injustiça da associação.

    O Burkina Faso não é o pior país do Mundo em matéria de Estado de Direito. Longe disso.

    No que diz respeito ao indicador das restrições legais do Poder do Estado, o Burkina Faso está na posição 61 em 139 países. O pior é a Venezuela.

    Sobre a ausência de corrupção, o Burkina Faso surge também na posição 61. O pior é a República Democrática do Congo.

    Em relação à transparência e abertura do Governo aos cidadãos, o Burkina Faso ocupa a posição 80. O pior é o Egipto.

    Relativamente à consagração de direitos fundamentais, o Burkina Faso está no lugar 69. O pior é o Irão.

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    No que concerne à ordem e segurança, o Burkina Faso está na 128º posição. O pior é o Afeganistão.

    Em relação à aplicação das leis e regulação, o Burkina Faso encontra-se no lugar 74. O pior é a Venezuela.

    Na aplicação da justiça civil, o Burkina Faso ocupa o lugar 100. O pior é o Camboja.

    E, por fim, na aplicação de justiça criminal, o Burkina Faso situa-se na posição 58. O pior é a Venezuela.

    O Burkina Faso é, por isso, um péssimo exemplo para eu utilizar. No global, no Índice do World Justice Project do Estado de Direito, está em 75º lugar. Tenho de me “corrigir”.

    Mas Portugal, país para onde trabalham as pessoas que integram o CSM, também não é exemplo para ninguém.

    Não por causa daquilo que diz o World Justice Project, que coloca Portugal na 26ª posição no seu índice global, e mostra-nos em situação razoável nos diversos indicadores, entre a posição 16 (restrições legais do Poder do Estado) e a 49 (ordem e segurança).

    Na verdade, estes índices e indicadores dizem-nos pouco, na maior parte dos casos. São giros para fazer rankings e para comparações globais, muito apreciados por políticos (quando são bem classificados) e adorados pelos jornalistas.

    Na prática quotidiana, são os pequenos detalhes que interessam, em muitos casos daqueles que não enformam qualquer indicador ou índice. E são, afinal, esses pormenores que mostram, por vezes, que em matérias essenciais Portugal e o Burkina Faso não são assim tão distintos, que o nosso CSM não será assim tão diferente da entidade homóloga daquele país subsariana.

    Com efeito, quando se vê o nosso CSM – atenção, estamos a falar de uma entidade como o CSM, um dos pilares da Democracia –, em apenas duas páginas:

    a) menosprezar um parecer de uma entidade presidida por um juiz conselheiro – Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos –, destacando que, enfim não os têm de cumprir porque “não são vinculativos para a entidade administrativa”;

    b) declarar que se deve atribuir “confidencialidade ao processo disciplinar” sobre a entrega da Operação Marquês ao juiz Carlos Alexandre em 2014, para assim esconder os detalhes e pressupostos desse arquivamento;

    c) defender que um jornalista não deve ter acesso a determinados documentos, socorrendo-se a interpretação enviesada e absurda do regime de protecção de dados;

    d) e, impor que um jornalista tem de esclarecer previamente “qual a finalidade do acesso e da recolha de tais documentos” para que, depois disso, o CSM possa ponderar se concede ou não os documentos;

    então, podemos concluir que Portugal pode não ser o Burkina Faso, mas está longe de ser uma Democracia madura.

    Pelo menos enquanto o CSM tiver pessoas com esta mentalidade anti-democrática.

  • Polígrafo: um indecente fact-checker para branquear a imprensa mainstream

    Polígrafo: um indecente fact-checker para branquear a imprensa mainstream


    Em 14 de Outubro de 2018, o fundador e director do Polígrafo, Fernando Esteves, escreveu o seguinte, ao anunciar o seu fact-checker: “Outro detalhe importante: o Polígrafo não analisa notícias de outros jornais. O trabalho dos nossos colegas, sendo muito relevante, não é o nosso core business. Escolhemos avaliar e classificar, de acordo com uma escala, as declarações dos protagonistas das notícias, porque são eles os agentes proativos na difusão de inverdades no espaço público.

    Convenhamos, que Fernando Esteves e os seus colaboradores têm cumprido: nunca analisam o trabalho dos seus colegas, e por maioria de razão, sendo eles jornalistas, nem a qualidade do seu próprio trabalho.

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    Ora, como bem se sabe, eu e particularmente o PÁGINA UM não somos propriamente defensores do papel imaculado da imprensa, nem tão-pouco que seja ela um mero agente de transmissão de informação.

    Em más mãos, em maus profissionais, em pessoas com problemas em perceber e praticar os princípios da ética e da deontologia, a informação facilmente se transforma em manipulação.

    Isto a pretexto de um fact-checking do Polígrafo, ontem publicado, sobre a veracidade da morte de soldados ucranianos na ilha de Zmiinii (ou ilha das Serpentes) por terem recusado a rendição, no início da invasão pela Rússia.

    Na introdução ao tema em verificação, a jornalista do Polígrafo Salomé Leal escreve o seguinte: “De acordo com várias publicações nas redes sociais, os 13 soldados ucranianos que defendiam a Ilha das Serpentes, no Mar Negro, terão sido mortos pelos russos, depois de terem protagonizado um ato de resistência que já é considerado histórico na guerra da Ucrânia. Confrontados por militares russos e aconselhados a renderem-se, os ucranianos terão respondido: ‘Vão-se lixar!’ Confirma-se que os 13 resistentes perderam a vida?

    Como se sabe agora, esta informação é falsa.

    Contudo, toda a análise do Polígrafo omite o papel crucial da comunicação social mainstream na divulgação desta fake news, propalada inicialmente pelo governo ucraniano, de tal modo que o presidente Volodymyr Zelenskyy até chegou a anunciar condecorações póstumas aos soldados massacrados.

    Na verdade, tanto a imprensa internacional como a nacional não fizeram o “trabalho de casa” essencial no jornalismo: verificação dos factos; ou, no mínimo, assumpção do erro pela manipulação a que foram sujeitos. A inverdade, termo usado por Fernando Esteves, não foi iniciada nas redes sociais. Teve a sua génese e eco, e maior, por causa das notícias na imprensa mainstream.

    No caso português, eis os jornais que relataram, em primeira-mão, esta fake news: Público (numa parceria com o Washington Post), Expresso, Visão, Sábado, Observador e (a inefável) CNN Portugal, apenas para citar alguns.

    Notícia do Público, em parceria com o Washington Post, de 25 de Fevereiro que se revelaria “fake news”

    Passado uns dias, vários destes órgãos de comunicação social deram o dito por não dito, sem um mea culpa. O Público até teve a desfaçatez de fazer a seguinte adenda, três dias mais tarde: “Esta notícia teve uma actualização“. Ou seja, os mortos (da primeira notícia) passaram a estar vivos (na segunda notícia).

    Convenhamos que uma situação dessa natureza, uma “actualização” assim, apenas é “conhecida” com Cristo: na Sexta-Feira Santa estava “morto”; no Domingo de Páscoa o seu estado sofreu uma “actualização” para “vivo”.

    E que faz o Polígrafo? Nada! Omite tudo isto. Omite o papel da imprensa mainstream. Execra as redes sociais como fonte de toda a manipulação. Limpa a imagem da imprensa, do triste papel dos jornalistas que na pressa de darem informação sem verificação, apenas divulgam, de forma viral, notícias manipuladas.

    Indicação da falsidade da notícia inicial com a mera referência de ser uma actualização

    Relembro, por isso, ao Polígrafo aquilo que, segundo consta no seu site, é – ou deveria ser – o seu método:

    A partir do momento em que o POLÍGRAFO (…) decide ‘checar’ uma informação, há cinco passos que devem ser cumpridos:

    Consultar a fonte original da informação

    Consultar fontes de natureza documental que possam solidificar o processo de checagem

    Ouvir os autores da afirmação, dando-lhes o direito de a explicar

    Contextualizar a informação

    Avaliar a informação de acordo com uma escala de avaliação“.

    Na sua ânsia de diabolizar as redes sociais e de lavar a imagem da imprensa mainstream, o Polígrafo não cumpriu, em rigor, nenhum destes passos.

    Manipulou.

    O habitual.

    Compreendo cada vez melhor por que razão Fernando Esteves nunca quis que o seu Polígrafo verificasse o trabalho dos jornalistas. Prefere branqueá-los quando fazem porcaria, culpando as redes sociais – excelentes bodes expiatórios. Uma indecência.

  • Um livro que se lê enquanto se reza para que se salve

    Um livro que se lê enquanto se reza para que se salve

    Título

    Um detalhe menor 

    Autora

    ADANIA SHIBLI (tradução: Hugo Maia)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Março de 2022)

    Cotação

    13/20 

    Recensão

    Há livros que fazem os leitores, página após página, pedir que se salvem. O romance da palestiniana Adania Shibli é um desses casos, pelo tema e pela recomendação.

    Escrito originalmente em árabe, apesar da autora ser poliglota e viver entre Berlim e Jerusalém, Um detalhe menor é, na verdade, uma novela, pelo seu tamanho (140 páginas de letra grande e maior espaçamento do que o habitual) – ou até, mais apropriadamente um díptico constituído por dois contos interligados, que invocam o passado e o presente da vida (e da morte) dos palestinianos expulsos das suas terras e segregados por Israel.

    A primeira parte retrata o evento trágico e horrível de uma jovem árabe às mãos de militares israelitas em 1949, no deserto de Negueve, um ano após a criação do Estado de Israel e do chamado Nakba (catástrofe) que levou ao êxodo de 700 mil palestinianos.

    Na segunda, interligado a este acontecimento, conta a viagem quase suicidária de uma palestiniana, com o medo sempre em si entranhado, que entra por terras dos colonatos em busca de informações sobre aquele evento passado, apenas por via um detalhe menor: ocorreu 25 anos antes do seu nascimento.

    Aquilo que, porém, é uma ideia literariamente poderosa: os dramas do povo palestiniano, o seu presente assombrado pelo seu passado, esvai-se numa narrativa repetitiva, por vezes cansativa e exasperante.

    Mesmo aceitando que, na primeira parte da novela, estamos perante um deserto avassalador, com os seus peçonhentos insectos e um calor sufocante, chega a ser exasperante que Shibli exponha continuamente os hábitos de higiene do comandante da companhia israelita, bem como a evolução do seu estado de saúde resultante da mordida de um insecto (num romance longo seria aceitável; num romance curto ou novela surge como factor de desequilíbrio).

    Até à página 17, o dito comandante lava as axilas por quatro vezes. Até à página 72, quando termina a primeira parte do romance, e passa para a actualidade, são seis lavagens de axilas.

    Quase nada há do pensamento do comandante (que concentra a primeira parte do romance), nem dos seus subordinados dos da árabe sequestrada. Se a intenção de Adania Shibli era transmitir, ausência de sentimentos ou de humanismo, falha, na minha opinião: tais ausências não significam ausência de pensamento. 

    A excepção surge num longo discurso (não há diálogo) do comandante ao seus soldados que, em duas páginas, expõe de forma algo artificial (até nas palavras escolhidas) as intenções dos judeus nas terras apossadas aos árabes. 

    Um exemplo, neste trecho: “(…) E é aqui exatamente que iremos testar a nossa força criativa e pioneira, quando conseguirmos transformar o Negueve numa região próspera e civilizada, num centro para o ensino, o desenvolvimento e a cultura, à semelhança do que já fizemos nas regiões norte e centro. Apesar de agora parecerem totalmente infecundas, estas extensões de deserto irão recuar gradualmente com a plantação de árvores e a construção de projetos agrícolas e industriais, para que o nosso povo nelas possa viver. Mas, para que tudo isto se concretize, primeiro é necessário vencer aqueles que nutrem a mais feroz e roaz inimizade contra esta terra, e protegê-la o melhor que pudermos. A nossa presença aqui é ponto de partida para realizar esta visão (…)”   

    De similar problema sofre a segunda parte do romance (ou segundo conto), protagonizado por uma jovem palestiniana em viagem também introspectiva. A presença dos latidos de cães, que percorre também o relato, embora evoque o passado (também um cão acompanhou o sofrimento da jovem árabe às mãos dos israelitas), soa sempre a forçado.

    Do ponto de vista literário, existe alguma esperança de redenção no romance aquando dos preparativos da viagem da jovem em busca de saber algo mais sobre o passado da árabe de 1949, e na forma como percebemos o quotidiano dos palestinianos em Ramallah, e o apartheid a que estão sujeitos para saírem do seu reduto e poderem percorrerem as “terras ocupadas”, outrora dos seus antepassados, e as antigas vilas destruídas,  e o omnipresente medo.

    Esperamos, depois da entrada no “território ocupado”, que surja então uma ligação para além da geografia que una o passado e o presente, que se desvende algo que ajude na reflexão sobre esta quasi-impossibilidade de co-habitação entre judeus e árabes, sobre a Humanidade, sobre o bem o mal, sobre a opressão e a maldade; um qualquer rasgo que nos salve a leitura, que vá para além da simpatia pelo contexto e pela autora.

    Contudo, tudo se esvai numa escrita que aparenta, em muitas páginas, ser uma mera redacção, sem rasgos literários (excepto, porventura, na estranha descrição em torno da poeira de uma explosão), por vezes um mero Guia Michelin, com cruzamento de mapas, acompanhando um carro a rodar de um lado para o outro, ora para a esquerda e depois para a direita, com pastilhas elásticas à mistura, a seguir pela estrada Y ou Z, sem densidade nem sequer beleza estilística. Dir-se-ia mesmo que o livro foi escrito durante uma viagem, num par de dias, tão simplesmente descritivo que se mostra.

    No fim, a viagem da jovem palestiniana chega a ser um tormento sem nexo, e acaba em tragédia, sem grande surpresa, aliás. O romance fica próximo. Uma pena. O livro foi finalista do National Book Award e do International Booker Prize – sinceramente, não se entende como.

  • Do Wali (assim bem escrito), ou onde está a imprensa?

    Do Wali (assim bem escrito), ou onde está a imprensa?


    A forma como a esmagadora maioria dos jornalistas “embarcou” para a cobertura da invasão da Ucrânia não surpreende: já se tinha mostrado na cobertura da pandemia.

    Espírito militante, missionário do maniqueísmo, sacerdotes do bem contra o mal, os jornalistas expõem pornograficamente a sua ignorância, nem se importando de “atirar” primeiro “informação” antes de a confirmar, tomam um lado, independente do contexto.

    Infantilizam os seus leitores, ouvintes e telespectadores insistindo sempre na tónica de quem é o mau, como se fosse necessário (re)lembrar a alguém que tenha um QI acima do 1 que quem dá o primeiro passo para uma guerra, invadindo um outro, será sempre o invasor – e que, portanto, um jornalista tem a função de relatar os acontecimentos, em primeiro lugar, sem fazer parte da máquina de propaganda de uma das partes, como tem sido visto nos últimos tempos.

    Aliás, contribuindo para que, do lado do invasor, intensifique as restrições à (já escassa) imprensa independente na Rússia, incluindo mesmo o Gazeta Novaya, de Dmitry Muratov, o recente Prémio Nobel da Paz.

    Porém, aquilo que mais me tem chocado é a cinematização de uma guerra, não por ser estramos perante um filme mau (no sentido de cruento), mas por ser mau filme, geralmente por via de um argumento que “exige” que a guerra seja relatada com a constância de emoções ao rubro de um jogo de PlayStation, ou do sangrento desembarque da Normandia ficcionado em O Resgate do Soldado Ryan, do Steven Spielberg, ou de um rotineiro mas contínuo trabalho das 9 às 5 a apertar parafusos.

    A guerra não é isto, e muito menos uma guerra moderna, mais táctica que destrutiva.

    Por isso, caímos no ridículo de momentos silly season, como os do fabrico de cocktails molotov (quantos já foram atirados contra tropas russas?), e agora temos, espalhados pela imprensa nacional e internacional, a história do sniper canadiano Wali, herói contra o Daesh, que foi para a Ucrânia matar russos.

    Os jornalistas viram O Sniper Americano do Clint Eastwood, e pronto já julgam que Putin está no papo, não é?

    A invasão da Ucrânia pela Rússia é grave. Prescinde de patetices.

  • Da podre regulação da imprensa e dos vergonhosos ‘truques’ dos membros da Entidade Reguladora para a Comunicação Social

    Da podre regulação da imprensa e dos vergonhosos ‘truques’ dos membros da Entidade Reguladora para a Comunicação Social


    Em 5 de Janeiro passado, enviei à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) uma queixa formal contra o jornalista-estagiário Henrique Magalhães Claudino, contra mais seis jornalistas da CNN e contra os respectivos directores deste canal televisivo, por violação da Lei da Imprensa. Além disso, pedia que fosse determinada a obrigação de publicação de um direito de resposta pela CNN Portugal, que me fora negado. A queixa pode ser consultada AQUI e o direito de resposta negado AQUI.

    Em causa, como já revelei, estava um “artigo” completamente difamatório e ao arrepio de todas as regras éticas e deontológicas da autoria do primeiro visado, o dito jornalista-estagiário, publicado no site da CNN Portugal em 23 de Dezembro do ano passado, e que difundia uma notícia do PÁGINA UM (também divulgada na sua página do Facebook) com dados anonimizados relativos a internamentos de crianças com covid-19.

    Notícia do PÁGINA UM alvo do ataque da imprensa mainstream.

    Nem eu nem o PÁGINA UM éramos identificados directamente na peça da CNN Portugal intitulada “Covid-19: dados confidenciais de crianças internadas em UCI partilhados em página negacionista”, mas era por demais evidente que o jornalista-estagiário, os outros jornalistas que foram difundindo esta difamação ao longo daquele dia e os directores da CNN Portugal, sabiam a quem se estavam a referir.

    E também o que estavam a fazer. Até porque, em abono da verdade, o “artigo” era bem apoiado por médicos bem instruídos pela Ordem dos Médicos, tendo tido até a participação posterior, bem activa, do seu bastonário, incomodado pelas investigações do PÁGINA UM.

    Com efeito, para a preparação do seu “artigo”, o jornalista-estagiário Henrique Magalhães Claudino não apenas me enviara um pedido de comentário para o meu e-mail do PÁGINA UM – sabendo assim, de antemão, que era um órgão de comunicação social e que eu era jornalista – como no seu “artigo” dava pistas inequívocas sobre a minha identidade. O e-mail do jornalista-estagiário da CNN Portugal pode ser lido AQUI. A minha resposta AQUI.

    Tendo em conta que outros órgãos de comunicação social fizeram eco do “artigo” da CNN Portugal – sem sequer confirmar a sua veracidade –, e também recusaram publicar o meu direito de resposta, apresentei queixa à ERC contra o Público, a Lusa e o Expresso (em conjunto) e o Observador. A queixa contra o Público pode ser lida AQUI. As queixas relativas aos outros órgãos de comunicação social são muito similares, até porque todas se basearam e citaram a notícia inicial da CNN Portugal.

    Porém, todas aquelas queixas deram entrada cronologicamente após a queixa que apresentei à ERC contra a CNN Portugal.

    Notícia original da CNN Portugal com referências falsas e difamatórias ao PÁGINA UM, mesmo após contacto do seu autor. Público, Lusa, Expresso e Observador usam a informação da CNN Portugal sem confirmar a veracidade.

    Não poderia nem deveria, portanto, a análise da ERC ao comportamento da CNN Portugal ser realizada posteriormente à das outras queixas, tanto mais que a confirmar-se, como se mostra evidente, graves violações éticas, deontológicas e mesmo legais por parte do jornalista-estagiário, restantes jornalistas e directores da CNN Portugal, de imediato estaria em causa o comportamento dos restantes órgãos de comunicação social.

    Na verdade, condenar a CNN Portugal – que será fácil, se se quiser aplicar os princípios basilares da Justiça, pelas profusas provas documentais e evidências – seria condenar automaticamente o Público, a Lusa, o Expresso e o Observador por terem difundido uma notícia falsa e difamatória (feita pela CNN Portugal), a qual eles nem sequer se deram ao trabalho de confirmar a veracidade. Procedimento este – o não confirmar a veracidade da informação que se veicula – que é já usual na imprensa mainstream.

    Ora, mas a ERC – uma entidade que aparenta regular mais os amiguismos e companheirismos no pequenino e mesquinho mundo da imprensa de um país sem coluna vertebral e independência – não poderia jamais permitir-se a revelar que o “rei anda nu”, e há muito.

    O que fez, então?

    Um reles truque!

    “Engavetou” a primícia queixa contra a CNN Portugal – ou seja, adiou a sua análise sine die –, e põe-se a tratar primeiro da denegação do direito de resposta do Público.

    Comentários na notícia do Público que a ERC diz que “não pode razoavelmente interpretar-se” como associada ao jornalista Pedro Almeida Vieira e ao PÁGINA UM.

    E fez a “coisa” por um prisma tão redutor, tipo antolhos de equídeos, que chegou asnamente à conclusão que “não pode razoavelmente interpretar-se o teor da notícia divulgada pelo Público, bem como a hiperligação nela embebida que remete para a notícia da CNN Portugal, no sentido de ser associada inequívoca e patentemente ao Recorrente [eu] ou ao jornal que dirige [PÁGINA UM], não sendo a expressão ‘página de negacionistas anti-vacinas no Facebook’ subsumível ao conceito de referência indireta suscetível de afetar a reputação e boa-fama de Pedro Almeida Vieira.”

    Portanto, decidiu a ERC pelo arquivamento da queixa, e o Público ficou desobrigado, por agora, de publicar o direito de resposta. A Deliberação da ERC pode ser lida AQUI.

    A referência à pala dos cavalos tem mesmo, neste caso em concreto, um sentido simultaneamente metafórico e literal: de facto, os membros da ERC que assinam uma “coisa” chamada Deliberação só olharam de frente para a notícia online do Público.

    Não desviaram sequer o olhar do seu objectivo pré-concebido – ilibar – para ler os comentários de leitores que facilmente concluíram que a notícia do Público se referia a mim e ao PÁGINA UM. Alguns comentários podem ser lidos AQUI.

    Os doutos membros da ERC nem se dignaram em indagar qual poderia ser então a tal “página”, referidas nos “artigos” da CNN e Público (e outros), que divulgara os dados anonimizados (cumprindo, aliás, a legislação de protecção de dados), se esta não fosse afinal, como era, proveniente do PÁGINA UM, um órgão de comunicação social por ela regulada.

    Aliás, compreende-se bem que a ERC não tivesse escolhido, para o “truque” resultar, a queixa contra o Observador: aí, houve dezenas de leitores que me identificaram e identificaram o PÁGINA UM explicitamente.

    Por uma razão simples: os dados anonimizados das crianças internadas (dados reais, jamais desmentidos) tinham sido unica e exclusivamente divulgados pelo PÁGINA UM. Em jornalismo, o PÁGINA UM fizera aquilo que se chama uma cacha. Era um artigo jornalístico, escrito por um jornalista acreditado. Não havia, como nunca houve, uma publicação de uma “página negacionista”, feita de forma clandestina com conteúdos falsos.

    Aquilo que houve (com o “artigo” da CNN Portugal e seus sucedâneos) foi uma tentativa de “assassinato” de carácter a um jornalista (eu) e a um projecto jornalístico recente independente e incómodo, e que, aliás, já desvelara alguns dos podres da imprensa mainstream, da gestão da pandemia e das ligações promíscuas entre alguns médicos (e a Ordem dos Médicos) e as farmacêuticas. Aliás, basta ler esta secção da Imprensa no PÁGINA UM para compreender os engulhos que este projecto tem causado em certo jornalismo em tão pouco tempo de existência.

    Para a ERC tudo isto não interessa. Precisava de ilibar desde já o Público. E para quê começar pelo Público?

    Porque o “truque” da ERC é simples e eficaz, se não fosse, desde já, denunciado: ilibando o Público, torna-se óbvio que a ERC quer ilibar sobretudo a CNN Portugal com o argumento que tendo, sobre esta matéria, sido o Público já ilibado, então nem sequer merece análise o contacto que o jornalista-estagiário da CNN me fez nem as referências (mais que) implícitas a mim e ao PÁGINA UM no dito “artigo”.

    Portanto, com uma mão se lava assim a outra; mesmo que, no caso em apreço, seja mais a falta de vergonha de toda esta gente que apenas conspurca tudo à volta.

    Tendo sido eu notificado desta coisa chamada Deliberação da ERC sobre a queixa do Público no passado dia 3 de Março – apesar da decisão ter sido tomada em 9 de Fevereiro, ignorando eu as razões desta demora –, apresentei impugnação, ao abrigo do Código do Procedimento Administrativo (CPA) no passado dia 6 de Março. A impugnação pode ser lida AQUI, até por ser relevante sobre as minhas críticas à falta de regulação do jornalismo na cobertura da pandemia.

    Já no dia 3 também solicitara de imediato pedidos de audiência prévia, também prevista no CPA, para conhecer antecipadamente os projectos de Deliberação dos outros processos (incluindo o da CNN Portugal), de modo a poder adicionar outros elementos ou contestar antes de uma decisão. Esse pedido pode ser lido AQUI.

    Ora, mas que fizeram os senhores da ERC, entretanto?

    Correram lestos a publicar no respectivo site da ERC a sua Deliberação que, sem vergonha, ilibava o Público.

    Poderiam fazer isso?

    ERC divulgou Deliberação na terça-feira passada mesmo sabendo que já fora apresentada impugnação.

    Poder, podem, tanto assim que fizeram. Deveriam? Não. Só o fizeram porque faltam a ética e a moralidade ali pela sua sede na Avenida 24 de Julho. A ERC tinha conhecimento que o processo não estava concluído perante a minha impugnação; devia, pelo menos, mostrar recato, mas quis mostrar servilidade à imprensa mainstream.

    Apercebendo-me desta patifaria – não encontro melhor eufemismo –, enderecei anteontem, dia 8, ao presidente da ERC, o juiz Sebastião Póvoas (e depois surpreendemo-nos de a Justiça andar pelas ruas da amargura), o seguinte e-mail: “Tomei conhecimento que a ERC disponibilizou no seu site a Deliberação ERC/2022/52, decorrente de um processo que, como V. Exa. bem sabe, não está concluído por ter merecido da minha parte a competente impugnação. Nesse sentido, agradecia que V. Exa. desse indicação para a retirada da dita Deliberação do V. site até que seja analisada a dita reclamação, sem o que me verei obrigado (para minha defesa) a divulgar no site do PÁGINA UM não apenas a queixa inicial como a V. Deliberação por mim impugnada e a minha impugnação propriamente dita.”

    Que fez o Meritíssimo?

    Não retirou a Deliberação – cair-lhe-iam os paramentos se tal fizesse – e optou apenas por acrescentar a seguinte nota no site: “Esta deliberação foi objeto de reclamação, tendo sido pedida a sua invalidade (anulação), requerimento que vai ser apreciado pelo Conselho Regulador.”

    Acrescento feito no site da ERC após o pedido de retirada da Deliberação impugnada pelo PÁGINA UM, enquanto a reclamação não fosse decidida

    Entretanto, ainda não reagiu a ERC aos pedidos de audiência prévia sobre os outros processos, e sobretudo nem sequer se deu ao trabalho de justificar as razões da primícia queixa contra os jornalistas da CNN Portugal ter ficado a “marinar”.

    Quanto a mim, e ao PÁGINA UM, apenas estamos, com este texto, e a divulgação dos documentos, a cumprir a promessa feita ao presidente da ERC.

    E fazemos outra aos nossos leitores: enquanto Portugal ainda tiver uns laivos de democracia e de vergonha na cara, continuaremos a denunciar as pestilências desta fermosa estrebaria, como disse o Cavaleiro de Oliveira no século XVIII, e também diria no presente. Fermosa e cada vez mais malcheirosa, acrescento eu.

    Podem contar com o PÁGINA UM para defender um jornalismo isento e independente, mesmo perante certos Senhores que, parecendo regular a comunicação social com faca e queijo na mão, não hesitarão em continuar a dar o queijo à imprensa mainstream, enquanto se ajeitam para espetar, à primeira oportunidade, as costas (ou talvez mesmo o peito) de quem denuncia a podridão no jornalismo nacional.

  • Crónicas de um pioneiro (esquecido) da condição negra

    Crónicas de um pioneiro (esquecido) da condição negra

    Título

    A afirmação negra e a questão colonial

    Autor

    MÁRIO DOMINGUES (ensaio e selecção de José Luís Garcia)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Janeiro de 2022)

    Cotação

    17/20 

    Recensão

    Quem percorrer qualquer alfarrabista ou feira de livros velhos, o nome de Mário Domingues (1899-1977) é incontornável. As biografias da série Lusíada – retratando, entre outras, as vidas do Padre António Vieira, do Marquês de Pombal, de reis como D. Afonso Henriques, D. Manuel I ou D. Inês de Castro, do Infante D. Henrique, e até de Moisés – tiveram, durante quase duas décadas, um retumbante sucesso editorial, daí aparecerem agora amiúde.

    Mas Mário Domingues fez muito mais do que isso, mesmo no mundo literário português. Além de jornalista, sobretudo antes da instituição do Estado Novo, foi crítico de pintura – grande defensor dos modernistas, como Almada Negreiros, numa altura em que estes não eram ainda apreciados – e sobretudo prolixo escritor. Não necessariamente de elevadíssima qualidade, mas certamente em quantidade foi quase inexcedível: sobretudo nos anos 50 terá escrito cerca de 150 livros de aventuras, policiais e até de literatura cor-de-rosa, cumprindo assim o seu sonho de viver em exclusivo da escrita.

    Porém, também tinha fito para o marketing. Para evitar a saturação do seu nome, e para dar “credibilidade” aos livros de aventuras, que se passam nos mais recônditos ambientes, este Emílio Salgari português usou e abusou de dezenas de pseudónimos estrangeiros, por vezes em dupla – como Henry Dalton e Philip Gray, “autores” de mais de uma dezena de livros –, por vezes femininos. Em diversas situações, ostentou o seu nome como suposto tradutor de uma obra alegadamente escrita por um estrangeiro, mas em muitos casos optou até por usar pseudónimo como tradutor.

    Também publicou diversos romances em nome próprio, entre 1923 e 1960, além de traduzir obras de escritores consagrados (estes sim, verdadeiros) como Walter Scott, Charles Dickens, George Elliot e Stefan Zweig.

    Não é, contudo, sobre estas questões – embora referenciadas num interessante ensaio introdutório do sociólogo José Luís Garcia, investigador do Instituto de Ciências Sociais – o tema central de A afirmação negra e a questão colonial, uma criteriosa selecção de textos publicados pelo jovem Mário Domingues, no jornal A Batalha, um diário anarcossindicalista, entre 1919 e 1928.

    Nascido numa roça de São Tomé e Príncipe de uma mãe negra que nunca conheceu – o país trouxe-o para Portugal aos 14 meses –, Mário Domingues foi dos primeiros a defender abertamente, em Lisboa, a independência das colónias africanas de Portugal, adoptando nos seus escritos n’A Batalha a causa libertária, manifestando-se contra a exploração dos trabalhadores, a dominação colonial, o racismo, a opressão sobre as mulheres e a tirania política do colonialismo moderno, em defesa da dignidade, da cultura e das organizações da população negra e africana.

    A forma desassombrada como o jovem Mário Domingues, então com 20 anos acabados de fazer, escreve o seu primeiro texto sobre esta temática, acaba por ser surpreendente quando se lêem os seus textos, sobretudo tendo em conta a época e o contexto em que ele se inseria.

    Retratando incidentes raciais nos Estados Unidos em 1919, conhecidos por Red Summer, logo no seu primeiro texto, Mário Domingues não se poupou em críticas: “(…) A imprensa burguesa da Europa não se referiu com mais largueza de vistas a esta questão, dando-lhe o aspecto de simples incidente, porque falar-se de pretos e de brancos implica falar-se de colonização, e colonização, até hoje, ainda não se pode traduzir senão por uma palavra – crime (…)”.

    Embora a chegada do Estado Novo e a sua opção pela profissão de escritor – que ele ambicionava, como confessou em conversa na RTP em 1970, nas vésperas de ser condecorado –, o tenha esmorecido nestas lutas pela condição negra, a leitura de alguns destes seus textos de juventude – que se aconselha vivamente – mostram uma faceta pioneira de um homem de valor inexcedível, infelizmente pouco evocada.

    Num dos seus 62 textos, seleccionados por José Luís Garcia, e agrupados em quatro grupos temáticos, encontramos mesmo um Mário Domingues percursor de Martin Luther King e do seus famoso discurso proferido em 1963. Mais de quatro décadas antes, em 11 de Julho de 1922, nas páginas d’A Batalha, Domingues chega também a relatar o seu “sonho encantador”, mas lamentando ser então o que ainda era: um mero sonho, que se esboroava na realidade.

    Vale a pena, e muito, expor breves passagens:

    Tive um sonho belo, um sonho delicioso, cor-de-rosa, como costumam ter as crianças ternas. Vivia feliz, uma felicidade de oiro, uma felicidade jamais gozada, toda feita de serenidade de espírito, daquela serenidade que nasce da consciência sossegada, sobre a qual não pesa a menor sombra de crime, nem nosso nem alheio (…).

     Recordo-me também de ter percorrido esse país imenso, numa velocidade fantástica, numa velocidade de sonho, e de que essa velocidade não me impediu de o ver todo, desde os desertos infinitos, amarelos, monotonamente amarelos, até os recônditos das cidades; desde as multidões aglomeradas nos campos, fechando a abundância e o bem-estar, até aos homens solitários que, escondidos nos seus lares recatados, meditam e são filósofos, estudam e são inventores (…).

     Não vi nos portais, à chuva e ao vento, velhos e doentes, leprosos como Lázaros, estendendo a mão descarnada a caridade de quem passava; não ouvi tão-pouco os gemidos dos encarcerados – que não havia –, nem dos oprimidos chicoteados; os homens não se tratavam de chicote em punho, nem se insultavam violentamente. Havia bondade e tolerância, afabilidade e simpatia nas suas relações (…).

    Onde julgava ir encontrar cadeias sombrias, deparavam-se-me escolas encantadoras, construções higiénicas, e as crianças, longe de apresentar um aspecto miserável, eram sorridentes, cativantes na sua ingenuidade; o seu olhar, em vez de possuir a expressão medrosa dos pequenos torturados, dos precocemente infelizes, tinha franqueza e audácia (…).

    – Diz-me, jovem, que mundo é este, tão atraente como os teus olhos negros, tão belo como o teu rosto fascinante, tão perfeito como o teu corpo de deusa?

    Sorriram nos seus lábios sensuais os seus dentes alvíssimos e a sua voz – cântico harmonioso e embalador – murmurou:

    – É África, continente emancipado.

    Pleno de uma emoção inexplicável, a respiração opressa, o coração perturbado pela novidade feliz, interroguei ainda:

    – E os brancos, os déspotas, onde estão eles?

    Cintilou de novo um sorriso sedutor nos seus dentes alvos:

     – Déspotas, já não há, meu amigo; vai longe o seu tempo. Os bancos compreenderam que não deviam manter o seu predomínio iníquo e os negros conquistaram com a sua fé numa humanidade melhor a sua Independência. Agora, brancos e negros vivem em paz, trabalham juntos e tanto uns como outros têm o mesmo direito à abundância e à alegria que são comuns.

    O sonho terminou aqui. E a visão rápida que de corpos segmentados que baqueiam, de mulheres prostituídas, de povoações incendiadas, de velhos queimados pelas chamas destruidoras, de amantes ultrajados, avolumou-se de súbito, tomou proporções gigantescas, empanou o brilho rutilante do sol e estendeu sobre este mundo ideal a sua asa negra, abafadiça, eliminando da minha alma a impressão radiosa da paz e da bondade – deixando nela gravada apenas a dor de viver numa cidade injusta!”

    Se outro mérito não tivesse esta obra produzida por José Luís Garcia – e tem, e muitos –, já valeria pelo resgatar do esquecimento da figura de Mário Domingues, pouco conhecida e muito menos ainda reconhecida. Leitura recomendava, sobretudo para quem julgar que o sonho da completa emancipação negra e a desejada harmonia racial é “coisa” recente.

    Nota: Até dia 28 de Março encontra-se patente na Biblioteca Nacional uma mostra sobre Mário Domingues na Sala de Referência, sendo a entrada livre. 

  • Prefiro uma sociedade com idiotas a uma sem ideias

    Prefiro uma sociedade com idiotas a uma sem ideias


    Se desejarem perceber a razão do título, então terão de acompanhar-me num breve exercício de História. Não prometo que entenderão, mas fica o convite para me acompanharem.

    Vamos para o século XVIII. Século de guerras. Como todos, infelizmente. Mas este começou o rufar de tambores bem cedo.

    Entre 1700 e 1721, deu-se a chamada Grande Guerra do Norte, que envolveu a Rússia, Dinamarca-Noruega e Saxónia-Polónia, que desafiaram a supremacia da Suécia na zona do Báltico.

    Abrangeu todo o período da Guerra da Sucessão Espanhola (1701-1714), onde andaram em pleitos sangrentos, entre outros Estados, o Sacro Império Romano, Áustria, França, Baviera, Portugal e duas facções de Espanha. O nosso marquês das Minas chegou até a tomar Madrid por uma quarentena de dias em 1706, acabando escorraçado pelo povo espanhol.

    Pela Europa a paz deambulou por quase duas décadas. Ressurgiu com a sucessão do trono: o da Polónia, para o qual até um irmão do nosso D. João V esteve candidato. Resolveu-se com uma guerra que começou em 1733 e terminou cinco anos mais tarde, com refregas sanguinolentas entre austríacos, franceses, sardos, espanhóis e pretendentes ao trono daquele país.

    people gathering on street during nighttime

    Não houve duas sem três. Chegado o ano de 1740, veio a Guerra da Sucessão Austríaca, até 1748, tomando-se de agressivas razões austríacos, bávaros, holandeses, britânicos e espanhóis. Neste ínterim, Áustria e Prússia ainda tiveram tempo de se guerrear pela posse da Silésia, território hoje quase todo pertencente à Polónia, mas ainda com pedaços na Alemanha e República Checa. O primeiro período de guerras foi de 1740-1742, depois 1744-1745 e, por fim, 1752-1762.

    Apanhou assim a muito conhecida Guerra dos Sete Anos (1756-1763), que foi uma verdadeira guerra mundial nos principais continentes, e que contou com os “suspeitos do costume”: Áustria, França, Grã-Bretanha, Prússia, Rússia, Suécia, e claro também Portugal e Espanha – que onde esteve um, esteve outro, sempre opostos.

    Como maus vizinhos, a Espanha chegou a invadir-nos, mais uma vez, à conta de sermos aliados dos britânicos, coisa que se resolveu a contento na denominada Guerra Fantástica – nuestros hermanos foram mais derrotados pelas diarreias e pelo Tejo do que pelas armas lusitanas.

    Resumamos a “coisa” até ao final do século, até porque não é somente de guerras que este texto trata.

    Portanto, ainda tivemos a conhecida Revolução Americana (1775-1783), e não havendo pouca, ainda lhe sucedeu a Revolução Francesa, a partir de 1787, que não acabaria, com as suas batalhas e ajustes de contas, antes da chegada de novo século.

    Isto foi na Europa, porque nas colónias dos países europeus muita bordoada houve. No continente asiático contabilizam-se as guerras carnáticas – na região sul da Índia – envolvendo França e Grã-Bretanha quase ininterruptamente entre 1701 e 1761. Na América do Norte houve a Guerra da Rainha Ana, entre 1702 e 1713.

    Podemos ainda incluir aqui, de fugida, a Guerra dos Emboabas (1708-1709), em Minas Gerais, envolvendo bandeirantes paulistanos e colonos portugueses recentes, por conta do ouro. Mais acima, entre 1715 e 1717 tem de se contar com Guerra de Yamasee, entre colonos britânicos e indígenas.

    Na zona do Caribe, bem como na Flórida e Geórgia, entre 1738 e 1748 decorreu a denominada Guerra da Orelha de Jenkins – que teve, como seu casus belli, a orelha cortada de um capitão britânico por um outro espanhol. A Espanha também se meteu.

    Mais para norte, também franceses andaram com britânicos a banharem-se em sangue entre 1744 e 1748, na denominada Guerra do Rei Jorge. Anos depois, em 1754, meteram-se os Cherokee ao barulho. Somente cessaram hostilidades em 1763.

    No último quartel do século XVIII ocorreu ainda, fora da Europa, a primeira fase das Guerras Maratha (1775-1782), em território colonial britânico na Índia. E ainda antes do final desse centúria, na região da África do Sul, deram-se, em 1779, os primeiros tiros das Guerras da Fronteira do Cabo, entre o povo xhosa e os holandeses e mais os ingleses. Duraram quase um século.

    Apenas uso o século XVIII, por ser centúria que a Enciclopédia Britânica lista com muitas guerras e poucos anos de paz. E escolhi o século XVIII e não o XIX, porque este ainda teve mais guerras: 36. E o século XX uma mais: 37.

    Mary and Jesus statue

    Com duas décadas e mais uns pós no século XXI, a Enciclopédia Britânica conta apenas três guerras (desconta os “pequenos” conflitos, mesmo se sanguinários): Afeganistão (2001-2014), Guerra do Iraque (2003-2011) e Guerra Civil da Síria (desde 2013).

    Notem: sendo certo que, nas últimas décadas, “apenas” houve três conflitos intensos, todos tiveram vários anos de duração.

    Assim, mesmo tendo em conta as horríveis fatalidades do actual conflito, a histeria quase generalizada que campeia pela imprensa, pelos políticos e pela população, numa época de globalização e de manipulação, está a reunir todos os ingredientes para se transformar tudo isto numa terrível e carnificina guerra. Exige-se coração frio e cabeça calma.

    Saibamos uma coisa: Putin é como aquele meliante que enquanto jovem se foi “alimentando” do desleixo exterior quanto à educação das crianças, foi bebendo do desprezo de adolescente, mas que agora, enquanto ele empunha a arma no assalto, surge um coro de co-responsáveis por inércia e inerência a chamar-lhe nomes feios.

    Caramba! Agora?! O homem, sendo facínora, está armado (na verdade, com um arsenal nuclear) e é imprevisível? Qual é a parte que não se percebe?

    Putin não é um comboio que apenas quer derrubar um país, ou até o Mundo, e que tem de ser parado.

    Putin é um comboio sim, e nada amistoso, mas está já em andamento. Não pára só porque lhe acenamos que tem de parar.

    Agora é que se quer atacá-lo com cocktails molotov à la suicida, enquanto se grita mais nomes feios? Será essa a solução para evitar males maiores?

    [Porque, nesta fase, já haverá, infelizmente, muitos males, mas muitos mais a evitar]

    Ou deverá simular-se uma fuga estratégica à la D. João VI – reflictam bem sobre ela, porque foi de grande argúcia –, para depois, com mais calma e melhor estratégia, atacar o inimigo em outras condições, como se fez no século XIX com Napoleão Bonaparte?

    brown concrete statue of a man

    E agora a pergunta retórica: que tem isto a ver com o título do texto?

    Tudo, ou nada.

    A História, minhas senhoras e meus senhores.

    A importância da História.

    A importância de sentir que esta não é a primeira batalha do Mundo, ou já guerra, como se queira, e nem seguramente será a derradeira.

    E, em suma, a importância de fazer e sonhar, de imaginar e cogitar, de dizer disparates e de ideias brilhantes, de não ter medo de opinar, de não ter receio em dizer uma idiotice. Calarmo-nos, ou impedir que outros falem – ou não queiram falar – pode sempre, é certo, poupar-nos de ouvir idiotas; mas também evitar que tenhamos homens com coragem para ideias brilhantes.

    Não queiram calar pessoas.

    Não queiram impor um mundo maniqueísta.

    Não permitam a manipulação, mesmo se parecer boa.

    Não cometam injustiças apenas porque há um tempo indecente e facínora de uma determinada nacionalidade.

    Não queiramos um Mundo impoluto de idiotas apenas porque ficou, o Mundo, destituído de ideias.