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  • Ronaldo, Diogo Jota e a moral dos abutres

    Ronaldo, Diogo Jota e a moral dos abutres


    Há uma velha tendência humana – que a imprensa-abutre sensacionalista e as redes sociais elevaram à condição de vício pandémico – de querer vigiar os gestos dos outros, medir-lhes o coração, e acusá-los quando não cumprem aquilo que se julga, não uma regra, mas uma expectativa narcísica da comunidade observadora.

    E é este o ponto fulcral do circo moralista que se formou, como se fosse vigília digital de almas, à volta da ausência de Cristiano Ronaldo no funeral de Diogo Jota. Não tardaram os inquisidores do costume a vociferar contra o egoísmo, a frieza, o desrespeito. Não por amor ao morto, note-se, mas por desejo de escândalo. Por necessidade de recriminar. Por impulso mimético de pertença ao grupo dos bons.

    Foto: D.R.

    Mas que espécie de ética é essa que mede o luto com cronómetro e o amor com a geografia do GPS? Que tipo de moral pedante e vazia exige a presença física num ritual fúnebre como critério de compaixão verdadeira? Só uma moral feita de pose e aparência, só uma ética moldada à selfie e ao post. O mundo moderno, saturado de imagens e sedento de comoção pública, já não aceita a dor íntima, silenciosa, invisível. Precisa de encenações. E se o actor principal – neste caso, Cristiano Ronaldo – não entra em cena, o público reclama reembolso emocional e ensaia vaias morais.

    É preciso recordar aos zeladores do sofrimento alheio que o luto não é um teatro. O luto é muitas vezes um retiro, uma sombra, um recolhimento. É exactamente o contrário de tudo aquilo que os acusadores de Ronaldo parecem exigir. E se ele tivesse comparecido? Muito provavelmente, as mesmas vozes que hoje lhe apontam o dedo diriam que era exibicionismo, que era vaidade, que era marketing. Porque o problema, afinal, nunca é o acto em si, mas quem o comete. E quando se trata de Ronaldo, o público quer vê-lo, não importa a circunstância, para depois poder julgá-lo.

    Foto: D.R.

    Cristiano Ronaldo não é um santo, nem quer ser. E também não é um político, nem deve fingir sentimentos para a câmara. É um homem, um desportista de excelência, e – por mais que custe a quem o odeia – é talvez o português mais admirado e respeitado fora de portas. E será porventura também o mais odiado cá dentro, justamente por isso.

    A mediocridade nacional, sempre tão caseira, sempre tão dada ao despeito, não perdoa que alguém do nosso sangue ouse voar mais alto que o campanário da aldeia. Assim, tudo o que Ronaldo faz – ou deixa de fazer – é analisado com microscópio moral por uma turba que só encontra sentido na existência quando descobre um deslize, uma ausência, um gesto imperfeito.

    A crítica à ausência de Ronaldo no funeral de Diogo Jota não é movida pelo amor ao falecido, nem sequer pelo culto da memória. É apenas o reflexo de um espírito do tempo doente, em que os mortos são usados como pretexto para julgar os vivos. A dor tornou-se espectáculo e o respeito, obrigação teatral. Quem não chora em público é cínico. Quem não publica homenagem é frio. Quem não se curva diante do caixão é insensível. E, paradoxalmente, os que gritam essa moral são os que não toleram o silêncio, que não aceitam que o tributo mais digno possa ser justamente a recusa da encenação.

    Foto: D.R.

    Há algo de profundamente ignóbil nesta ética da comoção obrigatória. É uma espécie de necrofilia moral, onde a morte de alguém só serve para se devassar a vida dos outros. Ninguém sabe o que Ronaldo fez em privado, o que sentiu, se telefonou à família, se rezou em silêncio. E não tem de saber. Porque o luto não se presta a boletins nem a selfies. E, se ainda há alguma dignidade possível neste mundo em que a morte virou argumento de cliques, talvez seja essa: a de respeitar quem escolhe viver o pesar sem o partilhar com a turba.

    Confesso, de resto, que não me agrada que o herói popular português por excelência seja um homem do entretenimento desportivo. Preferiria, por vocação e convicção, que esse papel estivesse reservado à ciência ou à literatura. Talvez alguém das Ciências, ou da História, ou um grande romancista, pudesse ocupar esse lugar simbólico.

    Mas a realidade é o que é. E é inegável que Cristiano Ronaldo, com a sua personalidade determinada, a sua persistência de ferro e uma disciplina que muitos doutores invejariam, construiu um percurso admirável. Consolidou-se como um verdadeiro self made man, saído de um dos estratos mais humildes da sociedade para se afirmar, à escala global, como um dos homens mais reconhecidos e celebrados do nosso tempo. Subiu social e financeiramente, por mérito próprio, até ao topo de uma montanha onde poucos chegam. E por isso, perante o que conquistou e o que também perdeu – e não falo apenas de tempo e energia, mas de anonimato, de liberdade e da possibilidade de ser apenas um homem comum – talvez mereça, até, que se lhe perdoe algumas falhas.

    a statue of an angel surrounded by greenery

    Mas se falhas comete – como qualquer humano – não ir a um funeral não será, de forma alguma, uma delas. O funeral é, para quem vai, um acto de despedida, um rito pessoal. Para quem não vai, pode ser, igualmente, um gesto de recato, um respeito que prefere manter-se em silêncio. O que se vê aqui não é falta de compaixão. É a recusa de alimentar a máquina de voyeurismo que exige que tudo se torne espectáculo, até a dor.

    Quem exige de Ronaldo um luto visível fá-lo não por respeito ao falecido, mas por gula emocional, por instinto de tribunal moral, por frustração mal disfarçada. Ronaldo, quer se goste ou não, continuará a viver como símbolo e projecção de uma ideia de sucesso que incomoda. E os seus críticos, esses, continuarão a usar cadáveres para julgar os vivos – o que, convenhamos, é infinitamente mais vil do que não aparecer num funeral.

  • Tribeca & Moedas: o problema não foi o jantar; foi tudo o que se gastou e escondeu depois da sobremesa

    Tribeca & Moedas: o problema não foi o jantar; foi tudo o que se gastou e escondeu depois da sobremesa


    Durante meses, o único rasto visível nos contratos públicos sobre os gastos do município de Lisboa com o festival Tribeca Lisboa — uma franquia luso-adocicada do evento nova-iorquino apadrinhado por Robert De Niro — era um modesto registo no Portal Base: a aquisição de um jantar por 6.230 euros, adjudicado à empresa As Patrícias, ao abrigo de um ajuste directo.

    Nada mais. Nenhum contrato com a Impresa, a entidade organizadora, nenhuma nota explicativa sobre os reais encargos públicos, nenhuma referência aos montantes transferidos. O silêncio era ensurdecedor. E, não fosse o esforço persistente e meticuloso de um jornalista da revista Sábado, este caso permaneceria submerso no pântano burocrático onde se enterram, diariamente, os vestígios do despesismo estatal.

    Agora soube-se, por via de uma investigação persistente — e é uma pena haver tão poucas — publicada na revista Sábado, que afinal o jantar foi apenas o amuse-bouche. O verdadeiro banquete foi servido à Impresa, grupo privado de comunicação social que detém, entre outros, a SIC e o Expresso.

    Só daqui foram 500 mil euros retirados directamente dos cofres da Câmara Municipal de Lisboa, por empenhos operados a alta velocidade após instruções vindas do gabinete do presidente Carlos Moedas. Acrescem ainda mais 250 mil euros do Turismo de Portugal, que decidiu também financiar o festival — tudo para que a Impresa pudesse pagar os “direitos” do evento norte-americano e assegurar a presença simbólica de De Niro, mesmo que o actor tenha passado despercebido à maioria dos lisboetas.

    Em rigor, o que está em causa não é apenas a saloiice institucional de importar um festival nova-iorquino, ainda por cima mal organizado, para se tirar umas fotografias ao lado de um actor famoso. Nem tampouco o habitual enlevo provinciano de políticos que confundem política cultural com festas mediáticas. O que se passou com o Tribeca Lisboa é mais grave: é um exemplo cristalino de como se instrumentalizam recursos públicos para fins privados, com intermediação política e total opacidade.

    Note-se o padrão: o festival não foi uma organização municipal, nem promovido por qualquer entidade pública. Foi uma operação integral da Impresa, cujo objectivo era — como sempre — reforçar a marca e a influência do grupo. Mas, ao invés de procurar investidores ou assumir o risco financeiro do evento, recorreu-se à “via Moedas”: um atalho de poder que, em apenas três semanas, desbloqueou meio milhão de euros da autarquia. Sem concurso, sem critérios públicos conhecidos, sem transparência.

    Pior: com silêncios reiterados e recusa de entrega de documentos a jornalistas que, desde Novembro de 2024, tentam obter explicações junto da Câmara e da EGEAC.

    Este caso só não é escândalo maior porque o país político já se habituou à promiscuidade entre comunicação social e poder. Entrevistas “fofinhas” — como a de Daniel Oliveira a Carlos Moedas no Alta Definição — tornaram-se moeda de troca num sistema onde os favores circulam, os elogios se compram, e os interesses se protegem. A fotografia ao lado de De Niro — paga com o dinheiro dos lisboetas — resume bem o espírito da coisa: um marketing político montado para alimentar egos, seduzir audiências e garantir reverência jornalística.

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    Tribeca é um conhecido bairro de Nova Iorque e o nome de um festival de cinema norte-americano.

    Se isto fosse apenas vaidade, poder-se-ia sorrir e passar adiante. Mas não é. Trata-se de um modelo de governo assente em peculato de uso: recursos públicos canalizados para eventos que promovem, em primeiro lugar, os próprios decisores. Um sistema que, por falta de escrutínio institucional, se normaliza e perpetua, onde cada euro gasto parece menos um investimento cultural e mais uma operação de auto-publicidade. Não há aqui qualquer racionalidade económica ou cultural, apenas um cálculo político e mediático.

    Pior: estes gastos são deliberadamente escondidos dos cidadãos. São dispersos por diferentes fontes (autarquias, empresas municipais, organismos do Turismo), canalizados por ajustes directos, ocultos sob rubricas vagas e não publicitados em tempo útil. É preciso escavar muito — como agora se viu — para expor o que deveria estar à vista de todos. E isso é, talvez, o sinal mais preocupante do estado a que chegou o exercício do poder local e central: a transparência converteu-se em slogan, não em prática. Carlos Moedas até criou um Departamento de Transparência — mas, ironicamente, nunca respondeu às perguntas sobre os apoios ao Tribeca Lisboa.

    O caso do Tribeca Lisboa mostra como o país político continua a comportar-se como se vivêssemos sobre um poço de petróleo. Gasta-se com ligeireza, distribui-se dinheiro como se nada fosse, sempre com a convicção de que o contribuinte pagará — e, no fim, ainda agradecerá, hipnotizado por uma selfie ao lado de um actor de Hollywood.

    Mas Portugal não é um poço de petróleo. É um país endividado, com escolas por requalificar, hospitais a colapsar e transportes públicos obsoletos, que pouco aposta verdadeiramente na Cultura. Cada euro entregue à Impresa — um grupo privado de comunicação que deveria viver dos seus leitores e espectadores — é um euro que falta noutro lado. Setecentos e cinquenta mil euros daria quase para uma longa metragem em Portugal. E o que Moedas fez não foi apoiar a Cultura. Foi financiar, com o dinheiro dos lisboetas, a vaidade de um festival e a máquina mediática que o serve.

    Em suma, o problema não foi o jantar. Foi tudo o que se gastou e foi escondido depois da sobremesa.

  • Carta aberta ao jornalista Luís Ribeiro, um serventuário

    Carta aberta ao jornalista Luís Ribeiro, um serventuário


    Luís Ribeiro,

    agradeço a deferência — embora algo envergonhada — com que me dedicas umas linhas no X, em resposta à coima que a ERC aplicou à tua empresa, a Trust in News, por difundir conteúdos de publicidade encapotada, usando jornalistas — entre os quais tu próprio és nomeado. A tua tentativa de desvalorizar o assunto, como se estivesses acima das suspeitas, é uma vã manobra para te descolar de uma realidade que, a cada passo, te envolve mais: a de ser jornalista ao serviço de uma empresa com mais dívidas do que escrúpulos.

    E agradeço, porque assim me deste incentivo para esta carta aberta, que para ti não terá préstimo — porque manifestamente não prestas como jornalista nem como pessoa —, mas poderá ter para outros, talvez os mais jovens jornalistas. Como aviso. Até porque, salvo erro, te conheço desde 2001.

    Trabalhas(te) para a Trust in News, um grupo editorial com um capital social de uns meros 10 mil euros — igual ao do PÁGINA UM, por isso nada contra. Mas olhas para o PÁGINA UM com um indisfarçável desdém. Compreendo: há uma grande diferença: PÁGINA UM não deve nada a ninguém, não faz fretes e exerce um jornalismo independente, enquanto o teu estimado empregador carrega um passivo superior a 30 milhões de euros, incluindo calotes ao Estado que ultrapassam os 15 milhões.

    Como se não bastasse, tem o dono e um dos gerentes (Luís Delgado) já uma condenação por abuso de confiança fiscal. É esta a entidade de referência do teu jornalismo — e não, não fui eu quem a classificou como tal, foi a própria Justiça.

    Foi nesse ambiente que, a pedido da tua directora e amiga, Mafalda Anjos, resolveste então deixar a dignidade profissional à porta da redacção e prestar serviço à causa do Ministério do Ambiente e da empresa pública Águas de Portugal, para lhe cuidares do marketing. A pretexto de uns Prémios Verdes, fizeste um fretes multicoloridos. Produziste então meia dúzia de artigos fofinhos, pintados de verde esperança e inocência editorial. E agora vens jurar que foste livre, que não recebeste nada além do salário, como se a ausência de suborno directo fosse um atestado de honra. Ora, Luís, isso não abona sequer da tua inteligência. Se mercadejas a tua pena, ao menos exige as trinta moedas de prata… Fica-te mal prostituíres a profissão e ainda por cima de forma gratuita.

    Tweet de Luís Ribeiro no X

    Não fui só eu que te chamei à pedra. A própria ERC — esse Conselho que dizes “estapafúrdio”, só porque, por uma vez, resolveu ver para além da espuma — referiu o teu nome cinco vezes na deliberação, onde conclui que a Trust in News difundiu conteúdos publicitários disfarçados de jornalismo. Isso tem um nome: publicidade encapotada. E o teu nome lá está, Luís, gravado com tinta que nem o teu desdém consegue apagar.

    Depois, num gesto pueril, resolves atirar contra mim — atacas o mensageiro —, aludindo aos meus “conflitos” com a ERC, como se isso te conferisse superioridade. Mas até aqui falhas o tiro. Sim, tenho conflitos com a ERC. Porque exijo melhor regulação, mais transparência e menos conivência com aldrabices editoriais e poderes instituídos.

    Mas sabes o que mais? Dois dos processos em tribunal foram sim interpostos por mim contra a ERC no Tribunal Administrativo de Lisboa por me negarem acesso a documentos administrativos. Ganhei ambos — vê lá isto! Um jornalista que não cede a um não institucional e até mete a entidade que o regula num tribunal. Perdeu-se o respeitinho, não é, Luisinho? Temos de ser bem comportadinhos, não é? Isso mesmo!

    Além disso, em quase quatro anos de PÁGINA UM, não fui alvo de uma única contra-ordenação, nem de qualquer processo judicial activo. Nem um. Apesar de toda a espuma e névoa que se tem colar contra o projecto editorial do PÁGINA UM inexiste uma qualquer falha, uma qualquer condenação.

    Portanto, falemos de fretes? Eu não faço. Prefiro perder leitores a perder a espinha. Tu, Luís Ribeiro, escolheste o caminho contrário: achaste normalíssimo ajoelhar diante das Águas de Portugal e do Ministério do Ambiente e servir de megafone a patrocinadores públicos, como se o jornalismo fosse uma extensão do gabinete de comunicação do regime. Depois bateste no peito, meteste um cravo à lapela, abriste o X para o mundo e, com solenidade revolucionária de funcionário público em hora extraordinária, proclamaste-te impoluto, livre e independente.

    Pois bem: e a tua consciência, essa, meteste-a no contentor azul — junto dos folhetos recicláveis que andas a assinar.

    O Luís Ribeiro fez artigos noticiosos para cumprir contratos de patrocínio, e ainda defende no X que “TODOS o fazem. A ERC não vive no mundo real”. São os jornalistas que matam o jornalismo.

    E agora ainda tentas, num chilique de vitimização, fingir que estás acima da polémica quando, na verdade, estás mergulhado até à raiz do teclado na lama de um jornalismo serventuário.

    E fica-te bem uma lição final: se não queres ser confundido com um mercador de notícias, então pára de te comportar como um.

    Pedro Almeida Vieira

  • Negligência, crime & sangue nas políticas de Saúde Pública

    Negligência, crime & sangue nas políticas de Saúde Pública


    Desde 2022 que o PÁGINA UM trava uma batalha judicial aparentemente absurda – mas, na verdade, profundamente reveladora – contra a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). Lutamos pelo acesso à base de dados dos internamentos hospitalares, que é gerida por essa entidade pública. E lutamos não por um capricho jornalístico ou por qualquer fetiche com estatísticas, mas porque acreditamos, com convicção inabalável, que a informação é o primeiro antídoto contra a negligência e o primeiro instrumento da responsabilidade política.

    A base de dados existe – ponto final. O Tribunal Administrativo de Lisboa reconheceu, com clareza, o nosso direito de acesso. A ACSS recorreu, e perdeu. Voltou a recorrer, e voltou a perder. O Supremo Tribunal Administrativo, no Verão de 2023, encerrou o assunto com um acórdão cristalino. Mas em vez de cumprir, a ACSS decidiu trilhar o caminho do absurdo burocrático e da resistência kafkiana. Mais um processo arrasta-se agora para forçar os seus dirigentes a libertarem a informação, numa dança cínica de poder institucional contra o interesse público.

    black stethoscope with brown leather case

    E que informação é essa? Informação que poderia permitir avaliar a real incidência das doenças por região, identificar padrões de falhas no sistema hospitalar, detectar atrasos nos diagnósticos, comparar o desempenho entre hospitais, e até compreender melhor se os investimentos em saúde produzem resultados efectivos. Em suma, dados que, tratados com inteligência e independência, poderiam salvar vidas e corrigir injustiças. Mas, em vez disso, são mantidos num cofre institucional selado a sete chaves pela cultura opaca da nossa Administração Pública.

    A verdade, porém, é ainda mais perturbadora: Portugal não sofre de falta de dados. Sofre, isso sim, de falta de vontade – e de coragem – para os usar. Veja-se o exemplo do SICO – o Sistema de Informação dos Certificados de Óbito. Trata-se de uma ferramenta raríssima no panorama internacional: permite acompanhar, em tempo real, onde e porquê morrem os portugueses. Com esse sistema, poderíamos detectar rapidamente surtos epidémicos, falhas nos serviços de saúde, doenças com comportamentos anómalos. Poderíamos antecipar. Poderíamos agir. Mas não: usamos o SICO como se fosse apenas um notário da morte, e não como um radar da vida.

    Mais grave: quando os dados são usados, é muitas vezes para branquear políticas ou sustentar retóricas. A Escola Nacional de Saúde Pública tem-se especializado, com notável zelo, em cumprir este tipo de fretes institucionais. Em vez de ser um centro de pensamento crítico e estratégico, converteu-se numa agência de legitimação das decisões do poder. É uma traição silenciosa, mas perigosa, ao ideal de saúde pública.

    person lying on bed and another person standing

    De quando em vez, na solidão da investigação, detenho-me nos dados estatísticos de Saúde divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). Nem sempre trazem revelações imediatas, mas às vezes surgem indícios alarmantes. Como os dados ontem divulgados, entre informação sobre operações de caixas automáticas multibanco, sobre a taxa de mortalidade por tumores malignos em 2023, com base nos registos do SICO.

    A nível nacional, a taxa é de 2,7 por mil habitantes – um valor que parece aceitável, se olharmos apenas para a média. Mas as médias escondem tragédias, sobretudo quando se diluem em regiões vastas. É nos pormenores, nos concelhos pequenos, que a realidade grita mais alto.De facto, analisando os dados com maior detalhe, constata-se que, em 45 concelhos portugueses, a taxa de mortalidade por cancro em 2023 foi mais de 50% superior à média nacional, que se situa nos 2,7 óbitos por mil habitantes.

    Casos como Mora (7,4 por mil), Gavião (7,2), Lajes das Flores (6,9), Alcoutim (6,2) ou Vidigueira (5,4) revelam dramas locais quase invisíveis à escala nacional. Corrijo: para não relativizar nem suavizar esta realidade, importa aqui identificar todos esses 45 concelhos, onde a taxa de mortalidade por tumores malignos ultrapassa os 4,05 por mil habitantes – valor 50% acima da média nacional.

    Dados do INE revelados ontem. Ninguém os vai analisar. Ninguém analisa os dados do SICO?

    Eis a lista integral: Mora (7,4), Gavião (7,2), Lajes das Flores (6,9), Alcoutim (6,2), Vidigueira (5,4), Santa Cruz das Flores (5,3), Oleiros (5,3), Pinhel (5,3), Sabugal (5,1), Fronteira (5,1), Serpa (5,0), Belmonte (5,0), Crato (4,9), Manteigas (4,8), Alijó (4,8), Góis (4,7), Boticas (4,7), Corvo (4,6), Mêda (4,6), Melgaço (4,6), Almeida (4,6), Chamusca (4,4), Portel (4,4), Valpaços (4,4), Alfândega da Fé (4,3), Vinhais (4,3), Castro Verde (4,3), Santa Marta de Penaguião (4,3), Ferreira do Zêzere (4,3), Sardoal (4,2), Vila Nova de Paiva (4,2), Aguiar da Beira (4,2), Barrancos (4,2), Mértola (4,2), Torre de Moncorvo (4,2), Mação (4,2), Pedrógão Grande (4,2), Alcanena (4,1), Mortágua (4,1), Torres Novas (4,1), Estremoz (4,1), Seia (4,1), Sousel (4,1), Proença-a-Nova (4,1), e Fornos de Algodres (4,1).

    Como explicar estes valores? É certo que o envelhecimento populacional é uma variável relevante – e, em regra, onde há mais idosos, há mais incidência de doenças oncológicas. Mas esta explicação, só por si, é insuficiente. Há concelhos igualmente envelhecidos que registam taxas de mortalidade por cancro bem abaixo da média. A diferença não se resume à idade.

    Importa, por isso, levantar outras hipóteses. Poderão estar em causa factores ambientais, como a existência de antigas explorações mineiras abandonadas e mal descontaminadas, solos ou lençóis freáticos com presença de metais pesados ou substâncias cancerígenas, ou mesmo contaminação da água potável. Também a qualidade da alimentação – fortemente dependente de padrões económicos e culturais locais – pode influenciar o risco de doença oncológica, sobretudo quando associada ao consumo excessivo de carnes processadas, deficiente ingestão de vegetais frescos, ou exposição a pesticidas.

    man in white and black jacket and pants sitting on black surface

    Outros factores, de natureza sistémica, poderão igualmente estar a contribuir. A escassez de rastreios organizados em tempo útil, como os do cancro da mama, do colo do útero ou do cólon e recto, impede diagnósticos precoces. E quando o diagnóstico chega tarde, o prognóstico agrava-se. Acresce, em muitos destes concelhos, a distância significativa até unidades hospitalares com oncologia, radioterapia ou cirurgia especializada, criando barreiras de acesso que nem sempre se vencem com ambulâncias. O tempo e o custo das deslocações – muitas vezes em transportes públicos escassos ou inexistentes – funcionam como obstáculos reais ao tratamento.

    Mesmo os circuitos de referenciação médica podem falhar, ou ser excessivamente lentos, sobretudo quando os centros de saúde locais operam com falta de clínicos experientes, ou quando os doentes são deixados meses à espera por uma consulta hospitalar. E não é difícil imaginar que, nos meios mais isolados e envelhecidos, o desânimo ou a resignação perante a doença também contribuam para o diagnóstico tardio e para a morte precoce.

    Mas a pergunta essencial mantém-se: se os dados estão disponíveis, se os números denunciam estes focos de mortalidade excessiva, porque não se actua?

    Ana Paula Martins, ministra da Saúde.

    Porque não há, no seio da Direcção-Geral da Saúde ou das administrações regionais, uma estratégia específica de vigilância e intervenção dirigida a estes territórios vulneráveis? Quantas destas mortes seriam evitáveis com uma política pública de saúde baseada em evidência, em vez de assente numa gestão inercial de silêncios e rotinas?

    A resposta é dolorosamente simples: porque ninguém quer saber. Porque a saúde pública em Portugal continua refém de um paradigma burocrático, preguiçoso e ineficaz. Porque temos dados – dados extraordinários, únicos até – e não os usamos. E porque, acima de tudo, nos habituámos à ideia de que as mortes por doença são inevitáveis e, portanto, inquestionáveis.

    A verdade, porém, é que há mortes que podiam ser evitadas. Há vidas que podiam ter sido salvas. Se houvesse uma política de rastreios adequada em zonas de risco. Se houvesse vigilância epidemiológica baseada em dados reais. Se houvesse uma rede de saúde que respondesse proporcionalmente aos riscos de cada território. Se houvesse coragem para enfrentar a evidência e para corrigir erros.

    Em Portugal, acredita-se que se ninguém ouvir uma árvore a cair, então ela nunca caiu. É uma filosofia confortável, que iliba os responsáveis e embala as consciências. Mas a árvore caiu. E com ela, muitas vidas.

    person holding amber glass bottle

    A questão que importa agora colocar é esta: quantas dessas mortes foram provocadas, não por um tumor implacável, mas por um Estado indiferente? Quantos diagnósticos falhados? Quantas oportunidades perdidas de prevenir? Quantas mortes, afinal, foram produzidas pela inacção?

    E mais: quantas mais ainda virão? Porque, enquanto se esconderem os dados, enquanto se impedirem jornalistas, investigadores e cidadãos de saber o que se passa realmente, continuaremos a viver numa república em que o sangue escorre em silêncio pelas estatísticas. E a sua morte – sim, a sua – pode ser apenas mais uma célula neste organismo doente que se convencionou chamar sistema nacional de saúde.

  • Da ‘notícia’ do Correio da Manhã sobre um colaborador do PÁGINA UM

    Da ‘notícia’ do Correio da Manhã sobre um colaborador do PÁGINA UM


    Hoje, o Correio da Manhã, com difusão posterior pela CMTV, dirigido pelo jornalista Carlos Rodrigues, decidiu noticiar que a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista passou “cartão a ex-PJ cadastrado”, fazendo referência ao facto de essa pessoa se tratar de João Pedro de Sousa, que efectivamente obteve o título de Colaborador – título distinto do de Jornalista – a pedido do PÁGINA UM, e particularmente de mim.

    O passado de João de Sousa não é segredo nem ele o esconde – e disso mesmo temos falado no podcast ‘A Corja Maldita‘, em que, com a minha moderação, ele participa com o advogado Miguel Santos Pereira. A sua experiência, como consultor forense, será de enorme utilidade para o PÁGINA UM, sobretudo em temas de Justiça, e particularmente no acompanhamento de julgamentos relevantes, como o dos Anjos vs. Joana Marques (a sua crónica inaugural teve mais de 140 mil leituras) ou o de José Sócrates. Nesta fase, João de Sousa recolherá informação e escreverá crónicas ou artigos de opinião.

    Carlos Rodrigues, director editorial do Correio da Manhã e da CMTV, durante uma conferência em que a Medialivre prestou serviços à autarquia de Lisboa, usando jornalistas, a troco de quase 150 mi euros.

    Tenho perfeita noção dos bastidores da imprensa (e dos incómodos causados pelas nossas notícias nos grupos de media) e da Justiça, e por isso das intenções deste tipo de notícias. Mas não deixa de me suscitar cinco perplexidades ter a notícia sido publicada no Correio da Manhã (CM), e difundida na CMTV, órgãos de comunicação social aos quais hoje se remeteu um pedido de direito de resposta, ao abrigo da Lei da Imprensa.

    Primeira perplexidade: o CM foi o primeiro órgão de comunicação social a contar com João de Sousa como colaborador – justamente bem pago – ainda enquanto cumpria pena em 2015. Presumo que lhe reconhecia valor.

    Segunda perplexidade: o título e texto assinado por Miguel Azevedo (que saberá, presume-se, a diferença entre “jornalista” e “colaborador”) denotam um tom claramente depreciativo, sugerindo indisfarçada oposição à reabilitação e reinserção social. Ao invés, até prova em contrário, não discrimino profissionalmente quem procura recomeçar com dignidade. João de Sousa foi libertado em 2018 e não teve qualquer condenação a partir dessa data, sendo reconhecido como consultor forense.

    Terceira perplexidade: numa breve pesquisa encontra-se, entre os quadros da Medialivre, jornalistas com cadastro: Tânia Laranjo, Ana Isabel Fonseca, Eduardo Dâmaso. A primeira destas jornalistas até já foi condenada ao pagamento de uma coima pela Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) por práticas discriminatórias. A nenhum destes jornalistas foi retirada a legitimidade de deter o título de jornalista — mesmo se o crime foi cometido como jornalista.

    Quarta perplexidade: fui eu, enquanto director do PÁGINA UM, quem decidiu solicitar à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista a acreditação de João de Sousa como colaborador – e não como jornalista –, precisamente por uma questão de transparência, responsabilidade e acesso legítimo a fontes de informação. Ao contrário de outros, não temos ‘toupeiras’ nem ‘telhados de vidro’. A CCPJ limitou-se a aplicar a lei: negar-lhe a acreditação seria incorrer numa injustificada discriminação que seria legalmente inadmissível.

    Quinta perplexidade: o CM, que recorre com frequência aos seus jornalistas para executar contratos de prestação de serviços, pagos por entidades externas — situação manifestamente incompatível com o Estatuto do Jornalista —, não parece indignar-se com esse seu modus operandi. Mais surpreende, pois, que seja precisamente este jornal a criticar a emissão pela CCPJ de um simples cartão de colaborador do PÁGINA UM, usando uma página inteira.

    Pedro Almeida Vieira

    Director do PÁGINA UM

    N.D. Na notícia original, estava escrito o seguinte: “Terceira perplexidade: numa breve pesquisa encontra-se, entre os quadros da Medialivre, jornalistas com cadastro: Tânia Laranjo, Sónia Trigueirão, Ana Isabel Fonseca, Eduardo Dâmaso.

    No dia 3 de Agosto, recebemos o seguinte esclarecimento de Sónia Trigueirão: “Não sou quadro da Medialivre. Sai do Correio da Manhã no dia 31 de março de 2019 e ainda era da Cofina. Entrei no jornal PÚBLICO no dia 2 de abril de 2019, onde permaneci até ao dia 31 de março de 2025. Sou quadro da TVI desde o dia 1 de abril de 2025. Não tenho cadastro criminal. Fui condenada num processo cível, infelizmente, e é um facto, por uma notícia escrita no Correio da Manhã, mas tal não configura cadastro, nem tem implicações no exercício da profissão de jornalista. A associação do meu nome a essa lista é profundamente prejudicial e carece de fundamento. Solicito, por isso, que seja feita a correção dessa informação e que se evite a repetição deste erro em futuras comunicações.”

    De facto, tecnicamente, um processo cível não implica registo de cadastro, mesmo que de uma forma popular assim se possa considerar. No entanto, mesmo em processo cível, uma condenação não deixa de ser uma condenação, neste caso no exercício da profissão.

  • Demissão do Conselho Regulador da ERC: ontem já era tarde; hoje já não basta

    Demissão do Conselho Regulador da ERC: ontem já era tarde; hoje já não basta


    Há reguladores que regulam mal. Outros que não regulam. E depois há a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) — que se especializou numa nova modalidade institucional: regular às escondidas, pela calada, escamoteando deliberações, omitindo documentos, arquivando processos que nunca chegam a sê-lo formalmente.

    A recente revelação — forçada pelas perguntas do PÁGINA UM — de que o processo de contra-ordenação ao jornal Público, por alegada violação da Lei do Tabaco, foi discretamente arquivado em Agosto passado sem qualquer deliberação pública, ilustra à saciedade o que se tornou prática no actual mandato de Helena Sousa: uma cultura de opacidade e conivência institucional com os grandes grupos de comunicação social.

    Importa recordar que este processo nascera de uma deliberação formal da própria ERC, em Novembro de 2022, que considerava inequívoca a infracção cometida pelo Público, classificando-a como “muito grave”. O conteúdo em causa era um artigo promocional pago pela Tabaqueira, coincidente com o lançamento do produto de tabaco aquecido IQOS Iluma, e acompanhado de imagens típicas de publicidade camuflada, com a presença destacada do director-geral da empresa. Em termos legais, não havia dúvida para o anterior Conselho Regulador: tratava-se de publicidade ilícita, vedada expressamente pela Lei do Tabaco.

    No entanto, com a mudança de presidência — e a ascensão de Helena Sousa, académica sem experiência jurídica ou percurso em órgãos de regulação —, o que era certo passou a nebuloso. Um processo formal, com deliberação prévia unânime e indícios de contra-ordenação foi eliminado por uma suposta “análise preliminar” da sua Unidade de Contra-Ordenação. E pior: sem qualquer explicação voluntária por parte da entidade que, por dever constitucional, deve garantir a liberdade de imprensa e o acesso dos jornalistas à informação.

    Não é caso único. O PÁGINA UM tem sido forçado a recorrer à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) e aos tribunais para obter documentos que a ERC insiste em esconder. Mesmo após pareceres desfavoráveis, o regulador interpõe recursos, como se fosse parte interessada em proteger segredos que deveriam estar ao serviço da cidadania e da fiscalização democrática. Veja-se um caso recente em que, entre outros assuntos, o Tribunal Administrativo de Lisboa intimou a ERC a entregar ao PÁGINA UM todos os documentos associados com a negócio a venda do JN e TSF (entre outras publicações), cuja deliberação teve 78 rasuras inexplicáveis, apagando como confidencial questões relevantes.

    Exemplo flagrante da falta de transparência da ERC: na autorização do estranho negócio da transmissão / venda de títulos da Global Media à Notícias Ilimitadas aspectos essenciais são escondidos com a palavra CONFIDENCIAL. O Tribunal Administrativo de Lisboa determinou que todos esses elementos deveriam ser acedidos pelo PÁGINA UM, mas a ERC recorreu para a instância superior, mostrando ser adepta do obscurantismo em negócios de media pouco claros.

    Tenho já alguns anos disto para entender que se está perante uma estratégia deliberada da ERC de bloqueio informativo, dirigida especialmente contra jornalistas incómodos e meios não alinhados com os grandes grupos económicos que controlam a imprensa dita de referência.

    A atitude da ERC no processo do Público mostra que a indústria do tabaco, cada vez mais refinada nas suas estratégias de marketing, usa agora os jornais como veículos de promoção “sustentável”, investindo em conteúdos patrocinados, participando em podcasts, colando-se à imagem de inovação tecnológica e responsabilidade social. Com a bênção da ERC, que em vez de sancionar práticas ilegais, arquiva processos às escondidas, transforma “contra-ordenações muito graves” em nada, e cala-se perante perguntas legítimas de jornalistas que fazem o seu trabalho.

    A decisão de não penalizar práticas de publicidade sub-reptícia proibidas por lei junta-se à forma como a ERC tem vindo a aceitar, com passividade cúmplice, contratos de parcerias promíscuas entre grupos de media, empresas privadas e até entidades públicas. As coimas, quando existem, são simbólicas — um teatro jurídico que apenas confirma que, em Portugal, o crime compensa. E é por isso que temos grupos de comunicação social em crise financeira crónica, como a Trust in News, a Global Media ou mesmo a Imprensa, que sobrevivem à custa de publicidade institucional, parcerias obscuras e compadrios com o poder político e económico.

    Se a credibilidade da imprensa anda pelas ruas da amargura, a culpa primordial está precisamente na ERC e no seu Conselho Regulador. Um regulador que se mostra constituído por gente sem qualidade, sem coragem e sem noção da sua função constitucional.

    Helena Sousa, presidente da ERC está ao serviço da liberdade da imprensa ou de interesses pouco claros?

    Ontem, a demissão da presidente Helena Sousa e dos seus comparsas talvez fosse suficiente. Hoje, perante o que se sabe — arquivamentos secretos de processos de contra-ordenação e recusa deliberada de prestar contas —, já nem a demissão basta. Impõe-se, no mínimo, uma auditoria externa e independente ao funcionamento da ERC. E, quiçá, uma responsabilização jurídica dos seus membros, caso se confirme que violaram normas legais e administrativas essenciais.

    A ERC é hoje um caso paradigmático de decadência institucional. Quando o regulador adopta os tiques de prepotência, quando abdica do seu dever de fiscalização, quando protege os fortes e tenta até silenciar os que investigam, vemos que está em curso não uma regulação, mas uma rendição. E é a democracia que fica mais pobre. Porque uma imprensa livre só existe quando há reguladores livres — e não cúmplices — dos poderes que deveriam escrutinar.

  • Serafim: 17 anos cheios de vida

    Serafim: 17 anos cheios de vida


    Formalmente Mascot do PÁGINA UM, com direito a estar incluída na Ficha Técnica, e presumido autor da crónica ‘Arranhadelas’, informamos que o Serafim faz hoje, dia 13 de Junho, 17 inteiros anos de uma rica vida.

  • Portugalidade: uma maçada para a RTP, uma irrelevância para a ERC

    Portugalidade: uma maçada para a RTP, uma irrelevância para a ERC


    No Dia de Portugal, a 10 de Junho, a escritora Lídia Jorge proferiu em Lagos um discurso em que evocou, além da multiculturalidade e da miscigenação do povo português ao longo da História, o papel decisivo de Camões na fixação de uma “língua nova à altura de um pensamento novo”. Mais do que tudo o resto, subscrevo a ideia de que aquilo que verdadeiramente marca Portugal é ser uma Nação — algo que se distingue de um simples país por deter um património que transcende as fronteiras da biografia ou do território.

    Mas mais do que o conceito de Nação, atrai-me o conceito de portugalidade, porque esse é o traço mais subtil e profundo que molda o nosso modo de ser e de resistir — um sentimento que não cabe em estatutos nem se impõe por decreto. E que começa na língua, mas se reflecte, ou deveria reflectir-se, sobretudo no nosso olhar irónico perante o poder, na resistência ao absurdo, na memória entranhada das partidas e regressos, no génio de reinventar-se com poucos meios e no talento invulgar de desconfiar de tudo, inclusive de nós próprios. E isso tem-se perdido.

    Tem-se perdido porque se esvaziou o orgulho em promover Portugal como berço de uma língua com História. Mas o que mais dói é que esta erosão não resulta de ataques externos ou de falantes estrangeiros que tropeçam nos seus sons e ritmos — mas sim de gestores públicos, decisores políticos e instituições nacionais que tratam a língua como um adereço cerimonial ou, pior, como um entrave à modernidade cosmopolita.

    Veja-se, por exemplo, o que fez recentemente a AICEP, ao conceber o pavilhão de Portugal para a Expo 2025 em Osaka, omitindo ostensivamente o uso do português em quase toda a exposição — como se a identidade nacional se limitasse a branding, fado, cortiça e arquitectura de interiores.

    Mas o caso mais gritante — e de consequências directas — passa-se com a RTP, televisão pública que todos os portugueses são forçados a financiar. Por via da factura da electricidade, os contribuintes canalizaram, nos últimos cinco anos, quase mil milhões de euros para uma empresa que tem, entre as suas obrigações legais, uma missão clara: promover e difundir a língua portuguesa, independentemente de audiências, quotas de mercado ou modas.

    Se a RTP é culta e adulta, como se proclama, menos desculpável é o incumprimento na promoção da Língua Portuguesa e da produção audiovisual nacional.

    Ora, aquilo que se exige à RTP não é um capricho cultural nem uma imposição ideológica. É uma norma legal expressa, consagrada no artigo 44.º da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido, que estabelece que os canais com cobertura nacional, como a RTP2, devem emitir, anualmente, pelo menos 50% da sua programação em língua portuguesa, excluindo publicidade, televenda, autopromoções e serviços de teletexto. E, dentro dessa quota, pelo menos 20% deve corresponder a obras criativas produzidas originariamente em português, contando-se até às cinco primeiras exibições de cada obra.

    Não são meras orientações: são obrigações legais que visam preservar o espaço público audiovisual como território da nossa Cultura. Deveriam ser consideradas sacrossantas.

    Porém, pelo menos desde 2017, a RTP2 tem incumprido sistematicamente ambas as exigências. Durante cinco anos consecutivos, pelo menos, por agora, até 2021, falhou o mínimo de 50% de programação em português e nunca atingiu os 20% de obras criativas originais. Tudo documentado em relatórios públicos da ERC. E, ainda assim, nenhuma consequência prática.

    Golden Gate Bridge

    Num país decente, uma infracção sistemática como esta teria consequências óbvias: demissão da administração, apuramento de responsabilidades políticas e aplicação de sanções efectivas. Mas em Portugal, as obrigações legais são tratadas como metáforas regulamentares — enunciados solenes sem qualquer valor operativo. As normas existem, sim, mas para parecerem existir. E a ERC, em vez de agir com firmeza, entretém-se há anos a “instar”, numa coreografia burocrática onde a indignação nunca chega e a penalização nunca dói.

    Por cada infracção anual por incumprimento dos limites mínimos de emissão de programas em língua portuguesa e de produção nacional, a RTP poderia ser punida com uma coima de até 200 mil euros. Considerando que se verificaram dois incumprimentos por ano, o valor acumulado poderia, em teoria, ascender a 400 mil euros. Mas a ERC, magnânima e indulgente, decidiu sancionar de forma simbólica: em 2023, aplicou uma multa de 15 mil euros, e mandou o INBAN para a RTP pagar. E no mês passado, numa deliberação tornada pública esta semana, subiu generosamente a fasquia para… 16 mil euros.

    Isto não chega para pagar dois episódios de uma série de segunda linha, e nem atinge o bolso e o cargo dos administradores e directores de programa da RTP. E é uma quantia que nem sequer incomoda uma estrutura mastodôntica com orçamento anual a rondar os 200 milhões. É, na prática, uma palmadinha indulgente, um convite à reincidência, uma forma discreta de arquivar o incómodo. Como se dissesse: “Sim, falharam, mas enfim… todos falham. Continuem.”

    Helena Sousa, presidente da ERC: ainda se concede um desconto na multa pelo incumprimento recorrente dos níveis de promoção da Língua Portuguesa por parte de uma empresa pública que recebe quase 200 milhões de euros dos consumidores de electricidade.

    Portugalidade? Isso parece uma maçada para a RTP — mas também uma irrelevância para a ERC, que aplica multas como quem distribui advertências escolares a alunos preguiçosos. E, para os portugueses — esses que financiam tudo isto através da factura da luz —, uma palavra vazia, que serve para discursos floridos no 10 de Junho, mas que, no dia seguinte, já ninguém quer levar a sério. Muito menos quem devia levá-la à letra.

    E, com igual certeza, haverá mais um discurso, em português irrepreensível, a entoar loas cerimoniosas à Portugalidade — enquanto, nos bastidores, se continua a tratá-la como um empecilho dispensável.

  • Dinheiro, morte e silêncio: como a Saúde Pública se tornou um mero negócio de interesses

    Dinheiro, morte e silêncio: como a Saúde Pública se tornou um mero negócio de interesses


    Vem nos manuais, como ensinamento quase sagrado: a agenda setting — esse processo pelo qual determinados temas ganham centralidade no debate público — não é neutra. Depende, antes de mais, de quem fala, de como fala, e sobretudo de quem tem acesso privilegiado aos meios de comunicação.

    Num cenário ideal, a imprensa funciona como guardiã da relevância: um watchdog vigilante que impede que o ruído da propaganda se sobreponha às necessidades reais dos cidadãos. A imprensa, nesse modelo, não apenas filtra os temas da agenda política, mas molda-os segundo critérios de interesse público — e não segundo interesses comerciais ou corporativos.

    a stethoscope on top of a pile of money

    Hoje o ‘cão de guarda’ dorme ao colo de quem deveria vigiar, ronrona quando lhe estendem uma ração publicitária e ladra apenas quando a farmacêutica estala os dedos. E sobretudo no sector da Saúde, onde as emoções são tão inflamáveis quanto os milhões em jogo. Nos últimos anos — e muito em especial durante a pandemia da covid-19 — assistimos a uma inversão perversa do papel da comunicação social. Longe de agir como mediadora independente, a imprensa tornou-se co-agente de um conluio entre interesses privados (sobretudo da indústria farmacêutica), entidades reguladoras capturadas e ministérios complacentes. Ao invés de fiscalizar, participou. Ao invés de questionar, amplificou. Ao invés de desconfiar, vendeu.

    Os media têm vindo a abdicar, cada vez mais, do seu papel fiscalizador para assumirem o de arautos e correias de transmissão de campanhas comerciais. Durante a pandemia, esse fenómeno atingiu o paroxismo: testes vendidos como salvação, vacinas endeusadas como tótem da civilização, fármacos experimentais glorificados antes mesmo de qualquer avaliação crítica.

    O Ministério da Saúde, os reguladores e uma parte significativa da comunidade médica — transformada em figurino de publicidade institucional — pactuaram, em aliança obscena, com este novo regime sanitário-mediático. Aquilo que se seguiu foi previsível: venderam-se vacinas e testes como quem vende electrodomésticos num canal de telecompra, com médicos mercenários a apresentarem o produto e jornalistas a assegurarem que não haveria espaço para dúvidas nem para alternativas.

    Alternativas essas que, ironicamente, foram diabolizadas não por falta de provas científicas, mas por excesso de interesses. Veja-se a ivermectina, cujo debate foi abafado com histeria moralista, enquanto se publicavam estudos que, mesmo sem conclusões definitivas, mereciam consideração científica, como se pode observar nesta meta-análise publicada já este ano no Annals of Medicine and Surgery.

    Em 2020, a jornalista Filipa Traqueia, actualmente no jornal Expresso, achou por bem dissertar no Polígrafo sobre a (in)utilidade da vitamina D, usando como fonte de informação o pneumologista Filipe Froes, um dos médicos com maiores ligações mercantilistas à indústria farmacêutica, conselheiro da DGS e da Ordem dos Médicos e ‘guru’ para a comunicação social durante a pandemia.

    E sobretudo veja-se o caso da vitamina D, com provas acumuladas sobre o seu papel imunológico, transformada em suplemento menor por não trazer dividendos a multinacionais. Afinal, há mais lucro em administrar fármacos novos a milhões do que em distribuir sol e bom senso. Logo no início da pandemia, esse arauto do Jornalismo e da Ciência — estou a ironizar — chamado Polígrafo (e seguido por outros) tratou logo de menorizar a utilidade da vitamina D na prevenção e tratamento da covid-19. Isto, claro, com a imprescindível ajuda de um dos maiores mercenários da indústria farmacêutica, Filipe Froes.

    Hoje, sobre a covid-19, sabe-se que “níveis baixos de vitamina D aumentaram o risco de infecção entre 1,26 e 2,18 vezes, o risco de doença grave entre 1,50 e 5,57 vezes, o risco de admissão em unidades de cuidados intensivos (UCI) em mais do dobro, e o risco de morte entre 1,22 e 4,15 vezes”, citando ipsis verbis as conclusões de uma meta-análise publicada este ano na Nutrition Reviews, da prestigiada Oxford Academic.

    Mas se a pandemia foi um campo fértil para este jornalismo de parceria — entre aspas e sem ironia possível —, os anos que se seguiram não mostraram arrependimento. Pelo contrário, refinaram-se os métodos, disfarçaram-se melhor os conluios, construíram-se narrativas com roupagens de ciência e compaixão.

    A nova fronteira de conquista são as doenças raras, sobretudo em idade pediátrica: um terreno fértil para comover corações, amolecer decisões orçamentais e justificar tratamentos a preços pornográficos. O objectivo é simples: quanto mais rara for a doença e mais jovem o doente, mais fácil será colocar o fármaco na agenda pública. Basta um caso mediático, uma associação de pais com boas relações, uma imprensa dócil e, claro, um ex-director de farmacêutica agora estrategicamente colocado numa comissão do Infarmed ou em cargo político com acesso ao Orçamento.

    O caso ontem revelado pelo PÁGINA UM, sobre a entrada na Secretaria de Estado da Gestão da Saúde de um quadro da farmacêutica Sanofi, que negociou a compra de anticorpos monoclonais contra o Vírus Sincicial Respiratório (VSR), é paradigmático. A doença, cuja mortalidade é inexistente em Portugal, foi promovida à categoria de emergência sanitária. Resultado? Vinte milhões de euros em compras públicas para imunizar todos os recém-nascidos, incluindo os que nunca estariam em risco. O produto é caro, a doença tornou-se mediaticamente “fofa” — por força das conferências e notícias sobre o tema, mercadejadas pela imprensa — e o argumento parece inatacável: salvar alguns bebés do sofrimento e trauma de um eventual internamento. O agenda setting resulta nisto.

    Quem ousará pôr travão, redefinindo prioridades? A imprensa — cúmplice, dependente e indiferente — não. As sociedades médicas, muitas delas sustentadas por apoios da indústria, também não. E os decisores políticos, alimentados pelo vaivém das portas giratórias entre Estado e farmacêuticas, muito menos.

    Francisco Gonçalves, ex-Sanofi, e Ana Paula Martins, ex-Gilead: as ‘portas giratórias’ entre as farmacêuticas e o Ministério da Saúde.

    Enquanto isso, o que sobra da saúde pública degrada-se em silêncio. Urgências encerradas. Hospitais saturados e mal equipados. Jovens médicos desmotivados e explorados, ao passo que as elites clínicas fazem fortuna acumulando salários públicos e avenças privadas. Listas de espera que se arrastam até ao absurdo. E, cereja pútrida no cimo do bolo, até mesmo doenças associadas à água potável e ao saneamento — ou à falta deles — a matarem 525 pessoas no ano de 2023 em Portugal.

    Este número degradante foi publicado ontem discretamente pelo INE, sob a forma de “taxa de mortalidade devida a fontes de água insalubre ou a condições de saneamento e higiene deficientes ou inexistentes por 100.000 habitantes” (vd.aqui). Destas 525 mortes em 2023, três terão sido crianças com menos de 5 anos — portanto, mais do que mata o VSR. Em 2010, estes problemas sanitários tinham sido a causa de 116 óbitos, nenhum dos quais de crianças. Ninguém, na imprensa mainstream, que tem dezenas e dezenas de jornalistas, pegou no assunto. Tal como ninguém fez eco da notícia do PÁGINA UM em Setembro do ano passado onde já se revelava essa vergonhosa tendência de crescimento.

    Sobre isto não há reportagens de abertura de telejornal? Onde está a indignação? Onde estão os editoriais de fundo?

    Evolução da mortalidade por grupos etários entre 2010 e 2023 para doenças associadas a fontes de água insalubre ou a condições de saneamento e higiene deficientes ou inexistentes. Fonte: INE. Cálculos: PÁGINA UM com base na taxa de mortalidade e estimativas anuais da população por grupos etários.

    Não estão. Porque essas mortes, por insalubridade e desleixo, não geram publicidade, nem contratos de venda de fármacos, nem parcerias. São mortes pobres de interesse, sujas de realidade. E dessas, a Senhora Ministra da Saúde, ex-Gilead, e o Senhor Secretário de Estado da Gestão da Saúde, ex-Sanofi, não estão para aí virados, porque a imprensa também não os faz virar para aí. Aquilo que interessa mesmo é vender fármacos, porque basta um contrato, enviar um camião com os medicamentos salvíficos (ou não tanto) e fazer a transferência bancária com o dinheiro dos contribuintes para os cofres dos accionistas das farmacêuticas.

    Sem os chatos dos jornalistas watchdogs, agora amestrados em petdogs, o mundo tornou-se distópico: sobrevivemos sem noção de que a Saúde Pública serve quase só para, com contínuos negócios, alimentar uma contínua dependência dos fármacos do sector farmacêutico, que nos salvarão sempre, excepto prova em contrário, que nunca se procurará.

  • O Humor nos tempos do puritanismo: até o Diabo será censurado e encarcerado

    O Humor nos tempos do puritanismo: até o Diabo será censurado e encarcerado


    Vivemos em tempos perigosos para o pensamento. Tempos de lápis azul digital, de fogueiras morais disfarçadas de virtude cívica, de censores de toga que não se chamam Torquemada mas se julgam apóstolos da redenção social. Tempos em que, dos jornais aos tribunais, passando por grupos de puritanos ideologicamente diversificados — com o zelo puritano dos convertidos —, se decide quem pode ou não fazer humor, quem pode ou não rir e, sobretudo, de quem se pode ou não fazer troça.

    A condenação do humorista brasileiro Léo Lins a mais de oito anos de prisão, por fazer piadas, marca um momento histórico sinistro — não apenas no Brasil, mas no mundo civilizado que supostamente defende a liberdade. Léo Lins foi acusado de “racismo recreativo”, um neologismo ideológico que traduz uma ideia perigosa: a de que o riso é admissível apenas quando sancionado pelos dogmas do politicamente correcto. Um riso domesticado, asséptico, higienizado — como se a função do humor fosse reforçar consensos em vez de os questionar.

    Léo Lins

    O caso de Léo Lins não deve ser olhado de forma isolada. Representa o sintoma máximo de uma metástase que alastra: a ideia de que as palavras ferem como punhais, que piadas são crimes, que perpetuam preconceitos e estereótipos, que a ironia é perigosa se não vier acompanhada de uma cartilha de inclusão. O humor sempre foi uma forma de transgressão simbólica. A sua função, desde Aristófanes aos Monty Python, passando até pelo nosso Gil Vicente, não é confortar nem elogiar, mas desestabilizar. Rir do poder, das convenções, dos dogmas — e também das fragilidades humanas. O humor é o último reduto da liberdade de pensamento porque recusa ser domesticado. A democracia não pode querer domesticar o humor, qualquer que ele seja, mesmo que se trate de uma má piada.

    Mas essa liberdade está agora em risco porque se está a impor uma nova moral que recusa a transgressão. Cada grupo social, cada identidade, cada tribo autoproclamada ofendida exige imunidade à crítica e santidade de tratamento. E quando todos exigem ser tratados como santos, o mundo torna-se um imenso altar de porcelana — onde ninguém ousa mexer sob pena de blasfémia. A consequência é terrível: o humor deixa de ser arte e torna-se liturgia. Não se pode rir de um judeu, de um indígena, de um obeso, de um deficiente, de uma mulher, de um transexual — e não tarda, não se poderá rir sequer de um banqueiro, de um político, de um padre ou de um juiz. Porque todo o riso, mesmo o mais leve, será interpretado como violência simbólica.

    Este moralismo não nasce da bondade — nasce de um desejo de controlo. Da vontade de impor o silêncio àquilo que perturba, àquilo que ironiza ou rasga o véu da perfeição socialmente encenada. E o problema não é a necessidade de defesa das minorias. O problema é a sua canonização — e a transformação da crítica, do sarcasmo e da caricatura num acto sacrílego.

    Pergunto-me: que escreveria hoje Gil Vicente? Ou melhor: que fariam hoje a Gil Vicente, se escrevesse agora aquilo que escreveu no século XVI?

    O dramaturgo português, pai do teatro em língua portuguesa, escreveu há mais de 500 anos peças onde ridicularizava padres libidinosos, almocreves aldrabões, prostitutas sem escrúpulos, velhas devassas, judeus gananciosos, frades desonestos, corregedores corruptos, sapateiros trapaceiros e, sobretudo, a falsa santidade dos que se julgavam virtuosos. A sua obra-prima — Auto da Barca do Inferno — é um desfile de estereótipos: o frade leva consigo a amante Florença; o judeu tenta comprar indulgência; o sapateiro gaba-se da sua religiosidade enquanto vende calçado falsificado; o cavaleiro quer entrar no Céu porque morreu em combate, esquecendo-se dos seus pecados de soberba e opressão. É o julgamento universal, sim, mas feito com escárnio e maldizer.

    Praticamente todas as personagens vicentinas seriam hoje canceladas à primeira leitura. Representar o Frade seria tido como ofensa à fé católica. A Florença, exemplo flagrante de objectificação misógina. O Judeu, manifesto de antissemitismo. O Almocreve, caricatura abjecta de classe. A Velha do Auto da Cananéia, puro idadismo intolerável. A moça de A Sibila Cassandra, mais um caso de misoginia estrutural. Os pastores e vaqueiros, alvo de acusação por ridicularização grotesca das populações rurais. E, inevitavelmente, algum zelador académico denunciaria Gil Vicente por exercer “violência simbólica interseccional”.

    Aquilo que hoje passa por sensibilidade é, na verdade, censura travestida de virtude. A arte, incluindo a ficção, está a perder o direito de ofender. E até o humor está a perder o direito de errar. Porque todo o erro é lido como malícia, toda a sátira como agressão, toda a caricatura como opressão.

    É certo que há limites — sempre houve. Mas esses limites eram antes atribuídos pelo bom senso, pelo gosto, pela reacção do público — pela sociedade no seu todo, não por um tribunal inquisitorial. Quando um juiz define o que é aceitável no humor, o riso morre. E quando o riso morre, nasce o medo. O medo de escrever, o medo de representar, o medo de rir.

    Chegamos à conclusão de que Gil Vicente viveu, afinal, com mais liberdade do que os artistas de hoje. Escreveu as suas peças na transição entre a Idade Média e o Renascimento, quando Portugal ainda não conhecia a Inquisição formal — e mesmo depois desta surgir, o seu génio sobreviveu porque o ridículo era aceite como forma de crítica social. Hoje, porém, não vivemos um Renascimento, mas aparentemente uma nova Idade das Trevas, onde os censores não queimam livros — cancelam ou prendem pessoas.

    Eis a hipocrisia do nosso tempo: grita-se liberdade enquanto se ergue um muro de vigilância moral à volta de cada palavra. Dissimula-se a censura com o pretexto da inclusão. E, enquanto isso, o humor, que é um acto de coragem, torna-se um acto de risco judicial.

    Os novos inquisidores têm medo do riso porque sabem que ele desmonta as verdades absolutas. Rir de alguém não é odiá-lo — é reconhecê-lo como humano. A sátira aproxima mais do que afasta. Vivemos um tempo de pseudohipocriasia: essa mistura tóxica de hipocrisia e exigência histérica de perfeição, que quer proteger os indivíduos do mundo em vez de os preparar para ele.

    Se Léo Lins fosse condenado por incitar à violência, à perseguição, ao ódio concreto, não haveria polémica. Mas foi condenado por palavras ditas num espectáculo de comédia — por piadas. E isso deve aterrorizar-nos, porque o que hoje se aplica ao humorista, amanhã aplicar-se-á ao cronista, ao romancista, ao jornalista, ao historiador.

    O problema do nosso tempo não é a ofensa — é a intolerância a qualquer dissonância. Não é a violência das palavras — é a fragilidade de quem se recusa a ouvi-las. E, quando a fragilidade se transforma em arma de poder — então sim, já não rimos. Trememos.