Etiqueta: Editorial

  • Morreram 75 jovens a mais. E há investigadores do Instituto Nacional de Saúde que são ou preguiçosos ou incompetentes

    Morreram 75 jovens a mais. E há investigadores do Instituto Nacional de Saúde que são ou preguiçosos ou incompetentes


    Susana Silva, Ana Rita Torres, Baltazar Nunes e Ana Paula Rodrigues são investigadores do Departamento de Epidemiologia do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), e receberam a incumbência de realizar um relatório que tem, “como objetivos, descrever a evolução da mortalidade por todas as causas durante o ano de 2022 [semana 01/2022 à semana 52/2022 (03 janeiro de 2022 a 01 janeiro de 2023)], bem como identificar e analisar os períodos de excesso de mortalidade identificados.”

    Sem prejuízo de ser uma análise muito criticável em muitos aspectos – como já expus esta quinta-feira –, certo é que, pela primeira vez, se viu um relatório de uma instituição oficial a referir um tema tabu: o excesso de mortalidade “no grupo etário entre os 15 e os 24 anos”, cuja afectação directa pela covid-19 foi nula (ou até com balanço favorável, porque a mortalidade dos doenças respiratórias nestas idades até regrediu).

    people holding shoulders sitting on wall

    Esta informação não me surpreendeu. Alertei sobre este problema pelo menos três vezes no PÁGINA UM: em 3 de Setembro e em 15 de Novembro do ano passado,  já este ano, em 2 de Janeiro:

    Mas que fizeram estes quatro investigadores do INSA? Foram analisar as causas para esse tão grave desvio? Nada disso. Especularam somente e passaram adiante. Na página 16 escreveram apenas: “Os excessos de mortalidade nos grupos mais jovens são raros estando, maioritariamente, associados a causas externas de mortalidade. A ausência de informação disponível quanto às causas de morte não nos permite confirmar esta hipótese que colocamos como mais provável, dado o conhecimento anterior e o padrão do excesso observado (aumento acentuado em relação ao habitual e de curta duração).”

    O negrito é meu. E esta pergunta também: mas que raio de investigadores são estes que, perante um excesso de mortalidade num grupo etário que congrega naturalmente tanta preocupação, descartam qualquer análise posterior, assumindo de forma leviana ser “provável” que siga um padrão de “causas externas”? E como podem investigadores – que investigam nesta área da epidemiologia – dizer que existe uma “ausência de informação disponível”?

    São eles preguiçosos?

    Análise feita em 2 de Janeiro passado pelo PÁGINA UM para o grupo etário dos 15 aos 24 anos: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e excesso de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do excesso de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável. Fonte: SICO.

    Ou são eles apenas incompetentes?

    Qualquer um destes dois predicados são incompatíveis com a função de (bom) investigador.

    Vamos lá ver. Recordo-me que recentemente – em Maio do ano passado, para ser mais concreto – houve grande burburinho mediático e político porque se soube que “morreram 17 mulheres devido a complicações da gravidez, parto e puerpério, em 2020”, o valor mais alto dos últimos 38 anos. São 17 óbitos em cerca de 100 mil gravidezes por ano. Mas logo se anunciou a criação de uma “equipa com especialistas de diferentes áreas para investigar o problema.”

    Ora, sabe-se que o excesso de mortalidade no grupo etário dos 15 aos 24 anos durante o ano passado foi de 65 mortes superior à média do quinquénio anterior à pandemia. Morreram 375 jovens; a média para o período de referência foi de 310. Se se considerar o quinquénio 2017-2021 a média é de 314.

    Estamos perante um desvio de 75 mortes em relação ao valor que seria expectável para esse ano (face à redução do número de jovens). É um acréscimo relativo muito significativo, que não pode ser descartado numa frase sobre uma alegada “ausência de informação disponível”: 20% acima da média dos cinco anos anteriores.

    black and white cat on brown wooden shelf

    Face a um desvio de 20% não é o padrão da “causa externa” que nos deve surgir como a mais “provável” – a menos que tenha caído uma camioneta cheia de estudantes por uma ribanceira e ninguém se tenha apercebido disso.

    Se houve um desvio tão pronunciado e repentino num curto espaço de tempo, o mais provável é que o padrão tenha sido quebrado; não o contrário.

    Além disso, como é possível que investigadores do INSA, ainda mais do Departamento de Epidemiologia, ignorem os seus direitos (mas também os deveres) de acesso à informação que lhes concedeu a lei que instituiu o Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO)?

    Se não sabem, eu relembro-lhes. De acordo com a Lei nº 15/2012, que criou o SICO – onde se integram dados não disponibilizados ao público, como os certificados de óbito de cada falecido – no seu artigo 12º, “os dados constantes do certificado de óbito podem ser disponibilizados pelo diretor-geral da Saúde às entidades do Ministério da Saúde responsáveis pela vigilância epidemiológica, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 7.º da Lei n.º 67/98, de 26 de outubro.”

    four people sitting on wooden stair

    E para que não haja dúvidas, a Lei Orgânica do Ministério da Saúde estipula, no seu artigo 18º, que “o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, I. P., abreviadamente designado por INSA, I. P., é o laboratório do Estado que tem por missão contribuir para ganhos em saúde pública através da investigação e desenvolvimento tecnológico, actividade laboratorial de referência, observação da saúde e vigilância epidemiológica, bem como coordenar a avaliação externa da qualidade laboratorial, difundir a cultura científica, fomentar a capacitação e formação e ainda assegurar a prestação de serviços diferenciados, nos referidos domínios.”

    Portanto, e dizem estes quatro investigadores que estamos perante uma “ausência de informação disponível”?

    Repito, por isso a pergunta: são estes quatro investigadores do INSA apenas preguiçosos ou incompetentes? Ou estão antes a tentar relativizar e esconder uma verdade inconveniente?

  • Jornalistas (muitos): os ferreiros sem espeto nem pau

    Jornalistas (muitos): os ferreiros sem espeto nem pau


    Ponto prévio: “O jornalista deve lutar contra as restrições no acesso às fontes de informação e as tentativas de limitar a liberdade de expressão e o direito de informar. É obrigação do jornalista divulgar as ofensas a estes direitos.” Esta é uma das normas do Código Deontológico dos Jornalistas. Posto isto, siga, e justifica-se, o editorial…

    Imaginemos que, por exemplo, um jornalista do Expresso fazia um requerimento ao Governo a solicitar documentos ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, isto num cenário em que se via obrigado a invocar a lei para obter informação, porque não lhe bastaria um simples telefonema ou e-mail.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    Eu sei que é um exercício que exige demasiada imaginação: não tanto por mim – que colaborei vários anos no Expresso –, mas por ser difícil imaginar o Expresso (ou outro órgão de comunicação social mainstream) de hoje a “morder nas canelas” do Governo ao tal ponto de invocar leis para aceder a documentos…

    Mas imaginemos então esse pedido, e que, na volta do correio, o jornalista do Expresso receberia a seguinte resposta:

    Embora o Governo reconheça que tal informação nunca foi requerida e o número de documentos, não obstante ser morosa, não configure propriamente um impedimento, a verdade é que a finalidade do acesso aos documentos é, em si, manifestamente abusiva. E é assim porque o requerente tem vindo, ao longo do último ano, a mover sucessivos pedidos de acesso aos mais variados documentos na posse da Governo, acabando por fazer um uso abusivo dos mesmos quando a eles tem acesso, concretamente através da publicação no Expresso, aliada a outras tantas sobre o Governo e o seu Primeiro-Ministro.

    O que acham que aconteceria? Como reagiria a classe jornalística? Como reagiria o Sindicato dos Jornalistas? Como reagiria a Entidade Reguladora para a Comunicação Social? Como reagiria a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista?

    Pagaria para ver.

    man in white t-shirt sitting beside woman in white t-shirt

    Porém, resposta similar obtive, não do Governo, mas, pasme-se, da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, que integra apenas jornalistas. E isto porque pedi formalmente diversos documentos, entre os quais actas de reuniões, diligências tomadas em sede de processos de averiguação e disciplinares a jornalistas e também a decisões quanto a remunerações dos nove membros do Plenário de uma entidade de direito público.

    A resposta, esta semana transmitida, contém esta e outras “pérolas”:

    “Embora o Secretariado reconheça que tal informação nunca foi requerida e o número de documentos, não obstante ser morosa, não configure propriamente um impedimento, a verdade é que a finalidade do acesso aos documentos é, em si, manifestamente abusiva. E é assim porque o requerente tem vindo, ao longo do último ano, a mover sucessivos pedidos de acesso aos mais variados documentos na posse da CCPJ, acabando por fazer um uso abusivo dos mesmos quando a eles tem acesso, concretamente através da publicação no “Página Um”, aliada a outras tantas sobre a CCPJ e a sua Presidente.

    Convém referir que as minhas expectativas face a esta CCPJ estão já abaixo de zero, como se pode constatar pela cobertura noticiosa e opinativa que lhe temos dedicado no PÁGINA UM. A sua inacção em diversas matérias – como o fechar os olhos às relações promíscuas entre grupos de media e determinadas empresas é um exemplo –, já não tem cura. Mas convinha que não enterrassem a própria essência do jornalismo, abrindo uma caixa de Pandora perante a passividade da classe só porque se deparam, pela primeira vez, com um jornalista que não quer ser corporativista nem agradar à classe.

    gray microphone in room

    Imaginar que se pode dar uma resposta daquele quilate a um jornalista – invocando uma norma legal, isto é, o ser “manifestamente abusivo”, porque acham os pedidos “chatos” – é dar em simultâneo “instruções” ao Governo, à Administração Pública, às empresas e a todas as entidades para tratarem, do mesmo modo, outros jornalistas.

    Para a jornalista (credo!) Licínia Girão e para o jornalista (duplo credo, porque também ensina estudantes de Comunicação Social), que assinaram a carta a mim remetida, haver um jornalista a pedir, por exemplo, actas de reuniões e documentos de remuneração (numa altura em que a CCPJ pretendia aumentar as receitas através de uma subida dos emolumentos) é “manifestamente abusivo”. Presumo que já não seria se eu lhes cantasse loas.

    Mas não me surpreendendo que a CCPJ (tal como em tempos a Entidade Reguladora para a Comunicação Social) tenha este tipo de atitudes pouco adultas (fazendo “birras”, porque os incomodam), também sei como as “coisas” funcionam em corporações – e sei muito bem o quão corporativista é a classe jornalística.

    Por isso, não me espanta, embora lamente, que, por exemplo, as minhas tentativas de telefonemas e de mensagens para o presidente do Sindicato dos Jornalistas, Luís Simões, para lhe chamar a atenção para a gravidade da reposta da CCPJ, tenham ficado sem qualquer resposta. Ainda mais porque a resposta da CCPJ lhe seguiu por mensagem de correio electrónico. Compreendo o seu silêncio, dentro do contexto da classe.

    person holding ballpoint pen writing on notebook

    Afinal, por que carga de água o presidente do Sindicato dos Jornalistas teria de reagir ao PÁGINA UM, que é um “minúsculo” jornal e que ainda por cima só faz pedidos “manifestamente abusivos”? E logo pedidos manifestamente abusivos à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, onde pululam figuras tão gradas de uma imprensa onde todos se conhecem e se cruzam.

    Na verdade, ignore-se um “minúsculo” jornal que, para recordar os assuntos que levámos até às últimas instâncias, também faz pedidos manifestamente abusivos ao Governo.

    Pedidos manifestamente abusivos ao Conselho Superior da Magistratura.

    Pedidos manifestamente abusivos ao Ministério da Saúde.

    Pedidos manifestamente abusivos ao Infarmed.

    Pedidos manifestamente abusivos à Ordem dos Médicos.

    Pedidos manifestamente abusivos à Ordem dos Farmacêuticos.

    Pedidos manifestamente abusivos à Direcção-Geral da Saúde.

    Pedidos manifestamente abusivos ao Instituto Superior Técnico.

    printing machine

    Pedidos manifestamente abusivos ao Banco de Portugal

    Pedidos manifestamente abusivos à Inspecção-Geral das Actividades em Saúde.

    Pedidos manifestamente abusivos à Administração Central do Sistema de Saúde.

    E tantos mais fará…

    Por isso, e pedindo desculpas (enfim, sarcásticas) por não fazermos no PÁGINA UM um jornalismo fofinho, sem abusos, e muito menos manifestos – passem muito bem com o vosso conceito de “manifestamente abusivo”. O PÁGINA UM, lamento desiludir-vos, não vai fazer o jornalismo que a maioria de Vossas Excelências deseja: jornalismo domesticado, amorfo e que se banqueteia com o poder. No dia em que tal me suceder, deixarei de ser jornalista.


    Nota final: A Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos já se pronunciou esta semana sobre uma primeira recusa da CCPJ aos documentos solicitados pelo PÁGINA UM, dando-nos inteira razão. Abordaremos este assunto, com detalhe noticioso, na próxima semana.

  • Este desavergonhado Público: do “apagão” a Pedro Girão ao “apagão” a Carmo Gomes

    Este desavergonhado Público: do “apagão” a Pedro Girão ao “apagão” a Carmo Gomes


    Em 19 de Agosto de 2021, o Público escreveu, apagando, uma negra página na História do Jornalismo, “despublicando” – eufemístico termo para censura em tempos de (suposta) democracia – um artigo de opinião do médico Pedro Girão sobre tema delicado mas essencial: a vacinação de menores de idade contra a covid-19. Hoje sabemos ser questão mais do que controversa. E pior do que isso, o seu director Manuel Carvalho teve até a desfaçatez de vangloriar-se de tão vil acto, pois defendeu que “recusamos em absoluto promover juízos que tendem a negar a importância ou o relativo consenso científico em torno das vacinas”.

    Não satisfeito, ontem, o jornal Público – tragicamente liderado por Manuel Carvalho, o tal director que, certo dia, decidiu ser legítimo difamar-me, porque supostamente o PÁGINA UM estaria a contrariar um suposto e necessário “consenso social” em torno da vacinação contra a covid-19 – publicou uma entrevista a Manuel Carmo Gomes, alegado epidemiologista e membro da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC).

    A entrevista titulava-se “Toda a gente deveria tomar uma dose de vacina bivalente”, e foi um dos artigos mais lidos do Público de ontem.

    Manuel Carmo Gomes

    O título da entrevista foi retirada da resposta à seguinte pergunta:

    A quem, fora dos grupos de risco, recomendaria a vacinação nesta fase?

    E que teve a seguinte resposta:

    De um modo geral, recomendaria que toda a gente tomasse uma dose da vacina bivalente [que só chegou a Portugal no último trimestre de 2022 e cujas versões mais recentes têm uma componente da Ómicron e outra do vírus original]. Esta vacina que está a ser administrada ajuda o sistema imunitário a reconhecer toda esta sopa de subvariantes que estão à nossa volta e que com o tempo vão continuar a mudar.

    Portanto, a vacina é recomendada para adultos acima dos 18 anos e eu penso que é sensato as pessoas tomarem-na, porque, no que diz respeito a doença grave, ficam mais protegidas e, no que diz respeito a infecção, ficam protegidas temporariamente.

    E recordo: não é boa ideia as pessoas serem infectadas pela covid, porque já percebemos que existem riscos de complicações de toda a ordem. E não é necessário ser uma infecção grave que leve ao hospital. O vírus chega praticamente a todos os órgãos internos, tem uma grande propensão para originar microtrombos na parede interna de veias e artérias, vai ao sistema neurológico, tem uma função de desregulação do sistema imunitário. Isto não é uma “gripezinha”. É verdade que o facto de já terem sido vacinadas confere às pessoas uma maior protecção. Um estudo feito em Portugal mostra que, ao fim de oito meses, a chamada imunidade híbrida (a pessoa que foi vacinada e também foi infectada) confere uma protecção de aproximadamente 60% contra infecção, comparativamente às pessoas que foram apenas vacinadas e não foram infectadas. Agora, isto não é uma segurança absoluta, não evita que as pessoas sejam infectadas.

    grayscale photography of woman praying while holding prayer beads

    Parte desta resposta entretanto desapareceu (os trechos acima marcados a negro em itálico), onde até se falava de uma “sopa de subvariantes” (uma parvoíce, diga-se), e a pequena entrevista viu então acrescentados os seguintes novos trechos, tendo até o título alterado para “Covid: Para pessoas saudáveis, a decisão de vacinação deve ser individual“, que não constavam, portanto, da entrevista original:

    Para pessoas saudáveis com mais de 18 anos, a decisão deve ser individual. Se no caso das pessoas com factores de risco (insuficiência cardíaca, renal, pulmonar, imunocomprometidos…) a recomendação de vacinação deve ser universal, para uma pessoa saudável a vacina não tem problemas, é segura e tem vantagens, mas cada um deve fazer a sua avaliação de risco.

    Um taxista, uma pessoa que trabalha numa caixa de supermercado, pessoas que têm contacto com o público, correm um risco maior de ser infectados, enquanto para alguém que vive mais na sua bolha familiar e com apenas algum contacto com colegas de trabalho, o risco é menor. As pessoas devem fazer a sua avaliação sobre até que ponto estão expostas à infecção e isso deve entrar na decisão de se vacinarem ou não.

    Tudo isto feito acompanhado apenas por uma simples nota de editor – aditando que Carmo Gomes “entendeu clarificar a sua posição inicial” – pouco lhes importando que, hélas, se fez um injustificável “apagão” em concreto, pois o jornal fez desaparecer o que antes fora dito, como se nunca tivesse sido dito. Felizmente, mesmo no digital, nada se apaga definitivamente. Nem a vergonha.

    Variações das declarações de Carmo Gomes na entrevista ao Público. As primeiras 13 linhas e meia da versão original desapareceram e foram substituídas por outras declarações, modificando mesmo o título.

    Este “apagão” da resposta de Carmo Gomes (não houve “clarificação; houve uma pessoa sem vértebras a “fugir com o rabo à seringa” do que disse na entrevista) é tanto ou mais grave do que o “apagão” cometido contra Pedro Girão há cerca de ano e meio. Onde com o “apagão” ignominioso do texto de Pedro Girão houve censura, no “apagão” a favor de Carmo Gomes houve deslealdade aos leitores. E leitores, esses, que podem pensar ser isto (“apagar” frases quando se mostram inconvenientes) uma prática comum no jornalismo. Não é. Não pode ser. Não quero admitir que seja.

    Um verdadeiro jornalista, um jornal sério, deve saber que há princípios sagrados, ainda mais numa entrevista. Textual. Deve corrigir-se um evidente erro ou um lapso, se for da responsabilidade do jornalista. Por exemplo, uma transcrição malfeita, uma edição das frases que as tornam ambíguas ou com sentido contrário. Mas nada mais. Assim dito, assim fica dito. Doa a quem doer.

    Arrependendo-se o entrevistado daquilo que disse – e que foi publicado –, não pode JAMAIS um jornal sério, um jornalista credível, um director decente, aceitar APAGAR alguma coisa nem sob tortura ou encerramento. Apagar é reescrever a História; é condescender com os poderes, que, assim, podem sempre dar o dito por não dito, com o contributo de jornalistas-fantoches, disponíveis invertebrados, sempre prontos a “rectificações”, se entretanto as reacções públicas ou privadas assim o aconselharem.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    O Público não é um jornal qualquer. Podem agora os jornalistas que lá estão, o seu director e o editor que fez este intencional “apagão”, um favorzinho, ou mais do que isso, desejar a morte do jornalismo sério e respeitável, que tem o dever de ser fiel apenas aos leitores. Mas não podem aguardar que jornalistas sérios aceitem os seus actos com candura, dizendo: “mais uma do Público”.

    O Público não é – pelo seu percurso, pela qualidade dos jornalistas que lá passaram, e por alguns poucos que ainda lá estão – um jornal qualquer. Deve saber que não pode mudar a História, ainda mais as histórias que publicou. Isto aplica-se a este caso, relacionado com a pandemia, e a qualquer outra.

    Vai o Público fazer o mesmo se António Costa um dia pedir para se apagar trechos de uma entrevista?

    Ou vai o Público mudar uma citação de algum ministro que, no dia seguinte, reparou que afinal devia ter dito Z em vez de Y?

    Ou… quem paga mais, hein?!

    Enfim, não pode hoje o Público, ou outro qualquer órgão de comunicação social, publicar uma notícia ou uma entrevista, qualquer que seja o tema, e depois afinal “rectificar” aquilo que se disse, porque afinal conveio modificar o discurso, apagando o original, e abusivamente fazê-lo porque o online aparentemente facilita esse acto.

    person burning paper

    Deve um jornal sério aceitar a alteração de uma opinião, destacando-a até, mas nunca pode aceitar apagar o que fora dito, porque isso é reescrever a História.

    E reescrever a História, apagando actos e frases inconvenientes, não é uma função do Jornalismo. Pelo contrário.

    Se isso for feito, como aqui se mostra no caso do Público, então estamos não perante um jornal, mas sim um pasquim. E daqueles que matam o Jornalismo.

  • Caso Instituto Superior Técnico: não queremos vitórias de Pirro; queremos saber a verdade

    Caso Instituto Superior Técnico: não queremos vitórias de Pirro; queremos saber a verdade


    Terá sido com alívio que Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico, recebeu a sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa da juíza Telma Nogueira no passado dia 27 de Janeiro. Depois de uma atitude de puro obscurantismo e prepotência, arriscava a ser obrigado por um tribunal a disponibilizar não apenas 52 relatórios (supostamente) científicos como também os ficheiros de dados que, durante um ano, serviram para a Ordem dos Médicos alimentar um clima de manutenção do pânico.

    Em causa estava, e continua a estar, a qualidade científica e sobretudo a idoneidade moral e ética de Rogério Colaço e de quatro investigadores do IST, a saber: Henrique Oliveira, Pedro Amaral, José Rui Figueira e Ana Serro. Não é de ânimo leve que um relatório científico pode atribuir mortes directas (e logo 330) a eventos em concreto. Não é de ânimo leve que uma instituição científica, ainda mais pública, recusa facultar os dados que terão suportado essas “conclusões”.

    Instituto Superior Técnico foi fundado em 1911; o campus universitário da Alameda foi construído a partir de 1927.

    De facto, a sentença acabou por considerar que o último relatório do IST – o tal que chegou a ser classificado pelos seus autores um “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório” – é um documento administrativo, ordenando que fosse disponibilizado ao PÁGINA UM.

    Porém, a juíza esqueceu-se que em causa, para ela decidir, não estava apenas o conteúdo do tal relatório – denominado Relatório Rápido nº 52 –, mas sim o acesso “de todo e qualquer documento considerado como administrativo na posse do Instituto Superior Técnico – por publicamente ter sido elaborado e/ ou utilizado por investigadores desta instituição universitária – relacionados com a avaliação epidemiológica da covid-19”.

    E mais, esqueceu-se a juíza que se explicitava, no requerimento, que “de entre esses documentos classificados como administrativos devem constar, entre outros, a totalidade dos relatórios elaborados no âmbito do protocolo formal ou informal (acordo) realizados pelo Instituto Superior Técnico e a Ordem dos Médicos – e apresentado no dia 14 de Junho de 2021 (vd. aqui: https://archive.ph/wip/C9YTD) –, incluindo ficheiros informáticos contendo elementos (numéricos) que permitiram ou auxiliaram a elaboração desses relatórios”.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes na sede do Ordem dos Médicos, em Julho de 2021, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico realizou 52 relatórios, que foram solicitados, mas esqueceu-se de falar de 51 desses 52 relatórios.

    No requerimento do PÁGINA UM, que consta integralmente na petição do processo de intimação, ao qual a juíza deveria dar resposta integral, até se enviou a ligação para o site da Ordem dos Médicos onde se anunciou esse acordo, com a presença do bastonário Miguel Guimarães, do inefável Filipe Froes, do presidente do IST Rogério Colaço e do investigador Henrique Oliveira.

    Ora, havendo 52 relatórios – uma vez que o tal “esboço embrionário” era o relatório com o número 52 –, significa que existem 51 relatórios anteriores, sobre os quais a sentença da juíza Telma Nogueira absolutamente nada diz.

    Tal como nada diz sobre os ficheiros informáticos com os dados numéricos.

    Esqueceu-se a juíza de tudo isto.

    Sumário do famoso Relatório Rápido nº 52, que agora divulgamos integralmente.

    Por isso, não surpreende que o IST tenha vindo logo a correr enviar o Relatório Rápido nº 52 – que agora divulgamos, sem mais comentários, porque a sua pobreza científica fala por si –, requerendo também à juíza que o original enviado em envelope lacrado lhe fosse devolvido.

    Pudera! Com esta “doce” sentença livrava-se de piores males: de ser colocada na praça pública (e nos corredores da Ciência) um miserável trabalho científico de objectivos ínvios.

    Podia o PÁGINA UM, perante esta “novela”, assumir que venceu a postura prepotente do IST e do seu presidente – que conseguiu demonstrar, com a sua postura ao longo do processo, que um cientista excelente pode ser, em simultâneo, um péssimo cientista sem ética –, mas nunca neste processo esteve uma causa pessoal, mas sim a avaliação do rigor científico de uma instituição académica durante a pandemia.

    Por esse motivo, não desistimos de saber toda a verdade sobre os estranhos relatórios do IST. Não de apenas um, mas de todos os 52 que foram produzidos semana após semana.

    Não queremos apenas os 52 relatórios e os dados, apenas para avaliar a postura dos investigadores do IST neste caso concreto, mas pelo seu simbolismo. Constitui um aviso. É inaceitável a possibilidade de pessoas sem escrúpulos usarem, e abusarem, do seu estatuto de académicos, de professores e de investigadores universitários, para comporem narrativas e fazerem fretes para entidades externas ou para interesses obscuros.

    Fizemos, por isso, um requerimento à juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa pedindo para clarificar a sua sentença por ininteligibilidade. Respondendo em tempo útil, e perante a evidente falha na sentença, evitava um recurso e mais atrasos de justiça.

    Não respondeu ainda, o que nos obrigou mesmo a ter de apresentar um recurso ao Tribunal Central Administrativo Sul, de contrário o processo ficava encerrado por transitar em julgado, e jamais se esclareceria o comportamento do IST. O “crime” compensaria. Não poderíamos aceitar sem contestação. Por isso, foram mais 306 euros gastos do FUNDO JURÍDICO para mais taxas de justiça.

    sun rays inside cave

    Infelizmente, fazer Justiça custa dinheiro, mas esta acção não poderia morrer assim.

    Não queremos uma vitória de Pirro; desejamos sim apurar a verdade.

    O caso do “esboço embrionário” do IST deve servir de lição para o futuro, sobre o rigor, a isenção e a transparência que se deve exigir às Universidades como bastiões da Ciência. Não deixemos, por isso, esta lição a meio.


    Caso queira fazer um donativo dirigido em exclusivo ao FUNDO JURÍDICO, utilize preferencialmente a plataforma do MIGHTYCAUSE. Se preferir usar outros meios, pode assim recorrer mas agradecíamos um aviso para procedermos ao depósito na plataforma. Se necessitar de esclarecimentos, escreva-nos para geral@paginaum.pt. A gestão das verbas do FUNDO JURÍDICO, ao contrário das verbas destinadas à actividade do jornal (geridas pela Página Um, Lda.), é da minha inteira responsabilidade (Pedro Almeida Vieira), de modo a serem consideradas donativos (e não receitas ou rendimentos), o que se mostra mais favorável contabilisticamente para o jornal. No passado dia 7 de Janeiro foi apresentado um balanço sobre os processos concluídos e em curso, incluindo também a parte contabilística. No final de 2022, as receitas do FUNDO JURÍDICO atingiram os 13.943,40 euros e o saldo era positivo em 1.067,87, após deduzidas taxas de justiça e honorários com advogado.

  • O silêncio dos culpados

    O silêncio dos culpados


    Nas últimas duas semanas, dois episódios marcantes foram revelados pelo PÁGINA UM, envolvendo o Instituto Superior Técnico e o Ministério da Saúde.

    Vejamos o primeiro.

    Por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, uma instituição universitária portuguesa – mais concretamente o Instituto Superior Técnico (IST) – foi obrigada a revelar um relatório que escondia. Note-se: uma instituição universitária, sede do saber e da transparência do conhecimento foi usurpada por pessoas sem carácter que, munidos de canudos e vestes talares, manipularam dados e contribuíram para alimentar o medo e o pânico para benefícios inconfessáveis de terceiros.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico, e Manuel Pizarro, ministro da Saúde, irmãos na arte de sonegação de informação pública, “apadrinhados” pela imprensa mainstream.

    Não satisfeitos, e aproveitando uma (alegada) falha da juíza – que na sentença não explicitou que deveriam ter fornecido ainda os ficheiros de dados e os anteriores 51 relatórios –, o IST foi lesto a requerer a destruição das provas, ou seja, o original de um relatório que, para evitar o acesso legal do PÁGINA UM, eles classificaram de “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”.

    Se a vergonha significasse alguma coisa para a Academia, aqueles senhores, começando pelo presidente do IST, ter-se-ia demitido, ou sido corrido a pontapé pelo respectivo Conselho Científico.

    Vejamos agora o segundo.

    O Ministério da Saúde ordenou que se surripiasse do Portal Base os ficheiros com quatro contratos assinados entre a Direcção-Geral da Saúde e duas farmacêuticas (Pfizer e Moderna), relativos às vacinas contra a covid-19, trocando-os por folhas completamente apagadas de conteúdo. O objectivo foi manipular o processo que contra si corre no Tribunal Administrativo de Lisboa para ceder os outros contratos feitos a partir de Janeiro de 2021, que nunca foram colocados no Portal Base. Estamos a falar de contratos em falta que deverão representar muito mais de 500 milhões de euros, bem como outra correspondência com as farmacêuticas, cujo acesso permitirá conhecer não apenas os montantes efectivamente gastos mas também os compromissos comerciais para o futuro.

    Notícia do artigo 37, um site de académicos ligados a universidades com cursos de comunicação social, sobre a sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa obrigando o Instituto Superior Técnico a revelar um relatório alarmista. O caso ainda não está encerrado, por se ter requerido a clarificação da sentença quanto aos ficheiros de dados e aos 51 primeiros relatórios.

    Não conheço nenhum outro caso em que tenha havido uma ordem para a retirada de documentos do Portal Base, ainda mais com este propósito de encobrimento na gestão de dinheiros públicos. Sei apenas que isto seria matéria para o Ministério Público, se o Ministério Público servisse para zelar o bem público, e não o bem do Governo.

    Tanto num caso como no outro, o silêncio dos media mainstream foi ruidoso.

    Uma das coisas que não me podem acusar é de ignorar aquilo que é uma boa notícia,uma cacha, uma matéria exclusiva que tem todas as condições para dar brado mediático, público e político.

    Aliás, veja-se o caso das subvenções vitalícias dos políticos que foram negadas ao Correio da Manhã pelo Governo, apesar do parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos. Deu primeira página no jornal do Grupo Cofina, o mais lido do país.

    Ora, o PÁGINA UM tem mais de uma dezena de casos semelhantes, levou alguns a Tribunal. E ganhou alguns em primeira instância, um deles ao Conselho Superior da Magistratura, e sobre a Operação Marquês (encontra-se em recurso).

    Porém, em todos os processos do PÁGINA UM, a imprensa mainstream tudo tem ignorado, assobia para o ar, age com comprometedora passividade, como se nada de relevante se passasse.

    Por isso, enquanto se observa o silêncio da imprensa mainstream, ver na última semana entidades ligadas à imprensa, como o Clube dos Jornalistas e o artigo 37 – integrando académicos (grande parte dos quais com relevante passado jornalístico) de diversas universidades na área da comunicação –, por duas vezes (aqui, sobre o IST, e aqui, sobre o Ministério da Saúde), escreverem sobre os recentes temas revelados pelo PÁGINA UM (IST e Ministério da Saúde), é bem revelador da podridão reinante.

    Na verdade, já não me surpreendem as atitudes prepotentes e obscurantistas das entidades públicas – e das pessoas que agem sobre elas, como se fossem suas –, que recusam e lutam tenazmente para esconder informação. Quando faço um pedido já aguardo uma não-resposta. Em muitos casos, quando faço um pedido já uso terminologia jurídica, invocando a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, preparando-me já para (mais) um processo de intimação no Tribunal Administração de Lisboa. São as novas regras do jogo, e eu já as interiorizei: só na “barra do tribunal” consigo informação.

    Notícia do artigo 37, um site de académicos ligados a universidades com cursos de comunicação social., sobre o “apagão”dos contratos das vacinas contra a covid-19 no Portal Base.

    De facto, a minha única surpresa tem sido a atitude da imprensa mainstream, e sobretudo a falta de coragem de muitos jornalistas que secretamente gostaria de fazer aquilo que o PÁGINA UM faz, mas perderam a coragem de enfrentar poderes, a começar pelos internos, ao nível das cândidas direcções e das engravatadas administrações.

    Neste caso, o problema está mesmo no mensageiro (leia-se, imprensa mainstream), que alegre e alarvemente, nega os princípios do jornalismo. O problema está nos seus silêncios, nas suas omissões, que dão carta branca aos maiores atropelos democráticos. O silêncio da imprensa é, neste aspecto, o silêncio dos culpados. A imprensa está a cometer o seu harakiri.

  • Heróis da pandemia: glorifiquemos o memorial à estupidez, à acefalia e à vaidade

    Heróis da pandemia: glorifiquemos o memorial à estupidez, à acefalia e à vaidade


    Ainda não surge no Portal Base o custo das duas esculturas de Rogério Abreu, hoje inauguradas, defronte ao Tejo, a caminho de Belém, mas por mim espero que lhe venham a pagar pelo menos os 1,6 milhões de euros da redução de custos do altar das Jornadas Mundiais da Juventude. Merece: glorifica a estupidez, a acefalia e a vaidade, que são sempre predicados necessários para um efectivo reconhecimento da arte no futuro de coisas irracionais do passado.

    Onde uns hoje se podem chocar com o estranho sentido estético e simbólico de um monumento oco aos Heróis da Pandemia, eu vejo veneração no futuro.

    Onde uns hoje podem ficar boquiabertos com as duas figuras – masculina e feminina, sendo que esta tem de ter o seu rabo de cavalo para assim ser, porque ambas estão mascaradas –, eu vejo uma lição de História para o futuro.

    Onde uns hoje podem ficar assombrados com a vanitas vanitatum et omnia vanitas (cf. Eclesiastes 1:2) do (ainda) bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, e do presidente da autarquia de Lisboa, Carlos Moedas – que pespegaram tanto os seus nomes na base de uma das estátuas, ao lado do nome do escultor, como na placa de inauguração, neste caso fazendo companhia ao nome do ministro da Saúde, Manuel Pizarro –, eu vejo um ensinamento sobre perenidade das acções para os empreendedores no futuro.

    Esqueçam as críticas. Não olhem para detalhes nem analisem obras ou acções feitas, não para nós, mas para serem admiradas e veneradas no futuro.

    Hoje, a arcaria do Vale de Alcântara é um ex-libris da capital; ontem, no século XVIII, foi tão zurzido por alguns arquitectos, por razões estéticas (arcos góticos em período barroco) que Ludovice, o criador do convento de Mafra, chamou Herodes do Aqueduto ao engenheiro Custódio Vieira, que a concebeu.

    Também estou a imaginar os mais cépticos moradores de Rapa Nui a criticarem a inutilidade dos moais – cuja edificação, aliás, aparentemente esteve na base de um ecocídio involuntário –, pois hoje as grandes estátuas da chilena ilha da Páscoa são a cobiça de qualquer turista.

    Olhem, olhem bem. Não percam assim uma passagem pelo agora denominado Passeio Carlos do Carmo, entre o Terreiro das Missas e o Jardim das Docas da Ponte, porque, sendo certo que “tudo isto existe, tudo é triste, [e] tudo isto é fado” (como cantava Amália Rodrigues), também é verdade que os protagonistas desta escultura – o seu autor e os seus promotores – conseguiram, talvez involuntariamente, transmitir várias lições para as gerações vindouras. Desfrutem, por isso. Deliciem-se, agora.

    De facto, hoje, somente por relatos sabemos que, em tempos de antanho, os arcaicos médicos para combater epidemias aplicavam, geralmente, sangrias aos enfermos – que mais os debilitavam – ou davam-lhes purgas, xaropes e mistelas diversas, que tantas vezes causavam piores males e nenhum bem. Para contrariar as supostas emanações pestilentas no ar ambiente – que se considerava estar na origem dos contágios e que, em certa medida, podemos associar à decomposição do lixo –, usavam-se meios de duvidosa eficácia, como soluções de vinagre, perfumes, ervas odoríferas queimadas e até tiros de pólvora. Mas não há símbolos disso. Só papéis.

    No futuro, haverá este memorial. Toda uma lição em perpétuo e inamovível aço.

    Ali estão as máscaras – elevadas a estúpido símbolo de suposta protecção (agora a ruir cientificamente, como um óbvio baralho de cartas), num período histórico em que conheciam as dimensões de um vírus e as dimensões dos poros das ditas máscaras. E sendo as ditas máscaras o centro nevrálgico das duas figuras escultóricas de Rogério Abreu – e tendo ele, sabiamente, introduzido profusas e profundas “porosidades” –, transmite-nos assim fielmente um sentido realista à coisa: a aragem que venha Tejo acima ou Tejo abaixo, invade e trespassa livremente as cabeças, tal como um vírus abre alas entre as fibras de uma máscara cirúrgica. Serviram tanto como uma peneira para estancar o vento.

    Imagens de vídeo das esculturas de Rogério Abreu, hoje inauguradas por Miguel Guilherme, bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Moedas, presidente da autarquia de Lisboa, e Manuel Pizarro, ministro da Saúde.

    Também de enorme felicidade, pelo realismo, embora aqui um pouco mais alegórico, se mostra a opção do escultor por duas figuras de cabeça oca, onde, efectivamente, nada existe no interior. Será esta a melhor imagem para nossos vindouros: saberão eles, quando certo dia estudarem o que sucedeu entre 2020 e 2022 – com consequências para os anos seguintes –, como foi a gestão da pandemia: acéfala.

    Por tudo isto, glória ao escultor Rogério Abreu! Glória à vaidade de Miguel Guimarães e Carlos Moedas!, porque sem eles não teríamos um Memorial tão bem conseguido, tão perene, um tão arejado Monumento destinado ao futuro, um legado sobre tempos de Estupidez e Acefalia – que não se podem repetir quando surgir um novo vírus.

    P.S. Apelo, não irónico: espero que as pessoas mais exaltadas se contenham e não façam nenhum acto de vandalismo às esculturas. Não transformem um Monumento à Estupidez e Acefalia em Memorial da Vitimização.


    N.D. Afinal, apurou-se entretanto que a obra custou 57.000 euros, tendo sido integralmente paga pela Ordem dos Médicos.

  • Glorifiquemos o memorial à estupidez, à acefalia e à vaidade

    Glorifiquemos o memorial à estupidez, à acefalia e à vaidade


    Ainda não surge no Portal Base o custo das duas esculturas de Rogério Abreu, hoje inauguradas, defronte ao Tejo, a caminho de Belém, mas por mim espero que lhe venham a pagar pelo menos os 1,6 milhões de euros da redução de custos do altar das Jornadas Mundiais da Juventude. Merece: glorifica a estupidez, a acefalia e a vaidade, que são sempre predicados necessários para um efectivo reconhecimento da arte no futuro de coisas irracionais do passado.

    Onde uns hoje se podem chocar com o estranho sentido estético e simbólico de um monumento oco aos Heróis da Pandemia, eu vejo veneração no futuro.

    Onde uns hoje podem ficar boquiabertos com as duas figuras – masculina e feminina, sendo que esta tem de ter o seu rabo de cavalo para assim ser, porque ambas estão mascaradas –, eu vejo uma lição de História para o futuro.

    Onde uns hoje podem ficar assombrados com a vanitas vanitatum et omnia vanitas (cf. Eclesiastes 1:2) do (ainda) bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, e do presidente da autarquia de Lisboa, Carlos Moedas – que pespegaram tanto os seus nomes na base de uma das estátuas, ao lado do nome do escultor, como na placa de inauguração, neste caso fazendo companhia ao nome do ministro da Saúde, Manuel Pizarro –, eu vejo um ensinamento sobre perenidade das acções para os empreendedores no futuro.

    Esqueçam as críticas. Não olhem para detalhes nem analisem obras ou acções feitas, não para nós, mas para serem admiradas e veneradas no futuro.

    Hoje, a arcaria do Vale de Alcântara é um ex-libris da capital; ontem, no século XVIII, foi tão zurzido por alguns arquitectos, por razões estéticas (arcos góticos em período barroco) que Ludovice, o criador do convento de Mafra, chamou Herodes do Aqueduto ao engenheiro Custódio Vieira, que a concebeu.

    Também estou a imaginar os mais cépticos moradores de Rapa Nui a criticarem a inutilidade dos moais – cuja edificação, aliás, aparentemente esteve na base de um ecocídio involuntário –, pois hoje as grandes estátuas da chilena ilha da Páscoa são a cobiça de qualquer turista.

    Olhem, olhem bem. Não percam assim uma passagem pelo agora denominado Passeio Carlos do Carmo, entre o Terreiro das Missas e o Jardim das Docas da Ponte, porque, sendo certo que “tudo isto existe, tudo é triste, [e] tudo isto é fado” (como cantava Amália Rodrigues), também é verdade que os protagonistas desta escultura – o seu autor e os seus promotores – conseguiram, talvez involuntariamente, transmitir várias lições para as gerações vindouras. Desfrutem, por isso. Deliciem-se, agora.

    De facto, hoje, somente por relatos sabemos que, em tempos de antanho, os arcaicos médicos para combater epidemias aplicavam, geralmente, sangrias aos enfermos – que mais os debilitavam – ou davam-lhes purgas, xaropes e mistelas diversas, que tantas vezes causavam piores males e nenhum bem. Para contrariar as supostas emanações pestilentas no ar ambiente – que se considerava estar na origem dos contágios e que, em certa medida, podemos associar à decomposição do lixo –, usavam-se meios de duvidosa eficácia, como soluções de vinagre, perfumes, ervas odoríferas queimadas e até tiros de pólvora. Mas não há símbolos disso. Só papéis.

    No futuro, haverá este memorial. Toda uma lição em perpétuo e inamovível aço.

    Ali estão as máscaras – elevadas a estúpido símbolo de suposta protecção (agora a ruir cientificamente, como um óbvio baralho de cartas), num período histórico em que conheciam as dimensões de um vírus e as dimensões dos poros das ditas máscaras. E sendo as ditas máscaras o centro nevrálgico das duas figuras escultóricas de Rogério Abreu – e tendo ele, sabiamente, introduzido profusas e profundas “porosidades” –, transmite-nos assim fielmente um sentido realista à coisa: a aragem que venha Tejo acima ou Tejo abaixo, invade e trespassa livremente as cabeças, tal como um vírus abre alas entre as fibras de uma máscara cirúrgica. Serviram tanto como uma peneira para estancar o vento.

    Imagens de vídeo das esculturas de Rogério Abreu, hoje inauguradas por Miguel Guilherme, bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Moedas, presidente da autarquia de Lisboa, e Manuel Pizarro, ministro da Saúde.

    Também de enorme felicidade, pelo realismo, embora aqui um pouco mais alegórico, se mostra a opção do escultor por duas figuras de cabeça oca, onde, efectivamente, nada existe no interior. Será esta a melhor imagem para nossos vindouros: saberão eles, quando certo dia estudarem o que sucedeu entre 2020 e 2022 – com consequências para os anos seguintes –, como foi a gestão da pandemia: acéfala.

    Por tudo isto, glória ao escultor Rogério Abreu! Glória à vaidade de Miguel Guimarães e Carlos Moedas!, porque sem eles não teríamos um Memorial tão bem conseguido, tão perene, um tão arejado Monumento destinado ao futuro, um legado sobre tempos de Estupidez e Acefalia – que não se podem repetir quando surgir um novo vírus.

    P.S. Apelo, não irónico: espero que as pessoas mais exaltadas se contenham e não façam nenhum acto de vandalismo às esculturas. Não transformem um Monumento à Estupidez e Acefalia em Memorial da Vitimização.


    N.D. Afinal, apurou-se entretanto que a obra custou 57.000 euros, tendo sido integralmente paga pela Ordem dos Médicos.

  • Da podridão e da queixa-crime do senhor juiz Sebastião Póvoas, presidente da ERC

    Da podridão e da queixa-crime do senhor juiz Sebastião Póvoas, presidente da ERC


    A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) anunciou esta semana a realização de sessões formativas sobre “Desinformação e fake news” e sobre “estereótipos, discurso de ódio e discriminação”, no próximo mês de Março.

    Os temas não poderiam ser mais actuais, até porque incluem tópicos que se encontram interligados, embora haja aqui algo de irónico. A desinformação, as fake news, os estereótipos, o discurso de ódio e a discriminação grassam hoje por aí, mas a ERC é uma das principais culpadas pelo regabofe, porque se demitiu do seu papel de regulação isenta, tanto mais que os estereótipos, os discursos de ódio (subliminares, é certo) e a discriminação são agora apanágio da imprensa mainstream.

    Estrada do Forte do Alto do Duque, em Lisboa, à saída das instalações da PSP onde iria, em princípio, ser constituído arguido…

    Basta olhar para o deplorável comportamento da imprensa mainstream durante a pandemia, as suas atitudes face à vacinação (sobretudo dos mais jovens) e dos efeitos adversos (anda por aí um elefante na sala que os jornalistas não querem ver nem saber), as abordagens enviesadas sobre a lamentável guerra da Ucrânia (promovendo, além disso, a russofobia como algo justificável contra qualquer cidadão daquele país e enaltecendo aos píncaros da democracia um regime ucraniano igualmente corrupto), os ataques a quem cria rupturas (veja-se o caso de Elon Musk, e a inexistência de cobertura dos #TwitterFiles), etc., etc., etc..  

    O PÁGINA UM também já levou a sua dose de efeitos adversos da desinformação, fake news, estereótipos, discurso de ódio e discriminação, tanto na imprensa como nas redes sociais (não é só a Cristina Ferreira que se queixa). Acrescem os ataques de redes sociais como o Facebook ou o Youtube, que já nos retiraram conteúdos noticiosos ou as constantes acções de shadow banning para diminuir a exposição e visibilidade do PÁGINA UM. Já sem falar nos inimigos de estimação nas redes sociais que se desunham para me enxovalhar, nem sequer se apercebendo que os seus infantis ataques são um excelente tónico para ainda fazer mais e melhor, para mais os irritar.

    Forte do Alto do Duque, sede do Divisão de Investigação Criminal da PSP de Lisboa.

    Sobre a desinformação – que deve incluir também a ausência de informação, porque, em muitos casos, o silêncio ou o silenciamento são uma forma enviesada de desinformação –, o PÁGINA UM tem procurado ser um paladino nessa luta, sobretudo da mais perniciosa de todas, a criada e fomentada pelo Estado.

    Não é por acaso que demos entrada, desde Abril do ano passado, no Tribunal Administrativo de Lisboa com 14 processos de intimação contra diversas entidades públicas exactamente pela recusa na disponibilização de dados que, hélas, serviriam para dar informação verídica aos leitores.

    Aliás, muitas destas intimações têm o exacto propósito de saber que desinformação nos têm estado a vender nos últimos anos. Mas sobre isto, a ERC – e sobretudo o seu (ainda) presidente, o juiz Sebastião Póvoas, “aos costumes tem dito nada”.

    Sobre fake news, o PÁGINA UM foi e tem sido um dos alvos desde que nasceu este projecto assente em quatro pilares: acesso livre à informação; inexistência de patrocínios, anúncios e parcerias comerciais; apoio exclusivo por donativos pessoais; e ausência de temas tabu como garante de independência. O ataque começou logo nos primeiros dias, em Dezembro de 2021, com uma ignóbil “notícia” da CNN Portugal, seguida por outra imprensa mainstream (Público, Observador, Lusa, Expresso, etc.), que pretendeu associar o PÁGINA UM a movimentos ditos negacionistas e de ter práticas supostamente criminosas por se ter revelado dados clínicos de crianças, dados esses anonimizados.

    Ao longo dos meses de 2022, o PÁGINA UM foi sendo sujeito ao mais absurdo bullying de que há memória na comunicação social por parte de duas entidades que deveriam proteger a imprensa livre e os jornalistas independentes: a ERC e a Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas (CCPJ). A primeira entidade (ERC) chegou mesmo a fazer dois comunicados de imprensa contra mim apenas por ela própria estar a incumprir a lei de acesso a documentos, como aliás concluíram pareceres da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos. Mas a fake news de que eu andava a “insultar os membros do Conselho Regulador [da ERC] e a exercer coação sobre os funcionários” ficou, para quem ainda quiser vasculhar, pela Internet.

    Padrão dos Descobrimentos

    De igual modo, tanto a ERC como a CCPJ tudo tentaram para que as notícias caluniosas sobre o PÁGINA UM em Dezembro de 2021 não tivessem “rectificação”, através de direito de resposta. A ERC ainda conseguiu libertar o Expresso e a Lusa (através de uma manhosa deliberação), não conseguiu nos casos mais evidentes da CNN Portugal, Observador e Público, mesmo se, neste último caso, o jornal do Grupo Sonae tenha ido até ao limite do absurdo com uma providência cautelar chumbada.

    Não satisfeitas, tanto uma como outra destas entidades reguladores (ERC e CCPJ), ao invés de intentarem processos por desinformação e falhas deontológicas graves da imprensa mainstream – incluindo parcerias pouco ortodoxas com empresas que prostituem o jornalismo (há uma lista de 56 contratos suspeitos na ERC a aguardar comentário e acção do regulador desde Maio do ano passado) –, lançaram-se numa campanha de apoio a quem o PÁGINA UM denunciava.

    Exemplos disso são os dois vergonhosos pareceres que as duas entidades ofereceram ao presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia a censurar o trabalho de investigação do PÁGINA UM. No caso da CCPJ, o parecer aparentemente nunca antes fora feito a visar outro qualquer jornalista.

    Sede do Público

    E também recentemente surgiu novo processo na ERC, por via de uma queixa de alguém cuja identidade o regulador esconde, por causa de notícias em redor da campanha de vacinação de médicos não-prioritários em Fevereiro do ano passado, e que envolve o então líder da task force, o actual chefe de Estado-Maior da Armada, Gouveia e Melo. Note-se que ambos os casos denunciados pelo PÁGINA UM originaram processos na Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS).

    Sei estar em curso, contra o PÁGINA UM, aquilo que se denomina SLAPP, acrónimo de Strategic Lawsuit Against Public Participation, uma estratégia que consiste na apresentação de queixas judiciais por dá cá esta palha apenas com o intuito de obrigar a uma dispersão de tempo e recursos, ou mesmo da constituição de provisões para supostas indemnizações que asfixiam contabilisticamente uma empresa jornalística independente.

    Ainda na passada sexta-feira, lá tive eu de subir ao Forte do Alto do Duque, para os lados de Monsanto, porque o senhor presidente da ERC não apreciou um escrito de 10 de Março do ano passado – que, entre outras verdades, dizia que o Conselho Regulador tinha deliberadamente analisado um caso “por um prisma tão redutor, tipo antolhos de equídeos” – e meteu-me um processo por difamação.

    Estas fotografias foram tiradas no regresso ao PÁGINA UM, na passada sexta-feira, após a ida à PSP. A tarde estava bonita e decidi pegar numa bicicleta eléctrica e seguir zona ribeirinha desde Belém até ao Cais do Sodré.

    Usando, claro, dinheiros públicos, porque quem paga aos advogados que fazem a queixa e aos funcionários judiciais e de investigação que a processam não é o senhor Sebastião Póvoas. Somos todos nós. Ainda mais debalde, lá fui e saí: o senhor presidente da ERC afinal desistira da queixa apenas dois dias antes, talvez acossado por mais uma sua diatribe na sua já penosa travessia deste mandato do regulador dos media.

    Há notícias que mais casos virão. São os ossos do ofício. Por isso, se por vezes não conseguimos fazer mais, não é por preguiça; é porque estamos na podridão de um pantanal, promovido em grande parte por aqueles que até andam sempre a falar contra a desinformação, contra as “fake news”, contra os estereótipos, contra os discurso de ódio e contra a discriminação, e sempre com o Credo na boca, mas que, por detrás do pano, afiam facas contra a imprensa livre e incómoda.

  • Correio da Manhã, bem-vindo ao (nosso) Clube contra o Obscurantismo do Estado

    Correio da Manhã, bem-vindo ao (nosso) Clube contra o Obscurantismo do Estado


    Hoje, o Correio da Manhã faz manchete com o título “Governo esconde pensões dos políticos”. Em causa está a recusa da ministra da Segurança Social e da Caixa Geral de Aposentações (CGA) de permitir o acesso aos documentos administrativos que contenham os valores reais das pensões mensais vitalícias pagas a 298 beneficiários.

    O Correio da Manhã, após a recusa governamental, recorreu à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) que, em parecer de 14 de Dezembro passado, concluiu que no que “diz respeito ao acesso ao valor atual das subvenções mensais vitalícias, trata-se de informação que não é de acesso reservado, na esteira do que foi afirmado no Parecer n.º 217/2016 [na verdade, é o Parecer nº 472/2016] , em que a CADA subsumiu o acesso à subvenção mensal vitalícia à doutrina aplicada a vencimentos, ajudas de custo, despesas de representação e outros suplementos remuneratórios e de apoio social auferidos pelo exercício de funções públicas, que “[p]or serem pagos com dinheiros públicos e em obediência a critérios legais objetivos, não têm qualquer caráter reservado”.

    grayscale photo of woman doing silent hand sign

    Mas, mesmo assim, o Governo continuou a recusar.

    O mais surpreendente disto não é a recusa governamental.

    Na verdade, o mais surpreendente é o Correio da Manhã – e os outros jornais que fizeram eco desta recusa – só agora terem acordado para um Estado obscurantista, que engloba não apenas o Governo como a Administração Pública e mesmo instâncias judiciais.

    Os leitores e apoiantes do PÁGINA UM sabem, desde o nosso início, a quantidade enorme – mais de uma dezena em poucos meses – de pareceres favoráveis que obtivemos da CADA face a recusas de acesso a documentos administrativos.

    O primeiro caso, por sinal, foi para aceder ao inquérito da distribuição da Operação Marquês por parte do Conselho Superior da Magistratura, que continuou a ser recusada, e mesmo tendo perdido na primeira instância no Tribunal Administrativo de Lisboa recorreu, aguardando-se ainda o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul.

    Sobre recusas da Direcção-Geral da Saúde e de outras entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde, como o Infarmed, foram também incontáveis os pedidos de parecer que fizemos à CADA por recusa de acesso a documentos.

    Contudo, não me recordo de nenhum parecer favorável da CADA que tenha desbloqueado a recusa de acesso. Todos foram ignorados. A CADA é uma entidade presidida por um juiz conselheiro e tem membros indicados pela Assembleia da República, Ordem dos Advogados e Governos regionais da Madeira e dos Açores. Mas isso pouco incomoda.

    A título de exemplo, recordemos a recusa do Infarmed em fornecer o acesso ao Portal RAM das reacções adversas das vacinas contra a covid-19 e o remdesivir. Em Março de 2022 – há quase um ano –, o PÁGINA UM obteve um parecer da CADA que chegava a considerar que “o interesse público no conhecimento de elementos que possam informar quanto à segurança da vacina é, por conseguinte, manifesto”. E instava assim o regulador dos medicamentos a fornecer os elementos convenientemente anonimizados. Foi isso que aconteceu? Não. E o caso está ainda numa renhida luta no Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Foram tantos os pareceres da CADA, obtidos pelo PÁGINA UM mas ignorados pelas entidades públicas, que mudámos de estratégia: perante um Estado e um Governo claramente obscurantistas – e que já incluem mesmo instituições universitárias, como se viu recentemente com o Instituto Superior Técnico –, a solução passou por, face à recusa inicial, seguir imediata intimação para o Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Se o parecer da CADA – uma instituição que está associada à Assembleia da República – continua a ser não-vinculativo e ignorado pelas entidades públicas, acaba assim por ser uma inutilidade. Daí essa mudança de estratégia.

    Nos últimos seis processos de intimação do PÁGINA UM – contra a Administração Central do Sistema de Saúde, Entidade Reguladora para a Comunicação Social, Banco de Portugal, Instituto Superior Técnico, Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e Ministério da Saúde (para obtenção dos contratos das vacinas contra a covid-19) – já nem sequer pedimos parecer à CADA. Prescindimos de vitórias de Pirro e de ver entidades públicas a gozarem o pagode na chafurdice do obscurantismo em que botaram a nossa democracia.

    man in white t-shirt sitting beside woman in white t-shirt

    Assim, com a recusa da ministra da Segurança Social em fornecer ao Correio da Manhã os documentos sobre os políticos beneficiários da subvenção mensal vitalícia, esperamos que este jornal – que tem muitas mais posses do que o PÁGINA UM – se junte na luta contra este obscurantismo.

    Estamos numa fase em que já não basta só denunciar na imprensa. A boa imprensa tem de ir mais longe, e recorrer aos tribunais para salvar a democracia de pessoas que nos querem sonegar o direito de saber o que se passa na res publica.

    Mas se for intenção do Correio da Manhã, e da sua proprietária (Cofina), ficar só pela denúncia, avisem-nos: o PÁGINA UM terá todo o prazer, e coragem, com a ajuda dos nossos leitores, através do FUNDO JURÍDICO, apresentar mais uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Seria a nossa 15ª desde Abril do ano passado – é que já andamos a fazer o tipo de denúncias, que hoje foi manchete do Correio da Manhã, há muitos meses, e mesmo se a imprensa mainstream tenha mantido um incessante silêncio a este respeito. E temos já um bom punhado de vitórias alcançadas em prol da democracia.

  • Contratos ou a morte da Democracia, oferecida em holocausto (no sentido bíblico) às Farmacêuticas

    Contratos ou a morte da Democracia, oferecida em holocausto (no sentido bíblico) às Farmacêuticas


    Nas primeiras fases da pandemia criou-se o mito que todos íamos (ou podíamos) morrer.

    Depois, fizeram-nos crer que, por artes da Ciência, as maravilhosas farmacêuticas – que já o eram antes, e não estou a ser irónico, porque efectivamente foram concedendo anos de vida às últimas gerações – tinham criado um Santa Maná (vacinas) que, não ressuscitando mortos, salvavam os vivos da perdição.

    E foi tudo a eito, independentemente da leges artis, do princípio da prudência, dos princípios éticos. A urgência de supostamente nos salvarem a todos (mesmo àqueles grupos que não precisavam de ser salvos porque nunca estiveram em perigo) colocou a Democracia em suspenso. Pior: foi amordaçada.

    person holding white plastic bottle

    E, em seguida, colocadas as Farmacêuticas em andores, para serem veneradas, se impôs um dogmático silêncio. Ah! herege de uma figa, como ousas questionar o preço de uma vida que pode ser salva por uma vacina? E se houver negócios e negociatas? E trampolinices e intrujices entre os queridos políticos e as farmacêuticas?

    Cala-te, evitaram o fim da Humanidade…

    [… à enésima pandemia]

    Portanto, foi isto que sucedeu…

    Que nos sucedeu.

    Que sucedeu à Democracia por conta da pandemia.

    Foi vendida. Foi oferecida em holocausto, no sentido bíblico do termo, como oferenda de sacrifício e devoção, ao Deus da Farmácia – às Farmacêuticas.

    Última página das alegações do Ministério da Saúde considerando que basta a consulta do site da Comissão Europeia para conhecer informações sobre as condições de compra de vacinas contra a covid-19 pelo Estado português.

    Que Democracia é esta quando se pede acesso a contratos com dinheiros públicos, e o Ministério da Saúde – e um Governo de um país com quase nove séculos de existência e quase meio século depois da saída de uma ditadura – responde que não os dá?

    E não apenas por alegadamente estar em curso uma conveniente auditoria (que parece desculpa), mas sobretudo porque tudo foi feito pela Comissão Europeia, burocrática instituição, nunca eleita pelos cidadãos dos diversos países.

    Que contratos são esses das vacinas contra a covid-19 assinados pela Comissão Europeia? O Ministério da Saúde português remete para um site específico de transparência da Comissão Europeia, e assume mesmo nas suas alegações perante o Tribunal Administrativo de Lisboa que é o suficiente, que está lá tudo aquilo que um cidadão e um jornalista merecem saber.

    Será?

    Vejamos.

    O primeiro contrato assinado em Janeiro de 2021 (SANTE/2020/C3/043) com a BioNTech-Pfizer tem 104 páginas. Destas, 44 páginas estão truncadas em partes variáveis (por vezes em mais de 90% do texto). Há 46 páginas completamente sombreadas a cinzento, tapando todas as palavras. Somente em 14 páginas (13,5% do total) se conhece o conteúdo integral. Entende-se o contrato? Não.

    Ainda vivemos em democracia?

    O segundo contrato com estas duas farmacêuticas foi assinado em Fevereiro de 2021 (SANTE/2021/C3/005) tem 90 páginas. Destas, 44 páginas estão truncadas em partes variáveis (por vezes em mais de 90% do texto). Há 32 páginas completamente sombreadas a cinzento, tapando todas as palavras. Somente em 14 páginas (15,6% do total) se conhece o conteúdo integral. Entende-se o contrato? Não.

    Ainda vivemos em democracia?

    Existe ainda um anexo aos contratos (SANTE/2021/03/020) com 77 páginas. Destas, 45 páginas estão truncadas em partes variáveis (por vezes em mais de 90% do texto). Há 17 páginas completamente sombreadas a cinzento, tapando todas as palavras. Somente em 10 páginas (13,0% do total) se conhece o conteúdo integral. Entende-se o contrato? Não.

    Ainda vivemos em democracia?

    Página 15 do primeiro contrato assinado em Janeiro de 2021 (SANTE/2020/C3/043) entre a Comissão Europeia e a BioNTech-Pfizer

    O primeiro contrato com a Moderna (SANTE/2020/C3/054), assinado em Dezembro de 2020, tem 70 páginas. Destas, 49 páginas estão truncadas em partes variáveis (por vezes em mais de 90% do texto). Há 8 páginas completamente sombreadas a cinzento, tapando todas as palavras. Somente em 13 páginas (18,6% do total) se conhece o conteúdo integral. Entende-se o contrato? Não.

    Ainda vivemos em democracia?

    O segundo contrato com a Moderna (SANTE/2021/C3/010), assinado em Fevereiro de 2021, tem 66 páginas. Destas, 48 páginas estão truncadas em partes variáveis (por vezes em mais de 90% do texto). Há 7 páginas completamente sombreadas a cinzento, tapando todas as palavras. Somente em 11 páginas (22,9% do total) se conhece o conteúdo integral. Entende-se o contrato? Não.

    Ainda vivemos em democracia?

    O contrato com a Johnson & Johnson (SANTE/2020/C3/047), assinado em Outubro de 2020, tem 72 páginas. Destas, 38 páginas estão truncadas em partes variáveis (por vezes em mais de 90% do texto). Há ainda 1 página completamente sombreada a cinzento, tapando todas as palavras. Somente em 33 páginas (45,8% do total) se conhece o conteúdo integral. Entende-se o contrato? Não.

    Ainda vivemos em democracia?

    O contrato com a AstraZeneca, assinado em data incerta, tem 41 páginas. Destas, 24 páginas estão truncadas em partes variáveis (por vezes em mais de 90% do texto). Somente em 17 páginas (41,5% do total) se conhece o conteúdo integral. Entende-se o contrato? Não.

    Ainda vivemos em democracia?

    O contrato com a CureVac (SANTE/2020/C3/049), assinado em data incerta, tem 67 páginas. Destas, 30 páginas estão truncadas em partes variáveis (por vezes em mais de 90% do texto). Há 18 páginas completamente sombreada a cinzento, tapando todas as palavras. Somente em 19 páginas (28,4% do total) se conhece o conteúdo integral. Entende-se o contrato? Não.

    Página 4 do contrato entre a Comissão Europeia e a AstraZeneca,

    Ainda vivemos em democracia?

    O contrato com a Sanofi e GlaxoSmithKline (SANTE/2020/C3/042), assinado em Setembro de 2020, tem 63 páginas. Destas, 27 páginas estão truncadas em partes variáveis (por vezes em mais de 90% do texto). Há 12 páginas completamente sombreadas a cinzento, tapando todas as palavras. Somente em 24 páginas (38,1% do total) se conhece o conteúdo integral. Entende-se o contrato? Não.

    Ainda vivemos em democracia?

    Cansada de tapar vergonhosamente as páginas com sombreados a cinzento ou a negro, recentemente a Comissão Europeia alterou o método, retirando simplesmente os trechos e substituindo-os por três asteriscos (***), tendo no início do contrato disponível ao público a seguinte referência:

    CERTAIN INFORMATION IDENTIFIED WITH [***] HAS BEEN EXCLUDED FROM THIS EXHIBIT BECAUSE IT IS BOTH (I) NOT MATERIAL AND (II) IS THE TYPE THAT THE REGISTRANT TREATS AS PRIVATE OR CONFIDENTIAL.

    [certas informações identificadas com (***) foram excluídas deste anexo porque são (i) não materiais e (ii) são do tipo que se trata de informação particular ou confidencial.]

    Deste modo, o obscurantismo faz-se de uma forma mais pulha: a censura não é tão chocantemente visível, e por isso mesmo mais perniciosa.

    Assim, o contrato com a Novavax, em data incerta, tem 78 páginas, das quais 57 páginas com asteriscos, significando assim que somente 21 páginas (26,9% do total) não terão sido alvo de cortes.

    Ainda vivemos em democracia?

    Como chegámos aqui?

    Como recuperamos a Democracia? Ou já desistimos de viver em Liberdade?