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  • Miocardites & aldrabões: coisas que nos devem tirar do sério

    Miocardites & aldrabões: coisas que nos devem tirar do sério


    Após a Direcção-Geral da Saúde (DGS) ter feito na sexta-feira um estranho alerta – e escrevo estranho, porque esta entidade é perita em esconder informação por acção e inacção –, apelando para os médicos reportarem casos de miocardites e pericardites em crianças dos 5 aos 11 anos após a toma da vacina contra a covid-19, ontem surgiu um comunicado de imprensa desta entidade com o Infarmed, para “esclarecimentos”.

    A credibilidade destas duas entidades – DGS e Infarmed – para prestar esclarecimentos é, convenhamos, quantificável: vale ZERO.

    boy in green shirt holding red paper heart cutout on brown table

    A DGS anda, desde sempre, a manipular informação, a mentir descaradamente, a esconder documentos. Os números da covid-19 ou de outras quaisquer doenças têm sempre um cunho político, e Graça Freitas não poderia ser o melhor capacho para limpar responsabilidades políticas pela gestão da pandemia nos últimos anos, e que nos tem custado excessos de mortalidade sem fim e sem qualquer justificação.

    Por sua vez, o Infarmed, em vez de se portar como um regulador defensor da Saúde Pública e dos interesses dos cidadãos, tem preferido claramente a postura de paladino da indústria farmacêutica e do Governo. Não se compreende como o Infarmed luta tenazmente, há mais de um ano, para não libertar os dados das reacções adversas (Portal RAM), alegando todo o tipo de argumentos falaciosos para que não se saiba a verdade.

    Aquilo que mais me choca no “esclarecimento” de ontem da DGS e do Infarmed é, porém, a sua convicção de que estão a “falar” com uma comunicação social dócil e colaborativa, pelo que sabiam que lhes bastava colocar água na fervura para que o “deslize” da sexta-feira passada ficasse no esquecimento.

    person in black knit cap and gray sweater

    Senão vejamos. Começam por dizer que o Comité de Avaliação do Risco em Farmacovigilância da Agência Europeia de Medicamentos (EMA) concluiu em 9 de Julho do ano passado, que “podem ocorrer, muito raramente, casos de miocardite e pericardite após vacinação com as vacinas Comirnaty e Spikevax”. Qual o risco quantificado? Não dizem!

    E desde essa data – e sabendo-se que só este ano, de acordo com uma consulta rápida no Google Académico, foram concluídos cerca de 4.340 artigos científicos em que se abordou a questão das miocardites em vacinas contra a covid-19 –, porque nada esclarecem a DGS e o Infarmed? Porque não lhes interessa nem ajuda as suas aldrabices.

    Depois, diz ainda o “esclarecimento” da DGS e Infarmed, que “o número de casos de miocardites e pericardites notificado na União Europeia/ Espaço Económico Europeu ao EudraVigilance foi de 901 casos relativamente à vacina Comirnaty (em 16,1/milhão de vacinados), e de 106 para a Spikevax (em 34,1/milhão de vacinados)”.

    Consegue-se confirmar essa informação em algum lado para além deste “esclarecimento”? Não. O Infarmed e a EMA são “peritos” em manipular informação sobre as reacções adversas, de sorte que nada muito em concreto se sabe consultando os dados disponíveis, por exemplo, no Eudravigilance.

    girl getting vaccine

    Em concreto, consultando esta base de dados que serve para fazer de conta que se mostra alguma coisa – sem se mostrar nada –, verifica-se que no grupo das “afecções cardíacas” (cardiac disorders) – onde certamente estarão integradas as miocardites e pericardites – não se vislumbram casos concretos para aquele grupo etário (5 aos 11 anos) – embora o número de indivíduos sem idade apurada seja muito grande – e para a idade dos 12 aos 17 anos estão indicados 5.368 casos de afecções cardíacas para a vacina da Pfizer (Tozinameran). E nenhum para a da Moderna (Elasomeran).

    Em seguida, continua o “esclarecimento” da DGS e Infarmed, ao melhor estilo aldrabão do toda-a-gente-já-sabe: “Recorda-se que a miocardite e pericardite são complicações conhecidas da COVID19 e ocorrem com maior frequência após a infeção COVID-19 em comparação com a ocorrência observada após a vacinação.”

    Ocorrem com maior frequência? Onde estão esses dados?

    Estarão no Portal RAM que o Infarmed esconde há um ano e que luta desde Abril passado para o Tribunal Administrativo de Lisboa não o obrigar a ceder ao PÁGINA UM?

    Dados sobre reacções adversas no Eudravigilance sobre as vacinas da Pfizer por grupo etário para todo o espaço europeu

    Estarão na base de dados dos Grupos de Diagnósticos Homogéneos que o Tribunal Administrativo de Lisboa obrigou a Administração Central do Sistema de Saúde a disponibilizar ao PÁGINA UM, mas que esta entidade do Ministério da Saúde continua a obstaculizar, através de um recurso?

    E, por fim, onde estão “os dados disponíveis” que, diz a DGS e o Infarmed, “confirmam que o desenvolvimento de miocardite e pericardite após vacinação segue um perfil clínico típico, geralmente com melhoria após descanso ou tratamento”?

    Em toda a gestão da pandemia, não há perdão para quem promoveu e apadrinhou, através do medo e da ideia de um perigo que nunca existiu para os mais jovens, um programa de vacinação imprudente, no mínimo, e que pode ser mesmo criminoso.

    Mesmo havendo jovens que pudessem estar em risco em caso de infecção por SARS-CoV-2, devido a certas comorbilidades, jamais isto justificaria uma vacinação massiva e independentemente da existência de imunidade natural; bastaria identificar essa pequena minoria, e poupar o grupo largamente maioritário a receber um medicamento que ainda não estava minimamente testado para ser usado de forma indiscriminada.

    Dados sobre reacções adversas no Eudravigilance sobre as vacinas da Moderna por grupo etário para todo o espaço europeu

    Qual é a parte do número 4.340 – o número de estudos que foram publicados só este ano, em 2022, sobre miocardites relacionadas com a vacina da covid-19, independentemente das suas conclusões – que a DGS e o Infarmed não percebem? Como podem assegurar que já se sabia tudo, que a vacina era segura para um grupo de baixíssimo risco, e depois surgem 4.340 estudos científicos só sobre uma matéria tão específica?

    Que aldrabice criminosa é esta de se usarem números não confirmáveis de uma forma independente, e de ignorar toda a literatura que foi apresentada depois da decisão espúria de vacinar crianças, adolescentes e jovens adultos saudáveis?

    Ontem, devo ter sido o único jornalista a ter colocado questões e pedido dados quantitativos à DGS para que fosse justificado o “esclarecimento”. Não tive resposta, o que diz muito da credibilidade deste tipo de aldrabices que a imprensa mainstream engole sem engasgar…

  • Senhor doutor Miguel Guimarães, o seu fundo é de barro e não é nada à prova de bala

    Senhor doutor Miguel Guimarães, o seu fundo é de barro e não é nada à prova de bala


    Hoje, em breve entrevista no Correio da Manhã, o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, tentou defender o indefensável. Diz ele que o fundo “Todos por Quem Cuida” é “à prova de bala”.

    Primeiro, não deixa de ser curioso verificar que Miguel Guimarães tenha sido muito diligente em responder ao Correio da Manhã, que lhe colocou duas simpáticas perguntas.

    Miguel Guimarães, actual bastonário da Ordem dos Médicos, ao centro

    Ao PÁGINA UM – que teve de recorrer ao Tribunal Administrativo, e lutar contra duas ordens profissionais com advogados instruídos para argumentar no sentido de convencer a juíza a não permitir acesso aos documentos contabilísticos e operacionais da campanha “Todos por Quem Cuida” –, Miguel Guimarães começou, via sua secretária, por “informar que, no prazo legal de 10 dias úteis, ser[iam] remetidos os respectivos esclarecimentos” a um conjunto de 11 perguntas. Esse prazo legal, enfim, nem existe. Acabou por responder muito parcialmente, em conjunto com Ana Paula Martins (ex-bastonária da Ordem dos Farmacêuticos) e Eurico Castro Alves, através da advogada Inês Folhadela.

    Mas vamos analisar as respostas de Miguel Guimarães fornecidas ao Correio da Manhã. Diz ele que “a entidade bancária, CGD, explicou que a criação de uma conta institucional levaria mais tempo”. Convenhamos: leva, sim. Talvez duas semanas. Ora, entre a assinatura do protocolo entre as três entidades (27 de Março de 2020) e o primeiro donativo recebido (6 de Abril) distam 11 dias. Portanto, não se abriu conta institucional por causa de três dias?

    Além disso, qual a perda que isso representaria (ter a conta institucional), uma vez que estava garantido o apoio financeiro (que atingiu cerca de 1,3 milhões de euros, 92% do total) da Apifarma e das farmacêuticas?

    Acelerar o processo não é justificação válida, além de que é falso que “para a movimentação [da conta] seriam sempre necessárias duas assinaturas“. É verdade que deveria ser assim, mas raramente foi.

    Nos documentos contabilísticos – e este é que dizem a verdade, constam várias ordens de transferência para fornecedores, detectadas pelo PÁGINA UM, apenas com uma assinatura, ora apenas a de Miguel Guimarães (vd. aqui um exemplo), ora apenas de Ana Paula Martins (vd. aqui um exemplo), ora apenas de Eurico Castro Alves (vd. aqui um exemplo).

    Miguel Guimarães pode enganar o Correio da Manhã. Mas não engana a verdade.

    Na verdade, Miguel Guimarães tem razão numa coisa, quando diz, nas suas respostas ao Correio da Manhã, que “está tudo contabilizado”. E o problema para ele, e também para Ana Paula Martins (que vai agora gerir o principal centro hospitalar do país) e para Eurico Castro Alves – e, de igual forma, para as duas ordens profissionais e para a Apifarma –, é estar, de facto, tudo bem documentado… mesmo se os documentos são irregulares e/ou ilegais.

    É exactamente por isso, através de documentos operacionais e contabilísticos, que ficámos a saber que Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves não pagaram 139 mil euros de imposto de selo.

    E que também não declararam os montantes recebidos à Plataforma da Transparência e Publicidade do Infarmed, ignorando-se assim uma realidade cada vez mais preocupante: a promiscuidade de figuras gradas da Medicina com as farmacêuticas.

    Miguel Guimarães esquece, ou quer que esqueçamos, que as boas causas têm de ter bons procedimentos – e não maus. Só poderia ter maus procedimentos se ele não fosse bastonário da Ordem dos Médicos e todo o dinheiro fosse dele. Aliás, na verdade, nem sequer consta nos extractos bancários consultados pelo PÁGINA UM (onde se consegue ver parte dos nomes dos doadores particulares) que Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves tenham dado, vá lá, um euro dos respectivos patrimónios, para o fundo que eles geriram e que recolheu 1,4 milhões de euros. Ou pelo menos 20 cêntimos, que foi o montante individual mais baixo dos donativos.

    Dossiers da campanha “Todos os Quem Cuida”, consultados pelo PÁGINA UM após uma sentença favorável do Tribunal Administrativo de Lisboa.

    E também esquece Miguel Guimarães que a mentira tem perna curta.

    Claro que está tudo contabilizado. Está contabilizado que uma conta solidária detida por dois médicos e uma farmacêutica recebeu muito dinheiro de farmacêuticas e alguns donativos de outras empresas e particulares para comprarem bens, mas meteram as facturas todas na Ordem dos Médicos criando condições para um “saco azul” descomunal acima de 968 mil euros. O PÁGINA UM apresentou todas essas facturas. Miguel Guimarães teve a “fortuna” de o Correio da Manhã não lhe perguntar…

    Independentemente das ilegalidades destas falsas facturas – e também das falsas declarações a favor das farmacêuticas –, convém saber onde está esse dinheiro: se em caixa na Ordem dos Médicos; ou se em casa de alguém. Mais do que um auditoria ao fundo, talvez seja mais prudente uma auditoria à Ordem, porque a haver uma entidade prejudicada é a Ordem dos Médicos como instituição.

    E não se atire agora com a auditoria à conta do fundo, que aliás será paga pelos dinheiros da própria campanha, pois nunca serviu nem servirá para detectar irregularidades nem ilegalidades.

    Acta de 27 de Abril deste ano da comissão de acompanhamento da campanha “Todos por Quem Cuida” que revela preocupação pela investigação do PÁGINA UM então em curso.

    Serviu e servirá, sim, para tentar salvar a pele e as ambições de Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, que quiseram, com o dinheiro das farmacêuticas, darem ares de bons samaritanos, pensando que tudo valia.

    A ideia de realizar uma auditoria ao fundo teve apenas uma causa: a investigação do PÁGINA UM. Não é presunção: é a verdade.

    No dia 27 de Abril deste ano, na acta da comissão de acompanhamento da campanha escreveu-se: “O mais recente artigo do jornal Online ´Página Um´ sobre o Fundo ´Todos Por Quem Cuida´, publicado na semana passada, refere que o site do Fundo não disponibiliza informação detalhada sobre a alocação de verbas/ quantidade de material disponibilizado e o nome das entidades beneficiárias e que, caso essa informação não lhe seja disponibilizado no prazo de 10 dias, de acordo com a recomendação da CADA, avançará para uma intimação no Tribunal Administrativo com o objectivo de ser imposta uma obrigatoriedade sob pena de multas pecuniárias por cada dia de atraso”[sic].

    Na semana seguinte, no dia 4 de Maio, já estava a Apifarma a sugerir o encerramento do fundo, “uma vez que já não se justifica a sua existência”, sugerindo-se então que, em reunião com os dois bastonários, se realizasse “uma auditoria externa e independente”, além de saber qual o destino da parte remanescente. E no dia 11, já a decisão estava formalmente tomada.

    O PÁGINA UM viria a intentar a intimação no dia 23 de Maio deste ano, e a suposta auditoria encomendada serviu exclusivamente como argumento jurídico dos advogados da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Farmacêuticos para evitar que a juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa as obrigasse a facultar toda documentação contabilística e operacional.

    Desejavam – e compreende-se – que a juíza apenas determinasse que o PÁGINA UM tivesse acesso a uma auditoria que, obviamente, seria cozinhada. A intenção era essa; não era fazer a auditoria, que aliás, está em banho-maria. E mesmo que agora saia, paga por quem paga, jamais revelará aquilo que o PÁGINA UM fará, porque a juíza não foi no “canto do bom samaritano”, e obrigou os promotores da campanha, por sentença, a abrirem os arquivos. E mesmo assim o PÁGINA UM não conseguirá fazer tudo, porque isto, na verdade, é um “caso de polícia”.

    Amanhã, aqui, no PÁGINA UM, saber-se-á ainda mais.

    LEIA AQUI A PRIMEIRA PARTE DA INVESTIGAÇÃO AO FUNDO “TODOS POR QUEM CUIDA”


    Este e outros processos de intimação são suportados pelos leitores através do FUNDO JURÍDICO, na plataforma MIGHTYCAUSE. Caso prefira apoiar por outro método, consulte AQUI.

  • De 6 de Dezembro de 2021 até 6 de Dezembro de 2022: um ano de luta do PÁGINA UM para saber a verdade por detrás das vacinas contra a covid-19

    De 6 de Dezembro de 2021 até 6 de Dezembro de 2022: um ano de luta do PÁGINA UM para saber a verdade por detrás das vacinas contra a covid-19


    Hoje é dia 6 Dezembro de 2022. Há exactamente um ano, no dia 6 de Dezembro de 2021, o PAGINA UM apresentava dois requerimentos ao presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo, para acesso a base de dados (Portal RAM) sobre as reacções adversas às vacinas contra a covid-19 e ao anti-viral remdesivir, comercializado pela farmacêutica Gilead.

    O pedido teve logo a recusa liminar do Infarmed – um organismo que tem mostrado estar mais ao serviço das farmacêuticas do que da saúde pública, dirigido por um “homem de mão” daquele sector. Rui Santos Ivo foi director executivo da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica entre 2008 e 2011, e está na “máquina” (pouco) reguladora do medicamento desde 1994, com alguns intervalos em cargos burocráticos europeus e nacionais da saúde, mais conhecido por esconder do que revelar informação sensível.

    O PÁGINA UM recorreu à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), que em 16 de Março deste ano considerou que deveria ser facultado o acesso ao Portal RAM, expurgando dados nominativos – o que é aceitável e até recomendável –, até porque, referia-se no parecer, “o interesse público no conhecimento de elementos que possam informar quanto à segurança da vacina é, por conseguinte, manifesto”.

    Mas o interesse público é uma batata para o grande defensor do secretismo da indústria farmacêutica de seu nome Rui Santos Ivo e mais a sua equipa. E assim, o Infarmed mandou o parecer da CADA às malvas e insistiu na recusa. No dia 1 de Abril deste ano, o regulador defendeu que só deve ser do conhecimento do público “os dados constantes da base de dados EudraVigilance”, mas, como se sabe, estes são apenas apresentados em formato agregado, sem qualquer detalhe informativo.

    Perante esta situação, o PÁGINA UM decidiu apresentar uma petição junto do Tribunal Administrativo de Lisboa. É um processo considerado urgente que corre termos mesmo em tempo de férias judiciais. Foi o primeiro processo dos 14 já apresentados que teve o apoio imprescindível dos leitores, através do FUNDO JURÍDICO. Foi no dia 20 de Abril deste ano. Passaram já sete meses e meio. Ou, mais precisamente, 230 dias.

    Nestes 230 dias, o Infarmed mais não fez do que manobras para ludibriar os já três juízes que pegaram no processo, tentando demonstrar, através da sociedade de advogados BAS – que tem coleccionado contratos por ajuste directo com mais de uma dezena de entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde – que os dados do Portal RAM se encontram na Eudravigilance e que é impossível anonimizá-los. Em suma, dizem que querem proteger a identidade das pessoas que lá constam, quando, na verdade, mantendo na obscuridade os efeitos adversos – porque os relatórios que disponibilizam trimestralmente são apenas números manipuláveis – estão a contribuir para desproteger a saúde das pessoas.

    Atente-se: é ridículo alegar a impossibilidade de anonimização de uma base de dados, porque qualquer uma permite seleccionar campos e variáveis, retirando assim o nome das pessoas. Anonimizar dados informáticos relativos à saúde é a tarefa mais banal e fácil do mundo, mas tem sido o argumento mais usado pela Administração Pública para recusar o acesso.

    O processo no Tribunal Administrativo de Lisboa sobre o acesso ao Portal RAM, convém dizer, não tem estado parado, tendo em conta as suas particularidades. E, neste caso, até tem tido uma evolução pouco normal – em comparação com outros processos similares intentados pelo PÁGINA UM.

    Conversa amena entre o presidente do Infarmed e o ex-jornalista André Macedo em serviço para a Afifarma.

    No último despacho, desta vez da juíza Sara Ferreira Pinto, ficou finalmente definido, após alegações e contra-alegações de ambas as partes, o “objecto de litígio”:

    1) Saber se o designado “Portal RAM” é a base de dados da qual conste informação sobre as reações adversas ao antiviral Remdesivir, sob as formas usadas comercialmente pela Gilead Sciences, desde Março de 2020 até à data e que serviu para a elaboração do Relatório de Farmacovigilância // Monitorização da segurança das vacinas contra a COVID-19 em Portugal;

    2) Saber se além da base de dados referida em 1) a requerida possui documentos relacionados com as reações adversas a medicamentos, nomeadamente, ao antiviral Remdesivir, sob as formas usadas comercialmente pela Gilead Sciences, desde Março de 2020 até à data, e/ ou documentos que serviram para a elaboração do Relatório de Farmacovigilância // Monitorização da segurança das vacinas contra a COVID-19 em Portugal;

    3) Saber se os dados contidos na base de dados referida em 1) e/ ou nos documentos referidos em 2) permitem a identificação da pessoa a que respeitam, de forma direta ou indireta, especificamente saber se os dados relativos à saúde permitem a identificação da pessoa a que respeitam, de forma direta ou indireta.

    Rui Santos Ivo; presidente do Infarmed: há um ano a esconder dados do Portal RAM.

    4) Em caso de resposta afirmativa ao TP 3), saber se é possível consultar a base de dados referida em 1) sem que seja possível a quem efetua a consulta identificar a pessoa a que os dados, designadamente os dados de saúde, respeitam.

    5) Em caso de resposta afirmativa ao TP 3), saber se é possível expurgar dos documentos referidos em 2) os dados que permitem, de forma direta ou indireta, a identificação da pessoa a que respeitam.

    6) Saber se a base de dados EudraVigilance não contém a informação discriminada e detalhada sobre Portugal que existe no Portal RAM.

    Para “auxiliar” o Tribunal, a juíza aceitou que o Infarmed indicasse uma testemunha, que deveria exercer o seu depoimento, e ser questionada pelos advogados das partes. O Infarmed indicou uma técnica: Márcia Silva, directora de Gestão do Risco de Medicamentos.

    Fez bem.

    person holding white plastic bottle

    Quanto ao PÁGINA UM apresentou um requerimento para que, além desta senhora, seja também exigido o testemunho presencial de Rui Santos Ivo , presidente do Infarmed… Precisamos de saber, pela sua boca, as explicações técnicas, comerciais ou políticas para tanta luta para manter secreta uma base de dados de tão grande relevância para a saúde pública.

    Na verdade, um ano depois, mais se deve perguntar: o que esconde o Portal RAM para não ser mostrado? Quem é o amo do Infarmed: os cidadãos ou os políticos e a indústria farmacêutica?

    É isto que, na verdade, estará em causa no processo do Tribunal Administrativo de Lisboa.


    Este e outros processos de intimação são suportados pelos leitores através do FUNDO JURÍDICO, na plataforma MIGHTYCAUSE. Caso prefira apoiar por outro método, consulte AQUI.

  • Lembram-se do comunicado de imprensa da ERC de 9 de Agosto sobre um “cidadão”? Muita água passou…

    Lembram-se do comunicado de imprensa da ERC de 9 de Agosto sobre um “cidadão”? Muita água passou…


    Hoje, dia 9 de agosto de 2022, um cidadão de nome Pedro de Almeida Vieira dirigiu-se à ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social sobre pretexto de consultar processos em que o seu nome está envolvido.

    Não é a primeira vez que o faz, não aceitando as regras estabelecidas para o funcionamento da ERC e, insatisfeito, com deliberações em que a ERC não lhe dá razão, tem vindo a insultar os membros do Conselho Regulador e a exercer coação sobre os funcionários que o atendem, insistindo, inclusive, em gravar uma audiência de conciliação apesar de advertido de que não o poderia fazer, e fotografar peças processuais.

    Este foi, na íntegra, o inusitado comunicado de imprensa da ERC, presidida por um juiz conselheiro (Sebastião Póvoas), que tecia sobre mim considerações, no mínimo, pouco abonatórias.

    Aliás, dois dias depois, no dia 11 de Agosto, repetiu a dose com novo comunicado: “A Comissão de Trabalhadores da ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social (CT-ERC) reuniu, esta quinta-feira, com o Senhor Presidente do Conselho Regulador, discutindo-se a perturbação que vem sendo sentida na ERC que coloca em causa o regular funcionamento da instituição e o seu bom nome, bem como a tranquilidade dos seus trabalhadores.

    Certa imprensa e certos jornalistas rejubilaram. Alguns, como a Lusa e o Observador, até fizeram notícias sem, inicialmente, me ouvirem. Até o Sindicato dos Jornalistas, embora criticando generalizações, fez um comunicado moderado, informando que “não faz comentários sobre conflitos entre a ERC e o referido jornalista”. A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, essa, muda e queda.

    Quase três meses depois, hoje mesmo – na verdade, este Editorial foi mesmo colocado online no interior da sede da ERC –, estive a consultar novamente “peças processuais”. E até as fotografá-las. E sem necessidade de chamar a PSP para identificar pessoas que a mando do Conselho Regulador me pudessem impedir, como em Agosto, que fotografasse peças processuais.

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    E porquê? Porque o presidente da ERC informou-me previamente (e até já isso fizera outra vez depois de Agosto) ser “possível a utilização de meio próprio de reprodução (telemóvel), ao abrigo do artigo 13º da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (Lei nº 26/2016, de 22 de agosto de 2016, na sua versão atual)”. E já autorizara até noutra minha visita anterior.

    Já agora também informo que consultei novamente processos que já antes vira, e sobre os quais me insurgira – digamos assim – por estarem incompletos. Continuavam incompletos, porque a ERC nem respeito institucional tem para com a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), ignorando três pareceres distintos relativos a seis queixas que apresentei, nos últimos meses, por vários obstáculos ao acesso à informação por parte do Conselho Regulador.

    Sim, três pareceres da CADA, que podem ser lidos AQUI um, AQUI outro e AQUI mais outro – todos desfavoráveis à conduta da ERC, que tinha “regras estabelecidas” que eu, enfim, teimava em não aceitar. Vale a pena ler, sobretudo a parte em que a ERC considerava que os pareceres jurídicos e de índole técnica deveriam desaparecer de circulação. Mas também recomendo por causa dos custos exageradíssimos das fotocópias (seis vezes acima do preço de mercado, pelo menos) ou da emissão de cópias certificadas de actas com expurgos ilícitos.

    Primeiras páginas das deliberações da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos analisando as participações do PÁGINA UM contra a Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

    Geralmente, aceito as regras estabelecidas, mesmo sabendo que as posso sempre questionar e denunciar no caso de as considerar inapropriadas e inaceitáveis. Este deve ser o espírito de uma democracia. Mas nem era o caso do “diferendo” com a ERC em Agosto passado. Na verdade, eu não podia, como jornalista, aceitar regras arbitrárias e mesmo ilegais, ainda mais de um regulador criado pela Constituição para defender a liberdade de imprensa.

    Fiz, por isso, somente aquilo que devia: pedir às autoridades policiais que identificassem as pessoas que me obstaculizavam o livre acesso a um direito; depois, apresentei participações à CADA, que me veio dar razão.

    A ERC, lamentavelmente, não ficou satisfeita em obstaculizar o acesso de um jornalista a peças processuais; tomou ainda a decisão de fazer-me ataques de carácter, tentando um “linchamento público”, e com isto encetar manobras de diversão para “apagar” erros processuais e colocar o papel de odioso a um jornalista incómodo. O tempo veio dar-me razão.

    person writing on white paper

    Bem sei que sim, que há jornalistas incómodos. Mesmo chatos, que causam chatices. Tantas que, por exemplo, ainda na semana passada, os advogados contratados pela ERC tiveram de gastar bastantes horas a escrever 44 páginas de um recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul, por causa da sua derrota na primeira instância contra o PÁGINA UM, porque desejo mais do que a transparência dos dignos membros do Conselho Regulador deseja. Está a ERC no seu direito de usar os recursos dos contribuintes para negar a transparência. E eu tenho o direito de discordar e usar armas legais.

    Mas, hélas, nunca direi que o “cidadão” Sebastião Póvoas me anda a insultar e a exercer coacção só porque ele não me faz as vontades… Nem vou a correr enviar um comunicado de imprensa à Lusa para que esta, diligentemente, “viralize” uma “encomenda”, sem sequer ouvir o contraditório, para tratar da folha de um “opositor”.

    Entretanto, quanto aos processos que continuam incompletos, pois bem: nova intimação no Tribunal Administrativo. Água mole em cabeça dura…

  • China: é a ditadura, estúpido!

    China: é a ditadura, estúpido!


    Na China, a Matemática vale aquilo que Xi Jinping quiser. Se 1+1 tiver de ser 3; ou for decidido que 1 é igual a 1.000.000, assim se determina sem questionamentos. Ou, quando muito, sob pena de castigos ou morte, com papéis em branco após meses de clausura sem falar, sem protestar, sem comer, mas a ter de calar à mesma.

    Isso é na China, que é uma ditadura. Bem gostaríamos que não fosse. Talvez fosse sensato não terem as potências mundiais – chamemos assim à Europa e Estados Unidos – andado ao longo das últimas décadas hipocritamente esperançosos a negociar com a China – e a vender-lhes dívida como se não houvesse amanhã para continuar o regabofe da impressão de moeda –, pensando que, com jeitinho e comércio, se “convencia” os políticos chineses a respeitarem os direitos humanos.

    Rotundo fracasso ou exercício hipócrita – qualquer que seja a possibilidade, certo é que aqui temos agora, para o Mundo, uma China que se tornou uma superpotência económica e militar, que domina o mercado internacional e que, hélas, tem 1,5 mil milhões de almas, quase 20% da população mundial, a viverem subjugadas a uma elite.

    A China é, portanto, uma ditadura – e acredito que, se antes do “despertar do dragão”, nenhum de nós, quer como cidadão individual quer em grupo, poderia mudar este estado de coisas, penso que agora nenhum político, incluindo Joe Biden e qualquer líder europeu, consegue fazer com que Xi Jinping mude o que quer que seja. Não dá: a China, desejando os seus líderes, continuará uma ditadura, continuará a ser uma ditadura. E vai ser muito difícil mudá-la.

    E vai ser ainda mais difícil mudá-la se o mundo democrático continuar a achar que aquilo que se passa actualmente na China são manifestações contra a política “zero covid”; como se, de um lado, tivéssemos uma entidade governamental preocupada em “vencer o vírus” – o alcançado sonho húmido do almirante Gouveia e Melo, lembram-se? – e, do outro, grupos de “negacionistas” egocêntricos e desumanos que, a despeito de um inqualificável desrespeito pelas vidas de outrem, querem ir laurear a pevide. E não uma inqualificável opressão do povo que já luta sem medo da morte, porque a vida assim já é pior do que tal sorte.

    white light in tunnel during night time

    Olhem para os números, pelo menos. Não sejam estúpidos, e já que tiveram a sorte de não nascer na China, não queiram aceitar que vos digam que 1 é igual a 1.000.000 – e não aceitem a manipulação da imprensa mainstream, mais as suas agendas. Já nem quero, neste caso, abordar a cobertura da lusitana indigente imprensa, porque, enfim, já se sabe, comporta-se como abjecta caixa de ressonância das agências internacionais ou, na melhor das hipóteses, agrega em si redacções com patentes défices de literacia matemática, que está ao nível de uma primeira classe das antigas – ou seja, olham para um número e vislumbram um gatafunho.

    Vejamos então o que tem saído sobre a China na imprensa internacional mais “credenciada” sobre os “números da pandemia” que, aparentemente, justificam os lockdowns. A Reuters, há dois dias, titulava “China records drop in new daily COVID cases for Nov. 28”. A CNBC titulava, no sábado passado, “China reports third consecutive daily record for new Covid cases”. Ontem, a Sky News titulava “China expands lockdowns as COVID cases soar to daily record high”. E poderia continuar, sempre na mesma toada de justificativos para as medidas governamentais chinesas.

    Recordes, recordes, recordes. Casos, casos, casos. Números, números, números.

    silhouette of person standing near window

    E as mortes não contam? Já não contam como o indicador mais fundamental de uma política de saúde? Onde estão esses números de óbitos para se confrontarem, de modo a se avaliar se as medidas governamentais chinesas são proporcionais ao risco da covid-19 para a saúde pública? Onde estão esses números e esse enquadramento nas notícias, pelo menos da imprensa de países democráticos?

    Pois, se não estão; eu digo-vos: nos últimos seis meses morreram sete chineses por covid-19. Todos este mês de Novembro, é certo, mas são 7. Atente-se a este número: 7. Num país com uma população de 1,41 mil milhões de pessoas e uma taxa anual de mortalidade de 0,77%, significa que, desde finais de Maio até finais de Novembro (seis meses), terão morrido, contas feitas, cerca de 5.544.000 de chineses por todas as causas. Sete foram de covid-19. Sete: repito. Em termos relativos, neste último semestre, a covid-19 foi responsável por 0,00013% das mortes. Uma morte por covid-19 por cada 775.500 mortes.

    Ainda acham que aquilo que se passa na China é uma questão de saúde pública?

    É a ditadura, estúpido!

  • Marcelo é lelé da cuca

    Marcelo é lelé da cuca


    Em 5 de Agosto de 1978, na secção Gente do semanário Expresso, o então seu director, Marcelo Rebelo de Sousa, escreveu uma frase, completamente desinserida de qualquer contexto, que se tornou célebre: “Balsemão é lelé da cuca”. Pinto Balsemão – fundador daquele semanário e actualmente presidente da Impresa – era então o primeiro-ministro português, e para justificar esta boutade, o então irrequieto Marcelo de 30 anos desculpou-se dizendo ter sido aquilo um teste aos revisores do semanário, por haver queixas sobre as suas qualidades. “Infelizmente, verifiquei que era verdade”, assim disse. Balsemão nunca lhe perdoou, porque foi um insulto gratuito e destituído de fundamento.

    Pois bem, não tendo o PÁGINA UM uma equipa altamente profissional de revisores para testar – estando essa tarefa inglória mas fundamental a ser agora desempenhada, com abnegação, pela Mariana Santos Martins, a quem não posso exigir mais –, não tenho assim qualquer alegação atenuante para vir a desmentir que não tinha o propósito de escrever o seguinte, que até já surge bem escarrapachado do título deste editorial:

    MARCELO É LELÉ DA CUCA!

    Assim: até com ponto de exclamação. Até para reforçar a intencionalidade, contundência e veracidade da minha afirmação.

    Sejamos claros: como no conto de Hans Christian Andersen, Marcelo Rebelo de Sousa é hoje, e não é só de hoje, um presidente completa e tragicamente desnudado de sensatez – e só já se lhe pedia isso, apenas, sensatez –, mas ninguém se atreve a dizer-lhe.

    Para mim, bastou vê-lo “nu” em 18 de Junho de 2017, quando no ainda quente rescaldo do trágico incêndio de Pedrógão Grande nos disse que “o que se fez foi o máximo que se podia fazer”. Tal insensibilidade e impreparação como estadista, desde logo mostrando preocupação apenas em desresponsabilizar políticos enquanto as brasas nem tinham arrefecido e cadáveres ainda fumegavam, foi para mim o bastante. Nesse dia, Marcelo “morreu” como político, e perdeu o meu respeito.

    Mas, no meio das suas constantes selfies e exposições egocêntricas, a que nos foi brindando desde 2016, nada me preparava ainda para o que veio de si a partir de Março de 2020: um presidente da República simultaneamente catedrático de Direito Constitucional a pactuar, por mor da sua célebre hipocondria, com sucessivas violações da Constituição, incluindo discriminação de cidadãos em função de uma opção legítima e legal, bem como o incitamento a pais para inocularem filhos por uma não-causa social e sanitária. Mesmo se estivesse em causa proteger idosos num hipotético objectivo (não possível) de imunidade de grupo, jamais poderia ser aceitável condicionar a segurança dos mais jovens para proteger os mais idosos. Em tempos de decência geracional, costumava ser ao contrário.

    Por isso, já não surpreende vê-lo agora como paladino de uma inconstitucional alteração constitucional, de uma chinenização da República Portuguesa, ou assistir às suas declarações sobre abusos sexuais de padres – ao estilo de “o que se fez foi o máximo que se podia fazer” – ou ouvir os seus comentários no flash interview de um jogo de futebol para sugerir que nos esqueçamos das violações dos direitos humanos no Qatar, pois é hora de andar a chutar bolas.

    Mas algo fica já fora da sanidade institucional quando, em pleno século XXI, de tantos avanços sociais e tecnológicos, vemos o mais alto dignitário de uma quase milenar Nação discursar perante uma jovem elite – recém-licenciados em Medicina, antes do Juramento de Hipócrates –, avisando-a que “fazer sopa de pedra e fazer omeletes sem ovos, vai ser muito a vossa vida”.

    Esta visão não é apenas miserabilista – de alguém que, aliás, já conta com mais de uma centena de viagens oficiais ao estrangeiro envolvendo 47 países –; é miserável.

    Um Presidente da República somente se estiver (ou for) lelé da cuca pode dizer, a quem vai começar uma via profissional fundamental para um país (Saúde), que “o ideal seria (…) que tivésseis horas para ir ao cinema, ao teatro, para estar com a família, para ter almoços e jantares que não fossem não-almoços nem jantares”, mas que isso não lhes vai ser possível, porquanto aquilo que terão de enfrentar “, para não terdes que enfrentar aquilo que “é totalmente imprevisível”, uma espécie de “missão” do tipo dos missionários combonianos. E que ainda se apresta a ser o portador da “má notícia”, com ares de quem nada tem a ver com o estado da res publica: “a vossa vida vai ser o contrário daquele modelo para que apontou, de forma muito razoável e esperançosa, o senhor bastonário. Vai ser a surpresa, o inédito, o desconhecido, o ignoto. E vai ser como missão”.

    Mas o que é isto?! Ensandeceu mesmo?!

    No final da alocução, quero acreditar que as palmas que lhe dedicaram tenham sido pela comiseração que certas afecções mentais nos suscitam. Idem, com as habituais selfies, que ele tanto gosta. Convém, dizem, não contrariar certos caprichos de certas pessoas, mesmo quando as suas capacidades feneceram, mesmo se a cadeira onde se encavalitam no poder, até ao limite, se encontra em processo de esboroamento. Por podridão.

    No limite, ninguém o levou a sério no discurso. Neste e em muitos outros.

    Assim, não havendo esperanças numa resignação, acalento apenas alguma esperança de que lhe arranjem melhores conselheiros de comunicação, não o deixem falar tanto de improviso, e ajudem-no a terminar com o mínimo de dignidade o seu mandato, como disse certa vez António Costa sobre Cavaco Silva – que, aliás, a esta distância, e com algum estremeção na minha consciência, se me afigura agora como um estadista que, pelo menos, soube minimamente comportar-se enquanto Presidente da República.

  • Esboço embrionário em envelope lacrado

    Esboço embrionário em envelope lacrado


    Já se encontra no Tribunal Administrativo, entregue em mão em envelope lacrado, o famoso “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”, a peça de elevada Ciência do Instituto Superior Técnico sobre o impacte das festas populares de Junho na mortalidade.

    Cabe agora à juíza do processo saber se o “esboço embrionário” é semelhante a uns rabiscos num guardanapo de papel que, enfim, acabou como notícia alarmista na Lusa (e a viralizar na imprensa mainstream, que o publicou sem nunca o ver), ou se estamos perante um “estudo” (independente da sua qualidade) que deverá ser escrutinado do ponto de vista científico.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes na sede do Ordem dos Médicos, em Julho do ano passado, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico recusa divulgar os estudos e os dados, e tem agora defendido que, em Julho passado, fez apenas um “esboço embrionário”, que foi noticiado pela imprensa mainstream como um estudo científico credível.

    Se o Tribunal Administrativo de Lisboa considerar que se está perante um “esboço”, o PÁGINA UM não terá acesso, mas fica-se a saber que a Lusa fez uma notícia alarmista vendendo a “notícia” como tendo por base um relatório (que não existia), fazendo mesmo supostas citações. E que toda a imprensa mainstream viralizou uma fake news.

    Mas se o “esboço” for afinal uma péssima desculpa para não mostrar um mau estudo científico, então teremos uma excelente oportunidade de esquadrinhar o modus operandi da investigação em Portugal nos estranhos tempos que correm, onde a ausência de rigor e a falta de transparência e humildade convivem com maus cientistas.

    Este caso é exemplar: que saiba, esta será a primeira vez que uma instituição universitária se vê pressionada pela imprensa a prestar contas públicas sobre a qualidade científica daquilo que sai sob sua chancela.

    A questão central, saliente-se, não é a idoneidade do Instituto Superior Técnico; pelo contrário: é em defesa desta instituição que o PÁGINA UM está nesta cruzada.

    Não é aceitável que determinados investigadores, ainda por cima encabeçados pelo seu presidente, usem a credibilidade científica de uma centenária instituição universitária para passarem, activa ou passivamente, informação não validada.

    E ainda mais quando se estava perante um assunto da máxima sensibilidade social. E nem sequer já vale a pena salientar a postura com que os investigadores do Instituto Superior Técnico, e em particular o seu presidente, Rogério Colaço. A indisfarçável soberba com que recusaram prestar quaisquer contas a um jornalista que lhes solicitou provas das conclusões que estavam a circular em nome daquela instituição é o paradigma daquilo que não pode ser a Ciência, daquilo que não deve ser a relação entre os cientistas e a sociedade.

    Note-se que no pedido do PÁGINA UM estão incluídos também os anteriores relatórios do Instituto Superior Técnico desde Junho do ano passado, que nunca foram classificados como “esboço embrionário”; e por isso, independentemente, da decisão da juíza, certamente haverá possibilidade de analisar criticamente os outros relatórios elaborados desde Junho do ano passado em articulação com a Ordem dos Médicos.

    Isto é a democracia a funcionar. E o jornalismo independente e sem medo a trabalhar. Incomoda? Claro. Mas se não incomodasse não seria jornalismo.

  • Da pandemia tripla ou da tripla estupidez: um caso de ‘bola de cristal’ nas mãos do doutor Filipe Froes

    Da pandemia tripla ou da tripla estupidez: um caso de ‘bola de cristal’ nas mãos do doutor Filipe Froes


    No dia 1 de Novembro, de acordo com os dados do Worldometers, terão morrido 1.144 pessoas por covid-19 a nível mundial. A média móvel de sete dias está em tendência decrescente e, em breve, ficará abaixo dos mil, o que são os valores mais baixos desde 20 de Março de 2020, mesmo no início da pandemia.

    Recorde-se que, ao longo da pandemia, se atingiu o valor mais elevado em 25 de Janeiro de 2021, com 14.772 óbitos registados, ou seja, quase 13 vezes superior à situação actual. Ou, noutra perspectiva, os valores actuais representam uma descida de 92,3% face ao máximo. Desde 15 de Abril deste ano, a mortalidade por covid-19 esteve sempre abaixo dos três mil óbitos a nível mundial.

    greyscale photography of sheep

    Os valores actuais só podem assustar quem, durante mais de dois anos e meio, esteve a ser constantemente massacrado pelos media mainstream e por “peritos” (muitos financiados pelas farmacêuticas) com relatos pavorosos de uma doença omnipresente apresentada como se fosse o Armageddon. Ou seja, quase todo a gente.

    Mas, na verdade, sabendo-se que morrem, em média, mais de 180 mil pessoas por dia em todo o Mundo, mil óbitos por covid-19 representam cerca de 0,6% do total. Por outras causas, em cada 10 minutos, morrem mais pessoas (cerca de 1.280) do que num dia inteiro – que tem 144 períodos de 10 minutos – por covid-19.

    Somos mortais, já o sabíamos. Mas não podemos continuar irracionalmente a viver com medo de morrer.

    Por esse motivo, o que se pode dizer agora de um sujeito chamado Filipe Froes que, em entrevista ao Diário de Notícias –, a pretexto de uma colectânea de textículos (não confundir com testículos) para um livro financiado pela Bial –, responde da seguinte forma à pergunta sobre “que impactos da covid-19 antevê para este Inverno em Portugal:

    Capa da edição de 4 de Novembro de 2022 do Diário de Notícias.

    “É uma excelente pergunta, infelizmente não tenho uma bola de cristal, mas tenho sempre de fazer aquilo que me é exigido: preparar-me para o pior e esperar o melhor. Diria que vamos estar a viver aquilo a que se chama “pandemia tripla”, uma pandemia com covid, com gripe e com vírus sincicial respiratório. Ou seja, vamos estar numa situação em que, apesar das pessoas estarem vacinadas contra a gripe e a covid, vão progressivamente diminuir a sua imunidade. Com as novas variantes de covid, poderá haver alguma diminuição da eficácia contra a infeção e, portanto, vamos ter um aumento de número de casos, um acréscimo da afluência às urgências e, previsivelmente, teremos um aumento da gravidade traduzida em internamentos em enfermaria e cuidados intensivos. Além disso, necessariamente e infelizmente, vamos ter um aumento da mortalidade, nada que já não estejamos a ver lentamente noutros países.”

    Lá vem a conversa das variantes: minhas senhoras e meus senhores, estão identificadas, até agora, 2.204 variantes no Phylogenetic Assignment of Named Global Outbreak Lineages (PANGOLIN). Em 19 de Abril deste ano, listei 1.847 variantes. Em pouco mais de seis meses foram identificadas mais de 350 novas variantes. Num editorial, que então escrevi, intitulado “X: antes a Morte que tal Sorte”, para “o ‘marketing vírico’ em redor do surgimento (supostamente repentino) de novas variantes – que ‘podem’ ser sempre mais perigosas, mais transmissíveis, mais um ‘par de botas’, como propalam jornalistas ‘acéfalos’, porque acríticos e preguiçosos – mostra bem o grau de insanidade colectiva.”

    E propalam, porque acéfalos sem aspas, acreditam em palavras supostamente sábias do sabichão Filipe Froes. Ei-lo aqui, a alarmar:

    “Dentro destas novas variantes, tem havido um esforço muito grande a nível europeu, conjuntamente com o Reino Unido, para avaliar as duas grandes ameaças de variantes que se aproximam. Falo das variantes BQ1.1 e a XBB, sendo esta última conhecida por variante de Singapura por ter um acréscimo de atividade neste país, mas pensa-se que poderá vir a ser dominante no continente europeu, por volta de dezembro ou janeiro. Neste momento, estamos a assistir na Europa a um aumento da variante BQ1 e BQ1.1, e estas variantes significam uma maior capacidade de transmissão porque têm mecanismos de invasão [sic] à imunidade desenvolvida pela infeção, quer natural, quer pela vacina.”

    [N.D., na entrevista escrita, foi transcrita a palavra “invasão“, mas, na entrevista gravada pela TSF, Filipe Froes diz efectivamente “evasão”, no sentido de as novas variantes supostamente “contornarem” a imunidade]

    Música para os ouvidos. Jogos de semântica de encher ouvidos de papalvos. Reparem: não são as vacinas que são ineficazes. São as supostas novas variantes que têm “uma maior capacidade de transmissão porque têm mecanismos de evasão [palavra dita por Filipe Froes] à imunidade desenvolvida pela infecção”.

    white sheep on white surface

    Dito por outras palavras: segundo as palavras deste “doutor da mula ruça”, a vacina não serve para nada por causa das novas variantes, mas mais adiante ele não tem pejo de recomendar: “A meu ver, isto significa que temos de tomar algumas medidas essenciais: uma delas é aumentar rapidamente a vacinação contra a covid e contra a gripe – começando pelos mais velhos e depois alargando ao maior número de pessoas possível –, e temos de melhorar muito os sistemas de vigilância.”

    Enfim, alguém compre uma bola de cristal. Para lha darem… Não vale atirarem. E nem lha tirem: para nigromante, não há pior.

    P.S. Li também, pasmado, todo o editorial da directora da Diário de Notícias (DN), Rosália Amorim, sobre esta entrevista. Assustador, o título: “Guerra de pandemia vai juntar-se à guerra de Putin“. Não podia começar ao melhor estilo do “vamos todos morrer”: “O inverno aproxima-se e além do tormento do conflito na Ucrânia, de um eventual racionamento de energia, alta da taxa de inflação e subida sucessiva das taxas de juro, podemos viver, nos próximos meses, uma ‘pandemia tripla‘ (…).” E acaba este texto inclassificável desta forma: “Vale a pena lembrar os acontecimentos que marcaram as nossas vidas desde março de 2020 – e a esse propósito o DN e os autores Patricia Akester e Filipe Froes lançam um livro na próxima segunda-feira com o título A Pandemia que revelou outras Pandemias – Contributos para o Conhecimento – para que não nos esqueçamos do que passámos e de como a desinformação tentou, tantas vezes, toldar o conhecimento e as tomadas de decisão.”

    Ainda bem que Rosália Amorim fala em desinformação e conhecimento: a directora do DN não informa que o livreco é financiado pela farmacêutica BIAL; e também ficamos sem qualquer conhecimento do montante deste patrocínio. Esperemos que a BIAL o coloque no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed.

  • Banco de Portugal e a protecção dos infractores: a imprensa mainstream só denuncia; e o PÁGINA UM é o único que luta contra o anonimato

    Banco de Portugal e a protecção dos infractores: a imprensa mainstream só denuncia; e o PÁGINA UM é o único que luta contra o anonimato


    Esta tarde, o Expresso divulgou que o Banco de Portugal, dirigido por Mário Centeno, multou um banco em um milhão de euros por práticas ilícitas, mas manteve o anonimato do infractor porque este pagou a coima.

    Também hoje, a generalidade dos media mainstream noticiaram que o mesmo Banco de Portugal instaurou, durante o primeiro semestre deste ano, um total de 59 processos de contraordenação a 25 instituições – também todas sob anonimato – que resultaram, maioritariamente, “de indícios de violação de normas em matéria de movimentação da conta de depósito à ordem, de denúncia do contrato de abertura de conta e de bloqueio de instrumento de pagamento”.

    Ainda no ano passado, em 19 de Julho, o mesmo jornalista do Expresso, Diogo Cavaleiro, já referia que 80% das coimas aplicadas pelo Banco de Portugal não tinham a identificação da instituição financeira infractora, destacando que Portugal era o “único [país] que tem condenações sob anonimato no Mecanismo de Supervisão”.

    E, presumo, que em 2023 continuará a fazer o mesmo…

    Os portugueses, como contribuintes, têm aparado, ao longo das últimas décadas, os mais atrozes desvarios financeiros de bancários e seus sequazes, sob a suposta supervisão do Banco de Portugal. A partir da sua torre de marfim – por inépcia, por compadrio ou por irresponsabilidade –, altos funcionários públicos permitiram casos como os do Banco Português de Negócios (BPN) e do Banco Espírito Santo (BES), só para citar os que criaram mais mossa. E aqueles que estão vivos, ainda estão bem e recomendados.

    Perante isto, que devem fazer os jornalistas?

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    Fazer como a imprensa, como o Expresso, que, ano após ano, lá vai batendo o ponto, noticiando a falta de transparência assumida pelo Banco de Portugal, protegendo os infractores da censura pública, e convidando-os a continuar a prevaricar, até porque o “valor do crime” compensa as eventuais multas a pagar?

    Ou fazer como o PÁGINA UM que, ao invés dessas “passivas denúncias” da imprensa mainstream, se mune de um espírito de jornalismo interventivo e independente, e com o apoio dos seus leitores, luta – com armas muito desiguais, é certo – para que o anonimato termine, para que o obscurantismo cesse?

    O tempo da simples denúncia tem de terminar. Por isso, em 21 de Julho passado, requeremos formalmente ao governador do Banco de Portugal o acesso integral ao processos de contra-ordenação de 2021 e do primeiro semestre deste ano.

    Como recusou, interpusemos em 25 de Agosto passado uma intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa contra o Banco de Portugal. Nunca nenhum outro órgão de comunicação social defendeu assim o direito de acesso à informação consagrado na Constituição e na Lei da Imprensa.

    brown wooden stand with black background

    E sabíamos o quão difícil seria quebrar este “estado de coisas” até porque o PÁGINA UM não recolhe, compreensivelmente, a simpatia da imprensa mainstream e, portanto, não teríamos a sua “solidariedade”, pelo menos divulgando o nosso acto que seja: o PÁGINA UM surgiu sobretudo porque a imprensa não tem apenas o dever e o direito de informar. Nem apenas de denunciar. Tem o dever de defender a democracia, quer esta esteja ausente; ou apenas presente no papel, mas não nos actos do quotidiano.

    Ainda ontem, nem de propósito, o PÁGINA UM interpôs um recurso para o Tribunal Central Administrativo do Sul. Gastou mais 306 euros em taxas de justiça que seguem para o Estado, porque perdemos na primeira instância. Perdemos na primeira parte, e continuaremos até saber se é lícito pensarmos que vivemos ainda numa democracia em Portugal, ou se o obscurantismo e a protecção de certas elites fala mais alto.

    E recorremos sobretudo porque não ficámos satisfeitos com a sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, no passado dia 10 de Outubro, que determinou que quem tem competência para decidir sobre se os processos de contra-ordenação são ou não consultáveis por um jornalista é o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, sediado em Santarém.

    green plant in clear glass cup

    Está bem de se ver a “estratégia”: não sendo um jornalista uma das partes directas – apenas querendo o acesso público aos documentos administrativos –, e sabendo-se que a esmagadora maioria dos processos de contra-ordenação levantadas às instituições financeiras nem sequer chega ao tribunal (porque os tornaria públicos após o seu término), o juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa – este em particular, pelo menos – quis embrulhar tudo para se manter tudo em contínuo anonimato, em contínuo obscurantismo. O Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão jamais pode determinar o acesso a processos que nem sequer lhe chegaram…

    Além disso, não se poderia ficar indiferente a um preocupante detalhe desta sentença de primeira instância do Tribunal Administrativo de Lisboa: o juiz do processo é casado com um alto quadro do Banco de Portugal, que aliás já foi assessora num ministério. O PÁGINA UM tem, aliás, documentos que provam essa ligação.

    Pessoalmente, já tenho muitas dúvidas de que um tribunal de recurso venha a dar razão ao PÁGINA UM, concedendo-lhe o direito de consultar estes documentos administrativos – que é isso que são os processos de contra-ordenação concluídos em qualquer entidade pública.

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    E se tenho dúvidas não é por duvidar da legalidade ou da justeza dessa pretensão – que, aliás, deveria ser um direito de qualquer contribuinte.

    Tenho dúvidas sim por ter plena consciência de que a luta do PÁGINA UM em prol da transparência será quixotesca, enquanto a imprensa mainstream continuar como anda: papagueando apenas aquilo que o Banco de Portugal e os outros poderes querem mostrar, e pouco mais fazendo do que denunciar, ano após ano, um perpétuo obscurantismo.

    Sem uma “vaga de fundo” da nossa imprensa – que abane consciências –, o pântano que se anda a criar em redor da nossa democracia só nos pode levar ainda mais para o fundo.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Até ao momento, o PÁGINA UM está envolvido em 13 processos de intimação, quatro dos quais em segunda instância, e ainda em duas providências cautelares. Até ao momento foram angariados 11.653 euros, um montante que começa a ser escasso face à dimensão e custos envolvidos nos processos. Na secção TRANSPARÊNCIA começámos a divulgar todas as peças principais dos processos em curso no Tribunal Administrativo. Este processo específico do Banco de Portugal pode ser consultado aqui.

  • O eclipse do jornalismo ou as fake news virais da Lusa

    O eclipse do jornalismo ou as fake news virais da Lusa


    Há metáforas tramadas. Por exemplo, eclipse.

    A Lusa – sempre a Lusa –, useira e vezeira, em mau serviço público, escreveu ontem sobre um eclipse que seria visto hoje, neste momento que vos escrevo. Erradamente.

    Mal não traria ao mundo se, enfim, mesmo existindo esse mau serviço pago pelos nossos impostos, a imprensa mainstream não fosse preguiçosa e, mais ciosa de cliques do que em informar e diversificar, e não se predispusesse acriticamente a divulgar takes atrás de takes vomitados por esta agência noticiosa do Estado e da Global Media, que são duas entidades que estão bem uma para a outra, para mal dos nossos pecados.

    O eclipse da desgraça do jornalismo português, ou o Sol no bairro da Graça, hoje em Lisboa, pelas 12:43 horas, sem vislumbre de um “anunciado” eclipse.

    Vejamos a tal notícia do eclipse parcial do Sol deste ano, tratada por um take da Lusa, e viralizada pela imprensa mainstream. Pela noite dentro, em cerca de uma hora, o dito take foi copiada pelos principais órgãos de comunicação social, fluindo em títulos e textos similares. Um fartote, ontem à noite:

    O Diário de Notícias, pelas 20:44 horas, titulava: “Eclipse parcial do Sol visível na terça-feira em Portugal se tempo deixar”.

    A Rádio Renascença, pelas 20:49 horas, titulava: Eclipse parcial do Sol visível na terça-feira em Portugal… se o tempo deixar”.

    Transmissão ao vivo do eclipse em space.com,mas não visível em Portugal.

    A TSF, pelas 20:56 horas, titulava: “Eclipse parcial do Sol visível na terça-feira se o tempo deixar”.

    O Observador, pelas 21:40 horas, titulava: “Eclipse parcial do Sol visível esta terça-feira em Portugal. Mas é preciso que as condições meteorológicas o permitam”.

    O Público, pelas 21:42 horas, titulava: “Eclipse parcial do Sol poderá ser visto em Portugal – se o tempo deixar”.

    O Jornal de Notícias, pelas 21:44 horas, titulava: “O último eclipse parcial do Sol de 2022 é esta terça-feira”.

    Em hora indeterminada, mas perto das 22:00 horas, a CNN Portugal titulava: “Vai poder ver em Portugal um eclipse parcial do Sol… se o tempo deixar”.

    Idem, a SIC Notícias titulava: “Eclipse parcial do Sol visível na terça-feira em Portugal”.

    E podia continuar… Houve muito mais a viralizar o infecto take da Lusa.

    Todas notícias iguais. Com variações de palavras no título. Quase sem alterações no conteúdo, remetendo todas até para um site credível de Astronomia, o Space.com.

    Sucede, porém, que todas sem excepção eram completamente falsas. E para confirmar isso bastaria, enfim, clicar no próprio site do Space.com…

    Na verdade, para se conseguir ver em território português este eclipse solar, que está neste momento a ocorrer, não precisaríamos apenas que o São Pedro ajudasse – como até ajudou, porque está um ensolarado dia (escrevo-vos de Lisboa); precisaríamos que, em vez de ter sido Napoleão a invadir Portugal, fosse D. João VI a invadir a França e Paris fosse ainda hoje parte de Portugal.

    E o mais ridículo é que o próprio site referenciado no take da Lusa, e replicado por toda a imprensa mainstream, explicitava de forma taxativa que o eclipse seria visível na Europa, excepto em Portugal. Até um mapa dinâmico mostravam, e até se podia colocar um pin para confirmar se em determinado local seria visível ou não,

    Nenhuma alminha, antes de colocar a notícia no ar, foi confimar a veracidade daquilo que oferecia aos seus leitores. Nem o jornalista da Lusa se deu ao trabalho de entrar no site que referenciou no take. Nem ninguém com responsabilidades editoriais dos outros órgãos de comunicação social foi confirmar.

    Sai na Lusa, sai tudo igual

    Enfim, a Lusa fez (mais) uma fake news. E a imprensa mainstream num par de horas tratou de a viralizar, tornando-a “verdadeira”, mesmo que de forma efémera.

    Mapa do Space.com indicando regiões da Europa onde o eclipse foi visível, podendo obter-se a informação explícita de não ser visível em Portugal.

    De facto, é certo que, com as evidências (não houve eclipse visível em solo português, apesar do céu limpo), e certamente chamadas de atenção de leitores, muitos órgãos de comunicação social foram “corrigindo o tiro”, embora muitos sem assumir o erro, a fake news, que tanto os preocupa mas apenas se forem nas redes sociais e em temas em que se mostram comprometidos.

    Este caso do falso eclipse em Portugal não teria grande gravidade se não fosse paradigmático do clima desbragado de notícias erradas, de autênticas fake news, que grassam diariamente pela nossa imprensa mainstream: incompetente, negligente, preguiçoso, homogénea ou monotemática, sem mostrar competitividade, não se importando de fazer igual aos demais, replicando textos como vírus, independentente de serem verdadeiras ou falsas.

    Fazem tudo isto em conjunto, em manada.

    E com isto eclipsam a sua credibilidade, esquecendo que sendo uma evidência que existem fake news a pulularem nas redes sociais, tal fenómeno se deve ao actual descrédito do jornalismo e dos jornalistas. Por causa de “coisas” como o eclipse.

    Viu-se isso vezes sem conta nos últimos anos, com a pandemia e a forma manipulatória, enviesada, incorrecta e mesmo falsa (por omissão ou de forma explícita) de muitas notícias. Vê-se isso agora, vezes sem conta, com a propaganda em redor de muitos assuntos, desde a guerra da Ucrânia às medidas governamentais, e tendo muitas vezes como rastilho a agência noticiosa do Estado.

    A Lusa faz e a imprensa mainstream transforma-se numa caixa de ressonância que, em demasiados casos, qual Midas, transmuta merda em ouro, mentira em verdade.

    Lamentavelmente, ao contrário do que sucede nos eclipses, que duram poucos minutos, temo que este eclipse do jornalismo perdure, ajudando a corromper a nossa já débil democracia.